31 de agosto de 2013

Martírio de Maria Santíssima ao pé da Cruz.

Stabat autem iuxta crucem Iesu mater eius – “Estava ao pé da cruz de Jesus, sua Mãe” (Io. 19, 25).

Sumário. Do martírio de Maria sobre o Calvário, não é necessário dizer outra coisa senão o que diz São João: contempla-a vizinha à cruz à vista de Jesus moribundo, e depois, vê se há dor semelhante a sua dor. O que mais atormentou a nossa Mãe dolorosa, foi o ver que ela mesma com sua presença aumentava as aflições do Filho e que para grande parte dos homens o sangue divino seria causa de maior condenação. Se Jesus e Maria, apesar de inocentes, sofreram tanto por nosso amor, a nós, que merecemos mil infernos, não desagrade sofrer alguma coisa por amor deles e em satisfação por nossos pecados.

I. Admiremos uma nova espécie de martírio; uma Mãe condenada a ver morrer diante de seus olhos, no meio de bárbaros tormentos, um Filho inocente e amado com todo o afeto. Estava ao pé da cruz (de Jesus) sua Mãe. Como se São João dissesse: Não é necessário dizer outra coisa do martírio de Maria: contempla-a vizinha à cruz, à vista do Filho moribundo, e depois vê se há dor semelhante à sua dor.

Mas para que servia, ó Senhora, lhe diz São Boaventura, ires ao Calvário? Devia reter-vos o pejo, pois que o opróbrio de Jesus foi também o vosso, sendo vós sua mãe. Ao menos devia reter-vos o horror de tal delito, como ver um Deus crucificado pelas suas mesmas criaturas. Mas responde o mesmo Santo: Non considerabat cor tuum horrorem, sed dolorem. Ah! O vosso Coração não pensava no seu próprio sofrimento, mas na dor e na morte do amado Filho, e por isso, quisestes vós mesma assistir-Lhe, ao menos para Lhe mostrar a vossa compaixão.

Oh Deus! Que espetáculo doloroso era ver o Filho agonizante sobre a cruz e, ao pé da cruz, ver agonizar a Mãe, que sofria no coração todas as penas que o Filho padecia no corpo! – Eis aqui como a mesma Bem-aventurada Virgem revelou a Santa Brígida o estado lastimoso do seu Filho moribundo, conforme ela o presenciou: “Estava meu amado Jesus na cruz, todo aflito e agonizante; os olhos estavam encovados e meio fechados e amortecidos; os lábios pendentes e a boca aberta; as faces descarnadas, pegadas aos dentes e alongadas; afilado o nariz, triste o rosto; a cabeça pendia-lhe sobre o peito; os cabelos estavam negros de sangue, o ventre unido aos rins; os braços e as pernas inteiriçadas e todo o resto do corpo coalhado de chagas e de sangue.” Ó pobre de meu Jesus! Ó martírio cruel para o coração de uma mãe!

II. Quem se achasse então sobre o Calvário, diz São João Crisóstomo, teria visto dois altares, nos quais se consumavam dois grandes sacrifícios: um no corpo de Jesus, outro no coração de Maria. Mas melhor me parece, com São Boaventura, considerar ali um só altar, isto é, só a cruz do Filho, no qual, juntamente com a vítima do Cordeiro divino, é sacrificada também a Mãe. Por isso o Santo pergunta-lhe assim: O Domina, ubi stas? – “Ó Maria, onde estais?” Junto à cruz? Ah! Mais exatamente direi que estais na mesma cruz, a sacrificar-vos, crucificada juntamente com Jesus.

O que mais afligia a nossa Mãe dolorosa, era o ver que ela mesma, com a sua presença, aumentava as aflições do Filho, porquanto, como diz o mesmo santo Doutor, a mesma pena que enchia o Coração de Maria, transbordava para amargurar o Coração de Jesus; e Jesus padecia mais pela compaixão da Mãe, do que pelas suas próprias dores. Acresce que, lembrando-se Maria da profecia de Simeão, já desde então previu que os padecimentos de Jesus Cristo seriam, pela culpa dos homens, inúteis para grande parte deles, e ainda mais, causa de maior condenação: Ecce positus est hic in ruinam et resurrectionem multorum (1) – “Eis que este é posto para ruína e ressurreição de muitos”.

Roguemos à nossa divina Mãe, pelos merecimentos desta sua dor, que nos obtenha verdadeira dor dos nossos pecados e verdadeira emenda de vida, zelo fervoroso pela salvação das almas e uma terna compaixão dos sofrimentos de Jesus Cristo e pelas suas próprias dores. Se Jesus e Maria, apesar de tão inocentes, quiseram sofrer alguma coisa por amor deles. Por isso digamos com São Boaventura: “Ó Maria, se no passado vos ofendi, vingai-vos agora ferindo-me o coração; se vos servi fielmente, também outra recompensa não vos peço, senão que me firais. Demais indecoroso seria para mim ficar ileso, ao passo que Vos vejo repletos de dores, a vós e a meu Senhor Jesus Cristo.” Poenas mecum divide – “Reparti comigo as penas”. (*I 244.)

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1. Luc. 2, 34.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 74-76.)

Imitação de Cristo - Livro 3 Capítulo 4

CAPÍTULO 4

Que devemos andar perante Deus em verdade e humildade

1. Jesus: Filho, anda diante de mim em verdade e procura-me sempre com simplicidade de coração. Quem anda diante de mim na verdade será defendido dos ataques inimigos, e a verdade o livrará dos enganos e das murmurações dos maus. Se te libertar a verdade, serás verdadeiramente livre e não farás caso das vãs palavras dos homens.
2. A alma: Verdade é, Senhor, o que dizeis; peço-vos que assim se faça comigo. A vossa verdade me ensine, me defenda e me conserve até meu fim salutar. Ela me livre de toda má afeição e amor desregrado e assim poderei andar convosco, com grande liberdade de coração.
3. Jesus: Eu te ensinarei, diz a Verdade, o que é justo e agradável a meus olhos. Relembra teus pecados com grande dor e pesar e jamais te desvaneças por tuas boas obras. Com efeito, és pecador, sujeito a muitas paixões e preso em seus laços. De ti pendes sempre para o nada; depressa cais, logo és vencido, logo perturbado, logo desanimado. Nada tens de que possas gloriar-te; muito, porém, para te humilhar; pois és muito mais fraco do que podes imaginar.
4. Nada, pois, do que fazes te pareça grande, nada precioso e admirável, nada digno de apreço, nada nobre, nada verdadeiramente louvável e desejável, senão o que é eterno. Acima de tudo te agrade a eterna verdade, e te desagrade a tua extrema vileza. Nada temas, nada vituperes e fujas tanto como os teus vícios de pecados, que te devem entristecer mais do que quaisquer prejuízos materiais. Alguns não andam diante de mim com simplicidade, mas, curiosos e arrogantes, pretendem saber meus segredos e compreender os sublimes mistérios de Deus, descurando-se de si próprios e de sua salvação. Estes, por sua soberba e curiosidade, não raro caem em grandes tentações e pecados, porque me afasto deles.
5. Teme os juízos de Deus, treme da ira do Onipotente. Não queiras discutir as obras do Altíssimo; examina antes as tuas iniqüidades, quanto mal cometestes e quanto bem deixastes de fazer por negligência. Alguns põem toda a sua devoção nos livros, outros nas imagens, outros em sinais e exercícios exteriores. Alguns me trazem na boca, mas mui pouco no coração. Outros há, porém, que, alumiados no entendimento e purificados no afeto, sempre suspiram pelos bens eternos; não gostam de ouvir das coisas da terra e com repugnância satisfazem as exigências da natureza; estes percebem o que lhe diz o Espírito da Verdade. Pois lhes ensina a desprezar as coisas terrenas e amar as celestiais, a esquecer o mundo e almejar o céu dia e noite.

Tesouro de Exemplos - Parte 379

HEROÍNA CHINESA

Maria Lu-te, presidente da Congregação Mariana das môças de Wu-hu, na China, apesar de recebida na Religião há dois anos apenas, distingue-se por sua modéstia e fervor. Todos os professôres de certa escola católica bandearam-se para a igreja cismâtica, organizada pelos comunistas, exceto Maria. No dia 12 de maio, véspera de Pentecostes, enfrentou o tribunal popular, permanecendo firme na fé, sem que a pudessem de modo algum seduzir ou amedrontar. Até os professôres, seus colegas, a injuriavam. Antes que lhe atassem as mãos, escreveu num bilhetinho: "Eu sou chinesa e, como tal, amo a minha pátria. Eu sou cristã e, assim sendo, amo a Deus, a lgreja, o Santo Padre e os missionários". Enquanto isso o povo estendia o punho, exclamando: "Matem-na! Matem-na!" - Maria olhava para todos com grande serenidade até que a arremessaram à prisão (Ao. 1951).

Confiança! - Pe. Thomas de Saint Laurent - 11

O Livro da Confiança

Pe. Thomas de Saint Laurent


Capítulo III - A Confiança em Deus e as necessidades temporais

I - Deus provê às nossas necessidades temporais

A confiança, já o dissemos, é uma esperança heróica; não difere da esperança comum a todos os fiéis senão pelo seu grau de perfeição. Ela é, pois, exercida sobre os mesmos objetos que aquela virtude, mas por meio de atos mais intensos e vibrantes.

Como a esperança ordinária, a confiança espera do Pai Celeste todos os socorros que são necessários para se viver santamente aqui na terra e merecer a bem-aventurança do Paraíso.
Ela espera, primeiramente, os bens temporais na medida em que estes nos podem conduzir ao fim último.
Nada mais lógico: não podemos ir à conquista do Céu à maneira dos puros espíritos; somos compostos de corpo e de alma. Este corpo que o Criador formou pelas suas mãos adoráveis é o companheiro inseparável da nossa existência terrestre; e sê-lo-á ainda da nossa sorte eterna depois da ressurreição geral. Não podemos prescindir da sua assistência na luta pela conquista da vida bem-aventurada.
Ora, para sustentar-se, para cumprir plenamente a sua tarefa, o corpo tem múltiplas exigências. Essas exigências, é preciso que a Providência as satisfaça; e ela fá-lo magnificamente.
Deus encarrega-se de prover às nossas necessidades temporais; cuida delas generosamente. Segue-nos com olhar vigilante e não nos deixa na indigência. Perante as dificuldades materiais mais angustiantes, não nos devemos perturbar. Com uma certeza serena esperemos das mãos divinas o que é preciso para o sustento da nossa vida.
“Eu vos digo, declara o Salvador, não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou de beber, nem quanto ao vosso corpo com o que haveis de vestir. Porventura não é o corpo mais do que o vestido e a vida mais do que o alimento? Olhai para as aves do céu: Não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai Celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas?...
“Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai como crescem os lírios do campo! Não trabalham nem fiam. Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé?
“Não vos preocupeis, dizendo: Que comeremos nós, que beberemos, ou que vestiremos? Os pagãos, esses sim, afadigam-se com tais coisas; porém, o vosso Pai Celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso.
“Procurai pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (33).
Não basta passar os olhos de relance sobre este discurso de Nosso Senhor. Importa que nele fixemos longamente a atenção, para procurarmos o seu significado profundo e nos deixarmos embeber pela sua doutrina.
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33 ) Mt. 6, 25-26 e 28-33.

30 de agosto de 2013

Jesus tratado como o último dos homens.

Vidimus eum... despectum et novissimum virorum – “Vimo-Lo... feito um objeto de desprezo e o último dos homens” (Is. 53, 3).

Sumário. Considera a grande maravilha que se viu um dia na terra: o Filho de Deus, feito homem por amor dos homens, foi desprezado por estes mesmos homens, como se fosse o mais vil de todos, e tratado como doido, bêbado, blasfemador e réu de mil mortes. Meu irmão, representemo-nos bem vivamente o nosso maltratado Senhor: demos-Lhe graças pelo muito que por nós sofreu, consolemo-Lo com nosso arrependimento das injúrias que Lhe fizemos, e digamos-Lhe que por seu amor queremos de hoje em diante suportar com resignação as dores, as humilhações e os desprezos.

I. Eis a grande maravilha que se viu um dia no mundo: o Filho de Deus, o Rei do céu, o Senhor do universo, foi desprezado como o mais vil de todos os homens. Afirma Santo Anselmo que Jesus Cristo quis ser desprezado e humilhado nesta terra a tal ponto, que os desprezos e as humilhações que sofreu não podiam ser maiores. – Foi tratado como homem de baixa condição: Não é Ele porventura filho de um carpinteiro? (1) Foi desprezado por causa da sua terra: Pode vir de Nazaré alguma coisa boa? (2) Foi tido por doido: Perdeu o juízo, porque o estais ouvindo? (3) Foi tido por glutão e amigo do vinho: Vejam o homem glutão, que bebe vinho (4). Por feiticeiro: É pelo poder do príncipe dos demônios que Ele expulsa os demônios (5). Por hereje: Não dizemos nós bem que és samaritano? (6)

As maiores injúrias, porém, Lhe foram feitas durante a sua Paixão; e particularmente durante a noite em que foi preso pelos Judeus. Quando Jesus declarou ser Filho de Deus, o ímpio Caifás, tratando-O de blasfemo, disse aos demais sacerdotes: “Blasfemou: que necessidade temos agora de testemunhas? Vós mesmos ouvistes a blasfêmia. Que vos parece?” E eles responderam: “É réu de morte.” (7) Então, assim continua o Evangelista, cuspiram-Lhe na face, e o feriram a punhadas, e tratando-o como falso profeta, disseram: “Advinha, Cristo: quem é que te bateu?” (8)

Numa palavra, foi então que se realizou a profecia de Isaías: “Entreguei o meu corpo aos que me feriam, e minhas faces aos que me arrancavam os cabelos da barba; não virei o rosto aos que me afrontavam e cuspiam em mim.” (9) – No meio de tantas ignomínias que nosso Salvador sofreu naquela noite, sua dor foi ainda aumentada pela injúria que Lhe fez Pedro, seu discípulo, renegando-o três vezes, e jurando que nunca o tinha conhecido.

II. Almas devotas, vamos a visitar o nosso Salvador aflito naquele cárcere, onde se acha abandonado de todos, tendo por única companhia os seus inimigos, que porfiam em escarnecê-Lo. Agradeçamos-Lhe o muito que por nós sofreu com tamanha paciência, e consolemô-Lo com nosso pesar das injúrias que Lhe fizemos, visto que no passado nós também fomos do número daqueles que O desprezaram e pelo pecado negamos conhecê-Lo.

Ó meu amável Redentor, quisera morrer de dor ao pensar que amargurei tanto o vosso Coração que tanto me amou. Por piedade, esquecei os desgostos que Vos dei, e lançai sobre mim um olhar de amor, assim como o lançastes sobre Pedro depois da sua renegação; desde então até ao fim de sua vida ele nunca mais deixou de chorar o seu pecado. Ó grande Filho de Deus, ó amor infinito, Vós que sofrestes por esses mesmos homens que Vos odeiam e maltratam; Vós sois o objetivo da adoração dos anjos, a majestade infinita, e seria uma honra bem grande para os homens, se os admitísseis a beijar-Vos os pés. Mas, ah, céus, como é que naquela noite quisestes fazer-Vos ludibrio de uma multidão infame?

Ó meu desprezado Jesus, deixai-me ser desprezado por vosso amor. Como poderei recusar os desprezos, vendo que Vós, meu Deus, sofrestes tantos por meu amor? Ah, Jesus crucificado, fazei-Vos conhecer e fazei-Vos amar; fazei também que eu sempre tenha na mente a vossa Paixão. – Oh céus! Que pena não sofrerão os réprobos no inferno, vendo o muito que o Senhor sofreu para os salvar e que, não obstante isto, se quiseram perder! Meu Jesus, não permitais que eu seja do número daqueles infelizes. Não, nunca mais quero esquecer-me do amor que me mostrastes sofrendo por mim tantas penas e ignomínias. Ajudai-me a amar-Vos e a lembrar-me sempre do amor que me haveis tido. – Ó minha Mãe dolorosa, Maria, peço-vos a mesma graça. (I 725.)

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1. Matth. 13, 55.
2. Io. 1, 46.
3. Io. 10, 20.
4. Luc. 7, 34.
5. Matth. 9, 34.
6. Io. 8, 48.
7. Matth. 26, 65 et 66.
8. Matth. 26, 68.
9. Is. 50, 6.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 71-73.)

Imitação de Cristo - Livro 3 Capítulo 3

CAPÍTULO 3

Como as palavras de Deus devem ser ouvidas com humildade e como muitos não as ponderam

1. Jesus: Ouve, filho, as minhas palavras, palavras suavíssimas que excedem toda a ciência dos filósofos e sábios deste mundo. As minhas palavras são espírito e vida (Jo 6,64), e não se devem interpretar humanamente. Não devem ser abusadas para vã complacência, mas devem ser ouvidas em silêncio e recebidas com máxima humildade e grande afeto.
2. A alma: E disse eu: Bem-aventurado o homem a quem instruís, Senhor, e lhe ensinais a vossa lei, para suavizar-lhe os dias maus e dar-lhe consolo neste mundo (Sl 93, 12.13).
3. Jesus: Eu, diz o Senhor, desde o princípio ensinei aos profetas e ainda agora não cesso de falar a todos; mas muitos são insensíveis e surdos à minha voz. A muitos agrada mais a voz do mundo que a de Deus; mais facilmente seguem os apetites da carne que o preceito divino. O mundo promete apenas coisas temporais e mesquinhas e é servido com grande ardor; eu prometo bens sublimes e eternos, e só encontro frieza nos corações dos mortais. Quem há que me sirva e obedeça em tudo com tanto empenho como se serve ao mundo e aos seus senhores? Envergonha-te, Sidon, diz o mar (Is 23, 4). E se queres saber por que, ouve o motivo: Por um pequeno salário se empreendem grandes viagens, e pela vida eterna muitos nem dão um passo sequer. Busca-se o lucro vil; por um vintém, às vezes, há torpes brigas; por uma ninharia e promessa mesquinha não se teme a fadiga, nem de dia, nem de noite.
4. Mas que vergonha! Pelo bem imutável, pelo prêmio inestimável, para honra suprema e pela glória sem fim, o menor esforço nos cansa. Envergonha-te, pois, servo preguiçoso e murmurador, por serem os mundanos mais solícitos para a perdição que tu para a salvação. Procuram eles com mais gosto a vaidade que tu a verdade. Entretanto, não raro, sua esperança os engana; mas minha promessa a ninguém falta, nem despede com as mãos vazias ao que em mim confia. Darei o que prometi, cumprirei o que disse, contanto que se persevere fiel no meu amor até ao fim. Eu sou quem remunera todos os bons e sujeita a provas duras todos os devotos.
5. Grava minhas palavras em teu coração e medita-as atentamente, porque te serão muito necessárias na hora da tentação. Coisas que agora não entendes quando lês, entenderás quando eu te visitar. De dois modos costumo visitar meus eleitos: pela tentação e pela consolação. E duas lições lhes dou cada dia: numa repreendo-lhes os vícios e noutra exorto-os ao progresso na virtude. Quem ouve a minha palavra e a despreza, por ela será julgado no último dia.
6. Oração para implorar a graça da devoção: A alma: Meu Senhor e meu Deus! Vós sois todo o meu bem. E quem sou eu para me atrever a falar-vos? Eu sou vosso paupérrimo servo, um vil vermezinho, muito mais pobre e desprezível do que sei e ouso dizer. Lembrai-vos, Senhor, de que sois bom, justo e santo; vós tudo podeis, tudo dais, tudo encheis, e só ao pecador deixais vazio. Lembrai-vos de vossas misericórdias (Sl 24,6) e enchei meu coração com a vossa graça, pois não quereis que sejam infrutuosas vossas obras.
7. Como poderei eu, nesta miserável vida, suportar-me a mim mesmo, se não me confortar vossa graça e misericórdia? Não desvieis de mim a vossa face, não demoreis a vossa visita, não me tireis o vosso consolo, para que não fique a minha alma diante de vós qual terra sem água (Sl 142, 6). Ensinai-me, Senhor, a fazer vossa vontade (Sl 142, 10), ensinai-me a andar em vossa presença, digna e humildemente; pois vós sois minha sabedoria, que em verdade me conheceis antes de ser feito o mundo, e antes de eu nascer na terra.

Tesouro de Exemplos - Parte 378

O CASTIGO NÃO SE FÊZ ESPERAR

Em 1931, na festa de Corpus Christi, o bispo de Nantes (França), por causa do mau tempo, suspendeu a procissão do SS. Sacramento. No dia seguinte os jornais socialistas e maçônicos de Nantes zombavam da decisão do prelado. "Que faz o vosso Deus? (escrevia um dêles em tom de desprêzo). Nós nos rimos dêle. Para o próximo domingo, 7 de junho, organizamos uma excursão a Saint-Nazaire pelo vapor "Saint Philibert". Vereis como tudo correrá bem, apesar de que todos os excursionistas perderão a missa para tomar o cruzeiro".
Chegou o domingo 7 de junho. Eram 600 os passageiros que bem cedo embarcaram no vapor. O "Saint Phiiibert" desceu bem o Loire, chegou-a Saint-Nazaire e depois saiu do estuário e entrou no Atlântico para um breve giro ao largo. De repente formou-se um denso nevoeiro; não se via nem se ouvia nada a dez metros de distância. Não demorou muito a catástrofe: um choque tremendo com um poderoso transatlântico, que partia pelo meio o pequeno vapor francês. Após dois minutos de gritos de terror, um silêncio de morte. O "Saint Philibert" submergia no oceano para sempre. 499 excursionistas desapareceram nas ondas; quatro enlouqueceram; os outros foram salvos com dificuldade por outro vapor; o capitão, desesperado, deixou-se afundar com seu navio.
Assim respondia Deus à provocação dos míseros homenzinhos da seita.

Confiança! - Pe. Thomas de Saint Laurent - 10

O Livro da Confiança

Pe. Thomas de Saint Laurent


Capítulo II - Natureza e qualidades da Confiança

V - Regozija-se até com a privação de socorros humanos

Não desanimar quando se dissipa a miragem das esperanças humanas e só contar com o auxílio do Céu, não é já altíssima virtude?
 
Com as suas asas vigorosas, a verdadeira confiança lança-se, no entanto, para regiões ainda mais sublimes. A elas chega por uma espécie de requinte de heroísmo; atinge então o mais alto grau da sua perfeição.
 
Esse grau “consiste em regozijar-se a alma quando se vê privada de qualquer apoio humano, abandonada de parentes, de amigos, de todas as criaturas que não querem ou não podem socorrê-la: que não podem dar-lhe conselho nem servi-la com o seu talento ou o seu crédito; a quem nenhum meio resta de vir-lhe em auxílio” (30). Que sabedoria profunda denota semelhante alegria em circunstâncias tão cruéis!
 
Para poder entoar o cântico da Aleluia sob golpes que, naturalmente, deveriam quebrar a nossa energia, é preciso conhecer a fundo o coração de Nosso Senhor; é preciso acreditar perdidamente na sua piedade misericordiosa e na sua bondade omnipotente, é preciso ter a absoluta certeza de que Ele escolhe, para a sua intervenção, a hora das situações desesperadoras.
 
Depois de convertido, São Francisco de Assis desprezou os sonhos de glória que antes o haviam deslumbrado. Fugia às reuniões mundanas, refugiava-se nos bosques para entregar-se longamente à oração; dava esmola generosamente. Esta mudança desagradou a seu pai, que arrastou o filho perante a autoridade diocesana, acusando-o de dissipar-lhe os bens. Então, em presença do Bispo maravilhado, Francisco renuncia à herança paterna; tira até as roupas que lhe vinham da família; despoja-se de tudo. Depois, vibrando de uma felicidade sobre-humana, exclama: “Agora sim, ó meu Deus, poderei chamar-Vos mais verdadeiramente do que nunca: Pai nosso que estais no Céu!”
 
Eis aí como agem os Santos.
 
Almas feridas pelo infortúnio, não murmureis no abandono a que vos achais reduzidas. Deus não nos pede uma alegria sensível, impossível à nossa fraqueza. Reanimai somente a vossa fé, tende coragem e, segundo a expressão cara a São Francisco de Sales, na “fina ponta da alma”, esforçai-vos por ter alegria.
 
A Providência acaba de vos dar o sinal certo, pelo qual se reconhece a sua hora: ela vos privou de qualquer apoio. É o momento de resistir à inquietação da natureza. Chegastes ao ponto do ofício interior em que se deve cantar o Magnificat e fazer fumegar o incenso. “Regozijai-vos no Senhor; eu vos repito, regozijai-vos: o Senhor está perto!” (31).
 
Segui este conselho e vos dareis bem. Se o Mestre Divino não se deixasse tocar por tamanha confiança, não seria Aquele que os Evangelhos nos mostram tão compassivo, Aquele que a visão dos nossos sofrimentos fazia estremecer de dolorosa emoção.
 
Nosso Senhor dizia a uma alma privilegiada: “Se sou bom para todos, sou muito bom para os que confiam em Mim. Sabes quais são as almas que mais aproveitam da minha bondade? As que mais esperam... As almas confiantes roubam as minhas graças!” (32).

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30 ) Saint-Jure: De la connaissance et de l'amour de J. C., t. III, p. 4.
31 ) “Alegrai-vos sempre no Senhor, repito, alegrai-vos (...) o Senhor está perto” (Filipenses, 4, 4-5).
32 ) Irmã Benigna Consolata Ferrero, páginas 95 e 96. Tip. Rondil, Lyon. - Esta biografia apareceu em 1920, com o imprimatur do Arcebispado e as declarações prescritas pelos decretos de Urbano VIII.

29 de agosto de 2013

Jesus no Santíssimo Sacramento dá audiência a todos e a qualquer hora.

Ad vocem clamoris tui, statim ut audierit, respondebit tibi — “Logo que ouvir a voz do teu clamor, te responderá” (Is 30, 19).

Sumário. Os reis da terra não dão sempre audiência e muitas vezes acontece que o que lhes deseja falar é despedido pelos guardas a pretexto de que não é tempo de audiência e deve vir mais tarde. Jesus, porém, no Santíssimo Sacramento, não faz assim; dá audiência a todos e a toda hora. É por isso que as igrejas estão sempre abertas. Porque então é que nós, que temos a sorte feliz de morar no palácio do Senhor, não aproveitamos melhor a sua condescendência para lhe expor as nossas necessidade e pedir graças?

I. Falando do nascimento do Redentor no presépio de Belém, São Pedro Crisólogo diz que os reis da terra não dão sempre audiência, e que, quando alguém lhes deseja falar, muitas vezes acontece que os guardas o despedem a pretexto de que não é tempo de audiência e deve vir mais tarde. O divino Redentor, pelo contrário, quis nascer numa gruta aberta, sem portas nem guardas, para dar audiência a todo o mundo e a toda a hora: Non est satelles qui dicat: Non est hora — “Não  há guarda para dizer que não é a hora”. Isto mesmo faz Jesus no Santíssimo Sacramento. As Igrejas estão continuamente abertas; cada um pode, quando lhe aprouver, ir entreter-se com o Rei do céu.

E lá, Jesus quer que lhe falemos com toda a confiança: por esta razão é que ele se conserva sob as espécies de pão. Se o Senhor aparecesse sobre os altares num trono de luz, como aparecerá no juízo final, quem se atreveria a se aproximar d'Ele? Mas, reflete Santa Teresa, como Ele deseja que lhe falemos e peçamos suas graças cheios de confiança e sem temor, velou sua majestade sob as espécies de pão. Ele deseja, diz também Tomás de Kempis, que falemos a Ele como um amigo fala a seu amigo. Por isso, acrescenta o cardeal Hugo, nos sagrados Cânticos Jesus se chama a si próprio flor dos campos e açucena dos vales: Ego flos campi et lilium convallium (1). As flores dos jardins são encerradas e reservadas; mas as flores dos campos estão à disposição de todos.

Qual não seria a tua alegria, meu irmão, se o rei te chamasse ao seu gabinete e te falasse: Dize-me, que desejas? De que precisas? Amo-te e desejo fazer-te bem. Pois é isto o que Jesus Cristo, o Rei do céu, diz a qualquer que O visita: Venite ad me omnes qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos (2) — “Vinde a mim, vós todos que sois pobres, enfermos, aflitos: eu posso e quero enriquecer-vos, curar-vos e consolar-vos; é para isto que me conservo sobre os altares”.

II. Procura ir muitas vezes à audiência junto ao Rei do céu, e, se ainda não o tens, toma o belo hábito de assistir todas as manhãs à santa missa, durante a qual Jesus sacramentado dispensa as suas misericórdias mais profusamente. Não te detenham mais de render esta homenagem a Jesus Cristo, nem os negócios terrestres, nem o respeito humano. Thomas Morus, no meio dos seus múltiplos afazeres como Chanceler da Inglaterra, achava ainda todos os dias o tempo para assistir à missa, nem julgava indecoroso à sua dignidade o servir ele mesmo ao celebrante. Certo dia, enquanto praticava a sua bela devoção, avisaram-no que o rei o estava esperando. Thomas respondeu: “Tenha um pouco de paciência, primeiro devo tributar minha homenagem a um Soberano de mais alta hierarquia e assistir até ao fim à audiência do Rei do céu”.

Amadíssimo Jesus meu, já que residis sobre os altares, para escutar as orações dos infelizes que a Vós recorrem, prestai hoje ouvido à que Vos dirige este pobre pecador. Ó Cordeiro de Deus, imolado e morto na cruz, eu sou uma alma resgatada a preço do vosso sangue; perdoai-me todas as injúrias que vos fiz, e assisti-me com a vossa graça, afim de que Vos não perca mais. Jesus meu, dai-me parte na dor que tivestes dos meus pecados no horto do Getsêmani. Ó meu Deus, quanto quisera nunca Vos ter ofendido!

Dulcíssimo Jesus meu, se eu morresse em pecado, privado ficaria de Vos amar para sempre; Vós, porém, me haveis esperado para que vos ame. Graças Vos dou pelo tempo que me concedeis, e já que Vos posso amar, quero amar-Vos. Dai-me a graça do vosso santo amor, mas um amor tão forte que me faça esquecer tudo, para só pensar em satisfazer ao vosso amantíssimo Coração. — Ah, meu Jesus, toda a vossa vida consumistes por mim; consuma eu também por Vós o que me resta da minha. Atraí-me todo ao vosso amor; fazei-me todo vosso antes da minha morte. Espero esta graça pelos merecimentos da vossa Paixão. Confio também em vossa intercessão, ó Maria; sabeis que Vos amo; tende compaixão de mim. (*II 167.)

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1. Cant. 2, 1.
2. Matth. 11, 28.

(Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Terceiro: desde a duodécima semana depois de Pentecostes até ao fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 69-71.)

Imitação de Cristo - Livro 3 Capítulo 2

CAPÍTULO 2

Que a verdade fala dentro de nós, sem estrépito de palavras

1. Falai, Senhor, que o vosso servo escuta: Vosso servo sou eu, daí-me inteligência para que conheça os vossos ensinamentos. Inclinai meu coração às palavras de vossa boca; nele penetre, qual orvalho, vosso discurso (1Rs 3,10; Sl 118.36.125; Dt 32,2). Diziam, outrora, os filhos de Israel a Moisés: Fala-nos tu e te ouviremos; não nos fale o Senhor, para que não morramos (Êx 20,19). Não assim, Senhor, não assim, vos rogo eu; antes, como o profeta Samuel, humilde e ansioso, vos suplico: Falai, Senhor, que o vosso servo escuta. Não fale Moisés, nem algum dos profetas, mas falai-me de vós, Senhor, Deus, que inspirastes e iluminastes todos os profetas, porque vós podeis, sem eles, me ensinar perfeitamente, ao passo que eles, sem vós, de nada me serviriam.
2. Podem muito bem proferir palavras, mas não conseguem dar o espírito; falam com muita elegância, mas, se vós vos calais, não inflamam o coração. Ensinam a letra; vós, porém, explicais o sentido. Propõem os mistérios, mas vós descobris a significação das figuras. Proclamam os mandamentos, mas vós ajudais a cumpri-los. Mostram o caminho, mas vós dais força para segui-lo. Eles regam a superfície, mas vós dais a fecundidade. Eles clamam com palavras, mas vós dais a inteligência ao ouvido.
3. Não me fale, pois, Moisés, mas vós, Senhor meu Deus, Verdade eterna, para que não morra sem ter alcançado fruto algum, se só for admoestado por fora e não abrasado interiormente; e não seja minha condenação a palavra ouvida e não praticada, conhecida e não amada, criada e não observada. - Falai, pois, Senhor, que o vosso servo escuta; porque possuís palavras de vida eterna (1 Rs 3,10; Jo 6,69). Falai-me para consolação de minha alma e emenda de minha vida, também para louvor, glória e perpétua honra vossa.

Tesouro de Exemplos - Parte 377

ULTRAJE CASTIGADO

O doutor Favas narrou a Luís Veuillot o seguinte: "Um dia apresentou-se-me um indivíduo com uma chaga na perna direita, causada por uma bala de fuzil. A ferida era de um caráter todo especial. Depois de deixar-se examinar, disse-me o paciente em tom resoluto e seguro:
- Senhor doutor, todo o remédio será inútil: esta chaga me acompanhará até à sepultura.
- Por quê? - perguntei-lhe.
- E' o seguinte: "Em 1793 o meu regimento recebeu ordem de participar da campanha da Espanha. Tendo transposto os Pirineus, encontramo-nos numa pequena aldeia. Eu estava em companhia de outros dois soldados, Francisco e Tomás; tínhamos as idéias daqueles tempos, isto é, éramos incrédulos ou, melhor, ímpios, como era a moda então. Tomás, vendo uma estátua de Nossa Senhora sôbre a porta de uma casa, disse: "Vejamos quem acerta melhor naquele infame objeto de superstição".
Dispara e a bala fere a estátua na fronte. Francisco, por sua vez, aponta o fuzil e fere-a no peito. Eu não queria seguir o exemplo dos companheiros: lembrava-me de minha mãe, que era muito religiosa; não pude, porém, resistir às zombarias dos companheiros: tremendo, encostei o fuzil ao ombro, fechei os olhos
quase involuntàriamente e feri a estátua. . .
- Na perna? indaguei.
- Sim, exatamente onde recebi esta ferida. Uma velha que nos observava exclamou: "Os senhores vão à guerra, e o que acabam de fazer não lhes trará felicidade!" E a profecia realizou-se. Tomás foi o primeiro ferido, e precisamente na testa, como êle ferira a estátua.
Reconhecemos logo que era uma lição do céu. No outro dia bem cedo, Francisco, prevendo o que ia acontecer, apertou-me a mão e disse-me: "Hoje é a minha vez!" E não se enganou.
Meu Deus! Não me esquecerei nunca do que vi: Uma bala atravessou-lhe o peito de um lado ao outro. Êle rolava no pó, chamando um padre que naquele momento foi impossível encontrar. Eu não tinha mais dúvida, e esperava o que ia me acontecer. Realmente: fui ferido na perna; aí está o meu caso. Não sararei nunca, mas dou graças a Deus e a Nossa Senhora que me concederam tempo para reparar o mal que fiz".

Confiança! - Pe. Thomas de Saint Laurent - 9

O Livro da Confiança

Pe. Thomas de Saint Laurent


Capítulo II - Natureza e qualidades da Confiança

IV - Não conta senão com Deus

Firmeza inabalável é, pois, a primeira característica da confiança.
 
A segunda qualidade dessa virtude é ainda mais perfeita. “Leva o homem a não contar com o auxílio das criaturas: quer seja auxílio tirado de si mesmo, do seu espírito, critério, ciência, jeito, riquezas, parentes, amigos e outros bens; quer sejam socorros que possa esperar de outrem: Reis, príncipes e, geralmente, de qualquer criatura; porque sente e conhece a fraqueza e inanidade de qualquer amparo humano. Considera-os o que são realmente, e como Santa Teresa tinha razão de chamá-los ramos secos de zimbro que se quebram ao serem transportados” (25).
 
Mas essa teoria, dirão, não procederá de um falso misticismo?... Não conduzirá ao fatalismo ou, pelo menos, a uma perigosa passividade? Para que multiplicar esforços no intuito de vencer dificuldades, se todos os apoios têm que se quebrar nas nossas mãos? Cruzemos os braços esperando a divina intervenção!...
 
Não, Deus não quer que adormeçamos na inércia; Ele exige que O imitemos. A sua perfeitíssima atividade não tem limites: Ele é o ato puro.
 
Devemos, pois, agir: mas só d'Ele devemos esperar a eficácia da nossa ação. “Ajuda-te, que o Céu te ajudará”.
 
Eis a economia do plano providencial.
 
A postos! Trabalhemos com afinco, mas espírito e coração voltados para o alto. “Em vão vos levantareis antes da aurora” (26), diz a Escritura, se o Senhor não vos ajudar, nada conseguireis.
 
Com efeito, a nossa impotência é radical. “Sem mim, nada podeis fazer” (27), diz o Salvador.
 
Na ordem sobrenatural, essa impotência é absoluta. Atendei bem ao ensino dos teólogos.
 
Sem a graça o homem não pode resistir a todos as tentações, por vezes tão violentas, que o assaltam.
 
Sem a graça o homem não pode observar por muito tempo, e na sua totalidade, os mandamentos de Deus.
 
Sem a graça não podemos ter um bom pensamento, fazer mesmo a mais curta oração; sem ela nem sequer poderemos invocar com piedade o nome de Jesus.

Tudo o que fizermos na ordem sobrenatural nos vem unicamente de Deus (28). Na ordem natural, mesmo, é ainda Deus que nos dá a vitória.
 
São Pedro havia trabalhado a noite toda; era resistente na labuta; conhecia a fundo os segredos do seu rude ofício. No entanto, em vão sulcara as ondas mansas do lago: nada havia pescado! Recebe, porém, o Mestre na barca; lança a rede em nome do Salvador: tem logo uma pesca miraculosa e as malhas da rede rompem-se, tal o número de peixes...
 
Seguindo o exemplo do Apóstolo, lancemos a rede, com paciência incansável; mas só de Nosso Senhor esperemos a pesca milagrosa.
 
“Em tudo o que fizerdes, dizia Santo Inácio de Loiola, eis a regra das regras a seguir: confiai em Deus, agindo, entretanto, como se o êxito de cada ação dependesse unicamente de vós e nada de Deus; contudo, empregando assim os vossos esforços para esse bom resultado, não conteis com eles, e procedei como se tudo fosse feito só por Deus e nada por vós” (29).

_______________________________________
25 ) Saint-Jure: De la connaissance et de l'amour de J. C., t. III, p. 3.
26 ) “Em vão vos levantais antes do amanhecer” (Salmos, 126, 2).
27 ) Jo. 15, 5.
28 ) “A nossa capacidade vem de Deus” (2 Coríntios, 3, 5).
29 ) P. Xavier de Franciosi: L'Esprit de Saint Ignace, p. 5.

28 de agosto de 2013

Da eternidade do inferno.

Et ibunt hi in supplicium aeternum – “Estes irão para o suplício eterno” (Matth. 25, 46).

Sumário. A eternidade do inferno não é uma simples opinião, mas sim uma verdade de fé fundada no testemunho de Deus na Santa Escritura, na qual se diz repetidas vezes que os desgraçados pecadores, uma vez lançados naqueles abismos, serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos. Se alguém por um dia de divertimento se deixasse condenar a trinta anos de prisão, tê-lo-íamos por louco. Que maior loucura não seria a nossa, se por um momento de vil prazer nos condenássemos a queimar no fogo para sempre? A ficar privados para sempre da posse do soberano bem, que é Deus?

I. Se o inferno não fosse eterno, deixaria de ser inferno. A pena que dura pouco, não é grande pena. Quando se rompe a um doente um abscesso, quando a outro se queima uma úlcera, a dor é viva, mas, como passa rapidamente, o tormento não é grande. Que sofrimento porém não seria, se aquela incisão, aquela operação por meio do fogo, continuasse por uma semana, por um mês inteiro? Quando o sofrimento é bastante prolongado, apesar de leve, como uma dor de olhos, uma dor de dentes, torna-se insuportável. – Mas para que falar de sofrimento? Mesmo uma comédia, uma música que se prolongasse muito ou durasse um dia inteiro, não se poderia aturar pelo grande fastio. Que será, pois, do inferno, onde não se trata de assistir à mesma comédia, de ouvir a mesma música, onde não se tem unicamente a sofrer uma dor de olhos ou de dentes, onde não se sente só o tormento de uma incisão ou de um ferro em brasa, mas onde estão reunidos todos os tormentos e todas as dores? E isto, por quanto tempo? Por toda a eternidade! Cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum (1) – “Serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos”.

Esta eternidade não é simples opinião, mas sim uma verdade de fé, atestada repetidas vezes por Deus nas Sagradas Escrituras. Só no capítulo 9 de São Marcos Jesus Cristo afirma até três vezes que o verme roedor e a consciência dos condenados nunca morrerá: Vermis eorum non moritur; até cinco vezes repete que o fogo que os abrasa, nunca será apagado: Et ignis eorum non extinguitur; e finalmente conclui dizendo: Omnis igne salietur (2) – “Será todo salgado pelo fogo”. Assim como o sal tem a propriedade de conservar as cosias, assim o fogo do inferno, ao mesmo tempo que atormenta os réprobos, produz neles o efeito de sal, conservando-lhes a vida. Desgraçados réprobos!

Que loucura não seria se por um dia de divertimento alguém se deixasse encerrar num calabouço vinte ou trinta anos? Se o inferno durasse cem anos – cem anos! Que digo? – se durasse somente dois ou três anos, seria já grande loucura condenar-se ao fogo esses dois ou três anos por um momento de vil prazer. Mas não se trata de trinta, nem de cem, nem de mil, nem de cem mil anos; trata-se da eternidade, trata-se de sofrer para sempre os mesmos tormentos, sem nunca esperar fim nem momento de descanso.

II. Tinham razão os santos para temer e gemer, enquanto estavam no mundo e, portanto, em risco de se perderem. O Bem-aventurado Isaías, posto que parasse os dias no deserto entre jejuns e penitências, exclamava chorando: Desgraçado de mim, que ainda não escapei ao perigo da condenação! Nondum a gehennae igne sum liber! Mas se os santos tremiam, nós, que somos pecadores, teremos a presunção de nos julgar seguros?

Ah, meu Deus! Se me tivésseis lançado no inferno, como tantas vezes mereci, e depois me tivésseis tirado d’ali pela vossa misericórdia, quanto Vos seria obrigado! Que vida santa não teria desde então principiado! Agora por uma misericórdia maior me preservastes de cair no inferno: que farei? Tornarei a ofender-Vos e a provocar a vossa indignação, afim de que me condeneis realmente a arder nessa prisão dos revoltosos contra Vós, onde já ardem tantas almas que cometeram menos pecados que eu? Ah! Meu Redentor, é o que eu fiz no passado; em lugar de aproveitar o tempo que me daveis para chorar os meus pecados, abusei dele para excitar a vossa ira. Agradeço a vossa infinita bondade o ter-me aturado tanto tempo. Se não fosse infinita, como me houvera sofrido?

Graças Vos dou por me haverdes esperado até aqui com tamanha paciência, e graças Vos dou sobretudo pela luz que me concedeis agora, luz que me deixa ver a minha demência e o agravo que Vos fiz, ultrajando-Vos com tantos pecados. Detesto-os, meu Jesus, e arrependo-me de todo o coração perdoai-me, em consideração à vossa Paixão e ajudai-me com a vossa graça, a não mais Vos ofender. Com razão devo temer que, depois de mais um pecado mortal, me abandoneis. – Ah, Senhor! Rogo-Vos que me ponhais sempre diante dos olhos este justo temor, em particular quando o demônio novamente me provocar a vos ofender. Amo-Vos, meu Deus, e não Vos quero mais perder; ajudai-me com a vossa graça. – Ajudai-me também vós, ó Virgem Santíssima, e fazei com que em minhas tentações sempre recorra a vós, afim de que nunca mais perca o meu Deus. Ó Maria, vós sois a minha esperança. (II 123.)

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1. Apoc. 20, 10.
2. Marc. 9, 48.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 66-68.)

Imitação de Cristo - Livro 3 Capítulo 1

LIVRO TERCEIRO

DA CONSOLAÇÃO INTERIOR

CAPÍTULO 1

Da comunicação íntima de Cristo com a alma fiel

1. Ouvirei o que em mim disser o Senhor meu Deus (Sl 84,9). Bem-aventurada a alma que ouve em si a voz do Senhor e recebe de seus lábios palavras de consolação! Benditos os ouvidos que percebem o sopro do divino sussurro e nenhuma atenção prestam às sugestões do mundo! Bem-aventurados, sim, os ouvidos que não atendem às vozes que atroam lá fora, mas à Verdade que os ensina lá dentro! Bem-aventurados os olhos que estão fechados para as coisas exteriores e abertos para as interiores! Bem-aventurados aqueles que penetram as coisas interiores e se empenham, com exercícios contínuos de piedade, em compreender, cada vez melhor, os celestes arcanos. Bem aventurados os que com gosto se entregam a Deus e se desembaraçam de todos os empenhos do mundo. Considera bem isso, ó minha alma, e fecha as portas dos sentidos, para que possas ouvir o que em ti falar o Senhor teu Deus. Eis o que te diz o teu Amado:
2. Eu sou tua salvação, tua paz e tua vida. Fica comigo e acharás paz. Deixa todas as coisas transitórias e busca as eternas. Que é todo o temporal, senão engano sedutor? E de que te servem todas as criaturas, se o Criador te abandonar? Renuncia, pois, a tudo, entrega-te dócil e fiel a teu Criador, para que possas alcançar a verdadeira felicidade.

Tesouro de Exemplos - Parte 376

COMO RECEBIA AS INJÚRIAS

S. Joana de Orvieto suportava com indizível alegria tôdas as injúrias de que era alvo. Tinha o costume de rezar duzentas vêzes a oração dominical por aquêles que lhe haviam feito mal.
Suas amigas diziam: "Se alguém deseja obter as orações de Joana, basta cobri-la de injúrias".

A ressurreição dos corpos no dia do juízo.

Ecce mysterium vobis dico: Omnes quidem resurgemus, sed non omnes immutabimur – “Eis que vos digo um mistério: todos certamente ressuscitaremos, mas nem todos seremos mudados” (I Cor. 15, 51).

Sumário. Mortos todos os homens, a trombeta soará e todos ressuscitarão. Todos retomarão o mesmo corpo com que serviram a Deus nesta terra, ou o ofenderam. Que diferença haverá entre os corpos dos escolhidos e dos réprobos! Estes serão negros, horrendos e nauseabundos; aqueles serão alvos, belos e mais resplandecentes que o sol. Meu irmão, qual será a tua sorte nesse dia?... Se quisermos que o nosso corpo apareça dignamente ao lado dos Bem-aventurados, apliquemo-nos a mortificá-lo e a guardá-lo pela penitência, sujeito à alma.

I. O Juízo universal será precedido do fogo do céu que devorará a terra e todos os homens que então viverem: Terra et quae in ipsa sunt opera exurentur (1) – “A terra será presa do fogo, com todas as obras que nela se contém”. Palácios, campos, cidades, reinos, tudo deverá ser reduzido a um montão de cinzas. É preciso que esta infecionada habitação dos pecados seja purificada pelo fogo. Eis como deve ser o fim de todas as riquezas, pompas e delícias deste mundo. – Mortos todos os homens, a trombeta soará e todos ressuscitarão: Canet enim tuba, et mortui resurgent (2). Dizia São Jerônimo: “Todas as vezes que penso no dia do Juízo, tremo pelo corpo todo; julgo ouvir a cada instante esta terrível trombeta: Ressuscitai, ó mortos, vinde ao juízo.

Ao som desta trombeta, as almas gloriosas dos bem-aventurados descerão do céu, para se unirem aos corpos com que serviram a Deus nesta vida; e as almas infelizes dos condenados subirão do inferno para se unirem aos corpos malditos, com que ofenderam a Deus. – Oh! Que diferença haverá então entre os corpos dos bem-aventurados e os dos réprobos! Os bem-aventurados aparecerão belos, puros, resplandecentes como o sol: Tunc fulgebunt iust sicut sol (3). Feliz de quem nesta vida sabe mortificar a carne, recusando-lhe os prazeres proibidos; ou, para a refrear mais, lhe recusa até os gozos permitidos, como fizeram os santos! Como estará então contente por ter vivido assim um São Pedro de Alcântara, que depois da morte disse a Santa Teresa: “Feliz penitência, que tamanha glória me alcançou.”

Os corpos dos réprobos, ao contrário, serão horrendos, negros e nauseabundos, quais tições do inferno. Que suplício então para o condenado o dever unir-se ao corpo! Corpo maldito, dirá a alma, foi para te contentar que me perdi. E o corpo dirá: alma maldita, que tinhas a razão por final, porque me concedeste essas satisfações, que foram a causa da minha perdição e da tua, por toda a eternidade? – Portanto, meu irmão, se por desgraça te perderes, a alma e o corpo que agora conspiram na busca de prazeres proibidos, unir-se-ão à força nesse dia, para se servirem mutuamente de algozes, para sempre.

II. Assim terminará a cena deste mundo. Terminarão todas as grandezas, os prazeres e as pompas da terra: tudo estará terminado. Só restarão duas eternidades: uma de glória, outra de sofrimento; uma feliz, outra infeliz; uma de gozos e outra de tormentos; no céu estarão os justos; os pecadores no inferno. Infeliz de quem tiver amado o mundo e perdido tudo, a alma, o corpo, o céu e Deus, pelas satisfações miseráveis desta terra.

Meu Jesus e meu Redentor, Vós, que um dia deveis ser meu Juiz, perdoai-me, antes que chegue esse dia. Ne avertas faciem tuam a me (4) – “Não afasteis de mim a vossa face”. Agora sois meu Pai, e como Pai recebei na vossa graça um filho que volta arrependido aos vossos pés. Meu Pai, peço-Vos perdão: fiz mal em Vos ofender; fiz mal em me afastar de Vós; não merecíeis ser tratado como Vos tratei. Arrependo-me disto e detesto-o de todo o coração; perdoai-me! Ne avertas faciem tuam a me; não afasteis de mim a vossa face, não me repilais, como merecia. Lembrai-Vos do sangue que derramastes por mim e tende piedade de mim.

Meu Pai, amo-Vos e não mais me quero afastar de Vós. Esquecei as injúrias que Vos fiz e dai-me um grande amor para com a vossa bondade. Desejo amar-Vos mais do que Vos ofendi; mas, sem vosso auxílio, não Vos posso amar. Ajudai-me, meu Jesus: fazei-me viver grato ao vosso amor, para que nesse dia eu seja, no vale do juízo, do número de vossos amigos. – Ó Maria, minha Rainha e minha Advogada, socorrei-me agora; porque, se vier a perder-me, não me podereis mais valer nesse dia. Vós orais por todos, orai também por mim, que me prezo de ser vosso servo devoto e tanta confiança deposito em vós. (II 113.)

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1. 2 Petr. 3, 10.
2. 1 Cor. 15, 52.
3. Matth. 13, 43.
4. Ps. 26, 9.

(Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Terceiro: desde a duodécima semana depois de Pentecostes até ao fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p.48-51.)

Confiança! - Pe. Thomas de Saint Laurent - 8

O Livro da Confiança

Pe. Thomas de Saint Laurent


Capítulo II - Natureza e qualidades da Confiança

III - A Confiança é inabalável

As considerações precedentes terão parecido, talvez, abstratas demais. Era necessário, no entanto, que nelas nos firmássemos: delas deduziremos as qualidades da verdadeira confiança.

A confiança, escreve o Padre Saint-Jure, é “firme, estável e constante em grau tão eminente, que nada no mundo a pode, já não digo derrubar, mas abalar sequer” (19).
 
Imaginai as situações mais angustiosas de ordem temporal, as dificuldades aparentemente insuperáveis de ordem espiritual: nada disso alterará a paz da alma confiante. Catástrofes imprevistas poderão amontoar em torno dela as ruínas da sua felicidade; essa alma, mais senhora de si do que o sábio antigo, continuará calma: “impavidum ferient ruinae” (20).

Voltar-se-á simplesmente para Nosso Senhor; n'Ele se apoiará com certeza tanto maior quanto mais privada se sente do auxílio humano. Rezará com ardor mais vibrante, e, nas trevas da provação, prosseguirá o seu caminho, esperando em silêncio a hora de Deus.
 
Uma confiança assim é rara, sem dúvida; mas se não atinge esse mínimo de perfeição, não merece, então, o nome de confiança.
 
De resto, encontram-se exemplo sublimes dessa virtude nas Escrituras e na vida dos Santos. Ferido na fortuna, na família e na própria carne, Jó, reduzido à última indigência, jazia no seu monturo. Os amigos, a sua mulher mesmo, aumentavam-lhe a dor pela crueldade das suas palavras. Ele, no entanto, não se deixava abater; nenhuma murmuração se mesclava aos seus gemidos. Sustentavam-no os pensamentos da fé. “Quando mesmo o Senhor me tirasse a vida, dizia, ainda assim esperaria n'Ele!” (21).
 
Confiança admirável e que Deus recompensou magnificamente. A provação cessou: Jó recuperou a saúde, ganhou novamente fortuna considerável, e teve uma existência mais próspera do que antes.
 
Numa das suas viagens, São Martinho caiu nas mãos de salteadores. Os bandidos despojaram-no; iam trucidá-lo, quando, de repente, tocados pela graça do arrependimento ou levados por um pavor misterioso, o libertam e o soltam, contra toda a expectativa. Perguntou-se mais tarde ao ilustre Bispo se, nesse risco premente, não teria sentido algum medo. “Nenhum, respondeu, eu sabia que a intervenção divina era tanto mais certa quanto mais improváveis os socorros humanos”.
 
A maioria dos cristãos não imita, infelizmente, exemplos destes. No tempo da provação é quando menos se voltam para Deus. Muitos não dão esse grito de socorro que Deus espera para lhes vir em auxílio. funesta negligência! - “A Providência, dizia Frei Luís de Granada, quer dar solução, ela mesma, às dificuldades extraordinárias da vida, enquanto que deixa às causas segundas o cuidado de resolver as dificuldades ordinárias” (22). Mas é preciso reclamar o auxílio divino. Essa ajuda, Deus no-la dá com prazer. “Longe de ser incômoda à ama de quem suga o leite, a criança, pelo contrário traz-lhe alívio” (23).
 
Outros cristãos, nos momentos difíceis, rezam com fervor, mas sem constância. Se não são atendidos de imediato, caem de uma esperança exaltada num abatimento desarrazoado. Não conhecem os caminhos da graça. Deus nos trata como crianças: faz-se de surdo, às vezes, pelo prazer que sente ao ouvir-nos invocá-Lo. Porque desanimar tão depressa, quando conviria, ao contrário, rogar com maior insistência?
 
É esta a doutrina ensinada por São Francisco de Sales: “A Providência só adia o seu socorro para provocar a nossa confiança”. “Se o nosso Pai Celeste não concede sempre o que pedimos, é para nos reter aos seus pés e nos dar ocasião de insistir com amorosa violência junto d'Ele, como claramente mostrou aos dois discípulos de Emaús, com os quais só se deteve ao fim do dia, e assim mesmo por eles forçado” (24).

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19 ) Saint-Jure: De la connaissance et de l'amour de J. C., t. III, p. 3.
20 ) Horacio, ode 3 do livro III.
21 ) “Ainda que Ele me matasse, n'Ele esperarei” (Jó, 13, 15).
22 ) Frei Luís de Granada: 1º Sermão para o 2º Domingo após a Epifania.
23 ) Idem.
24 ) Pequenos Bolandistas, t. XIV, p. 542.

27 de agosto de 2013

Imitação de Cristo - Livro 2 Capítulo 12

CAPÍTULO 12

Da estrada real da santa cruz

1. A muitos parece dura esta palavra: Renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz e segue a Jesus Cristo (Mt 16,24). Muito mais duro, porém, será de ouvir aquela sentença final: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno (Mt 25,41). Pois os que agora ouvem e seguem, docilmente, a palavra da cruz não recearão então a sentença da eterna condenação. Este sinal da cruz estará no céu, quando o Senhor vier para julgar. Então todos os servos da cruz, que em vida se conformam com Cristo crucificado, com grande confiança chegar-se-ão a Cristo juiz.
2. Por que temes, pois, tomar a cruz, pela qual se caminha ao reino do céu? Na cruz está a salvação, na cruz a vida, na cruz o amparo contra os inimigos, na cruz a abundância da suavidade divina, na cruz a fortaleza do coração, na cruz o compêndio das virtudes, na cruz a perfeição da santidade. Não há salvação da alma nem esperança da vida, senão na cruz. Toma, pois, a tua cruz, segue a Jesus e entrarás na vida eterna. O Senhor foi adiante, com a cruz às costas, e nela morreu por teu amor, para que tu também leves a tua cruz e nela desejes morrer. Porquanto, se com ele morreres, também com ele viverás. E, se fores seu companheiro na pena, também o serás na glória.
3. Verdadeiramente, da cruz tudo depende, e em morrer para si mesmo está tudo; não há outro caminho para a vida e para a verdadeira paz interior, senão o caminho da santa cruz e da contínua mortificação. Vai para onde quiseres, procura quanto quiseres, e não acharás caminho mais sublime em cima nem mais seguro embaixo que o caminho da santa cruz. Dispõe e ordena tudo conforme teu desejo e parecer, e verás que sempre hás de sofrer alguma coisa, bom ou mau grado teu; o que quer dizer que sempre haverás de encontrar a cruz. Ou sentirás dores no corpo, ou tribulações no espírito.
4. Ora serás desamparado de Deus, ora perseguido do próximo, e o que é pior não raro serás molesto a ti mesmo. E não haverá remédio e nem conforto que te possa livrar ou aliviar; cumpre que sofras quanto tempo Deus quiser. Pois Deus quer ensinar-te a sofrer a tribulação sem alívio, para que de todo te submetas a ele e mais humilde te faças pela tribulação. Ninguém sente tão vivamente a paixão de Cristo como quem passou por semelhantes sofrimentos. A cruz, pois, está sempre preparada e em qualquer lugar te espera. Não lhe podes fugir, para onde quer que te voltes, pois em qualquer lugar a que fores, te levarás contigo e sempre encontrarás a ti mesmo. Volta-te para cima ou para baixo, volta-te para fora ou para dentro, em toda parte acharás a cruz; e é necessário que sempre tenhas paciência, se queres alcançar a paz da alma e merecer a coroa eterna.
5. Se levares a cruz de boa vontade, ela te há de levar e conduzir ao termo desejado, onde acaba o sofrimento, posto que não seja neste mundo. Se a levares de má vontade, aumenta-lhe o peso e
fardo maior te impões; contudo é forçoso que a leves. Se rejeitares uma cruz, sem dúvida acharás outra, talvez mais pesada.
6. Pensas tu escapar àquilo de que nenhum mortal pôde eximir-se? Que santo houve no mundo sem tribulação? Nem Jesus Cristo, Senhor Nosso, esteve uma hora, em toda a sua vida, sem dor e sofrimento. Convinha, disse ele, que Cristo sofresse e ressurgisse dos mortos, e assim entrasse na sua glória (Lc 24,26). Como, pois, buscas tu outro caminho que não seja o caminho real da santa cruz?
7. Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio; e tu procuras só descanso e gozo? Andas errado, e muito errado, se outra coisa procuras e não sofrimentos e tribulações; pois toda esta vida mortal está cheia de misérias e assinalada de cruzes. E quanto mais uma pessoa faz progressos na vida espiritual, tanto maiores cruzes encontra, muitas vezes, porque o amor lhe torna o exílio mais doloroso.
8. Mas, apesar de tantas aflições, o homem não está sem o alívio da consolação, porque sente o grande fruto que lhe advém à alma pelo sofrimento da cruz. Pois, quando de bom grado a toma às costas, todo o peso da tribulação se lhe converte em confiança na divina consolação. E quanto mais a carne é cruciada pela aflição, tanto mais se fortalece o espírito pela graça interior. E, às vezes, tanto se fortalece, pelo amor das penas e tribulações que, para conformar-se com a cruz de Cristo, não quisera estar sem dores e sofrimentos, pois julga ser tanto mais aceito a Deus, quanto mais e maiores males sofre por seu amor. Não é isto virtude humana, mas graça de Cristo, que tanto pode e realiza na carne frágil, que o espírito com ardor abraça e ama o que a natureza aborrece e foge.
1. Não é conforme à inclinação humana levar a cruz, amar a cruz, cartigar o corpo e impor-lhe sujeição, fugir às honras,
2. aceitar as injúrias, desprezar-se a si mesmo e desejar ser desprezado, suportar as aflições e desgraças e não almejar prosperidade alguma neste mundo. Se olhares somente a ti, reconheces que de nada disso és capaz. Mas, se confiares em Deus, do céu te será concedida a fortaleza, e sujeitar-se-ão ao teu mando o mundo e a carne. Nem o infernal inimigo temerás, se andares escudado na fé e armado com a cruz de Cristo.
9. Portanto, como bom e fiel servo de Cristo, dispõe-te a levar a cruz do teu Senhor, por teu amor crucificado. Prepara-te a sofrer muitos contratempos e incômodos nesta vida miserável, pois em todaa parte, onde quer que estiveres, ou te esconderes, os encontrarás. Convém que assim seja e não há outro remédio contra a tribulação da dor e dos males senão sofrê-los com paciência. Bebe, generoso, o cálice do Senhor, se queres ser seu amigo e ter parte com ele. Entrega a Deus as consolações, para ele dispor delas como lhe aprouver. Tu, porém, dispõe-te a suportar as tribulações e considera-as como as consolações mais preciosas, porquanto não têm proporção as penas do tempo com a glória futura (Rom 8,18) que havemos de merecer, ainda que tu só as devesses sofrer todas.
10. Quando chegares a tal ponto que a tribulação te seja doce e amável por amor de Cristo, dá-te por feliz, pois achaste o paraíso na terra. Enquanto o padecer te é molesto e procuras fugir-lhe, andas mal, e em toda parte te persegue o medo da tribulação.
1. Se te resolveres ao que deves, isto é, a padecer e morrer, logo te sentirás melhor e acharás paz. Ainda que fosses arrebatado, com S.Paulo, ao terceiro céu, nem por isso estarias livre de sofrer alguma contrariedade. Eu, diz Jesus, mostrar-lhes-ei quanto terá de sofrer por meu nome (At 9,16). Não te resta, pois, senão sofrer se pretendes amar e servir a Jesus para sempre.
2. Oxalá fosses digno de sofrer alguma coisa pelo nome de Jesus! Que grande glória resultaria para ti, que alegria para os santos de Deus, e que edificação para o próximo! Pois todos recomendam a paciência, ainda que poucos queiram praticá-la. Com razão devias padecer, de bom grado, este pouco por amor de Cristo, quando muitos sofrem pelo mundo coisas incomparavelmente maiores.
3. Fica sabendo e tem por certo que tua vida deve ser uma morte contínua, e quanto mais cada um morre a si mesmo, tanto mais começa a viver para Deus. Só é capaz de compreender as coisas do céu quem por Cristo se resolve a sofrer toda adversidade. Nada neste mundo é mais agradável a Deus nem mais proveitoso a ti, que o sofrer, de bom grado, por Cristo. E se te dessem a escolha, antes deverias desejar sofrer adversidade, por amor de Cristo, do que ser recreado com muitas consolações porque assim serias mais conforme a Cristo, e mais semelhante a todos os santos. Porquanto não consiste nosso merecimento e progresso espiritual em ter muitas doçuras e consolações, mas em sofrer grandes angústias e tribulações.
4. Se houvera coisa melhor e mais proveitosa para a salvação dos homens do que o padecer, Cristo, de certo, o teria ensinado com palavras e exemplo. Pois claramente exorta seus discípulos e quantos o desejam seguir a que levem a cruz, dizendo: Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo, tome sua cruz, e siga-me (Lc 9,23). Seja, pois, de todas as lições e estudos este o resultado final: Cumpre-nos passar por muitas tribulações, para entrar no reino de Deus (At 14,21).

Tesouro de Exemplos - Parte 375

NÃO TINHA O NECESSÁRIO

Apresentou-se ao missionário um velho chinês, e pediu-lhe que mandasse construir uma igreja em sua vila. Respondeu-lhe o missionário que não era possível por não dispor dos meios necessários.
- Eu vos ajudarei - disse o chinês.
- Sim; mas seriam necessários cêrca de dois mil escudos
- respondeu o missionário ao ver a aparência tão pobre de seu interlocutor.
- Tenho-os e estão à vossa disposição - disse o velho - porque há quarenta anos que penso na necessidade de uma igreja e, gastando apenas o necessário, para comer e vestir, consegui economizar essa soma. Belíssimo exemplo de um pagão convertido.

A cada momento nos aproximamos da morte.

Omnes morimur, et quase aquae dilabimur in terram, quae non revertuntur – “Nós morremos todos, e corremos pela terra como as águas que não tornam mais” (2 Reg. 14, 14).

Sumário. É certo que fomos todos condenados à morte. Todos nascemos com a corda ao pescoço, e a cada passo que damos, aproximamo-nos mais do patíbulo. Que loucura, pois, a nossa, sabermos que havemos de morrer, crermos que do momento da morte depende uma eternidade de gozos ou de penas, e não pensarmos no ajuste das contas e nos meios para ter uma boa morte! Compadecemo-nos dos que morrem subitamente. Porque é, pois, que nos expomos ao risco de nos suceder a mesma desgraça? Quem sabe se este ano não é o último da nossa vida?... Quem sabe se ainda amanheceremos?

I. É certo que fomos todos condenados à morte. Todos nascemos, diz São Cypriano, com a corda ao pescoço e,  a cada passo que damos, nos aproximamos mais da morte. Meu irmão, assim como foste inscrito um dia no livro dos batismos, assim serás inscrito um dia no livro dos mortos. Assim como dizes hoje dos teus antepassados: meu falecido pai, tio ou irmão, assim dirão de ti os que vierem depois. Assim como ouviste muitas vezes dobrar os sinos pela morte dos outros, assim outros os ouvirão dobrar pela tua morte.

Que dirias, se visses um condenado à morte caminhar para o suplício galhofando, rindo, olhando para toda a parte e pensando ainda em comédias, festins e divertimentos? E tu, não caminhas neste momento para a morte? E em que pensas? Vê nessa cova teus amigos e parentes, a quem já feriu a sentença. Que horror se apodera dos condenados quando vêem os seus companheiros já mortos e pendentes da forca! Atenta nesses cadáveres, cada um dos quais te diz: Mihi heri et tibi hodie (1) – “Ontem a mim, hoje a ti.” É isto o que te dizem ainda os retratos de teus parentes já mortos, os seus escritos, as casas, os leitos, as roupas que deixaram.

Haverá loucura maior do que saber que se há de morrer e que depois da morte nos espera uma eternidade de alegrias ou uma eternidade de penas; saber que do momento da morte depende um futuro eternamente feliz ou eternamente infeliz: e não pensar em ajustar as contas e em empregar todos os meios para te ruma boa morte: compadecemo-nos dos que morrem subitamente e não se acham preparados para a morte; como é então que não cuidamos em estar preparados, podendo-nos acontecer o mesmo? – Mas cedo ou tarde, prevista ou imprevistamente, quer pensemos nisso quer não, devemos morrer; e a todas as horas, a todos os instantes nos vamos aproximando da nossa forca, quer dizer, da última doença que nos deve fazer sair deste mundo.

II. Em cada século, as casas, as praças e as cidades enchem-se de novos habitantes, e os que precederam são levados e enterrados nos túmulos. Assim como para estes passaram os dias da vida, da mesma maneira chegará o tempo em que nem eu, nem vós, nem nenhum dos que vivem atualmente, existirá na terra. Então estaremos todos na eternidade, que será para nós ou um eterno dia de delícias, ou uma eterna noite de tormentos. Não há meio termo; é certo, é de fé que uma das duas sortes nos espera.

Meu amado Redentor, não teria a ousadia de aparecer diante de Vós, se Vos não considerasse suspenso nessa cruz, despedaçado, ultrajado e morto por minha causa. Foi grande a minha ingratidão, maior ainda porém é a vossa misericórdia. Grandes foram os meus pecados, mas muito maiores são os vossos méritos. As vossas chagas, o vosso sangue, a vossa morte são as minhas esperanças. Merecia o inferno desde o instante do meu primeiro pecado; e depois tantas vezes Vos tornei a ofender, e Vós não só me haveis conservado a vida, mas com extrema bondade e amor me convidastes ao perdão e me haveis oferecido a paz. Como poderei recear que me afasteis de Vós, agora que vos amo e só desejo a vossa graça?

Sim, amo-Vos de todo o coração, meu querido Senhor, e só desejo amar-Vos. Amo-Vos e arrependo-me de Vos ter desprezado, não tanto pelo inferno que mereci, como por ter ofendido a Vós, meu Deus, que tanto me tendes amado. Ó meu Jesus, abri-me o seio da vossa bondade, acrescentai misericórdia a misericórdia. Fazei que não torne a ser ingrato para convosco e mude completamente o meu coração. Fazei que o meu coração, que antigamente nenhum caso fez de vosso amor e lhe preferiu as miseráveis satisfações da terra, seja doravante todo vosso e continuamente inflamado de amor por Vós. – Esta graça peço-a também a vós, ó grande Mãe de Deus, e minha Mãe, Maria. (II 19.)

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1. Ecclus. 38, 23.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 63-66.)

Confiança! - Pe. Thomas de Saint Laurent - 7

O Livro da Confiança

Pe. Thomas de Saint Laurent


Capítulo II - Natureza e qualidades da Confiança

II - Ela é fortalecida pela Fé

Levemos mais longe este estudo.
 
Que força soberana fortifica a esperança a ponto de torná-la inabalável aos assaltos da adversidade?... A fé!
 
A alma confiante guarda na memória as promessas do Pai Celeste; medita-as profundamente. Sabe que Deus não pode faltar à palavra, e daí a sua imperturbável certeza. Se o perigo a ameaça, a envolve, a domina mesmo, ela conserva sempre a serenidade. Apesar da iminência do risco, repete a palavra do Salmista: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação... que posso recear? O Senhor protege a minha vida... quem me fará tremer?...” (17).
 
Existem entre a fé e a confiança relações estreitas, laços íntimos de parentesco. Empregando a expressão de um teólogo moderno, deve-se achar na fé “a causa e a raiz” (18) da confiança. Ora, quanto mais penetra a raiz na terra, mais seiva nutriente dela tira; mais vigorosa crescerá a haste; mais opulenta será a floração. Assim, a nossa confiança desenvolve-se na medida em que se aprofunda em nós a fé.
 
Os Livros Santos reconhecem a relação que une essas duas virtudes. Não são designados pelo mesmo vocábulo “fides”, uma e outra, sob a pena dos escritores sagrados?

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17 ) “O Senhor é a minha luz e a minha salvação, a quem temerei? O Senhor é o defensor da minha vida, diante de quem temerei?” (Salmos, 26, 1).
18 ) Itaque quatenus fides est causa et radix hujus fiduciae, potest accipi fides pro fiducia causaliter, ut quando S. Jacobus ait: Postulet in fide nihil haesitans (I, 6). Ibi enim et aliis similibus locis fides aut simpliciter ponitur pro fiducia aut intelligitur quidem fides dogmatica, sed in quantum roborat spem. - Pesch, Praelectiones dogmaticae, t. VII, p. 51, nota 2.

26 de agosto de 2013

Imitação de Cristo - Livro 2 Capítulo 11

CAPÍTULO 11

Quão poucos são os que amam a cruz de Jesus

1. Muitos encontram Jesus agora apreciadores de seu reino celestial; mas poucos que queiram levar a sua cruz. Tem muitos sequiosos de consolação, mas poucos da tribulação; muitos companheiros à sua mesa, mas poucos de sua abstinência. Todos querem gozar com ele, poucos sofrer por ele alguma coisa. Muitos seguem a Jesus até ao partir do pão, poucos até beber o cálice da paixão. Muitos veneram seus milagres, mas poucos abraçam a ignomínia da cruz. Muitos amam a Jesus, enquanto não encontram adversidades. Muitos O louvam e bendizem, enquanto recebem d’Ele algumas consolações; se, porém, Jesus se oculta e por um pouco os deixa, caem logo em queixumes e desânimo excessivo.
2. Aqueles, porém, que amam a Jesus por Jesus mesmo e não por própria satisfação, tanto O louvam nas tribulações e angústias, como na maior consolação. E posto que nunca lhes fosse dada a consolação, sempre O louvariam e Lhe dariam graças.
3. Oh! Quanto pode o amor puro de Jesus, sem mistura de interesse ou amor-próprio! Não são porventura mercenários os que andam sempre em busca de consolações? Não se amam mais a si do que a Cristo os que estão sempre cuidando de seus cômodos e interesses? Onde se achará quem queira servir desinteressadamente a Deus?
4. É raro achar um homem tão espiritual que esteja desapegado de tudo. Pois o verdadeiro pobre de espírito e desprendido de toda criatura - quem o descobrirá? Tesouro precioso que é necessário buscar nos confins do mundo (Prov 31,10). Se o homem der toda a fortuna, não é nada. E se fizer grande penitência, ainda é pouco. Compreenda embora todas as ciências, ainda estão muito longe. E se tiver grande virtude de devoção ardente, muito ainda lhe falta, a saber: uma coisa que lhe é sumamente necessária. Que coisa será esta? Que, deixado tudo, se deixa a si mesmo e saia totalmente de si, sem reservar amor-próprio algum, e, depois de feito tudo que soube fazer, reconheça que nada fez.
5. Não tenha em grande conta o pouco que nele possa ser avaliado por grande: antes, confesse sinceramente que é um servo inútil, como nos ensina a Verdade. Quando tiverdes cumprido tudo que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis (Lc 17,10). Então, sim, o homem poderá chamar-se verdadeiramente pobre de espírito e dizer com o profeta: Sou pobre e só neste mundo (Sl 24,16). Entretanto, ninguém é mais poderoso, ninguém mais livre que aquele que sabe deixar-se a si e a todas as coisas e colocar-se no último lugar.

Tesouro de Exemplos - Parte 374

NÃO MURMURAR
Santo Agostinho não admitia que, em sua presença, se murmurasse ou ofendesse a honra do próximo. Razão por que mandou pôr sôbre a sua mesa esta inscrição: "A esta mesa não se assente quem fala mal do ausente".

Da mortificação interior.

Qui autem sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis – “Os que são de Cristo, crucificaram a carne com os vícios e concupiscências” (Gal. 5, 24).

Sumário. É certo que as paixões, dirigidas segundo a razão e a prudência, não somente não causam prejuízo, senão antes trazem proveito à alma. Ao contrário, não sendo bem dirigidas causam ruínas irreparáveis porque escurecem o espírito e não permitem ver nem o bem nem o mal. Eis porque os mestres da vida espiritual recomendam tanto a mortificação interior. Se não quisermos ser dominados pelas nossas paixões, indaguemos qual seja a nossa paixão dominante e esforcemo-nos para a subjugar, lembrando-nos, porém, de que o melhor meio para sermos bem sucedidos é a oração.

I. As paixões, por natureza, não são más nem nocivas, e, quando dirigidas conforme a razão e a prudência, não somente não trarão prejuízo, senão proveito à alma. Se, ao contrário, não são bem dirigidas, causam ruínas irreparáveis para o que as segue; pois que escurecem a verdade e não permitem ver o que seja bom e o que seja mau. Por isso o Eclesiástico rogava a Deus que o livre de uma alma escrava das paixões: Animae irreverenti et infrunitae ne tradas me (1) – “Não me entregues a uma alma sem respeito e sem recato”.

Eis em que consiste propriamente a mortificação interior, tão recomendada pelos mestres da vida espiritual: em regular e moderar os movimentos da alma. Muitos põem toda a sua diligência na compostura exterior, no porte modesto e respeitoso, ao passo que no coração conservam afetos pecaminosos contrários à justiça, à caridade, à humildade ou à castidade. São semelhantes aos Fariseus, hipócritas depravados, e em vez de desarraigarem os vícios, encobrem-nos com o manto da devoção. Mas, ai deles! De que serve, pergunta São Jerônimo, abster-se de alimentos e guardar o coração cheio de orgulho? Abster-se de vinho e ficar fora de si pela ira?

Notemos bem que todas as más paixões nascem do amor próprio. É este o inimigo principal que nos ataca e devemos vencê-lo pela abnegação própria, segundo o que ensina Jesus Cristo: Abneget semetipsum (2) – “Renuncie a si próprio”. Enquanto não expulsarmos do coração o amor próprio, não pode entrar nele o amor de Deus. – Dizia a Bem-aventurada Angela de Foligno que tinha mais medo do amor próprio que do demônio, porque o amor próprio tem mais força do que este para nos fazer cair. E Santa Maria Magdalena de Pazzi acrescenta: O nosso pior traidor é o amor próprio; faz como Judas: entrega-nos  com um beijo. Quem o vence, vence tudo; quem não o vence, está perdido.

II. Colhamos como fruto desta meditação o indagarmos qual seja a nossa paixão dominante, e empregarmos todos os meios para a dominar, visto que deste triunfo depende toda a nossa salvação. Procuremos, além disso, segundo o conselho de Cassiano, dar a nossas paixões outro objeto, de sorte que de viciosas se tornem santas. Um é propenso à ira; pois mude o objeto e vire a sua iracundia ao ódio do pecado, que mais dano lhe pode causar do que todos os demônios do inferno. Outro é propenso a amar pessoas de boa presença; volte o seu amor para Deus, em que se reúnem todas as qualidades amáveis. – Ah! Elevemo-nos acima da terra, e apliquemo-nos a amar com todas as forças o Bem supremo, que nos fez para si, e nos espera lá, no céu, para nos fazer felizes pela sua própria glória.

O melhor remédio, porém, contra as paixões é recomendarmo-nos a Deus, afim de que nos livre delas. Quanto mais nos molestarem as paixões, tanto mais devemos multiplicar as orações. Nesses instantes, de pouco servem os raciocínios, pois que a paixão escurece tudo; quanto mais se refletir, tanto mais sedutor se nos afigurará o objeto que a paixão nos sugere. Então não há outro remédio senão o recurso a Jesus Cristo e a Maria Santíssima, dizendo e repetindo: Domine, salva nos, perimus (3) – “Senhor, salvai-nos, senão perecemos”. Não permitais, Senhor, que me aparte de Vós. – Ó santa Mãe de Deus, refugio-me debaixo da vossa proteção: Sub tuum praesidium confugimos, sancta Dei Genitrix.

Sim, meu Deus, é isso que proponho fazer sempre. Vós, porém, que conheceis o meu nada, dai-me força para executar esta minha resolução. Fazei-o pelos merecimentos de Jesus Cristo e pela intercessão da minha querida Mãe, Maria. (*III 570.)

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1. Ecclus. 23, 6 .
2. Matth. 16, 24.
3. Matth. 8, 25.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 61-63.)

Confiança! - Pe. Thomas de Saint Laurent - 6

O Livro da Confiança

Pe. Thomas de Saint Laurent


Capítulo II - Natureza e qualidades da Confiança

I - A Confiança é uma firme Esperança
 
Com a concisão que traz o cunho do seu gênio, define São Tomás a confiança: “Uma esperança fortalecida por sólida convicção” (14). Palavra profunda que não faremos senão comentar neste capítulo.
 
Pesemos atentamente os termos que emprega o Doutor Angélico: “A confiança, diz ele, é uma esperança”. Não uma esperança ordinária, comum a todos os fiéis; um qualificativo preciso distingue-a: é “uma esperança fortalecida”. Notai bem, no entanto: não há diferença de natureza, mas somente de grau de intensidade.
 
Os alvores incertos da aurora, tal como o esplendor do sol no zênite, fazem parte do mesmo dia... Assim a confiança e a esperança pertencem à mesma virtude: uma é apenas o desabrochar completo da outra.
 
A esperança comum perde-se pelo desespero; pode tolerar, no entanto, certa inquietação... Quando, porém, atinge essa perfeição que faz trocar o seu nome pelo nome de “confiança”, torna-se-lhe, então, mais delicada a suscetibilidade. Já não suporta a hesitação, por leve que se imagine. A menor dúvida rebaixá-la-ia e a faria voltar ao nível da simples esperança.
 
O Profeta-Rei escolhia exatamente as expressões quando chamava à confiança: “uma super-esperança” (15). Trata-se realmente aqui de uma virtude levada ao máximo de intensidade.
 
E o Padre Saint-Jure, autor espiritual dos mais estimados do século XVII, via justamente nela uma esperança “extraordinária e heróica” (16).
 
Não é, pois, a confiança flor banal. Cresce nos cumes, e não se deixa colher senão pelos generosos.

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14 ) São Tomás de Aquino, 2-2, q. 129, art. 6, ad 3.
15 ) Salmos, CXVIII.
16 ) Saint-Jure: De la Connaissance et de l'amour de Jésus-Christ, vol. III, p. 3.

25 de agosto de 2013

Imitação de Cristo - Livro 2 Capítulo 10

CAPÍTULO 10

Do agradecimento pela graça de Deus

1. Para que buscas repouso se nascestes para o trabalho? Dispõe-te mais à paciência que à consolação, mais para levar a cruz que para ter alegria. Quem dentre os mundanos não aceitaria de bom gosto a consolação e a alegria espiritual, se a pudesse ter sempre ao seu dispor? As consolações espirituais excedem todas as delícias do mundo e todos os deleites da carne. Pois todas as delícias do mundo ou são vãs ou torpes, e só as do espírito são suaves e honestas, nascidas que são das virtudes e infundidas por Deus nas almas puras. Mas ninguém pode lograr estas divinas consolações à medida de seu desejo, porque não cessa por muito tempo a guerra da tentação.
2. Grande obstáculo às visitas celestiais é a falsa liberdade do espírito e a demasiada confiança em si mesmo. Deus faz bem dando-nos a graça da consolação; mas o homem faz mal não retribuindo tudo a Deus, com ação de graças. E se não se nos infundem os dons da graça, é porque somos ingratos ao Autor, não atribuindo tudo à fonte original. Pois sempre Deus concede a graça a quem dignamente se mostra agradecido e tira ao soberbo o que costuma dar ao humilde.
3. Não quero consolação que me tire a compunção, nem desejo contemplação que me seduz ao desvanecimento; porque nem tudo que é sublime é santo, nem tudo que é agradável é bom, nem todo desejo é puro, nem tudo que nos deleita agrada a Deus. De boa mente aceito a graça, que me faz humilde e timorato e me dispõe melhor para renunciar a mim mesmo. O homem instruído pela graça e experimentado com sua subtração não ousará atribuir-se bem algum, antes reconhecerá sua pobreza e nudez. Dá a Deus o que é de Deus, e atribui a ti o que é teu; isto é, dá graças a Deus pela graça, e só a ti atribui a culpa e a pena que a culpa merece.
4. Põe-te sempre no ínfimo lugar, e dar-te-ão o supremo, porque o mais alto não existe sem o apoio do inferior. Os maiores santos diante de Deus são os que se julgam menores, e quanto mais glorioso, tanto mais humildes são no seu conceito. Como estão cheios de verdade e glória celestial, não cobiçam a glória vã. Em Deus fundados e firmados, nada os pode ensoberbecer. Atribuindo a Deus todo o bem que receberam, não pretendem a glória uns dos outros; só querem a glória que procede de Deus; seu único fim, seu desejo constante é que ele seja louvado neles e em todos os santos, acima de todas as coisas.
5. Agradece, pois, os menores benefícios e maiores merecerás. Considera como muito o pouco, e o menor dom por dádiva singular. Se considerarmos a grandeza do benfeitor, não há dom pequeno ou de pouco valor; porque não pode ser pequena a dádiva que nos vem do soberano Senhor. Ainda quando nos der penas e castigos, Lho devemos agradecer, porque sempre é para nossa salvação quanto permite que nos suceda. Se desejares a graça de Deus, sê agradecido quando a recebes e paciente quando a perdes. Roga que ela volte, anda cauteloso e humilde, para não vires a perdê-la.

Tesouro de Exemplos - Parte 373

MARTÍRIO DE SÃO CANUTO

S. Canuto, rei da Dinamarca, ordenara que em seu reino se pagasse o dízimo à Igreja, como era de justiça. Um tal Blancon excitou o povo, o qual, indignado contra o soberano, lhe deu morte cruel. Deus enviou sôbre a Dinamarca uma terrível carestia, enquanto que nos povos vizinhos havia abundância de tudo. Êsse castigo não cessou enquanto o povo não reconheceu o seu crime e pediu perdão a Deus.

DÉCIMO QUARTO DOMINGO DEPOIS DE PENTECOSTES.

Os dois senhores e as almas tíbias

Nemo potest duobus dominis servire – “Ninguém pode servir a dois senhores”. (Matth. 6, 24)

Sumário. As almas tíbias parecem que querem servir ao mesmo tempo a Deus e ao mundo; a Deus, preservando-se de culpas graves; ao mundo, não fazendo caso das culpas veniais deliberadas. Escutem, porém, estas pobres iludidas, o que diz Jesus Cristo no Evangelho de hoje: “Ninguém pode servir a dois senhores: porque, ou há de amar um e odiar o outro, ou se apagar a um e abandonar o outro”. É como que dizer que cedo ou tarde acabará por cair em culpas graves. Além disso, o desgraçado levará vida infeliz; porque ficará privado tanto dos prazeres do mundo como das consolações celestiais.

I. Quem dera que esta máxima de Jesus Cristo fosse bem compreendida por aqueles que vivem na tibieza voluntária. Os ingratos repartem entre Deus e as criaturas o coração que lhes foi dado para amar a Deus só e ainda é muito pequeno para o amar devidamente. Com outras palavras, eles são tão insensatos que se persuadem que podem servir ao mesmo tempo a dois senhores, tão opostos entre si, como o são Deus e o mundo. Querem servir a Deus, preservando-se de pecados graves; e ao mundo, não fazendo caso das culpas veniais, em que caem por hábito e com advertência.

Tais almas dizem: Os pecados veniais não nos fazem perder a graça divina; por poucos que sejam, impedir-nos-ão de santificarmos; mas assim mesmo nos salvaremos, e é quanto basta. – Mas o que fala assim, ouça o que assegura Santo Agostinho: Ubi dixisti, satis, ibi periisti – Dizes que basta que te salves? Sabe, porém, que desde que disseste basta, começou a tua perdição; porquanto a alma nunca fica no lugar onde caiu, mas vai sempre abismando-se mais e mais. Santo Isidoro dá-nos disso a razão, porque com justiça Deus permite que os que não fazem caso dos pecados veniais, em castigo do seu desleixo e do pouco amor que lhe têm, caiam afinal em pecado mortal.

Demais, é natural que o hábito dos pecados leves incline a alma aos pecados graves, exatamente como certos leves mas repetidos incômodos da saúde corporal acabam por fazer a pessoa cair numa enfermidade mortal e levá-la ao túmulo. – Em suma, persuadam-se bem as almas tíbias, que cedo ou tarde se verificará também nelas a palavra de Jesus Cristo: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de amar a um e odiar ao outro, ou se apegar a um e abandonar o outro.”

II. Mas, além do grave risco que correm as almas tíbias de caírem em pecado mortal, têm também uma vida infeliz na terra, sem jamais acharem a paz nesse estado. Sim, pois que por um lado estão privadas dos prazeres do mundo; por outro, não podem saborear as consolações espirituais. Justo é que, assim como elas são avarentas para com Deus, Deus seja igualmente para com elas. – Tinha, pois, Santa Teresa razão de dizer: “Do pecado deliberado, por pequeno que seja, livre-te Deus.” E alhures: “Aprouvesse a Deus que tivéssemos medo, não do demônio, mas de todo o pecado venial, que nos pode prejudicar mais do que todos os demônios do inferno.

Meu amabilíssimo Jesus, eu sou uma daquelas almas tíbias que, de encontro ao vosso ensino, tive a pretensão de servir a dois senhores, inteiramente opostos, como o sois vós e o mundo. Graças vos dou, meu Senhor, por não me haverdes ainda expulso de vosso serviço, conforme tinha merecido. Em vez disso fazeis-me ouvir a vossa voz, que me convida ao vosso amor: Praebe, fili mi, cor tuum mihi (1) – “Meu filho, dá-me teu coração. Animado pela vossa bondade, proponho ser de hoje em diante todo vosso, e amar-Vos de todo o meu coração.

Amo-vos, ó meu soberano Bem, amo-Vos, meu Deus, digno de amor infinito; e porque Vos amo, arrependo-me de todas as minhas ingratidões para convosco e protesto antes querer morrer do que tornar a Vos dar desgosto. Vós, porém, ó meu Jesus, pelo amor de Maria Santíssima, abençoai este meu propósito e dai-me a graça de ser fiel. “Guardai-nos, Senhor, com vossa perpétua clemência: e pois que a humana fraqueza, sem vossa assistência, cai a cada passo, fazei, com vossos auxílios, que eu fuja do que é nocivo e tenda sempre ao que me é saudável.” (2) (*IV 48.)

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1. Prov. 23, 26.
2. Or. Dom. curr.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 58-61.)