Temeridade dos Sacerdotes no modo com que celebram o Santo Sacrifício da Missa
Infelizes são nossos tempos, que vemos tão mudados que, se voltassem ao mundo aqueles homens dos passados séculos, não os reconheceriam. Como sucedeu àquele sábio cidadão romano, que, voltando a Roma, sua pátria, donde havia estado muitos anos ausente, encontrou-a tão diferente que, soltando suspiros do coração, clamava pelas praças: Video Romam, Romanorum mores non video. Vejo Roma, mas não vejo os costumes dos romanos. (Continua)
Desse modo, parece-me que os que conheceram a santidade dos antigos Sacerdotes, aquela vida inculpável, aquela inocência de costumes, podiam também, com não menor admiração, clamar nestes tempos: Video Sacerdotes, Sacerdotum mores non video. Vejo bem os Sacerdotes, mas as virtudes e costumes dos Sacerdotes, essas não as encontro. Então via-os dirramando lágrimas pelos Altares pelos pecados do povo, e agora os acho tão irreverentes nos mesmos Altares, que é preciso pedir a Deus que perdoe as culpas dos Sacerdotes. Agora os vejo frequentes nas praças e nos teatros, e rara vez nas Igrejas; descuidados em buscar as Almas dos pecadores, e solícitos em seguir o alcance das lebres e dos veados. Sustentam mais cães para a caça do que pobres de Jesus Cristo; tem a cama mais adereçada do que o Altar; cuidam mais da mesa que da Missa; é mais precioso o vaso com que bebe do que o Cálice em que consagra; o vestido é mais custoso que a Casula; a toalha, mais limpa que os Corporais. Estes são os mais validos de Deus, esta é aquela geração escolhida pelo Altíssimo para sentá-los no Trono de seus Altares e sacrificar a Vítima de Seu Eterno Filho, selados com o glorioso caráter de Seus Ministros, e vestidos da Real Púrpura do Sacerdócio. Agora os vejo dissipar, não dispensar, os mistérios de nossa Redenção, e oferecer mais vítimas ao ídolo de seus apetites, do que Sacrifícios ao Deus de Majestade.
Justos serão os clamores e as lágrimas dos que hoje vissem o Sacerdote, mais escandaloso do que o leigo, e, o mais favorecido, mais ingrato. Muitas são as ingratidões que os Ministros do Altar usam com o Redentor Sacramentado, e mais para escrever-se-as com lágrimas que com tinta. Não referirei aqui algumas maldades enormes, das quais ainda uma grande parte tocou ao nosso século chorar. Não me detenho em contar a impiedade daquele que não merece o nome de Sacerdote, o qual, numa cidade da França, celebrava a Missa à honra de seu demônio assistente, e, depois de consagrar com reta intenção, pisava a Sagrada Hóstia com os pés, e A dava a comer aos cachorros, e, derramando o Sangue de Jesus sobre a cabeça de outros atrevidos e pérfidos malvados, clamavam todos em altas vozes: Sanguis ejus super nos. Deixo outros casos indignos de escrever-se e saber-se. Apontarei só duas das mais frequentes ingratidões em que incorrem os Sacerdotes contra o amante Jesus Sacramentado.
Uma delas é a grande irreverência com que celebram o tremendo Sacrifício da nossa Redenção. Tocam, benzem e manejam com pouco respeito e atenção o adorável Corpo de Jesus, que muitos hereges, entrando em nossas igrejas, fizeram burla de ver tratar tão indecentemente um Mistério Que lhes dissemos ser o mais Augusto e o mais Divino de nossa Religião. O doutíssimo Mestre João d'Ávila, Apóstolo da Andaluzia, vindo a um Sacerdote que celebrava o Sacrifício do Altar com irreverência grande, chegando-se a ele, disse-lhe: Trata melhor Este Senhor, que é Filho de bons Pais. Convosco fala ainda, ó Sacerdote, essa apostólica língua! Sabeis de Quem é Esta Carne, Que, com vossa palavra, produzis sobre este Altar? Sabeis de Que é Este Corpo e Sangue Que manejais e bebeis com tanta liberdade? É do Filho dum bom Pai, é do Unigênito de vosso Criador, é o Sangue de Deus vivo e de infinita Majestade. É o Filho de tão boa Mãe, como Maria Santíssima, Cuja carne, no sentir de Santo Agostinho, é a mesma que A de Jesus Sacramentado. Como, pois, não vos tremem as mãos ao tocá-l'O com tanta irreverência?
Aquela brasa com que o Serafim purificou os lábios de Isaías, só por representar-se nela Este Divino Sacramento, não se atreveu a tocá-la com as mãos, mas a tomou do Altar com umas tenazes. Pois se, para tomar uma figura do Corpo de Jesus, não são puras as mãos de um Serafim, como o serão, para tocar o próprio Corpo, as mãos de um lascivo? Por essa razão clamava Santo Ambrósio: Vide quid agas, Sacerdos, ne febrienti manu Christi Corpus attingas. Ministros do Altar, olhai bem o que fazeis, guardai-vos de tocar a Carne de Cristo com a mão cheia de lepra, não metais em seu costado os dedos cancerosos. Os próprios gentios tinham tanto horror de chegar manchados para oferecer as vítimas aos seus simulacros, que, por todas as partes, se ouvia este ditado: Procul esto profani et manibus puris sumite fontis aquam.
Vereis outros celebrando o tremendo Sacrifício da nossa Redenção com tanto desprezo pelas cerimônias, com tanta precipitação de palavras, como se não tivessem outra meta que apartar de seus olhos Aquela Divina Hóstia, Que devia ser o único objeto de seu amor. Seria delito grande querer perduadi-los a gastar meia hora de tempo em celebrar uma Missa, quando consomem a maior parte do dia em tantas profanidades. Sacerdote houve que apostou com o próprio demônio quem acabava mais depressa: esse em levar uma pedra de uma cidade a outra, ou ele em oferecer o Sacrifício da Missa.
Obstupescite Cæli super hoc! Pasmai, Céus, maravilhai-vos, Anjos, dum caso de tanta admiração! Creio verdadeiramente que os corações daqueles Serafins estão atônitos em ver o que se passa em nossos Altares. Chorai, porém, vós, Sacerdotes: Plangite Sacerdotes et ululate. Porque as ingratidões de outros homens, à vista das vossas, são como finezas. Dizia Santo Agostinho que o Cristão que peca depois de ser comprado com o Sangue de Cristo merece que se faça de novo um inferno para ele. Pois que diria de vós, que não só sois comprados, mas como se fôsseis senhorse do mesmo Sangue? Pois é certo que tendes domínio sobre Ele e poder para reproduzi-l'O, manejá-l'O, benzê-l'O e dispensá-l'O. Ó, que desgraça seria, que Aquele Sacrifício, Que agora ofereceis pelos pecados alheios, sirva aos outros de remédio, e a vós, de condenação! Presságio funesto foi para César de uma cruel morte, não achar coração na vítima que oferecia a seu falso Numen. Que prognóstico, pois, tão infeliz será para vós, quando se verão quantas vítimas sacrificastes ao verdadeiro Deus, sem coração, isto é, sem merecimento nem agrado do Altíssimo, antes, em lugar de coração, não vereis derramado nesses Cálices mais do que o fel da ira de Deus, Que, convertendo em fezes Seu precioso licor, bebê-las-eis com sumo tormento vosso: Quia Calix in manu Domini vini meri plenus mixto, fex ejus non est exinanita.
Então vereis o que é chegar-vos indevotos ao Altar, desprezar uma cerimônia, fazer no ar uma genuflexão, dizer distraídos uma Missa. E se esses serão contra vós monstros muito horríveis, que será um Sacrifício oferecido em pecado mortal? Que será ver, então, o leão irado sobre vossas cabeças, Aquele Que agora, como manso cordeiro, tentes em vossas mãos? O imperador germânico não se deu por seguro da ira do deus Ape, quando esse não pôs os olhos em seu sacrifício; nem a Graco tardou muito a ruína, logo que o vendo lhe fez voar a vítima que oferecia. Que podeis, pois, esperar, Ministros do Sangue de Jesus, se vossos Sacrifícios, se vossas vítimas não só voaram pelos ares, como inúteis para vós, mas serão levados ao Trono da Divina Justiça, onde clamará contra vós o Sangue do Inocente Abel? Pensai seriamente num caso tão funesto, que eu também, pelo que me toca, vos acompanho com grande temor.
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