31 de maio de 2014

Preparação para a Morte

PONTO III

Consideremos, finalmente, as condições da oração bem feita. Muitas pessoas rezam e não alcançam nada, porque não pedem como convém (Tg 4,3). Para bem rezar é preciso, primeiro que tudo, humildade.
“Deus resiste aos soberbos, mas aos humildes dá sua graça” (Tg 4,6). Deus não ouve as petições do soberbo; mas nunca despreza a súplica dos humildes (Ecl 35,21), ainda que anteriormente tenham sido pecadores, “Não desprezarás, Senhor, um coração contrito e humilhado” (Sl 50,19).
Em segundo lugar, é necessária a confiança.
“Ninguém esperou no Senhor e foi confundido” (Ecl 2,11). Ensinou-nos Jesus Cristo que, ao pedirmos a Deus alguma graça, lhe demos o vocativo de Pai nosso, a fim de que lhe roguemos com aquela confiança que um filho tem ao recorrer ao seu próprio pai. Quem reza com confiança, tudo obtém. Para todas as coisas que pedirdes na oração, tende viva fé de consegui-las e vo-las serão concedidas (Mc 2,24). E quem pode ter receio, diz Santo Agostinho, de ser enganado na sua expectativa, se a promessa lhe foi feita pela própria Verdade, que é Deus? Deus não é como os homens, que, às vezes, deixam de cumprir o que prometem, ou porque mentiram quando prometeram, ou porque mudaram depois de vontade (Nm 23,19). Se o Senhor — acrescenta Santo Agostinho — não quisesse conceder-nos as suas graças, para que nos havia de exortar continuamente a pedir-lhes?. Prometendo, contraiu a obrigação de nos conceder as graças que lhe suplicarmos.
Talvez pense alguém que, por ser pecador, não merece ser atendido.
Mas responde São Tomás que a oração, por meio da qual pedimos graças, não se funda em nossos méritos, mas na misericórdia divina.
“Todo aquele que pede, recebe (Lc 11,10); isto é, todos, sejam justos ou pecadores”. O próprio Redentor nos tirou todo o temor e desvaneceu toda dúvida, dizendo: “Em verdade, em verdade vos digo que o Pai vos dará tudo o que pedirdes em meu nome” (Jo 16,23); ou seja: se careceis de merecimentos, eis que aqui estão os meus; servi-vos deles junto a meu Pai. Pedi em meu nome, e eu vos prometo que alcançareis o que pedirdes...” É preciso observar, entretanto, que tal promessa não se refere às dádivas temporais, como saúde, fortuna e outros, porque o Senhor, muitas vezes, nos nega estes bens, prevendo que iriam de encontro à nossa salvação. O médico conhece melhor do que o doente o que lhe é proveitoso, diz Santo Agostinho; e acrescenta que Deus recusa a alguns, por misericórdia, o que a outros concede sob a condição de serem convenientes ao bem da alma. As espirituais, como o perdão, a perseverança, o amor de Deus e outras graças semelhantes, ao contrário, devem pedir-se absolutamente e com firme confiança de obtê-las.
“Se vós, posto que maus, disse Jesus Cristo, sabeis dar coisas boas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celestial dará espírito bom aos que lhe pedirem?” (Lc 11,13).
É necessária, sobretudo, a perseverança. Disse Cornélio a Lápide que o Senhor “quer que perseveremos na oração até que sejamos importunos” (In Lc 11); o que a Sagrada Escritura exprime com os textos seguintes: “É preciso orar sempre”. — “Vigiai, pois, orando sem cessar”.
— “Orai sem intermissão” (Lc 18,1; 21,36; 1Ts 5,17); o mesmo diz esta passagem: “Pedi e recebe-reis; procurai e achareis; batei e abrir-se-vos-á (Lc 11,9). Bastava dizer: pedi; mas o Senhor quis demonstrarnos que devemos proceder como os mendigos, que não cessam de pedir, de insistir e de bater à porta, até que, por fim, recebam a esmola. A perseverança final é especialmente uma graça que não se alcança sem oração contínua. Por nós mesmos, não podemos merecer essa graça, mas por meio da oração, disse Santo Agostinho, de algum modo a merecemos.
Rezemos sempre, e não cessemos de rezar, se nos quisermos salvar. Os confessores e pregadores não se cansam de exortar-nos à oração, se desejarmos salvar nossas almas. E, segundo a recomendação de São Bernardo, recorramos sempre à intercessão de Maria Santíssima. “Impetremos a graça, mas impetremo-la pela intercessão de Maria, que tudo alcança e que não pode enganar-se”.

AFETOS E SÚPLICAS

Espero, Senhor, que já me tenhais perdoado; entretanto, os meus inimigos não deixarão de me combater até à hora da morte. Se não me valerdes, tornarei a perder-me. Pelos merecimentos de Cristo, peço-vos a santa perseverança. Não permitais que me aparte de vós. E o mesmo favor vos peço para todos os que estão na vossa graça. Confiado em vossa promessa, estou certo de que me concedereis a perseverança, se continuar a vo-lo pedir. E, contudo, receio, Senhor, deixar de recorrer a vós nas tentações e recair, por isso, no pecado. Rogo-vos, pois que me concedais a graça de jamais deixar de rezar. Fazei que nos perigos de pecar me recomende a vós e invoque em meu auxílio os nomes de Jesus e de Maria. É isto, meu Deus, estou resolvido a praticar e assim espero consegui-lo mediante a vossa graça. Atendei-me, pelo amor a Jesus Cristo...
E vós, Maria, nossa Mãe, alcançai-me que, nos perigos de perder a Deus, recorra sempre a vós e a vosso divino Filho.

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

23/26  -  As cruzes da Providência são as mais agradáveis a Deus.

"Se alguém quer vir atrás de mim, diz Nosso Senhor, tome a sua cruz e siga-me." Tomar a sua cruz significa receber e sofrer todas as nossas penas, contradições, aflições e mortificações, que nesta vida nos acontecem, sem exceção alguma, com uma inteira submissão e indiferença. Imolemos muitas vezes o nosso coração do nosso amor de Jesus Cristo sobre o próprio altar da cruz, onde Ele imolou o seu amor pelo nosso. A cruz, é a porta real para entrar no templo da santidade; aquele que a busca fora daí, não a encontra. As melhores cruzes são as mais pesadas e as mais pesadas são as que mais incomodam a parte inferior da alma.
As cruzes que encontramos pelas ruas são excelentes, e ainda mais as que encontramos em casa, e quanto mais importunas melhores; valem mais do que as disciplinas, os jejuns e o mais que inventou a austeridade. É ai que resplandece a generosidade dos filhos da cruz e dos habitantes do Calvário.
As cruzes que a nós mesmos impomos são inferiores, por serem nossas e tem menos mérito. Humilhai-vos e recebei com alegria as que vos impuserem contra vossa vontade. O cumprimento da cruz aumenta muito o seu preço: sede fiéis até à morte e tereis a coroa da glória. Amais muito o crucifixo; que quereis pois senão ser crucificados?
Nosso Senhor deu a escolher a Davi o castigo que queria, e bendito seja Ele! Mas parece-me que eu não escolheria e teria deixado a escolha à sua divina Majestade. Quanto mais a cruz é de Deus, tanto mais a devemos amar.
Recebamos com amor as cruzes que não escolhemos e que Deus nos deu; bendiga- mo-las, ame-mo-las, estão todas perfumadas com a excelência do lugar donde vêm. Onde houver menos escolha há mais agrado de Deus. Amo muito mais o mal, que vem do nosso Pai celeste do que aquele, vem da nossa própria vontade.
Nosso Senhor mostrou-nos bem que não é preciso que escolhamos as cruzes, mas sim que as tomemos como nos vierem; porque quando Ele quis morrer para nos resgatar e satisfazer a vontade de seu Pai celeste, não escolheu a cruz, mas recebeu humildemente a que lhe tinham preparado os judeus.
Estimo muito mais o mal que nos envia o nosso Pai celeste do que aquele que nós escolhemos. Oh! eis a virtude verdadeira, e é assim que convém exercê-la. 
Sêneca disse o seguinte, e eu queria que o tivesse dito Santo Agostinho: "A perfeição do homem consiste em sofrer bem todas as coisas, como se lhe chegasse por escolha sua".
Sofrer por Deus é ter nas mãos o ouro mais puro e mais precioso para comprar o céu. Uma só parcela deste ouro divino basta para possuirmos a glória do paraíso. "Um instante duma leve tribulação, diz São Paulo, opera em nós um peso imenso de glória". As nossas ações ordinárias não são assim; podemos dizer que as mais virtuosas, comparadas com as aflições, são pequena moeda dum metal inferior. É preciso pois ganhar coisa de valor; e muitas vezes acontece que esta tem uma aparência enganadora, porque na maioria das nossas boas obras encontra-se o nosso amor próprio, que lhes altera a pureza.
A perfeição cristã consiste em sofrer bem. Não lastimeis as vossas penas para adquirirdes virtudes sólidas. Sofrei com paciência as tribulações que se opuserem a este desígnio. Deus dá-vos uma ocasião de praticardes a paciência; querereis deixá-la passar? Talvez na vossa vida não encontreis outra situação semelhante; talvez seja o último serviço que presteis à sua divina Majestade. Tende constância, e Ele vos aliviará nos trabalhos que sobrevierem.
Amemos nossas cruzes; são de ouro, vistas com olhos de amor; e embora Nosso Senhor aí esteja morto entre espinhos e cravos, encontra-se uma reunião de pedras preciosas, que nos guarnecerão uma coroa de glória, se suportarmos com coragem a de espinhos. O tempo das aflições e contradições é o da boa colheita, em que a alma recolhe as mais ricas bênçãos do céu, um dia deste tempo vale mais do que seis doutro. Estejamos pois sempre unidos à cruz, e trespassem muito embora as nossas carnes com mil flechas contanto que a seta inflamada do amor de Deus nos tenha antes trespassado o coração; faça-nos esta divina ferida morrer com santa morte, que vale mais do que mil vidas. Em que testemunharemos o nosso amor Àquele que tanto por nós sofreu, senão nas contradições, repugnâncias e aversões? Lancemo-nos através dos espinhos das dificuldades; deixemos trespassar o nosso coração com a lança das contradições; comamos absinto; bebamos o fel e vinagre das amarguras temporais, já que o nosso doce Salvador assim o quer.
Assim como as flores crescem entre espinhos, o amor divino cresce de preferência mais entre as tribulações do que entre as alegrias.
Oh! como são ditosas as almas que bebem corajosamente o cálice dos sofrimentos com Jesus Cristo que se mortificam, levando a sua cruz e sofrem e recebem de sua divina mão toda a qualidade de sucessos com submissão ao seu gosto! Mas, Deus meu, quão pouco se encontram, que façam isto como devem! Muitas vezes encontram-se almas que desejam sofrer e levar a cruz, e sei que há muitos que pedem a Deus aflições, mas é com a condição de as visitar e consolar muitas vezes nas suas penas e sofrimentos, e de lhes testemunhar que lhes agradam e se compraz em as ver sofrer por seu amor, e que afinal as recompensará com uma glória imortal. Também há muitos que desejam como os dois discípulos saber o grau da glória que terão no céu, com certeza que este desejo é impertinente; porque nunca devemos por forma alguma, importar-nos com isso, mas ocupar-nos sempre em servir a sua divina Majestade com a maior fidelidade que pudermos, observando os seus divinos mandamentos, conselhos e vontades, exatamente e com a maior perfeição, pureza e amor que nos for possível, deixando o cuidado do resto à sua infinita bondade, que não nos faltará se cumprimos o nosso dever, e nos recompensará com uma glória imortal, e incompreensível, dando-nos a si mesmo tanta estima o que por Ele obramos. Em suma, é um Senhor: basta só que sejamos servos e servas muito fiéis, e Ele será fiel remunerador. Oh! se soubéssemos que felicidade é servir fielmente este divino Salvador de nossas almas, e beber com Ele o cálice! Oh! abraçaríamos de bom gosto as penas e sofrimentos, imitando Santa Catarina de Sena, que preferiu a coroa de espinhos à coroa de ouro!
Assim devemos nós praticar, porque enfim o caminho da cruz e aflições é um caminho seguro, que nos conduz diretamente à Deus e à perfeição do seu amor. Se formos pois fiéis em beber corajosamente o seu cálice crucificando-nos com Ele nesta vida, a sua eterna bondade glorificar-nos-á eternamente na outra.

30 de maio de 2014

Preparação para a Morte

PONTO II

Consideramos, além disso, a necessidade da oração. Afirma São João Crisóstomo que, assim como o corpo sem alma está morto, assim quem não reza se acha sem vida. Acrescenta ainda que tanto necessitam as planta de água para não murcharem como nós da oração para nos não perdermos. Deus quer que nos salvemos todos e que ninguém se perca (1Tm 2,4). “Usa de paciência convosco, não querendo que nenhum pereça, mas que todos se convertam à penitência” (2Pd 3,9). Quer, porém, que lhe peçamos as graças necessárias para nossa salvação, porque, de um lado, não podemos cumprir os preceitos divinos e salvar-nos sem o auxílio atual do Senhor e, de outro lado, Deus não nos quer dar, ordinariamente falando, essas graças, se lhes não pedirmos. Por esta razão, disse o santo Concílio de Trento que Deus não impõe preceitos impossíveis, porque, ou dá-nos a graça próxima e atual necessária para cumpri-los, ou dá-nos a graça de pedir-lhe essa graça atual. Ensina-nos Santo Agostinho que Deus, exceto as primeiras graças, tais como a vocação para a fé, ou da penitência, todas as demais e especialmente a perseverança, concede unicamente àqueles que as pedem.
Inferem daqui os teólogos, entre os quais São Basílio, Santo Agostinho, São João Crisóstomo, São Clemente de Alexandria e muitos outros, que a oração é necessária para os adultos, como necessidade de meio. Portanto, sem rezar, não é possível salvar-se. E isto, diz o doutíssimo Léssio, se deve considerar artigo de fé.
Os testemunhos da Sagrada Escritura são concludentes e numerosos: “É preciso orar sempre. Orai, para não cairdes em tentação. Pedi e recebereis. Orai sem cessar”. As citadas palavras “é preciso, orai, pedi”, segundo a opinião geral dos teólogos com a do angélico São Tomás (3 p., q. 29, a. 5), têm força de preceito, o qual obriga sob pena de pecado grave, especialmente em dois casos: 1º quando o homem está em pecado; 2º quando está em perigo de pecar. Acrescentam ainda ordinariamente os teólogos que aquele que deixa de rezar por espaço de um mês ou mais tempo, não está livre de pecado mortal. (Veja-se Léssio no lugar citado). Como vimos acima, toda essa doutrina se baseia em que a oração é um meio sem o qual não é possível obter os socorros necessários para salvar-nos.
Pedi e recebereis. Quem pede alcança. Por conseguinte — diz Santa Teresa — quem não pede, não alcançará. E o apóstolo São Tiago exclama: Não alcançais, porque não pedis (Tg 4,2). A oração é particularmente necessária para obter a virtude da continência. “E como cheguei  a entender que de outra maneira a não podia alcançar, se Deus não me desse... recorri ao Senhor e lhe roguei” (Sb 8,21). Resumindo o que ficou exposto, conclui-se que se salva aquele que reza e que se condena na certa aquele que não reza. Todos quantos se salvaram, o conseguiram por meio da oração. Todos quantos se condenaram, condenaram-se porque não rezaram. E a consideração de que, por meio da oração, teriam podido salvar-se facilmente e que já não é tempo de remediar o mal, aumentar-lhe-á seu desespero no inferno.

AFETOS E SÚPLICAS

Como é que pude, Senhor, viver até agora esquecido de vós? Pusestes à minha disposição todas as graças que deveria ter procurado; esperáveis somente que as pedisse; mas eu só pensei em contentar minha sensualidade, sem que me importasse ver-me privado do vosso amor e da vossa graça. Esquecei, Senhor, minha ingratidão e tende misericórdia de mim; perdoai-me as ofensas que vos fiz, e concedei-me a graça da perseverança, auxiliando-me sempre, ó Deus de minha alma, para que não torne a ofender-vos. Não permitais que me esqueça de vós, como vos desprezei no passado. Dai-me luz e força a fim de que me recomende a vós, especialmente quando o inimigo me provocar ao pecado. Concedei-me, meu Deus, esta graça pelos merecimentos de Jesus Cristo e pelo amor que lhe tendes. Basta, Senhor, basta de ofensas.
Quero amar-vos no restante de minha vida. Dai-me vosso santo amor e que esse amor me faça recorrer a vós sempre que me encontre em perigo de pecar...
Maria Santíssima, minha esperança e meu amparo, pela vossa intercessão espero a graça de recomendar-me a vós e a vosso divino Filho em todas as tentações. Socorrei-me, minha Rainha, pelo amor que tendes a Jesus Cristo.

Sermão para o V Domingo depois da Páscoa – Padre Daniel Pinheiro IBP

[Sermão] A fé e as obras


Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria…
“Irmãos, sede realizadores da palavra e não vos contenteis apenas de a ouvir, iludindo-vos a vós mesmos.”
Essa frase da Epístola de São Thiago nos traz um ponto essencial de nossa religião católica. Não basta ouvir a Palavra de Deus, que nos foi dada por Cristo. É preciso realizar o que Cristo nos ensinou. A mesma doutrina está contida na coleta, em que pedimos a Deus não só o bem de pensar no que é reto, mas pedimos igualmente o bem de poder realizar o que é reto. Em outras palavras, caros católicos, não basta ter a fé, que nos vem pelos ouvidos, não basta acreditar. É preciso colocar em prática aquilo em que acreditamos: é preciso as obras, a caridade. É preciso ter a fé e a caridade, se queremos agradar a Deus. E isso é algo, à primeira vista, evidente, que está contido claramente no Evangelho e nas Epístolas, bem como no ensinamento dos Padres da Igreja. Todavia, ao longo da história, essa necessária união da fé e da caridade é muitas vezes negada.
É bem conhecido o princípio protestante do sola fides, somente a fé. Para os protestantes, em geral, basta a fé, e as boas obras não são necessárias. Fé sem obras basta para a salvação. E essa fé dos protestantes não é a adesão da inteligência às verdades reveladas por Deus, mas uma fé confiança, a certeza de que Jesus nos salvou e que seremos salvos se acreditamos nisso. Portanto, para os protestantes a fé confiança de que Cristo nos salvou basta para nos salvar, independentemente das boas obras. Por que, porém, os protestantes afirmam isso? Eles afirmam isso – basta a fé sem as obras – porque têm uma doutrina errada sobre o pecado original. Para eles, o pecado original corrompe a natureza humana de tal forma que ela se torna má. E dessa natureza humana tornada má pelo pecado original, só pode vir o pecado. Todas as ações dessa natureza má, sejam elas quais forem, são um pecado. Dar uma esmola é um pecado. Um ato de amor a Deus é um pecado, pois o princípio dessas ações é mau: a natureza humana corrompida pelo pecado original. Fica claro que uma tal doutrina sobre o pecado original leva necessariamente ao desespero. Se tudo o que faço é pecaminoso, como posso me salvar? Para escapar, então, ao desespero afirma-se que as boas obras não são necessárias para a salvação, bastando a fé confiança, bastando acreditar que Cristo nos salvou. Essa doutrina encontra sua origem nas dificuldades pessoais de Lutero. Não conseguindo escapar de seus pecados e não enxergando suas próprias fraquezas, Lutero preferiu resolver o problema dizendo que somos incapazes de boas obras, em vez de lutar para vencer seus vícios e adquirir as virtudes. Para resolver seu problema pessoal, o heresiarca inventou uma nova doutrina que trouxe grandes prejuízos para a humanidade. Podemos ver, caros católicos, como um só homem pode ter uma grande importância na história e mudar o curso dela, para o mal ou para o bem. Segundo o protestantismo, então, a morte de Cristo não foi mais poderosa do que o pecado, pois o homem segue necessariamente sendo mau e suas obras, sejam elas quais forem, são más. A paixão de Jesus e todos os méritos de Cristo são simplesmente uma capa piedosa que cobre a maldade humana, como a neve cobre uma sujeira sem tirá-la. Consequentemente, se alguém vai ao céu, conforme a doutrina protestante, não é porque mereceu o céu pelas boas obras que realizou ajudado pela graça divina, mas simplesmente porque Cristo mereceu isso para mim e tenho fé em Cristo. E é claro, caros católicos, que a afirmação de que as obras não são necessárias vai conduzir pouco a pouco as pessoas a desprezar as boas obras por completo, levando-as à indiferença quanto ao pecado e à virtude. A doutrina protestante colocada realmente em prática conduz à decadência moral e resta, simplesmente, um vago sentimento de fé. Vemos isso concretamente em nossa sociedade, em que a maioria das pessoas é completamente indiferente ao pecado, mas se crê salva porque tem um vago sentimento religioso, de confiança em Deus. A fé sem as obras é um grande erro.
Existe também, sobretudo no Brasil, o erro oposto: a caridade sem a fé. É o espiritismo. Sem falar na doutrina irracional da reencarnação, já refutada por Aristóteles, e do absurdo que é a invocação dos mortos, prática reiteradamente condenada na Sagrada Escritura, os espíritas afirmam que o importante é fazer o bem para os outros, o importante é a caridade, pouco importando a fé. Aqui existe um erro grave sobre o que é a caridade. A caridade não é a filantropia, isto é, fazer bem ao próximo. A caridade é, na verdade, amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmo por amor a Deus. Assim, o amor ao próximo deve ser uma decorrência do amor a Deus. Tem-se verdadeiramente amor ao próximo quando se deseja e se age para levá-lo, de alguma forma, a Deus, ou quando se ajuda o próximo por amor a Deus. Todavia, só podemos amar algo que conhecemos. Só poderemos amar a Deus devidamente, se o conhecemos. Ora, nós conhecemos Deus pela fé, pela fé católica. Para haver realmente caridade, é preciso, então, que haja a fé antes. Portanto, é impossível haver caridade sem a fé. A caridade sem a fé vira mera filantropia, especialidade dos espíritas e das seitas maçônicas. O que importa é fazer o bem e não a religião. Isso é um erro grave. É de suma importância e decisivo a pessoa aderir ou não ao que Deus falou por meio de seu Filho, Nosso Senhor. Como pode pretender fazer o bem aquele que se nega a acreditar em Cristo, que é a própria Verdade? A filantropia não leva ninguém para o céu e ela quer nos fazer esquecer a raiz de onde procede todo o bem, que é Deus e a verdadeira religião. Uma suposta caridade sem fé conduz ao pernicioso indiferentismo religioso, que considera que todas as religiões são boas.
Assim, caros católicos, precisamos da fé e da caridade, se quisermos viver realmente bem. Vejamos a doutrina católica. A natureza humana, depois do pecado original, não se tornou má. Como consequência do pecado original, o homem ficou incapacitado de fazer obras com valor sobrenatural, já que perdeu a graça, e tem a inclinação para o pecado. Mas as suas ações não são todas pecaminosas. Mesmo um pagão é capaz de fazer obras que não são pecaminosas, ainda que não tenham um valor sobrenatural. Um pagão que dá esmola para ajudar o próximo faz uma boa ação na ordem natural, por exemplo. Para que a boa obra tenha valor sobrenatural, é preciso estar em estado de graça. A paixão e os méritos de Cristo não são simplesmente para cobrir as nossas iniquidades, nos imputando uma justiça que, na verdade, não possuímos. Nosso Senhor realmente nos santifica. Se creio nEle e estou arrependido de minhas faltas, Nosso Senhor nos dá a graça santificante, que apaga os nossos pecados, nos santifica realmente e nos converte em Filhos de Deus. Com o auxílio de Deus, somos capazes de obras sobrenaturalmente boas, que nos levarão para o céu, se as fazemos em estado de graça e por motivo sobrenatural. Assim, caros católicos, podemos fazer boas obras e obras que nos levam para o céu, sempre ajudados por Deus, de quem procede todo o bem.
Não basta apenas ouvirmos a Palavra de Deus, iludindo-nos. É preciso colocá-la em prática. Não basta só a fé, é preciso a caridade. Não basta só uma pretensa caridade. É preciso a fé. E entre a fé e a caridade é preciso a esperança. Entre a fé pela qual nossa inteligência adere firmemente às verdades ensinadas por Deus e a caridade, pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a Deus, está a esperança. Esperança pela qual confiamos com toda segurança que Deus nos dá as graças suficientes para que acreditemos e façamos as boas obras, se tomamos a decisão de servi-lo e se rezamos bem, como nos diz Nosso Senhor no Evangelho. Com a graça de Deus, podemos perseverar até o final na fé, na esperança e na caridade. As três são necessárias.
“Ó Deus, de quem todo o bem procede, escutai as nossas preces e concedei: que por vossa inspiração pensemos o que é reto e, dirigidos por Vós, o realizemos.” (Coleta)
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

29 de maio de 2014

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XXX

Da oração
Petite et dabitur vobis... omnis enim qui petit, accipit. Pedi e dar-se-vos-á... porque todo aquele que pede receberá (Lc 9,9- 10)

PONTO I

Não é só num, mas em muitos lugares do Antigo e Novo Testamento que Deus promete atender aos que se recomendam a ele. “Clama a mim e ouvir-te-ei (Jr 33,3). Invoca-me... e livrar-te-ei (Sl 49,15). Se pedirdes alguma coisa em meu nome, vô-la será concedida (Jo 14,4).
Pedireis o que quiserdes e se vos outorgará (Jo 15,7). E assim outros textos semelhantes. Verdade é que a oração é uma, diz Teodoreto; mas ela nos pode alcançar tudo; pois, segundo afirma São Bernardo, o Senhor nos dá, ou a graça que pedirmos, ou outra que julga nos ser mais útil. Por essa razão, o Profeta nos incita a rezar, afiançando-nos que Deus é todo misericórdia para aqueles que o invocam e recorrem a ele (Sl 85,5). Com mais eficácia, nos exorta o apóstolo São Tiago, dizendo que, quando rogamos a Deus, este nos concede mais do que se lhe pede, sem vingar-se das ofensas que lhe causamos (Tg 1,5). Ao ouvir nossas orações, parece esquecer nossas culpas.
Diz São João Clímaco que a oração comove de algum modo a Deus e o obriga a conceder-nos o que lhe pedimos. É violência — escreve Tertuliano — mas violência que agrada ao Senhor e que a deseja de nós, pois, segundo diz Santo Agostinho, maiores desejos tem Deus de prodigalizar-nos os seus bens do que nós de recebê-los, porque Deus, por sua natureza, é a bondade infinita, conforme observa São Leão e se compraz sempre em comunicar-nos os seus bens. Disse Santa Maria Madalena de Pazzi que Deus contrai, de certo modo, obrigações com a alma que o implora, porque ela mesma oferece oportunidade ao Senhor de satisfazer o seu desejo de conceder-nos suas graças e seus favores. David afirmou que esta bondade do Senhor em ouvir-nos, quando lhe dirigimos as nossas súplicas, demonstrava-lhe que ele era o verdadeiro Deus (Sl 55,10). Adverte São Bernardo, que muitos se queixam de que Deus não lhes é propício; com maior razão se lamenta o Senhor de que muitos o ofendem e deixam de recorrer a ele para lhe pedir graças. Nosso Redentor disse, por isso, a seus discípulos: “Até agora nada pedistes em meu nome. Pedi e recebereis, a fim de que vosso gozo seja completo” (Jo 16,24); ou seja: “não vos queixeis de mim, se não tendes sido completamente felizes; queixai-vos de vós mesmos que não me pedistes as graças que vos tenho preparado. Pedi, pois, e sereis satisfeitos”.
Os antigos monges afirmaram que não há exercício mais proveitoso para alcançar a salvação do que a oração contínua, dizendo: Auxiliai-me, Senhor! Deus, in adjutorium meum intende. O venerável Padre Segneri, referindo-se a si mesmo, disse que costumava, em suas meditações, entregar-se largamente a afetos piedosos, mas que, depois, persuadido da grande eficácia da oração, procurava dedicar a ela a maior parte do tempo... Façamos nós também o mesmo, porque Deus nos ama ternamente, deseja a nossa salvação e se mostra solícito em ouvir as nossas súplicas. Os príncipes do mundo só a poucos dão audiência, disse São João Crisóstomo; mas Deus a concede a todos os que a pedem.

AFETOS E SÚPLICAS

Adoro-vos, Deus Eterno, e agradeço-vos todos os benefícios que me tendes concedido, especialmente criando-me, resgatando-me com o sangue de Jesus Cristo, tornando-me filho da sua santa Igreja, esperando o meu arrependimento quando me achava no pecado e perdoando-me tantas vezes... Ah, meu Deus, nunca teria caído em pecado, se a vós tivesse recorrido nas tentações... Agradeço-vos também a luz que me fez reconhecer que toda a minha felicidade se funda na oração, na súplica dos dons de que necessitamos. Peço-vos, pois, em nome de Jesus Cristo, que me deis grande dor de meus pecados, a perseverança na vossa graça, uma morte boa e piedosa e, enfim, a glória eterna; sobretudo vos peço o sumo dom do vosso amor e a perfeita conformidade com a vossa vontade santíssima. Bem sei que não mereço esses favores, mas os oferecestes a quem os pedisse em nome de Jesus Cristo. E eu, pelos merecimentos de Jesus Cristo, vo-los peço e espero obtê-los...
Ó Maria, as vossas súplicas alcançam quando pedem. Orai por mim.

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

22/26  -  A cruz do bom ladrão.

Salomão diz que tudo o que se passa neste mundo é nada e aflição de espírito. Ninguém há neste mundo que possa evitar a cruz e os sofrimentos; mas os ímpios e pecadores estão ligados à cruz e às tribulações contra vontade; e por sua impaciência tornam essas cruzes inúteis; têm sentimentos de estima de si mesmos semelhantes aos do mau ladrão; por este meio unem as suas cruzes às deste malvado e os seus prêmios serão iguais.
O bom ladrão transformou sua má cruz na cruz de Jesus Cristo. Certamente os trabalhos, as injúrias, as tribulações, que recebemos são cruzes de ladrão e merecemo-las, devemos pois dizer humildemente, como o bom ladrão: "Recebemos em nossos sofrimentos a que merecemos por nossos pecados." É assim que por nossa humildade transformaremos a cruz de ladrão em cruz de cristão verdadeiro. Unamos, pois com o bom ladrão, a nossa cruz de pecador a cruz daquele que nos salvou; e por esta amorosa e devota união dos nossos sofrimentos e à Jesus Cristo, entraremos como o bom ladrão na sua amizade e no paraíso.

28 de maio de 2014

Preparação para a Morte

PONTO III
 
A maior tribulação, que neste mundo aflige as almas que amam a Deus, é a de se acharem desoladas e sem consolo; é o receio de não o amarem e de não serem amadas por ele (Ecl 19,1). No céu, porém, a alma está certa de que se acha venturosamente abismada no amor divino, e de que o Senhor a abraça como filha predileta, sem que esse amor jamais possa acabar-se. Ao contrário, essas chamas se hão de intensificar ainda mais na alma com o conhecimento mais perfeito que terá então do amor que impeliu Jesus a morrer por nós e a instituir o Santíssimo Sacramento, no qual Deus mesmo se dá como alimento ao homem. Verá a alma distintamente todas as graças que Deus lhe prodigalizou, livrando-a de tantas tentações e perigos de perder-se, e reconhecerá que aquelas tribulações, enfermidades, perseguições e reveses, que chamara desgraças e tivera por castigos, eram manifestações do amor de Deus e meios que a Divina Providência punha em prática para a levar ao Paraíso. Reconhecerá, primordialmente, a paciência que Deus teve em esperá-la depois de tê-lo ofendido tanto, e a nímia misericórdia de conceder-lhe não só o perdão, mas ainda cumulá-la de luzes e convites amorosos. Daquelas alturas venturosas, verá que existem no inferno muitas almas condenadas por culpas menores que as suas e aumentar-se-lhe-á a gratidão por ter-se santificado, gozar da posse de Deus e jamais perder o Bem soberano e infinito.
O bem-aventurado gozará eternamente dessa felicidade incomparável que a cada instante lhe parecerá nova, como se então a começasse a desfrutar. Desejará ter sempre essa felicidade e a possuirá sem cessar: sempre desejosa e sempre satisfeita; sempre ávida e sempre saciada. O desejo, no paraíso da glória, não vai acompanhado de temor, nem o gozo engendra nenhum enfado. Em suma: assim como os réprobos são vasos de ira, assim os eleitos são vasos de júbilo e de felicidade, de sorte que nada lhes resta a desejar. Diz Santa Teresa, que, mesmo aqui na terra, quando Deus admite as almas em sua adega, isto é, no seu amor divino, as embriaga de tal felicidade que perdem toda a afeição às coisas terrenas. Mas, no céu, muito mais perfeita e plenamente os eleitos de Deus, segundo diz David, serão embriagados na abundância de sua casa. A alma, então, face a face com o seu Senhor e unindo-se ao Sumo Bem, presa de amoroso delíquio, abismar-se-á em Deus e, esquecida de si mesma, só pensará em amar, louvar e bendizer o Bem infinito que possui.
Quando as cruzes da vida nos oprimem, esforcemo-nos por suportá-las pacientemente com a esperança do céu. À hora da morte, o abade Zósimo perguntou a Santa Maria Egipcíaca, como tinha podido viver tantos anos no deserto, ao que a Santa respondeu: — Com a esperança na glória... Quando ofereceram a São Filipe Néri a dignidade de cardeal, atirou para longe de si o barrete, exclamando: O céu, o céu é que eu desejo. Frei Gil, religioso franciscano, elevava-se extático, cada vez em que ouvia o nome do paraíso celeste. Pois bem! quando nos atormentarem e angustiarem as misérias deste mundo, levantemos os olhos ao céu e consolemo-nos com a esperança da felicidade eterna.
Consideremos que, sendo fiéis a Deus, hão de em breve acabar-se todos esses trabalhos, essas misérias e inquietações, e seremos admitidos à pátria celestial, onde viveremos plenamente felizes, enquanto Deus for Deus. Ali nos esperam os Santos, ali a Virgem Santíssima, ali Jesus Cristo nos prepara a coroa imarcescível do reino da eterna glória.
 
AFETOS E SÚPLICAS
 
Meu querido Salvador, vós mesmo me ensinaste a rezar deste modo: Adveniat regnum tuum. Suplico-vos, pois, Senhor, que venha o vosso reino à minha alma, de maneira que tomeis dela posse completa e que ela vos possua a vós, como Bem sumo e infinito. Meu Jesus, nada poupastes para salvar-me e para conquistar o meu amor. Salvai-me, pois. Seja minha salvação amar-vos sempre nesta e na vida eterna.
Apesar de tantas vezes vos ter abandonado, sei que não desdenhareis de abraçar-me eternamente no céu com tanta ternura como se nunca vos tivesse ofendido. E sabendo disso, como não poderia eu amar-vos sobre todas as coisas, a vós, que me quereis dar o paraíso, apesar de que tantas vezes merecesse o inferno?... Oxalá, Senhor, nunca vos tivesse ofendido! Se pudesse renascer, quisera amar-vos sempre!... Mas o que está feito, está feito. Só posso oferecer-vos o restante da minha vida. Sem reserva, vo-la dou; consagro-me inteiramente ao vosso serviço...
Saí do meu coração, afetos terrestres, dai lugar ao meu Deus e Senhor, que o quer possuir unicamente!... Todo ele é vosso, meu Redentor, meu Amor e meu Deus. De hoje em diante, só quero pensar em vos ser agradável. Ajudai-me com a vossa graça: assim o desejo eficaz de servir-vos... Ó glória, ó céu!... Quando vos poderei ver face a face, Senhor?...
Meu Deus, guiai-me e protegei-me para que jamais vos ofenda!... Ó Maria Santíssima, quando me verei a vossos pés na glória do paraíso? Socorrei-me, minha Mãe; não permitais que me condene e que me veja longe de vós e do vosso divino Filho.

27 de maio de 2014

Preparação para a Morte

PONTO II
 
Depois que a alma entra a gozar a divina beatitude, não terá mais nada a sofrer. “Deus enxugará todas as lágrimas de seus olhos, e já não haverá morte, nem pranto, nem gemido, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E o que estava sentado no trono disse: Eis que eu renovo todas as coisas” (Ap 21,4-5). Não existe ali a sucessão de dias e noites, de calor e frio, mas um dia perpétuo sempre sereno, contínua primavera deliciosa e perene. Não há perseguições nem ciúmes, porque nesse reino de amor todos se amam com ternura, e cada um goza da felicidade dos demais como se fosse sua própria.
Desconhecem-se ali angústias e temores, porque a alma confirmada na graça já não pode pecar nem perder a Deus. Todas as coisas ostentam renovada e completa formosura (Ap 21,5), e todas satisfazem e consolam. Os olhos deslumbrar-se-ão na admiração daquela cidade de perfeita beleza (?). Que delicioso espetáculo seria vermos uma cidade cujas ruas fossem calçadas de terso e límpido cristal e cujas vivendas, de prata brunida, fossem cobertas de ouro puríssimo e ornadas de grinaldas de flores... Quanto mais bela é ainda a cidade da glória! Como será agradável ver os seus felizes moradores vestidos com pompa real, porque, segundo diz Santo Agostinho, todos são reis! Que prazer será contemplar a Virgem Santíssima, mais bela que o próprio céu; e o Cordeiro imaculado, Nosso Senhor Jesus Cristo, divino esposo das almas! Santa Teresa conseguiu ver, certo dia, apenas uma das mãos do Redentor e ficou maravilhada à vista de tanta beleza... Nas moradas celestiais recenderão suavíssimos perfumes, aromas de glória, e se ouvirão músicas e cânticos de sublime harmonia... São Francisco ouviu, certa vez, por breves instantes, a execução dessa harmonia angélica e julgou morrer de dulcíssimo prazer... Que será, pois, a audição dos coros de anjos e santos, que, conjuntamente, cantam as glórias divinas (Sl 83,5), e a voz puríssima da Virgem Imaculada que louva o seu Deus!...
Como o canto do rouxinol num bosque excede e supera ao das demais aves, assim é a voz de Maria no céu... Numa palavra: haverá na glória todas as delícias que se podem desejar.
Mas esses prazeres até aqui considerados são apenas os menores bens do céu. O bem essencial da glória é o bem supremo: Deus. A recompensa que o Senhor nos promete não consiste unicamente na beleza, na harmonia e nos encantos daquela cidade bem-aventurada; a recompensa principal é Deus, mesmo, é amá-lo e contemplá-lo, face a face (Gn 15,1). Assegura Santo Agostinho que, se Deus mostrasse seu rosto aos condenados, “o inferno se transformaria de súbito em delicioso paraíso”. E acrescenta que, se fosse dada a uma alma, ao sair deste mundo, a escolha de ver a Deus, ficando no inferno, ou de não vê-lo e livrar-se das penas infernais, “preferiria, sem dúvida, a visão de Deus ainda que com os tormentos eternos”.
A felicidade de amar a Deus e vê-lo face a face não podemos compreender cabalmente neste mundo. Procuremos, porém, avaliá-la de alguma maneira, considerando que os atrativos do divino amor, mesmo na vida mortal, chegam a arrebatar não somente a alma, mas até o corpo dos santos. São Filipe Néri foi uma vez arrebatado ao ar juntamente com o banco em que estava sentado. São Pedro de Alcântara elevou-se também sobre a terra abraçado a uma árvore, cujo tronco se separou da raiz. Sabemos, além disso, que os santos mártires, graças à suavidade e doçura do amor divino, se regozijam no meio dos seus atrozes padecimentos. São Vicente, durante o seu martírio, falava de tal modo — diz Santo Agostinho — “que não parecia ser o mesmo que estava falando e o que estava sofrendo”. São Lourenço, estendido sobre as grelhas em fogo, dizia ao tirano com assombrosa serenidade: Vira-me e devora-me, porque, como observa Santo Agostinho, Lourenço “incendido do amor divino, não sentia o fogo material que o devorava”.
Além disso, quão suave doçura encontra o pecador ao chorar as suas culpas! Se tão doce é chorar por ti — exclama São Bernardo — o que não será gozar de ti? Que inefável consolação não sente a alma, quando um raio de luz celeste descobre, durante a oração, algo da bondade e da misericórdia divina, do amor que lhe teve e ainda tem Nosso Senhor Jesus Cristo! Parece-lhe que a alma se consome e desfalece de amor. E, no entanto, neste mundo não vemos a Deus tal qual é; divisamo-lo entre sombras. Presentemente, temos uma venda ante os olhos e Deus se nos oculta sob o véu. Que sucederá, porém, quando desaparecer essa venda e se rasgar aquele véu, e nossos olhos virem quanto Deus é belo, quanto é grande e justo, perfeito, amável e amoroso? (1Cor 13,12).
 
AFETOS E SÚPLICAS
 
Meu Sumo Bem, eu sou aquele desgraçado que tantas vezes se apartou de vós e renunciou ao vosso amor. Não mereço ver-vos nem amar-vos. Mas vós, Senhor, sois aquele que, compadecendo-vos de mim, não tivestes compaixão de vós mesmo e vos condenastes à morte dolorosa do madeiro infamante e afrontoso. Espero que, por vossa morte, terei algum dia a dita de ver-vos e de gozar de vossa presença, amando-vos com todo o meu ser. Agora que estou ainda em risco de vos perder para sempre, tendo-vos já perdido por meus pecados, que farei no resto da vida? Continuarei a ofender-vos?... Não, meu Jesus; detesto as ofensas que vos fiz. Pesa-me de vos ter ofendido e vos amo de todo o meu coração... Repelireis uma alma que se arrepende e vos ama? Não. Bem sei que dissestes, amantíssimo Redentor, que não sabeis repelir aqueles que, arrependidos, recorrem a vós (Jo 6,37).
Renuncio a tudo, meu Jesus; entrego-me a vós; abraço-vos e vos aperto ao coração. Abraçai-me e apertai-me também ao vosso Coração sacratíssimo... Ouso falar-vos assim, por que falo e trato com a Bondade infinita, com um Deus que morreu por meu amor. Meu caríssimo Redentor, dai-me a perseverança no vosso santo amor.
Santíssima Virgem Maria, nossa Mãe, alcan-çai-me a graça da perseverança, em atenção ao grande amor que tendes a Cristo Jesus. Assim o espero, e assim seja.

26 de maio de 2014

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

12/26 -  Como devemos proceder nas tentações do amor próprio.

O amor próprio, a estima de nós mesmos, e a falsa liberdade de espírito, são raízes que não podemos completamente extirpar do coração, mas só impedir que deem frutos, que são os pecados; porque não podemos evitar os seus primeiros ímpetos ou movimentos, enquanto estamos nesta vida mortal, embora nos seja possível moderar ou diminuir a sua qualidade e ardor por meio da prática das virtudes contrárias, e sobretudo do amor de Deus.
É preciso, portanto, ter paciência, e cercear pouco a pouco, domar as nossas aversões e vencer as nossas tendências e gênio, segundo as ocasiões; porque em suma esta vida é uma guerra contínua, e qual é o que pode dizer: Eu não sou atacado? A paz nos esta reservada para o céu, onde nos espera a palma da vitória. Na terra é preciso combater sempre entre o temor e a esperança, sob condição de que a esperança, deve ser mais forte, em consideração da onipotência daquele que nos auxilia.
O amor próprio só morre quando nós morremos; e tem mil meios de se abrigar na nossa alma, por ser natural, ou pelo menos, co-natural. Tem consigo uma multidão de movimentos, jeitos e paixões; é sutil e sabe mil voltas de agilidade. Convém sentir sempre os seus ataques sensíveis e as suas práticas secretas enquanto estamos neste exílio; basta que não consintamos com um propósito deliberado, firme, pleno, e é tão excelente esta virtude da santa indiferença, que o vosso velho homem, na sua porção sensível, e a natureza humana, nas suas faculdades naturais não foram constantes, nem mesmo em Nosso Senhor, que, como filho de Adão, embora isento do pecado, e de tudo o que lhe pertence na sua porção sensível e faculdades humanas, não estava indiferente, mas desejava não morrer na cruz; estando reservada a indiferença e o seu exercício ao espírito, à porção suprema às faculdades abrasadas pela graça, e enfim a Ele próprio, que era o novo Adão.
Estas pequenas surpresas das paixões são inevitáveis nesta vida mortal, e é por isso mesmo que clama ao céu o grande apóstolo: "Ah! como sou pobre criatura!" Sinto em mim dois homens: o velho e o novo; duas luzes: a dos sentidos e a do espírito; duas operações: a da natureza e a da graça. Ah! quem me livrará deste corpo da morte?
É por isso que não temos a consolação que deveríamos ter quando vemos praticar o bem; porque o que em nós não vemos não é tão agradável para nós e o que vemos em nós é muito doce e bom em razão de nos amarmos terna e afetuosamente.
Este mesmo amor próprio faz com que desejamos praticar bem tal e tal coisa, à nossa escolha; mas não quereríamos fazer se outro escolhesse, ou por obediência. Somos sempre nós que nos rendemos a nossa vontade e amor próprio. Pelo contrário, se tivéssemos perfeito amor de Deus, antes quereríamos fazer o que nos mandam; isso vem mais de Deus e menos de nós.
O vosso caminho é ótimo; nada há a dizer senão que considerais muito os passos temendo cair. Refletis muito sobre as tentações do vosso amor próprio, que são sem dúvida frequentes; mas não são nunca perigosas, ao passo que sem lhe ligardes importância, podeis dizer tranquilamente, sem vos importardes do seu número: Não, não vos obedeço.
Caminhai com simplicidade; não desejeis tanto repouso de espírito e vereis como vos será vantajoso.
Porque vos atormentais? Deus é bom e bem vos conhece: por piores que fossem as vossas inclinações, não vos podem prejudicar, porque existem para unir com mais vantagem a vossa vontade superior com a de Deus. Elevai os vossos olhos, movidos de uma confiança perfeita na bondade de Deus. Não vos afadigueis por Ele, porque Jesus disse a Marta que o não queria, ou pelo menos que achava melhor menos fadiga, ainda mesmo na prática das boas obras.
Não esquadrinheis tanto na vossa alma e nos seus progressos. Não queirais ser tão perfeito; mas vivei com boa fé nos vossos exercícios e ações que de tempos a tempos vos ocupam. Não vos inquieteis pelo dia de amanhã. E quanto ao caminho que tendes a seguir, Deus, que vos conduziu até agora, vos conduzirá até ao fim. Ficai em paz com a santa e amorosa confiança que deveis ter na benignidade da Providência celeste.
Não nos devemos admirar de encontrarmos  amor próprio em nós, por ele não fazer ruído. É que algumas vezes dorme como uma raposa, e depois acorda de repente; eis, aí esta porque convém que o vigiemos e nos defendamos dele com paciência e coragem. Porque se algumas vezes nos fere, desdizendo-nos do que ele nos fez dizer e desaprovando o que nos fez praticar, estamos curados. Não nos devem incomodar muito, estes ímpetos do amor próprio; desprezando-os três ou quatro vezes cada dia, temos cumprido. Não é preciso impeli-los aos empurrões; basta dizer: Não.
Fiquemos pois em paz. Quando nos acontecer violar as leis da indiferença nas coisas indiferentes, por ímpetos súbitos do amor próprio e das paixões, prostremos, se pudermos, o nosso coração ante Deus, digamos com espírito de confiança e humildade: "Senhor! misericórdia, porque estou enfermo". Levantemo-nos em paz e com tranquilidade e reatemos o fio da nossa indiferença; depois continuemos a nossa obra.
Não devemos quebrar as cordas quando notamos desacordo; basta que prestemos atenção para ver donde provém o desarranjo e apertemos ou alarguemos a corda levemente, segundo as regras da arte.
As inclinações de orgulho, vaidade e amor próprio misturam-se em tudo e enchem com os seus sentimentos todas as nossas ações; mas nem por isso são a causa delas. São Bernardo, conhecendo um dia que o incomodavam enquanto pregava: "Retira-te de mim, Satanás, disse ele; não comecei por ti e portanto também não acabarei por ti".
Uma só coisa vos digo acerca do que me escreveis; é que excitais o vosso orgulho por afetação quando falais ou escreveis. Ao falar, a afetação passa tão insensivelmente, que quase não se percebe; mas embora não se perceba, convém mudar imediatamente de estilo. Ao escrever é diferente; é na verdade muito insuportável; porque percebemos melhor o que fazemos, e, se notamos afetação, convém punir a mão que a escreveu, fazendo-lhe escrever outra coisa de forma diversa.
De resto, não duvido que haja alguns pecados veniais em tantas voltas e reviravoltas do coração; mas, no entanto, como são passageiras, não tiram o fruto das nossas resoluções, mas só a doçura que por estas faltas perdemos, se o permitisse o estado desta vida. Mas sejamos justos: não acuseis, nem desculpeis sem madura reflexão a vossa pobre alma, com receio de que, se a desculpardes sem fundamento, a torneis insolente, e se acusardes ligeiramente, lhe tireis a coragem e a façais pusilânime. Caminhai com simplicidade e caminhareis com segurança.
Esta porção de pensamentos que afligem a vossa alma não devem por forma alguma ser espancados, porque quando acabareis vós de os vencer? É só preciso algumas vezes ao dia desprezá-los em massa e depois deixar o inimigo fazer a bulha que quiser à porta do vosso coração, porque isso pouco importa, contanto que não entre. Deixai-vos pois ficar em paz na guerra, e não vos amofineis, porque Deus esta por vós.

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XXIX
 
Da glória
Tristitia vestra vertetur in gaudium. Vossa tristeza há de converter-se em alegria (Jo 16,20).
 
PONTO I
 
Procuremos sofrer com paciência as aflições da vida presente, oferecendo-as a Deus, em união com as dores que Jesus Cristo sofreu por nosso amor e alentando-nos com a esperança da glória. Esses trabalhos, penas, angústias, perseguições e temores hão de acabar um dia e, se nos salvarmos, serão para nós motivos de gozo e alegria inefável no reino dos bem-aventurados. É o próprio Senhor que nos anima e consola: “Vossa tristeza há de converter-se em alegria” (Jo 16,20).
Meditemos, portanto, sobre a felicidade da glória... Mas que diremos desta felicidade, quando nem os Santos mais inspirados souberam dar uma idéia acertada das delícias que Deus reserva aos que o amam?...
David apenas soube dizer que a glória é o bem infinitamente desejável... (Sl 83,2).
E tu, insigne São Paulo, que tiveste a dita de ser arrebatado ao céu, dize-nos alguma coisa ao menos do que viste ali!... Não, — respondeu o grande Apóstolo, — o que vi não é possível exprimir. Tão sublimes são as delícias da glória, que não pode compreendê-las quem não as desfruta (2Cor 12,9). Tudo o que posso dizer, é que ninguém nesta terra viu, nem ouviu, nem compreendeu as belezas, as harmonias e os prazeres que Deus preparou para aqueles que o amam (1Cor 2,9).
Neste mundo, não somos capazes de imaginar os bens do céu, porque só formamos idéia do que o mundo nos apresenta... Se, por maravilha excepcional, um ser irracional fosse dotado de razão e soubesse que um rico senhor ia celebrar esplêndido banquete, imaginaria que o repasto haveria de ser o melhor e o mais seleto, mas semelhante ao que ele usa, porque não poderia conceber nada melhor como alimento.
Assim acontece conosco relativamente aos bens da glória... Quanto é belo contemplar, em serena noite de verão, a magnificência do firmamento recamado de estrelas! Quão agradável é admirar as águas tranqüilas de um lago transparente, em cujo fundo se descobrem peixes a nadar e pedras cobertas de musgo! Quanta formosura num jardim cheio de flores e de frutos, circundado de fontes e riachos, matizado por lindos passarinhos, que cruzam o ar e o alegram com seu canto mavioso!... Dir-se-ia que tantas belezas são o paraíso... Mas não! Muito diferentes são os gozos e a formosura do paraíso. Para deles fazermos uma vaga idéia, consideremos que ali está Deus onipotente, enchendo de delícias inenarráveis as almas que ele ama... Quereis saber o que é o céu? — dizia São Bernardo, — pois sabei que ali não há nada que desagrade, e existe todo bem que deleita.
Que dirá a alma quando entrar naquela mansão felicíssima?... Imaginemos um jovem ou uma virgem, que, tendo consagrado toda a sua vida ao amor e ao serviço de Cristo, acaba de morrer e deixa este vale de lágrimas. Sua alma apresenta-se ao juízo; o juiz a acolhe com bondade e lhe declara que está salva. O anjo da guarda a acompanha e felicita, e ela lhe mostra sua gratidão pela assistência que recebeu dele.
“Vem, pois, alma querida, diz-lhe o anjo; regozija-te porque estás salva.
Vem contemplar a face do Senhor!” E a alma se eleva, transpõe as nuvens, passa além das estrelas, e entra no céu... Meu Deus!... Que sentirá a alma ao penetrar, pela primeira vez, naquele reino de venturas e vir aquela cidade de Deus, insuperável em formosura?... Os anjos e os santos a recebem alegres e lhe dão amorosas boas-vindas... Ali encontrará, sob indizível júbilo, os seus santos padroeiros e os parentes e amigos que a precederam na vida eterna. A al-ma quererá prostrar-se diante deles, mas estes a impedirão, recordando-lhe que são também servos do Senhor (Ap 22,91). Levá-la-ão depois a beijar os pés da Santíssima Virgem, Rainha dos céus. A alma sentirá imenso delíquio de amor e de ternura vendo, pela primeira vez, sua excelsa e divina Mãe que tanto lhe ajudou a salvar-se e que agora lhe estende amorosamente os braços, fazendo-lhe reconhecer todas as graças que alcançou por sua intercessão perante nosso Rei Jesus Cristo, que a receberá como esposa amantíssima, e lhe dirá: “Vem do Líbano, minha esposa; vem e serás coroada” (Ct 4,8); alegra-te e consola-te, que passaram já as lágrimas, as penas e os temores; recebe a coroa imarcessível que te alcancei a preço de meu sangue...” Jesus a apresentará ao Pai Eterno que lhe lançará a sua bênção, dizendo: Entra na alegria do teu Senhor (Mt 25,21) e lhe co-municará uma bem-aventurança sem fim, com felicidade semelhante à que ele goza.
 
AFETOS E SÚPLICAS
 
Eis aqui, Senhor, a vossos pés um ingrato que criastes para a glória, mas que tantas vezes, por indignos prazeres, renunciou a ela, preferindo ser condenado ao inferno... Espero que já me tenhais perdoado todas as ofensas que vos fiz e das quais sempre de novo me arrependo, querendo renovar sem cessar o meu arrependimento até à morte, a fim de que renoveis o vosso perdão... Mas, ó meu Deus! mesmo que já me tenhais perdoado, não é menos certo que tive a audácia de desagradar- vos, meu Redentor, que, para me levar ao vosso reino, sacrificastes a vida. Seja sempre louvada e bendita vossa misericórdia, meu Jesus, que com tanta paciência me tendes aturado e que, longe de me punir, só tendes multiplicado para mim graças, inspirações e convites.
Reconheço, meu amado Salvador, que desejais a minha salvação e que me chamais à pátria celestial para ali vos amar eternamente; mas quereis também que antes disso vos consagre meu amor neste mun-do...
Quero amar-vos, meu Deus, e, mesmo que não houvesse glória, quisera amar-vos enquanto vivesse, com todas as minhas forças. Basta-me saber que vós o desejais assim... Ajudai-me, meu Jesus, com vossa graça e não me abandoneis... Minha alma é imortal: estou, pois, na alternativa de amar-vos ou de aborrecer-vos eternamente. Que hei de preferir senão amar-vos sempre, consagrar-vos meu amor nesta vida, para que na vida futura esse amor perdure sem fim... Disponde de mim como vos aprouver; castigai-me como quiserdes; não me priveis, porém, do vosso amor e fazei de mim o que vos parecer... Meu Jesus, vossos merecimentos são minha esperança...
Ó Maria, confio em vossa intercessão! Livrastes-me do inferno quando me achava em pecado; agora que amo a Deus, não deixareis de salvar-me e santificar-me.

25 de maio de 2014

Preparação para a Morte

PONTO III
 
Considerar o grande Bem que perderam, será o terceiro remorso dos condenados, cuja pena, segundo São João Crisóstomo, será mais grave pela privação da glória do que pelos próprios tormentos do inferno.
“Conceda-me Deus quarenta anos de reinado e renunciarei gostosamente ao seu paraíso”, disse a infeliz princesa Isabel da Inglaterra...
Obteve, de fato, os quarenta anos de reinado. Mas que dirá agora a sua alma na outra vida? Certamente, não pensará o mesmo. Que aflição e que desespero sentirá ao ver que, por reinar quarenta anos entre angústias e temores, gozando um trono temporal, perdeu para sempre o reino dos céus! Maior aflição, entretanto, sentirá o réprobo ao reconhecer que perdeu a glória e o Sumo Bem, que é Deus, não por acidentes de má sorte nem pela malevolência de outros, mas por sua própria culpa. Verá que foi criado para o céu, e que Deus lhe permitiu escolher livremente a vida ou a morte eterna. Verá que teve em sua mão a faculdade de tornar-se, para sempre, feliz e que, apesar disso, quis lançar-se, por sua livre vontade, naquele abismo de suplício, donde nunca mais poderá sair, e do qual ninguém o livrará. Verá como se salvaram muitos de seus companheiros que, não obstante terem de passar por perigos idênticos ou maiores de pecar, souberam vencê-los, recomendando-se a Deus, ou, se caíram, não tardaram a levantar-se e se consagraram novamente ao serviço do Senhor. Ele, porém, não quis imitá-los e foi cair desastrosamente no inferno, nesse mar de tormentos, onde não existe a esperança.
Meu irmão! Se até aqui foste tão insensato que, para não renunciar a um mísero deleite, preferiste perder o reino dos céus, procura a tempo remediar o dano. Não permaneças em tua loucura e teme ir chorá-lo no inferno. Quem sabe se estas considerações que lês sejam o último apelo de Deus? Se não mudares de vida e cometeres outro pecado mortal, Deus, talvez, te abandonará e te condenará a sofrer eternamente entre aquela multidão de insensatos que agora reconhecem o seu erro (Sb 5,6) e o confessam desesperados, porque não ignoram que é irremediável. Quando o inimigo te induzir a pecar, pensa no inferno e recorre a Deus e à Santíssima Virgem. O pensamento do inferno poderá livrar-te do próprio inferno. “Lembra-te de teus novíssimos e não pecarás jamais” (Ecl 7,40), porque esse pensamento te fará recorrer a Deus.
 
AFETOS E SÚPLICAS
 
Ah, soberano Bem! Quantas vezes vos perdi por um nada, e quantas vezes mereci perder-vos para sempre! Reanimam-me e consolam-me, entretanto, aquelas palavras do Profeta: “Alegre-se o coração dos que buscam ao Senhor” (Sl 104,3). Não devo, pois, perder a esperança de recuperar vossa graça e vossa amizade, se vos procuro com sinceridade.
Sim, meu Senhor, suspiro por vossa graça mais que por qualquer outro bem. Prefiro ver-me privado
de tudo, até da vida, a perder o vosso amor. Amo-vos, meu Criador, amo-vos sobre todas as coisas; e porque vos amo pesa-me de vos ter ofendido... Meu Deus, desprezei-vos e perdi-vos; perdoai-me e permiti que vos encontre, porque não quero tornar a vos perder. Admiti-me de novo na vossa amizade e abandonarei tudo para amar unicamente a vós. Assim o espero da vossa misericórdia...
Pai Eterno, ouvi-me; por amor de Jesus Cristo, perdoai-me e concedei-me a graça de nunca mais me separar de vós. Se de novo e voluntariamente vos tornasse a ofender, teria justa razão para recear que me abandonásseis...
Ó Maria, esperança dos pecadores, reconciliai-me com o meu Deus e guardai-me debaixo do vosso manto, a fim de que nunca mais me separe do meu Redentor.

24 de maio de 2014

Preparação para a Morte

PONTO II
 
Diz São Tomás que o principal tormento dos condenados será a consideração de que se perderam por verdadeiros nadas, e que podiam ter alcançado facilmente, se o quisessem, o prêmio da glória. O segundo remorso de sua consciência consistirá, portanto, no pensar quão pouco cumpria fazer para salvar-se. Um condenado que apareceu a Santo Humberto revelou-lhe que sua maior aflição no inferno era reconhecer a indignidade do motivo que o levara à condenação e a facilidade com que a poderia ter evitado. O réprobo dirá então: “Se me tivesse mortificado para não olhar aquele objeto, se tivesse vencido o respeito humano ou tal amizade, não me teria condenado... Se me tivesse confessado todas as semanas, se tivesse freqüentado as associações piedosas, se tivesse feito todos os dias leitura espiritual e se me tivesse recomendado a Jesus e a Maria, não teria recaído em minhas culpas...
Muitas vezes, resolvi fazer tudo isso, mas, infelizmente, não perseverei.
Dava começo à prática do bem, mas, em breve, desprezei o caminho encetado. Por isso, me perdi”.
Aumentará o pesar causado por este remorso a lembrança dos exemplos de companheiros virtuosos e de amigos do condenado, assim como dos dons que Deus lhe concedeu para salvar-se: dons naturais, como boa saúde, fortuna e talento, que, bem aproveitados segundo a vontade de Deus, teriam servido para a santificação; dons sobrenaturais, como luzes, inspirações, convites, largos anos para reparar as faltas cometidas. O réprobo, porém, deverá reconhecer que, no estado em que se acha, já não há remédio. Ouvirá a voz do Anjo do Senhor, que exclama e jura: “por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, que já não haverá tempo...” (Ap 10,5-6). Como espadas agudas atuarão sobre o coração do condenado as recordações de todas as graças que recebeu, quando vir que já não é possível reparar a ruína eterna. Exclamará com seus companheiros de desespero: “Passou a ceifa, findou o estio, e nós não fomos salvos” (Jr 8,20). Se tivesse empregado no serviço de Deus o tempo e o trabalho passado em perder-me, teria sido um santo... E agora, que me restam, senão remorsos e mágoas sem fim? Sem dúvida, o pensamento de que poderia ser eternamente feliz e que será para sempre desgraçado, atormentará mais terrivelmente o condenado do que todos os demais castigos infernais.
 
AFETOS E SÚPLICAS
 
Como é que pudestes, meu Jesus, aturar-me tanto tempo? Tantas vezes que me apartei de vós, outras tantas viestes procurar-me; ofendi-vos e me perdoastes; voltei a ofender-vos e novamente me concedestes perdão... Fazei, Senhor, que participe da dor amarga que, sob suores de sangue, sofrestes por meus pecados no horto de Getsêmani. Arrependo- me, caríssimo Redentor, de ter tão indignamente desprezado o vosso amor... Malditos prazeres, detesto-vos e vos amaldiçôo, porque me fizestes perder a graça de Deus!... Meu diletíssimo Redentor, amo-vos sobre todas as coisas; renuncio a todas as satisfações ilícitas e proponho antes morrer mil vezes do que tornar a ofender-vos... Pelo afeto com que me amastes na cruz e oferecestes a vida por mim, concedei-me luz e força para resistir à tentação e pedir vosso poderoso auxílio...
Ó Maria, meu amparo e minha esperança, que tudo podeis conseguir de Deus, alcançai-me a graça de que não me aparte nunca mais de seu amor santíssimo!

23 de maio de 2014

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XXVIII
 
Remorsos do condenado
Vermis eorum non moritur. O seu verme não morre (Mc 9,47).
 
PONTO I
 
Este verme que não morre nunca significa, segundo São Tomás, o remorso de consciência dos réprobos, o qual há de atormentá-los eternamente no inferno. Muitos serão os remorsos com que a consciência roerá o coração dos condenados. Mas há três que principalmente os atormentarão, a saber: o pensar no nada das coisas pelo qual o réprobo se condenou, no pouco que tinha a fazer para salvar-se e no grande Bem que perdeu. Depois que Esaú tinha comido o prato de lentilhas, preço do seu direito de primogenitura, ficou tão magoado por ter consentido na perda que, conforme a Escritura, pôs-se a rugir... (Gn 27,34) Que gemidos e clamores soltarão os réprobos ao ponderar que, por prazeres fugidios e envenenados, perderam um reino eterno de felicidade, e se vêem condenados para sempre a contínua e interminável morte! Chorarão mais amargamente que Jônatas, sentenciado a morrer por ordem de Saul, seu pai, sem ter cometido outro delito do que provar um pouco de mel (1Rs 14,43). Que pesar sofrerá o condenado ao recordar-se da causa de sua ruína!... Sonho de um instante nos parece nossa vida passada. O que hão de parecer ao réprobo os cinqüenta ou sessenta anos de sua vida terrena, quando se encontra na eternidade, onde, depois de terem decorrido cem ou mil milhões de anos, vir que então aquela sua vida está começando? E, além disso, os cinqüenta anos de vida na terra são, acaso, cinqüenta anos de prazer? O pecador que vive sem Deus goza sempre de doçuras em seu pecado? Um momento só dura o prazer culpável; no demais, para quem vive separado de Deus, é tempo de penas e aflições... Que serão, portanto, para o infeliz réprobo esses breves momentos de deleite? Que lhe parecerá, particularmente, o último pecado pelo qual se condenou?... “Por um vil prazer que durou apenas um instante e que como o fumo se dissipou, exclamará, hei de arder nestas chamas, desesperado e abandonado, enquanto Deus for Deus, por toda a eternidade!”
 
AFETOS E SÚPLICAS
 
Dai-me luz, Senhor, a fim de reconhecer minha maldade em ofender-vos e a pena eterna que por ela mereci. Sinto, meu Deus, grande dor de ter-vos ofendido, mas essa dor me consola e alivia. Se me tivésseis precipitado no inferno, como mereci, o remorso seria ali o meu maior castigo ao considerar a miséria e a vileza das coisas que provocaram minha eterna desgraça. Agora, porém, a dor reanima, consola e me infunde esperança de alcançar perdão, que oferecestes ao que se arrepende.
Meu Deus e Senhor, arrependo-me de vos ter ultrajado; aceito com alegria essa pena dulcíssima da dor de minhas culpas, e vos rogo que a aumenteis e conserveis até à morte, a fim de que não deixe de deplorar um só instante os meus pecados... Perdoai-me, meu Jesus e Redentor, que, por terdes misericórdia de mim, não a tivestes de vós mesmo, e vos condenastes a morrer de dor para livrar-me do inferno. Tende piedade de mim! Fazei, portanto, que meu coração se conserve sempre contrito e inflamado no vosso amor, pois que tanto me tendes amado e aturado com tanta paciência, a ponto de, em vez de castigar-me, me cumulardes de luz e de graça... Agradeço-vos, meu Jesus, e vos amo de todo o coração.
Não sabeis desprezar a quem vos ama; peço, pois, que não aparteis de mim o vosso rosto divino. Acolhei-me na vossa graça e não permitais que torne a perdê-la...
Maria, Mãe e Senhora nossa, recebei-me como vosso servo e uni-me a vosso Filho Jesus. Suplicai-lhe que me perdoe e que me conceda, juntamente com o dom do seu amor, a graça da perseverança final.

22 de maio de 2014

Preparação para a Morte

PONTO III

No inferno, o que mais se deseja é a morte. “Buscarão os homens a morte e não a encontrarão” (Ap 9,6). Por isso, exclama São Jerônimo.
“Ó morte, quão agradável serias àqueles para quem foste tão amarga!” . Disse David que a morte se apascentará com os réprobos (Sl 48,15). E explica-o São Bernardo, acrescentando que, assim como, ao pastar, os rebanhos comem apenas as pontas das ervas e deixam a raiz, assim a morte devora os condenados, mata-os a cada instante e conserva-lhes a vida para continuar a atormentá-los com castigo eterno.
De sorte que, diz São Gregório, o réprobo morre continuamente sem morrer nunca. Quando um homem sucumbe de dor, todos têm compaixão dele. Mas o condenado não terá quem dele se compadeça.
Estará sempre a morrer de angústia e não encontrará comiseração... O imperador Zenão, sepultado vivo numa masmorra, gritava e pedia que, por piedade, o retirassem dali, mas não o atenderam e, depois, o encontraram morto. As mordeduras que a si mesmo havia feito nos braços, patenteavam o horrível desespero que sentira... Os condenados, exclama São Cirilo de Alexandria, gritam no cárcere infernal, mas ninguém acode a libertá-los, ninguém deles se compadecerá jamais.
E quanto tempo durará tão triste estado?... Sempre, sempre. Lê-se no Exercícios Espirituais, do Pe. Segneri, publicados por Muratori, que, em Roma, se interrogou a um demônio (na pessoa de um possesso), quanto tempo devia ficar no inferno... Respondeu com raiva e desespero: Sempre, sempre!... Foi tal o terror que se apoderou dos circunstantes, que muitos jovens do Seminário Romano, ali presentes, fizeram confissão geral, e sinceramente mudaram de vida, consternados por esse breve sermão de duas palavras apenas...
Infeliz Judas!... Há mais de mil e novecentos anos que já está no inferno e, não obstante, se diria que seu castigo apenas vai em princípio!...
Desgraçado Caim!... Há cerca de seis mil anos que sofre o suplício infernal e pode-se dizer que ainda se acha no princípio de sua pena! Um demônio a quem perguntaram quanto tempo estava no inferno, respondeu: Desde ontem. E como se lhe replicou que isso não era possível, porque sua condenação já transcorrera há mais de cinco mil anos, exclamou: “Se soubésseis o que é a eternidade, compreenderíeis que, em comparação a ela, cinqüenta séculos nem sequer chegam a ser um instante”.
Se um anjo fosse dizer a um réprobo: “Sairás do inferno quando se tiverem passado tantos séculos quantas gotas houver de água na terra, folhas nas árvores e areia no mar”, o réprobo se regozijaria tanto como um mendigo que recebesse a nova de que ia ser rei. Com efeito, passarão todos esses milhões de séculos e outros inumeráveis a seguir, e contudo o tempo de duração do inferno estará sempre no seu começo...
Os réprobos desejariam propor a Deus que lhes aumentasse quanto quisesse a intensidade das penas e as prolongasse tanto quanto fosse.
Esse fim e essa limitação, entretanto, não existem nem existirão. A voz da divina justiça só repete no inferno as palavras sempre, nunca! Os demônios, por escárnio, perguntarão aos réprobos: “Vai muito adiantada a noite?” (Is 21,11). Quando amanhecerá? Quando acabarão essas vozes, esses prantos, essa infecção, esses tormentos e essas chamas? E os infelizes responderão: Nunca! Nunca!... Mas quanto tempo hão de durar?... Sempre! Sempre!... Ah, Senhor! Iluminai a tantos cegos que, sendo advertidos para tratarem de sua salvação, respondem: “Deixai-nos. Se formos para o inferno, que havemos de fazer?...
Paciência?...” Meu Deus! não têm paciência para suportar, às vezes, os incômodos do calor e do frio, nem para sofrer uma leve ofensa, e hão de ter paciência, depois, para serem mergulhados num mar de fogo, suportar tormentos diabólicos o abandono absoluto de Deus e de todos, durante toda a eternidade?

AFETOS E SÚPLICAS

Pai das misericórdias! Nunca abandonais a quem vos procura. Se na vida tantas vezes me apartei de vós sem que me abandonasses, não me desprezeis agora que vos procuro. Pesa-me, Sumo Bem, de ter feito tão pouco caso de vossa graça, trocando-a por coisas de somenos valor. Contemplai as chagas de vosso Filho, ouvi sua voz que clama perdão para mim. Perdoai-me, pois, Senhor... E vós, meu Redentor, recordai-me sempre os sofrimentos que por mim passastes, o amor que me tendes e a minha ingratidão, que tantas vezes me fez merecer a condenação eterna, a fim de que chore minhas culpas e viva ardendo em vosso amor... Ah, meu Jesus! Como não hei de abrasar-me em vosso amor ao pensar que há muitos anos já devia estar queimando nas chamas infernais durante toda a eternidade, e que vós morrestes para me livrar das mesmas e efetivamente me livrastes com tão grande misericórdia? Se estivesse no inferno, vos aborreceria eternamente. Mas agora vos amo e desejo amar-vos sempre. Espero, pelos merecimentos do vosso precioso sangue, que assim me concedereis... Vós, Senhor, me amais e eu vos amo também: amar-me-eis sempre, se de vós não me apartar. Livrai-me, meu Salvador, da grande desdita de separar-me de vós e fazei o que vos aprouver... Mereço todos os castigos, e os aceito voluntariamente, contanto que não me priveis do vosso amor...
Ó Maria Santíssima, amparo e refúgio meu, quantas vezes me condenei por mim próprio ao inferno e dele me tendes livrado!... Livrai-me, no futuro, de todo pecado, causa única que me pode privar da graça de Deus e lançar-me ao inferno.

Sermão para o IV Domingo depois da Páscoa – Padre Daniel Pinheiro IBP

[Sermão] O que faz na terra o Espírito Santo?

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave Maria…
“Quando vier, porém, o Espírito de verdade, ele vos ensinará toda a verdade.”
Caros católicos, a liturgia da Santa Igreja começa já a nos preparar para a Ascensão de Nosso Senhor. E, juntamente com a Ascensão de Nosso Senhor, ela nos prepara também para a Festa de Pentecostes. Quando Cristo diz que deve voltar ao Pai, que o enviou, a alma dos discípulos fica repleta de tristeza. Ele promete, então, enviar o Espírito Santo, o Consolador, e diz o que o Espírito Santo fará. E não está dito que o Espírito Santo virá primeiramente para dar os dons carismáticos. Não, a essência da vinda do Espírito Santo, não é o dom de línguas, nem o dom de cura ou outro dom extraordinário. O Espírito Santo tem sua vinda partilhada em três aspectos: quanto ao mundo, quanto a nós e quanto a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quanto ao mundo, o Espírito Santo vem convencê-lo do pecado, da justiça e do juízoO Espírito Santo vem reprovar ao mundo todos os seus pecados, sobretudo o da incredulidade, da falta de fé naquilo que NS ensinou. O Espírito Santo condena a incredulidade pela sua ação na história, em particular pela história da Igreja. Vendo como a Igreja se desenvolveu, desde os apóstolos até hoje, guardando intactos os ensinamentos de Cristo, apesar de todas as perseguições violentas e de todas as heresias, podemos constatar a verdade dos ensinamentos de NSJC. Tantos motivos para crer em Nosso Senhor e na sua Igreja, mas os homens preferem crer irracionalmente em mestres criados por eles mesmos, ou preferem acreditar na própria vontade. O Espírito Santo reprova ao mundo também os outros pecados, toda classe de pecados, servindo-se, para tanto, da pregação dos apóstolos e dos sucessores deles, servindo-se da fortaleza heroica dos mártires, da ciência dos doutores da Igreja, do exemplo dos santos. Muitas vezes, o Espírito Santo reprova ao mundo o pecado, servindo-se de castigos, como, por exemplo, a destruição de Jerusalém pelo imperador Tito no ano 70, ou pela tomada de Constantinopla pelos maometanos em 1453, ou ainda pela infiltração de algum erro entre os católicos.
Quanto ao mundo também, o Espírito Santo vem convencê-lo da justiça. Nosso Senhor foi basicamente acusado de duas coisas: de ser um pecador, e de ter blasfemado ao declarar-se Deus, afirmando ser verdadeiramente Filho de Deus. O Espírito Santo vem para estabelecer a santidade de Nosso Senhor Jesus Cristo e a sua divindade. E isso já desde Pentecostes, em que São Pedro, pela sua pregação, restabelece a justiça e a verdade quanto a Nosso Senhor Jesus Cristo. E são esses os dois pilares da pregação da Igreja: a santidade de Cristo e a sua divindade. O Espírito Santo mostra, pelos santos, como aquele que se assemelha e imita Nosso Senhor se torna verdadeiramente bom. O Espírito Santo mostra ao longo da história, como uma sociedade que se baseia em Nosso Senhor Jesus Cristo e nos preceitos de sua Igreja floresce em todos os aspectos, mas sobretudo na virtude, onde se encontra o bem do homem. Ele mostra como uma sociedade que não se baseia em Cristo tende ao caos. Portanto, o Espírito Santo reprova ao mundo sua injustiça e mostra a esse mesmo mundo a santidade e a divindade de Nosso Senhor. Nosso Senhor está hoje no lugar que lhe é devido em justiça: a direita do Pai.
Ainda quanto ao mundo, o Espírito Santo o convencerá do juízo, isto é, da condenação do príncipe do mundo, o demônio. Pela morte na cruz e pela ressurreição de NS, o demônio foi derrotado. Qualquer alma, unindo-se a Cristo pela fé e caridade, pode derrotar o demônio e o pecado. O Espírito Santo vem para nos mostrar que a vitória está com Cristo e com seus seguidores, para mostrar que Cristo venceu o mundo. Ele vem para mostrar que o demônio e o pecado já estão condenados.
Quanto aos homens, o Espírito Santo vem para ensinar toda a verdade, para consolar e para fortalecerEle vem para ensinar toda a verdade. Toda a verdade foi revelada pelo Espírito Santo aos Apóstolos. A Revelação termina com o último apóstolo, que foi São João Evangelista. A Igreja não foi instituída para inventar ou ensinar novidades, mas para defender, guardar, explicitar e propagar as verdades Reveladas por Cristo e pelo Espírito Santo aos apóstolos. O Espírito Santo, com sua assistência, assegura a fidelidade da Igreja à verdade revelada, garantindo assim que o ensinamento de Cristo chegue até o final dos tempos. Foi o Espírito Santo que deu a coragem e o zelo missionário aos apóstolos em Pentecostes, para que eles propagassem a boa-nova do Evangelho até os confins da terra. O Espírito Santo nos ensina a verdade iluminando as nossas inteligências, para que possamos conhecer e aderir às verdades reveladas por Cristo e por Ele.
Também quanto aos homens, o Espírito Santo vem para consolá-los. Ele vem sustentar os justos nas provações da vida cristã, para ajudá-los nas desgraças. Ele vem para nos fazer ver Jesus e a alegria no meio das cruzes. Ele vem para nos encorajar no bom caminho, neste vale de lágrimas em que vivemos. O Espírito Santo vem para nos unir em tudo a Nosso Senhor Jesus Cristo. E Ele vem consolar não só os pecadores, mas também os justos, ferindo-os com o remorso, estimulando-os ao arrependimento, fazendo-os ver que o perdão dos pecados e a conversão da vida é perfeitamente possível.
Ainda quanto aos homens, o Espírito Santo vem fortalecê-los, para que possam resistir a todas as adversidades desse mundo que já podemos chamar, com toda exatidão, de completamente pagão. Os ataques do demônio e dos outros espíritos malignos que vagueiam pelo mundo para perder as almas são inúmeros. Nesse combate, contra esse ambiente anticatólico em que as pessoas vivem totalmente esquecidas de Deus e entregues por completo às coisas da terra, é necessária essa fortaleza dada pelo Espírito Santo. Precisamos dessa fortaleza para resistir às falsas máximas do mundo : “Deus é bom e compreensivo, não vai nos condenar por nos divertirmos um pouco; comer bem, vestir-se segundo a moda, divertir-se muito, é isso que se deve procurar; o principal é a saúde e uma vida longa” e assim por diante. Precisamos do Espírito Santo para resistir às zombarias e perseguições do mundo contra a vida de piedade, contra os vestidos honestos e decentes, contra a delicadeza de consciência na profissão e em todas as ações. Precisamos dessa fortaleza dada pelo Espírito Santo para resistir às zombarias contra as leis santas do matrimônio, leis que o mundo julga antiquadas ou impossíveis de serem praticadas, leis que o mundo subverte completamente. É preciso dessa fortaleza para resistir aos escândalos e maus exemplos praticamente onipresentes, bastando sair às ruas para vê-los, ou abrir um jornal, ou mesmo escutar uma conversa por acaso… Precisamos dessa fortaleza para resistir às diversões cada vez mais abundantes e refinadas e imorais: teatros, músicas, filmes, danças, praias, piscinas, jornais, revistas, modas indecentes, conversas torpes, piadas provocadoras, frases de duplo sentido. O mundo parece nos indicar que para se divertir é preciso pecar. Tal força dada pelo Espírito Santo nos vem primeiramente e principalmente do sacramento da crisma.
Finalmente, com relação a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Espírito Santo vem para glorificá-lo. Jesus, com sua vinda à terra, glorificou Deus Pai, com sua obediência, com sua doutrina com seus milagres. Deus Filho glorificou o Pai, dando testemunho do Pai. Deus Espírito Santo vem para que Deus Filho seja glorificado, isto é, para que Nosso Senhor seja conhecido, amado e servido. O Espírito Santo assistindo a Igreja, propagou por toda a terra a verdade sobre Deus e sobre seu amor por nós.
Que grande graça é para nós a vinda do Espírito Santo, afastando-nos do pecado, da injustiça, do juízo de condenação e levando-nos a Jesus Cristo ao nos ensinar a verdade, ao nos consolar e nos fortalecer.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

21 de maio de 2014

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

21/26  -  Consolações nos sofrimentos.

Prostremo-nos aos pés do Crucifixo e contemplemos as dores que sofremos através da cruz e das injúrias que Nosso Senhor recebeu; por este meio tornar-se-á leve a aspereza das aflições, e as vezes tornar-se-á tão agradável, que amaremos mais o sofrimento do que o gozo de toda a consolação! Ah! quando virmos o nosso Salvador, depois de mil opróbrios e dores, crucificado, e morto entre os espinhos e cravos, e ao pé Nossa Senhora e São João, entre as admiráveis e espantosas trevas que houve na sua paixão, convencer-nos-e-mos de que as cruzes e aflições são mais amáveis do que os contentamentos e deleites; tanto assim, que a sabedoria de Deus as escolheu para si e para os seus servos verdadeiros e mais queridos, e ainda nos deu delas alguma parte, a nós miseráveis e vis. Ah! devia ser para nós uma grande graça sermos também crucificados com Jesus Cristo e poder testemunhar o nosso amor para com Ele nas tribulações, como Ele testemunhou o seu para conosco durante a sua paixão.
Muitas vezes os remédios que os médicos e farmacêuticos receitam e preparam, são rejeitados pelos enfermos: mas sendo-lhes oferecido por mão amiga, o amor vence a repugnância, e recebem-nos com alegria, e tem-se notado que algumas crianças sem verem a sua mãe, só pelo conhecimento que tem da sua vontade, tomam tudo o que lhe mandam, sem gosto algum, porque não saborearam o que comem, nem veem a sua mãe, comendo só para lhe fazer vontade. Oh! meu Deus, porque é que a lembrança só do vosso gesto não há de tornar amável o sentimento da aspereza, as penas deliciosas e os trabalhos desejáveis?
As abelhas misticas fabricam o mel mais delicioso nas chagas deste leão da tribo de Judá ferido e martirizado no Calvário, e os filhos da cruz glorificam-se no seu admirável problema, que o mundo não compreende; da morte, que tudo devora, saiu a carne da nossa consolação; da morte, mais forte do que tudo, sairá a doçura do mel do nosso amor.
Juntemos pois as nossas penas e trabalhos com os tormentos de Jesus Cristo, para que neles tenham o seu mérito e valor, e acreditemos que os nossos sofrimentos nunca se poderão separar, nem em qualidade, nem em quantidade, com os de Nosso Senhor e dos Santos; nada sofreremos por Ele em comparação com o que Ele sofreu por nós.
Eis o motivo que obrigava os santos a tomarem como uma grande honra as afrontas, calúnias e opróbrios que o mundo lhes dizia; é assim que se glorificavam no crucifixo e no aniquilamento de si mesmos, tendo mais contentamento, alegria, glória e felicidade no trono da cruz, do que Salomão teve no seu trono de marfim; e o seu amor era tão forte e poderoso, que o não podiam apagar as águas da tribulação e os rios da perseguição.
As virtudes que crescem entre as prosperidades são de ordinário fracas e frouxas; mas as que nascem entre as angústias são fortes e firmes; assim como o vinho mais fino e superior é o que nasce em um terreno pedregoso.
Peço a Deus que resida sempre em vosso coração para que não se abale com tantos embates, e que, fazendo-vos participante da sua cruz, vos comunique a sua santa tolerância e o divino amor que torna as tribulações tão preciosas.
Guardai um santo silêncio, porque é bom guardar as palavras para Deus e para sua glória. Deus sustentou-vos com o seu braço na aflição. Convém pois obrardes assim sempre. Meu Deus, dizia São Gregório a um bispo aflito, como pode ser que os nossos corações, que já pertencem ao céu, sejam agitados pelos acidentes terrenos? A vista do nosso querido Jesus crucificado basta para atenuar em um momento todas as nossas dores, que são flores em comparação com os seus espinhos.
E já que o nosso gozo completo esta na eternidade, que influência pode exercer sobre nós tudo o que acaba com o tempo?
Pensemos que esta vida mortal esta cheia de eventualidades, a que estamos sujeitos; que as consolações são raras e os trabalhos inumeráveis, e que portanto estamos em um estado em que nos cumpre alimentar-nos mais com absinto de que com mel; com a certeza de que Aquele, por quem, padecemos e resolvemos alimentar a paciência entre todas as oposições, nos dará na estação própria a consolação do seu Santo Espírito, transformará os cravos e espinhos das contrariedades em pedras preciosas para a eternidade e dará à nossa caridade um novo brilho. Há perto de Grenoble um fogo que se alimenta em uma fonte; da mesma maneira a caridade santa é fonte que alimenta as suas chamas e consolações nas mais tristes angústias da morte e nas águas da adversidades.
Lembremo-nos da coroa celeste, que se não dá sem vitória, e a vitória não se obtém sem combate; convém pois achar agradáveis os combates das tribulações. Ah! se pudéssemos contemplar a glória, veríamos que nenhum dos mortais que aí são imortais viveu sem aflições e perturbações contínuas; porque nos afligirão pois as pequenas dificuldades que Deus nos envia, e porque nos impacientamos com tão pouco se uma gota de humildade bastaria para nos fazer suportar com paciência o que nos acontece justamente em castigo dos nossos pecados?
Enfim, visto ser necessário sofrer as penas, os trabalhos e os casos que nos acontecerem, convém que nos imolemos em espírito ao agrado de Deus, e beijemos essa cruz com ternura, lembrando-nos da consolação geral que quase sempre temos nos males deste mundo, a saber: a esperança de que não serão duradouros e que lhe veremos o fim. Depois exclamemos cordialmente, à imitação de Santo André: "Nós te saudamos, ó cruz; nós te saudamos, ó tribulação bem aventurada, ó aflição santa, quanto és amável, pois nasceste do seio amável deste Pai de eterna misericórdia, que te destinou para nós de toda eternidade!"
De resto o único remédio da maior parte das nossas doenças corporais e espirituais, é a paciência e conformidade com a vontade divina, resignando-nos ao seu agrado, sem reserva nem exceção, na saúde, na doença, no desprezo, na honra, na consolação, na desolação, no tempo e na eternidade; aceitemos de boa vontade todos os trabalhos espirituais e corporais da sua amabilíssima mão, como se Ele estivesse presente, oferecendo-nos para sofrermos muito mais ainda, se lhe agradar. Não fazemos ideia de  como uma tal resignação na vontade divina torna os nossos sofrimentos puros e meritórios, quando os recebemos não só com doçura e paciência, mas ainda quando os amamos e estimamos, pelo agrado divino donde procedem. Assim como um ramo de agnuscastus releva o cansaço do viajante que o traz, assim a cruz, a mortificação, o jugo, é a lei do Salvador, que é verdadeiro cordeiro casto, é um verdadeiro peso que alivia, que consola e recreia os corações que amam a sua divina Majestade. Não temos trabalho naquilo que amamos, ouse há trabalho é um trabalho amado; o trabalho misturado com o amor santo é um misto de doçura e agrura, mais agradável ao gosto do que a própria doçura.
Sabeis o que fazem os pastores da Arábia quando veem relampejar, trovejar e o ar estar coberto de nuvens? Retiram-se para debaixo dos loureiros, eles e os seus rebanhos.
Quando vemos que as perseguições e contradições nos ameaçam com alguma grande desgraça convém que nos retiremos, a nós e as nossas aflições, para o pé da santa cruz, com uma plena confiança de que tudo será para proveito dos que amam a Deus.
Conservai firme o vosso coração; livrai-vos das presas; entregai muitas vezes a vossa confiança à providência de Nosso Senhor e estai certo de que passarão o céu e a terra, mas que vos não faltará Nosso Senhor com a sua proteção enquanto fordes sua filha obediente ou desejeis pelo menos sê-lo.
Duas ou três vezes por dia vede se o vosso coração esta inquieto por qualquer coisa, e, achando-o, tratai imediatamente de o sossegar.