30 de junho de 2014

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo - 11ª Parte

CAPÍTULO XI
Da condenação de Jesus Cristo e sua ida ao Calvário
1. Continuava Pilatos a escusar-se perante os judeus que não podia condenar à morte aquele inocente. Estes, porém, o atemorizaram, dizendo: “Se soltares a este, não és amigo de César” (Jo 19,12). Cego pelo temor de perder as graças de César, esse juiz desgraçado, depois de ter reconhecido e declarado Jesus Cristo tantas vezes inocente, o condenou finalmente à morte da cruz: “Então ele lhes entregou Jesus para que fosse crucificado”. Ó meu amado Redentor, suspira S. Bernardo, que delito cometestes para ser condenado à morte e morte de cruz? Mas eu bem compreendo, replica o santo, o motivo de vossa morte; sei que pecado cometestes:“O vosso pecado é o vosso amor”. O vosso delito é muito amor que consagrastes aos homens; é ele e não Pilatos que vos condenou à morte. Não, eu não vejo justo motivo de vossa morte, acrescenta S. Boaventura, senão o afeto excessivo que nos tendes (Stim. div. am. p. 1 c. 2). Ah, um tal excesso de amor muito nos constrange, ó Senhor amabilíssimo, a consagrar-vos todos os afetos de nossos corações, diz S. Bernardo (In CT serm. 20). Ó meu caro Salvador, só o conhecimento de que vós me amais deveria fazer-me esquecido de todas as coisas para procurar exclusivamente amar-vos e contentar-vos em tudo. “Forte como a morte é o amor”. Se o amor é forte como a morte, pelos vossos merecimentos, ó meu Senhor, dai-me um tão grande amor para convosco que me faça detestar todas as afeições terrenas. Fazeime compreender bem que toda a minha felicidade consiste em agradar a vós, Deus todo bondade e todo amor. Maldigo aquele tempo em que não vos amei; agradeço-vos porque me dais ainda tempo para vos amar. Amo-vos, Jesus meu, infinitamente amável e infinitamente amante; amo-vos com todo o meu ser e prometo-vos querer antes mil vezes morrer, que deixar de vos amar. 2. Lê-se a iníqua sentença de morte ao condenado Jesus: ele a ouve e humildemente a aceita. Não se queixa da injustiça do juiz, não
apela para César, como fez S. Paulo; mas, inteiramente manso e resignado, se submete ao decreto do Pai Eterno, que por nossos pecados o condena à cruz.“Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2,8). E pelo amor que dedica aos homens contenta-se com morrer por nós. “Amou-nos e entregou-se a si mesmo por nós” (Ef 5,2). Ó meu compassivo Salvador, quanto vos agradeço! quanto vos sou obrigado! Desejo, ó meu Jesus, morrer por vós, pois que vós com tão grande amor aceitastes a morte por mim. Mas se não me é dado derramar o meu sangue por vós e sacrificar-vos a minha vida pelas mãos do carrasco, como o fizeram os mártires, aceito ao menos com resignação a morte que me está reservada, e aceito-a no modo e tempo que vos aprouver. Desde já eu vo-la ofereço em honra de vossa majestade e em desconto de meus pecados, e peço-vos pelos merecimentos de vossa morte que me concedais a dita de morrer amando-vos e na vossa graça.
3. Pilatos entrega o inocente cordeiro às mãos daqueles lobos para que com ele façam o que quiserem: “Entregou Jesus à sua vontade” (Lc 23,25).Os algozes agarraram-no com fúria, arrancam-lhe dos ombros o farrapo de púrpura, como lhes insinuaram os judeus, e restituem-lhe suas vestes (Mt 27,31). Isso fizeram, diz S. Ambrósio, para que Jesus fosse reconhecido ao menos pelas vestes, visto estar seu belo rosto tão deformado pelo sangue e pelas feridas, que sem as suas vestes dificilmente poderia ser reconhecido. Tomam, entretanto, dois toscos pedaços de madeira, formam com eles às pressas uma cruz de quinze pés (como afirmam S. Boaventura e S. Anselmo) e colocam-na sobre os ombros do Redentor. Mas, segundo S.Tomás de Vilanova, Jesus não esperou que a cruz lhe fosse imposta pelos algozes: ele mesmo a tomou avidamente com suas mãos e a pôs sobre os ombros chagados (Conc. 3 de uno M.). Vem, disse então, vem, cruz querida! Há trinta e três anos por ti suspiro e te busco; eu te abraço, te aperto ao meu coração, já que és o altar em que desejo sacrificar a minha vida por amor de minhas ovelhas. Ah! meu Senhor, como pudestes fazer tanto bem a quem vos fez tantos males? Ó Deus, quando eu penso que fostes obrigado a morrer pela veemência dos tormentos para me obter a amizade divina e que eu a perdi tantas vezes voluntariamente por minha culpa, quereria morrer de dor. Quantas vezes me haveis perdoado e eu tornei a vos ofender. Como poderei esperar perdão se não soubesse que morrestes para perdoar-me? Por essa vossa morte, pois, eu espero o perdão e a perseverança no vosso amor. Arrependo-me, meu Redentor, de vos haver ofendido; perdoai-me por vossos merecimentos, que eu vos prometo não vos dar mais desgosto. Eu estimo e amo a vossa amizade mais do que todos os bens do mundo. Por isso não permitais que eu venha a perdê-la de novo; dai-me, Senhor, qualquer castigo afora esse. Jesus meu, não quero mais perder-vos, prefiro perder a vida, quero amar-vos sempre.
4. A justiça sai com os condenados e entre eles caminha para a morte o rei do céu, o Unigênito de Deus, carregado com a cruz: “Levando sua cruz às costas, saiu para aquele lugar que se chama Calvário” (Jo 19,17). Saí também do céu, ó bem-aventurados Serafins, e vinde acompanhar o vosso Senhor que sobe ao Calvário, para aí ser justiçado em um patíbulo infame juntamente com os malfeitores. Ó espetáculo horrendo! um Deus supliciado! Este é o Messias que poucos dias antes foi aclamado Salvador do mundo e recebido pelo povo com aplausos e bênçãos, exclamando todos: “Hosana ao Filho de Davi, bendito o que vem em nome do Senhor” (Mt 21,9). Ei-lo agora preso, escarnecido e amaldiçoado por todos, com uma cruz às costas para morrer como um malfeitor. Ó excesso de amor divino! Um Deus supliciado pelos homens. Encontrar-se-á ainda um homem que não ame este Deus! Ó meu amoroso Jesus, tarde comecei a amar-vos, fazei que no restante de minha vida compense o tempo perdido. Já sei que tudo o que eu fizer é pouco em comparação do amor que vós me tendes tido, mas ao menos quero amar-vos com todo o meu coração. Grande injúria eu vos faria se, depois de tantas finezas, eu dividisse o meu coração e o repartisse com qualquer objeto além de vós. Eu vos consagro de hoje em diante toda a minha vida, a minha vontade, a minha liberdade. Disponde de mim como vos agradar. Peço-vos o paraíso, para lá amar-vos com todas as minhas forças. Muito quero amar-vos nesta vida, para muito vos amar na eternidade. Socorrei-me com a vossa graça; peço-vos e o espero pelos vossos merecimentos. 5. Imagina, minha alma, que vês passar Jesus nesse doloroso caminho. Assim como um cordeiro é levado ao matadouro, o amantíssimo Redentor é conduzido à morte (Is 53,7). Ele está tão esgotado e enfraquecido pelos tormentos, que apenas pode ter-se em pé. Ei-lo todo dilacerado pelas feridas, com a coroa de espinhos sobre a cabeça, com o pesado madeiro sobre os ombros e com um algoz que o puxa por uma corda. Caminha com o corpo curvado, com os joelhos trêmulos, gotejando sangue; anda com tanta dificuldade, que parece que a cada passo vai exalar a vida. Pergunta-lhe: Ó cordeiro divino, não estais ainda farto de dores? se com isso pretendeis conquistar o meu amor, deixai de sofrer que eu quero amar-vos como desejais. Não, responde-te, ainda não estou satisfeito: só então estarei contente quanto estiver morto por teu amor. E agora aonde ides, meu Jesus? Vou morrer por ti, não mo impeças; uma só coisa eu peço e recomendo: quando me vires morto sobre a cruz por ti recorda-te do amor que te dediquei; lembra-te disso e ama-me.
Ó meu aflito Senhor, quanto vos custou o fazer-me compreender o amor que me consagrastes. Que vantagem vos poderia trazer meu amor, que para conquistá-lo quisestes sacrificar vosso sangue e a vida? E como pude eu, objeto de tão grande amor, viver tanto tempo sem vos amar, esquecido de vosso afeto? Agradeço-vos a luz que me dais agora e que faz conhecer o quanto me tendes amado. Eu vos amo, bondade infinita sobre todas as coisas; desejaria, se pudesse, sacrificar-vos mil vidas, que quisestes sacrificar a vossa vida divina por mim. Concedei-me aqueles auxílios que me haveis merecido com tantas penas para vos amar de todo o coração. Dai-me aquele santo fogo que viestes acender na terra, morrendo por nós. Recordai-me sempre da vossa morte, para que nunca mais me esqueça de vos amar.
6.“Foi posto o principado sobre o seu ombro” (Is 9,6). Diz Tertuliano que a cruz foi o nobre instrumento com que Jesus Cristo se adquiriu tantas almas, porque, morrendo nela, pagou a pena de nossos pecados e assim as resgatou ao inferno, fazendo-as suas. “O qual levou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro” (1Pd 2,24). Portanto, ó meu Jesus, se Deus vos carregou com os pecados de todos os homens: “Deus colocou nele a iniqüidade de todos nós” (Is 53,6), eu com os meus pecados vos tornei mais pesada a cruz que levastes ao Calvário.
Ah, meu dulcíssimo Salvador, já então vistes todas as injúrias que eu vos faria e apesar disso não deixastes de me amar e de preparar-me tantas misericórdias que usastes para comigo. Se, pois, vos fui tão caro, apesar de vilíssimo e ingrato pecador que tanto vos ofendi, é justíssimo que vós também me sejais caro, vós, meu Deus, beleza e bondade infinitas, que tanto me tendes amado. Ah, se nunca vos tivesse desgostado! Conheço agora, ó meu Jesus, o mal que vos fiz. Malditos pecados, que fizestes? Fizeste-me contristar o coração amoroso de meu Redentor, coração que tanto me amou. Ó meu Jesus, perdoai-me que eu me arrependo de vos haver desprezado. Para o futuro sereis o único objeto de meu amor. Amo-vos, ó amabilidade
infinita, como todo o meu coração, e estou resolvido a não amar a ninguém mais fora de vós. Senhor, perdoai-me e dai-me o vosso amor e nada mais vos peço. Digo-vos com S. Inácio: “Dai-me unicamente o vosso amor coma vossa graça e estou bastante rico”.
7. “Se alguém quiser vir após mim, abnegue-se a si mesmo e tome sua cruz e siga-me”(Mt 16,24). Visto que vós, inocente, meu amado Redentor, me precedeis com a vossa cruz e me convidais a seguir-vos com a minha, ide adiante que eu não quero deixar-vos só. Se no passado vos abandonei, confesso que procedi mal. Dai-me agora a cruz que vos aprouver, que eu a abraço, seja qual for, e com ela quero acompanhar-vos até à morte: “Saiamos fora dos arraiais, levando o seu impropério” (Hb 13,13). E como é possível, Senhor, que não amemos por vosso amor as dores e os opróbrios, se vós tanto os amastes por nossa salvação? Já que nos convidais a seguir-vos, queremos, sim, seguir-vos e morrer convosco, mas dai-nos, força para executá-lo: essa força vos pedimos por vossos merecimentos e a esperamos. Amo-vos, meu Jesus amabilíssimo, amo-vos com toda a minha alma e não quero mais deixar-vos. Basta-me o tempo em que andei longe de vós; ligai-me agora à vossa cruz. Se eu desprezei o vosso amor, disso me arrependo de todo o coração e agora vos estimo mais que todos os bens. 8. Ah, meu Jesus, quem sou eu que me quereis para vosso discípulo e me ordenais que vos ame e me ameaçais com o inferno se não quiser vos amar? E de que serve, dir-vos-eis com S. Agostinho, ame-açar-me com as penas eternas? Pois que maior desgraça me poderá assaltar do que não vos amar, Deus amabilíssimo, meu Criador, meu Redentor, meu paraíso, meu tudo? Vejo que por um justo castigo das ofensas que vos fiz mereceria estar condenado a não poder mais vos amar; mas vós, porque ainda me amais, continuai a mandar que eu vos ame, repetindo-me sempre ao coração: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente”. Agradeço-vos, ó meu amor, este doce preceito e para obedecer-vos eu vos amo com todo o meu coração, com toda a minha alma, com toda a minha mente. Arrependo-me de não vos haver amado pelo passado e no presente prefiro toda pena à de viver sem vos amar, e proponho sempre procurar o vosso amor. Ajudai-me, ó meu Jesus, a fazer sempre atos de amor e a sair desta vida com um ato de amor, para que eu chegue a amar-vos face a face no paraíso, onde vos amarei sem imperfeição e sem intervalo, com todas as minhas forças por toda a eternidade. Ó Mãe de Deus, rogai por mim. Amém.

29 de junho de 2014

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

9/14  -  Do temor excessivo da morte.

Na nossa língua chamamos aos que morreram passados, como se disséramos que passaram desta vida para uma melhor; e na verdade o tempo que passarmos neste mundo de miséria, a que chamamos vida a cada momento nos conduz ao túmulo. É isto que fazia dizer a um antigo filósofo que nós morremos todos os dias e que todos os dias nos tira uma porção de nosso ser. Daqui a bela expressão da sábia Tecuita: Todos morremos e estamos no mundo como a corrente das águas que se precipita ao rio. A natureza imprimiu em todos os homens o horror da morte; o próprio Salvador recebendo a nossa carne e tornando-se semelhante a seu irmão, exceto no pecado, não se quis isentar deste temor, embora soubesse que a morte o isentaria das misérias humanas e o transferiria para uma glória que quanto a sua alma já possuía.
Um antigo dizia que a morte não deve ser reputada um mal, nem considerada apoquentadora, quando é precedida por uma vida boa, porque nada a torna tão temível como o que se lhe segue. Mas contra estes temores, que nascem da apreensão dos juízos divinos, temos o escudo da bem aventurada esperança, a qual, fazendo-nos confiar, não em as nossas virtudes, mas unicamente  na misericórdia de Deus, nos assegura que os que esperam na sua bondade não serão enganados.
Cometi muitas faltas, é verdade: mas quem seria o louco que pensasse cometer mais do que as que Deus pode perdoar, e ousasse medir a grandeza dos seus crimes pela imensidade desta misericórdia infinita, que os mergulha na profundidade do mar do ouvido? Só os desesperados como Caim é que podem dizer que o seu pecado é tão grande que não tem perdão: porque "há uma misericórdia em Deus e uma redenção abundante: é Ele que redime Israel de todas as suas iniquidades".
É verdade que à vista dos nossos pecados passados devemos sempre temer e amargurar-nos: mas não convém ficarmos por aqui, mas chamar em nosso auxílio a fé, a esperança e o amor da divina e infinita bondade; desta forma a nossa amargura se converterá em paz, o nosso temor, em lugar de servil, tornar-se-á casto e filial, que é um amargo eloés, será dulcificada pela doçura da confiança em Deus.
O que fica na desconfiança e temor sem passar á esperança e confiança, parece-me com aquele que em uma roseira colhesse os espinhos e deixasse as rosas. Convém imitar os cirurgiões, que não abrem a veia sem ligarem bem o membro,para estancarem o sangue.
O que confia em Deus será como o monte Sião que não se desloca por tempestade alguma.

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo - 10ª Parte

CAPÍTULO X
Do Ecce Homo
1. Pilatos, vendo o Redentor reduzido a um estado tão digno de toda a compaixão, pensou que a sua só vista comoveria os judeus e por isso, conduziu-o a uma varanda, levantou o farrapo de púrpura e, mostrando ao povo o corpo de Jesus coberto de chagas e dilacerado, disse-lhe: “Eis aqui o homem” (Jo 19,4). Ecce homo, como se quisesse dizer: Eis o homem que acusastes perante mim como se pretendesse fazer-se rei; eu, para vos agradar, condenei-o aos flagelos, ainda que inocente. “Eis o homem, não ilustre pelo império, mas repleto de opróbrio” (St. Ag. Trac. 11 in Jo 6). Ei-lo reduzido a tal estado que parece um homem esfolado ao qual restam poucos instantes de vida. Se, apesar de tudo, pretendeis que eu o condene à morte, afirmo-vos que não posso fazê-lo, porque não encontro motivo para o condenar. Mas os judeus, à vista de Jesus assim maltratado, mais se enfurecem:“Ao verem-no, os pontífices e ministros clamavam, dizendo:‘Crucifica-o, crucifica-o’. Vendo Pilatos que não se acalmavam, lavou as mãos à vista do povo, dizendo: ‘Sou inocente do sangue deste justo: vós lá vos avinde’. E eles responderam:‘Seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,23-26). Ó meu amado Salvador, vós sois o maior de todos os reis, mas agora eu vos vejo como o homem mais desprezado, dentre todos: se esse povo ingrato não vos conhece, eu vos conheço e vos adoro por meu verdadeiro rei e Senhor. Agradeço-vos, ó meu Redentor, por tantos ultrajes por mim recebidos e suplico-vos me deis amor aos desprezos e aos sofrimentos, já que vós os abraçastes com tanto afeto. Envergonho-me de haver no passado amado tanto as honras e os prazeres, chegando por sua causa a renunciar tantas vezes à vossa graça e ao vosso amor; arrependo-me disso mais que de todas as coisas. Abraço, Senhor, todas as dores e ignomínias que vossas mãos me enviarem; dai-me aquela resignação de que necessito. Amo-vos, meu Jesus, meu amor, meu tudo.
2. Assim como Pilatos daquela varanda mostrou Jesus ao povo, do mesmo modo e ao mesmo tempo o Eterno Pai nos apresentava do alto do céu o seu Filho dileto, dizendo-nos igualmente: Ecce homo. Eis aqui esse homem que é meu Filho muito amado, em quem me comprazi (Mt 3,17). Eis aqui o homem, vosso Salvador, por mim prometido e por vós há tanto desejado. Eis aqui o homem, o mais nobre dentre todos os homens, tornado o homem das dores. Ei-lo, vede a que estado de compaixão o reduziu o amor que vos consagra, e amai-o ao menos por compaixão. Contemplai-o e amai-o, ao menos vos movam essas dores e ignomínias que sofre por vós. Ah, meu Deus e Pai de meu Redentor, eu amo vosso Filho, que padece por meu amor, e eu vos amo a vós que com tão grande amor o entregastes a tantos tormentos por mim. Não vos recordeis de meus pecados com os quais tantas vezes vos ofendi e a vosso Filho: “Olhai para a face de vosso Cristo”, contemplai o vosso Unigênito coberto de chagas e de opróbrios para pagar os meus delitos e por seus merecimentos perdoai-me e não permitais que vos ofenda jamais. “Seu sangue caia sobre nós”. O sangue desse homem, que vos é tão caro, que por nós vos roga e suplica compaixão, que desça sobre as nossas almas e lhes obtenha a vossa graça. Odeio e amaldiçôo, ó Senhor, todos os desgostos que vos dei e amo-vos, bondade infinita, mais do que a mim mesmo. Por amor desse Filho, dai-me o vosso amor, que me faça vencer todas as paixões e sofrer todas as penas que vos agradar. 3. “Saí e vede, filhas de Sião, o rei Salomão com o diadema com que o coroou sua mãe no dia de suas bodas e no dia da alegria de seu coração” (Ct 3,11). Saí e vede o vosso rei com a coroa da pobreza, com a coroa da miséria”, diz S. Bernardo (Serm. 2 de Epip.). Oh, o mais belo de todos os homens, o maior de todos os monarcas, o mais amável de todos os esposos, a que estado está reduzido, todo coberto de chagas e de desprezos! Vós sois esposo, mas esposo de sangue (Êx 4,25), pois, por meio de vosso sangue e de vossa morte, quisestes esposar as nossas almas. Vós sois rei, mas rei de dores e rei de amor, pois a força de tormentos quisestes atrair os nossos afetos. Ó amantíssimo esposo de minha alma, oh! se eu me recordasse sempre do quanto padecestes por mim, não cessaria mais de vos amar e agradar.Tende piedade de mim que tanto vos custei! Em paga de tantas penas sofridas por mim, vos contentais com meu amor; por isso eu vos amo, ó Senhor infinitamente amável, eu vos amo sobre todas as coisas, mas eu vos amo pouco. Meu amado Jesus, dai-me mais amor, se quereis ser mais amado de mim. Desejo amar-vos muito; eu, mísero pecador, deveria arder no inferno desde o primeiro instante em que vos ofendi gravemente; vós, porém, me aturastes desde então, porque não quereis que eu arda nesse fogo desgraçado, mas no fogo bem-aventurado do vosso amor. Este pensamento, ó Deus de minha alma, me abrasa todo no desejo de fazer quanto em mim estiver para vos agradar. Ajudai-me, ó meu Jesus, e já que fizestes tanto, completai a vossa obra, fazei-me todo vosso.
4. Continuando os judeus a insultar o governador, gritando: “Tiraio, tirai-o, crucificai-o”, disse-lhes Pilatos: “Então hei de crucificar o vosso rei?” E eles responderam:“Nos não temos outro rei senão César” (Jo 19,15). Os mundanos, que amam as riquezas, as honras e os prazeres da terra, renegam a Jesus Cristo por seu rei porque Jesus neste terra não foi rei senão de pobreza, de ignomínia e de dores. Se eles vos rejeitam, ó meu Jesus, nós vos elegemos por nosso único rei e vos protestamos: Não temos outro rei senão Jesus. Sim, amável Salvador, “vós sois meu rei”, sois e sereis sempre o meu único Senhor. De fato sois vós o verdadeiro rei de nossas almas, pois as criastes e as remistes da escravidão de Lúcifer. “Venha a nós o vosso reino”. Dominai, reinai, pois, sempre nos nossos pobres corações; que eles vos sirvam sempre e vos obedeçam. Que outros sirvam aos monarcas deste mundo com a esperança dos bens desta terra; nós queremos servir somente a vós, nosso rei aflito e desprezado, com a única esperança de vos agradar sem consolações terrenas. De hoje em diante nos serão caras as dores e as injúrias, que quisestes sofrer tantas por nosso amor. Dai-nos a graça de vos permanecer fiéis e para isso dai-nos o grande dom de vosso amor. Se vos amarmos, amaremos também os desprezos e as penas que tanto amastes e nada mais vos pediremos além do que vos suplica vosso fiel e devoto servo S. João da Cruz: “Senhor, sofrer e ser desprezado por vós. Senhor, padecer e ser desprezado por vós”. Minha mãe Maria, intercedei por nós. Amém.

28 de junho de 2014

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo - 9ª Parte

CAPÍTULO IX
Da coroação de espinhos
1. Continuando os soldados a flagelar cruelmente o inocente Cordeiro, conta-se que se adiantou um dos presentes e corajosamente disse-lhes: vós não tendes ordem de matar este homem, como o pretendeis. E assim dizendo cortou as cordas com que estava ligado o Senhor. Isto foi revelado a S. Brígida (Lib. 1 Rev., c. 10). Mas, apenas terminada a flagelação, aqueles bárbaros, instigados e corrompidos com o dinheiro dos judeus, como assegura S. João Crisóstomo, fazem o Redentor sofrer um novo gênero de tormentos: “Então os soldados do governador conduziram Jesus ao pretório e reuniram ao redor dele toda a corte; despiram-no e revestiram com uma clâmide vermelha e, tecendo uma coroa de espinhos, a puseram sobre sua cabeça e na sua mão direita uma cana (Mt 27,27-29). Os soldados, pois, o despiram novamente e, tratando-o como rei de comédia, lhe impuseram um manto carmesim, que outra coisa não era senão um pedaço de um velho manto de soldado romano, chamado clâmide; deram-lhe na mão uma cana em sinal de cetro e um feixe de espinhos na cabeça em sinal de coroa. Mas, ó meu Jesus, não sois vós o verdadeiro rei do universo? e como vos tornastes rei de dores e de opróbrios? Eis até onde vos levou o amor. Ó meu amabilíssimo Senhor, quando virá o dia em que eu me una tão intimamente a vós que nenhuma coisa possa separar-me de vós e não possa mais deixar de vos amar? Ó Senhor, enquanto vivo nesta terra, estou sempre em perigo de voltar-vos as costas e negar-vos o meu amor, como infelizmente o fiz no passado. Ah, meu Jesus, se virdes que eu, continuando a viver, hei de chegar a essa suma desgraça, fazei-me morrer agora que espero estar em vossa graça. Rogo-vos por vossa paixão não permitais que me suceda tão grande desgraça. Eu a mereci pelos meus pecados, mas vós não o merecestes. Escolhei para mim qualquer outro castigo, mas não esse. Ó Jesus, não quero ver-me outra vez separado de vós.
2. “E, tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lhe sobre a cabeça”. Bem reflete o devoto Landspérgio que este tomento de espinhos foi excessivamente doloroso, porque traspassaram toda a sagrada cabeça do Senhor, , parte sensibilíssima, já que da cabeça partem todos os nervos e sensações do corpo. Além disso, foi o tormento mais prolongado da paixão, pois Jesus suportou até à morte esses espinhos, tendo-os enterrados em sua cabeça.Todas as vezes que lhe tocavam nos espinhos ou na cabeça, se renovavam todas as dores. Segundo o sentir comum dos escritos, com S.Vicente Ferrer, a coroa foi entrelaçada de vários ramos de espinhos em forma de capacete ou chapéu, de modo que envolvia toda a cabeça e descia até ao meio da testa conforme foi revelado a S. Brígida (Lib. 4 Rev. c. 70). E, como afirma S. Lourenço Justiniano com S. Pedro Damião, os espinhos eram tão longos que chegaram até a penetrar no cérebro (De triumph. Cti. Ag. c. 14). E o manso Cordeiro deixava atormentar-se ao gosto deles, sem dizer palavras, sem se lamentar, mas, fechando os olhos pelo excesso de dor, exalava continuamente amargos suspiros, como um supliciado que está próximo da morte, conforme foi revelado à beata Ágata da Cruz. Tão grande era a abundância de sangue que corria nas feridas da sagrada cabeça que não se via em seu rosto senão sangue, segundo a revelação de S. Brígida: Várias torrentes de sangue corriam por sua face, enchendo seus cabelos, seus olhos, e sua barba, não se vendo outra coisa senão sangue (Lib. 4 Rev. c. 70). E S. Boaventura ajunta que não parecia ser mais a bela face do Senhor, mas a face de um homem esfolado.
Ó amor divino, exclama Salviano, não sei como apelar-te, se doce, se cruel, pois pareceis ser ao mesmo tempo doce e cruel (Ep. 1). Ah, meu Jesus, o amor vos fez a mesma doçura para conosco, levando-vos avos mostrar tão apaixonado para com nossas almas, e ele vos tornou cruel para convosco, obrigando-vos a sofrer tormentos tão atrozes. Quisestes ser coroado de espinhos, para obter-nos uma coroa de glória no céu (Dion. Cart. In Jo 17). Meu dulcíssimo Salvador, espero ser vossa coroa no paraíso, salvando-me pelos merecimentos de vossas dores;“aí louvarei sempre o vosso amor e as vossas misericórdias: cantarei as misericórdias do Senhor eternamente, sim, eternamente”.
3. Ah, espinhos cruéis, ingratas criaturas, por que atormentais de tal maneira o vosso Criador? Mas que adiante acusar os espinhos? diz S. Agostinho. Eles foram instrumentos inocentes: nossos pecados, nossos maus pensamentos foram os espinhos cruéis que atravessaram a cabeça de Jesus Cristo. Aparecendo um dia Jesus a S. Teresa, coroado de espinhos, a santa pôs-se a pranteá-lo. Disse-lhe, porém, o Senhor: Teresa, não te deves compadecer das feridas que me fizeram os espinhos dos judeus, apiada-te antes das chagas que me fazem os pecados dos cristãos.
Ó minha alma, tu também atormentaste a venerável cabeça de teu Redentor com teus maus pensamentos. Sabe e vê que má e amarga coisa é o haveres deixado o Senhor teu Deus (Jr 2,19). Abre agora os olhos e vê e chora amargamente tua vida inteira os males que fizeste, voltando as costas com tanta ingratidão ao teu Senhor e Deus. Ah, meu Jesus, não mereceis ser tratado por mim como eu vos tratei: Eu fiz mal, eu me enganei; desagrada-me de todo o coração, perdoai-me e dai-me uma dor que me faça chorar toda a minha vida os erros que eu cometi. Meu Jesus, meu Jesus, perdoai-me, que eu quero amar-vos sempre.
4.“E dobrando o joelho diante dele, o escarneciam, dizendo: Salve, rei dos judeus. Cuspindo-lhe no rosto tomavam-lhe a cana e batiam-lhe com ela na cabeça” (Mt 27,29). E S. João acrescenta: “E da-vam-lhe bofetadas” (Jo 19,3). Depois de aqueles bárbaros haverem colocado na cabeça de Jesus aquela crudelíssima coroa, não se contentaram com enterrá-la com toda a força com as mãos, mas se utilizaram da cana como de um martelo para fazer entrar mais profundamente os espinhos. Começaram, entretanto, a zombar dele, como rei de burla, saudando-o primeiramente de joelhos, como rei dos judeus, e em seguida, levantando-se, lhe escarravam na face, esbofeteavamno com gritos e risos de desprezos. Ah, meu Jesus, a que miséria estais reduzido. Quem por acaso passasse então por aquele lugar e visse Jesus Cristo esvaído em sangue, coberto com aquele trapo vermelho, com o tal cetro na mão, com aquela coroa na cabeça e tão escarnecido e maltratado por aquela gentalha, não haveria de tê-lo pelo homem mais vil e celerado do mundo? Eis o Filho de Deus tornando então o vitupério de Jerusalém. Ó homens, se não quereis amar Jesus Cristo porque ele é bom e é Deus, exclama o beato Dionísio Cartusiano, amai-o ao menos pelas imensas penas que sofreu por vós (In cap. 27 Mt). Ah, meu caro Redentor, recebei um servo que vos abandonou, mas que, arrependido, agora para vós se volta. Quando eu vos fugia e desprezava o vosso amor, não deixastes de correr atrás de mim para atrair-me a vós; por isso não posso temer que me expulseis agora que vos busco, vos estimo e vos amo sobre todas as coisas. Fazei-me conhecer o que devo fazer para agradar-vos, pois estou
pronto para tudo. Ó Deus amabilíssimo, quero amar-vos deveras e não quero desgostar-vos mais. Ajudai-me com vossa graça, não permitais que vos torne a abandonar. Maria, minha esperança, rogai a Jesus por mim. Amém.

27 de junho de 2014

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

8/14  -  Como devemos perseverar na paciência.

"Em vossa paciência, diz o Filho de Deus, possuíreis as vossas almas". Possuir pois bem a sua alma é um efeito de paciência, e à medida que a paciência é perfeita, a posse da alma se torna mais completa e excelente.
Ora a paciência é tanto mais perfeita, quanto menos mistura tem de inquietação e pressa. Queira pois Deus livrar-nos desta duas últimas incomodidades e em breve estareis livres do vosso mal.
Tende animo, eu vô-lo peço. Só por três anos sofrestes o incômodo do caminho e já quereis repousar; mas lembrai-vos de duas coisas: uma é que os filhos de Israel estiveram quarenta anos no deserto antes de chegarem à terra de promissão, e contudo bastavam seis semanas para lá chegar; e não lhes foi permitido perguntar, porque lhes fazia Deus dar tantas voltas, e os conduziu por caminhos tão ásperos; porque todos os que murmuravam morreram antes de chegar à terra prometida; lembrai-vos em segundo lugar de Moisés, o maior amigo de Deus que então havia, morreu ao chegar às fronteiras da terra do descanso, contemplando-a com a vista, mas não podendo gozar dela.
Prouvera Deus que nós notássemos o caminho que seguimos, e que tivéssemos os olhos fitos naquele que nos conduz e no bem aventurado país para onde nos leva! Que nos importa se é pelos desertos ou pelos campos que vamos, contanto que Deus esteja conosco e que nós vamos para o paraíso? Crede-me eu vô-lo peço; enganai o mais que puderdes o vosso mal, e se sentis pelo menos não lhe deis atenção; porque a sua vista ainda vos dará mais apreensões do que o sentimento e a dor.
É assim que se costumam vendar os olhos aqueles a quem se quer operar. Parece-me que vós vos demorais bastante a considerar os vossos males.
Quando ao que me dizeis, que é um grande trabalho querer e não poder, não vos digo que devemos querer o que não podemos, mas diante de Deus é um grande poder, poder querer.
Não presteis a isto atenção e lembrai-vos da grande angústia que o nosso divino Mestre sofreu no jardim das Oliveiras, e notai que este precioso Filho, tendo pedido consolação a seu bom Pai, e conhecendo que lhe não queria dar, não pensa mais nisso, não se inquieta, não a procura; mas, como se nunca a pretendesse, executa com valor e coragem a obra da nossa redenção.
Depois de terdes pedido ao Pai que vos console, se lhe não agrada fazê-lo, não penseis nisso e empregai a vossa coragem em praticar a obra de salvação na cruz, como dela nunca descesses e nunca tivesses de ver o ar desta vida calmo e sereno. Quereis? É preciso saber falar a Deus entre os trovões e os turbilhões de vento; convém contemplá-lo na força, no fogo e nos espinhos e para fazer isto convém descalçarmo-nos e fazer uma grande abnegação dos nossos afetos e vontade.
Mas a vontade de Deus não vos chamou no estado em que vos achais sem vos fortificar nele. A Deus é que cumpre completar a obra.
É verdade que isto leva tempo, porque a matéria o requer; mas tende paciência.
Conformai-vos plenamente com a vontade de Deus e não julgueis que o servireis melhor por outra forma; porque nunca o servimos melhor do que quando o servimos como Ele quer. Imaginai que não vos tirásseis das vossas angústias: que fareis? Diríeis  a Deus; Eu sou vosso: se as minhas misérias vos agradam, acrescentai-lhe o número e a duração. Confio em Nosso Senhor que direis isso e não pensareis mais neste assunto.
Fazei pois agora da mesma forma e trabalhai como se devesses viver sempre entre os trabalhos; e notai que quando não pensardes em vos livrardes deles. Deus nisso pensará, e quando vos apressardes, Deus acorrerá.

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo - 8ª Parte

CAPÍTULO VIII
Da flagelação de Jesus Cristo
1. Entremos no pretório de Pilatos, convertido em horrendo teatro de ignomínias e dores de Jesus, e consideremos quanto foi injusto, ignominioso e cruel o suplício que aí sofreu o Salvador do mundo. Vendo Pilatos que os judeus continuavam a bradar contra Jesus, injustissimamente o condenou a ser flagelado: “Então Pilatos tomou a Jesus e mandou açoitá-lo” (Jo 19,1). Pensou esse iníquo juiz que com esse bárbaro tratamento despertaria a compaixão dos inimigos e o livraria da morte: “Eu o mandarei punir e depois o soltarei” (Lc 23,22). Era a flagelação castigo reservado só aos escravos. Nosso amoroso Redentor, diz S. Bernardo, não só quis tomar a forma de escravo, sujeitando-se à vontade de outrem, mas a de um mau escravo, para ser castigado com açoites e assim pagar a pena merecida pelo homem feito escravo do pecado (Sem. de pass. Dm.). Ó Filho de Deus, ó grande amante de minha alma, como pudestes vós, Senhor de infinita majestade, amar tanto um objeto tão vil e ingrato como eu sou, submetendo-vos a tantas para livrar-me do castigo merecido? Um Deus flagelado! Causa mais espanto um Deus sofrer o mais insignificante golpe do que os homens todos e todos os anjos serem destruídos e aniquilados. Ah, meu Jesus, perdoai-me as ofensas que vos fiz e castigai-me então como vos aprouver. Uma só coisa desejo: é amar-vos e ser amado por vós e declaro-me então pronto a sofrer todas as penas que quiserdes.
2. Chegado que foi ao pretório nosso amável Salvador, segundo a revelação de S. Brígida (1. c., c. 70) ele mesmo se despojou de suas vestes ao mando dos algozes, abraçou a coluna e entregou as mãos para serem ligadas. Ó céus, já se dá início ao cruel tormento! Ó anjos do céu, vinde assistir a este doloroso espetáculo e se não podeis livrar vosso Rei desse bárbaro ultraje, que os homens lhe fazem, vinde ao menos chorar de compaixão. E tu, minha alma, imagina-te presente a esta horrenda carnificina de teu amado Redentor. Contempla como teu aflito Jesus está com a cabeça baixa, olhando para a terra, e, todo confuso pela vergonha, espera por esse horrendo tormento. E eis que os bárbaros, como outros tantos cães raivosos, arremetem com seus açoites contra o inocente cordeiro. Ah! este bate-lhe no peito, aquele fere-lhe os ombros; um fustiga-lhe as ilhargas, outro golpeia-lhe as pernas: mesmo sua sagrada cabeça e sua bela face não ficam livres de pancadas. Já corre o divino sangue de todas as partes: já estão embebidos de sangue os azorragues, as mãos dos algozes, a coluna e a terra. “Todo o seu corpo é rasgado pelos açoites: ora os ombros, ora as pernas, são atingidas; chagas acrescentam-se a chagas e golpes a novos golpes” (De ch. ag. c. 14).
Ah, cruéis, por quem o tomais? Cessai, cessai, sabei que vos enganastes. Esse homem a quem supliciais é inocente e santo: eu sou réu; a mim, que pequei, pertencem os açoites e os tormentos. Mas vós, Eterno Pai, como podeis sofrer essa grande injustiça? como podeis suportar que vosso Filho querido assim padeça? e não o socorreis? que delito cometeu ele para merecer um castigo tão vergonhoso e tão cruel?
3. “Eu o castiguei por causa dos crimes de meu povo” (Is 53,8). Muito bem eu sei, afirma o Padre Eterno, que meu Filho é inocente; visto, porém, que ele se ofereceu para satisfazer a minha justiça por todos os pecados dos homens, convém que eu o abandone ao furor de seus inimigos. Ó meu adorável Salvador, vós, para pagar os nossos delitos e em especial os pecados de impureza (que é o pecado mais comum entre os homens), quisestes que fosse dilacerada vossa carne puríssima. Quem não exclamará com S. Bernardo: “Ó caridade incompreensível do Filho de Deus para com os homens!” Ah, meu Senhor flagelado, agradeço-vos tão grande amor e arrependo-me de ter-me unido eu também, com os meus pecados, aos vossos algozes. Eu detesto, ó meu Jesus, a todos esses prazeres depravados que vos ocasionaram tantas dores. Oh! há quantos anos deveria estar queimando no inferno. Por que me esperaste até agora com tanta paciência? Vós me suportastes para que afinal, vencido por tantas finezas de amor, me rendesse ao vosso amor e deixasse o pecado. Meu amado Redentor, não quero resistir por mais tempo ao vosso afeto: quero amar-vos para o futuro quanto em mim estiver. Vós, porém, já conheceis a minha fraqueza, e as traições com que vos tratei: desprendei-me de todas as afeições terrenas que me impedem ser todo vosso; trazei-me continuamente à memória o amor que me consagrastes e a obrigação que tenho de amar-vos. Em vós ponho todas as minhas esperanças, meu Deus, meu amor, meu tudo.
4. Gemendo, exclama S. Boaventura: “Corre o sangue divino e as chagas sucedem-se às chagas e as fraturas às fraturas” (Med. vit. Chr. c. 76). Por toda parte escorria o sangue divino e seu corpo sagrado tornara-se uma única chaga, mas aqueles cães furiosos não cessavam de ajuntar feridas sobre feridas, como predissera o Profeta:“E sobre a dor de minhas chagas acrescentaram novas chagas” (Sl 68,27). Os azorragues não só cobriam de feridas seu corpo inteiro, como também arrancavam pedaços de carne, ficando essas carnes sagradas (totalmente rasgadas, podendo-se contar todos os ossos (Contens. 1. 10, d. 4, c. 1). Diz Cornélio a Lápide que nesse tormento Jesus Cristo deveria naturalmente morrer: quis, porém, com sua virtude divina conservar a vida, a fim de sofrer penas ainda maiores por nosso amor. Já S. Lourenço Justiniano havia afirmado a mesma coisa. Ah, meu amantíssimo Senhor, digno de um amor infinito, tanto sofrestes para que eu vos amasse! Não permitais que, em vez de vos amar, venha ainda a vos ofender e desgostar-vos. Mereceria um inferno à parte, se, depois de ter conhecido o amor que dedicastes, me condenasse miseravelmente, desprezando um Deus vilipendiado, insultado e flagelado por mim e que, além disso, me perdoou tão compassivamente depois de havê-lo ofendido tantas vezes. Ah, meu Jesus, não permitais. Ó Deus, o amor e a paciência que me mostrastes constituiriam no inferno um outro inferno para mim.
5. Este tormento da flagelação foi um dos mais cruéis para o nosso Redentor, porque foram muitos os algozes que o flagelaram, pois, segundo a revelação feita a S. Maria Madalena de Pazzi, foram uns sessenta (Vita c. 6). Ora, estes, instigados pelo demônio e ainda mais pelos sacerdotes, que temiam que Pilatos depois desse castigo pusesse o Senhor em liberdade, como já afirmara dizendo: “Castigá-loei e pô-lo-ei em liberdade”, assentaram tirar-lhe a vida com os açoites. Acordam todos os doutores com S. Boaventura que escolheram para esse serviço os instrumentos mais bárbaros, de maneira que cada golpe abria uma chaga, como diz S. Anselmo, chegando os golpes a milhares, porque, segundo o Padre Crasset, a flagelação foi feita conforme o uso dos romanos e não dos judeus, aos quais era proibido ultrapassar o número de quarenta vergastadas (Dt 25,3). O historiador Flávio José, que viveu pouco depois de Nosso Senhor, diz que Jesus foi de tal maneira dilacerado na flagelação, que foram postas a descoberto as suas costelas. O mesmo foi revelado à S. Brígida pela Santíssima Virgem: “Eu, que estava presente, vi seu corpo flagelado até às costas, de modo que eram visíveis suas costelas. E o mais doloroso era que, ao retraírem-se, os azorragues vinham com pedaços de carne”. (Lib. I revel., c. 10). Apareceu Jesus flagelado a S. Teresa. Quis a santa vê-lo retratado tal que lhe aparecera e disse ao pintor que representasse no braço esquerdo um grande retalho de carne pendente. Mas de que maneira devo pintá-lo? perguntou o pintor.Voltando-se então para o quadro, viu-o com o retalho já pronto. Ah, meu Jesus amado e adorado, quanto padecestes por meu amor! Ah, que não sejam perdidas para mim tantas dores e tanto sangue!
6. Mas das mesmas Escrituras se deduz quanto foi desumana a flagelação de Jesus Cristo. Por que foi que Pilatos, depois da flagelação, o mostrou ao povo, dizendo: “Eis aqui o homem”, senão porque nosso Salvador estava reduzido a uma figura tão digna de compaixão, que ele só com o apresentar ao povo julgava mover à compaixão até seus mesmos inimigos, levando-os a não exigirem mais a sua morte? Por que foi que, ao subir Jesus ao Calvário, as mulheres judias o acompanharam com lágrimas e lamentos? (Lc 23,27). Talvez porque essas mulheres o amavam e o julgavam inocente? Não, as mulheres comumente seguem os sentimentos de seus maridos e por isso também elas o tinham como réu. O motivo era que Jesus, depois da flagelação, oferecia um aspecto tão lastimoso e deplorável, que movia às lágrimas até os que o odiavam. Por que foi que nesse mesmo caminho os judeus lhe tiraram a cruz dos ombros e a deram a Simão para carregar? Segundo se deduz claramente de S. Mateus: “A este constrangeram para que levasse a cruz de Jesus” (Mt 27,32) e de S. Lucas: “E puseram-lhe a cruz para que a levasse após Jesus” (Lc 23,26), fizeram eles isso, talvez, por piedade para com Jesus e porque queriam aliviar-lhe a pena? Não, pois esses iníquos odiavam-no e procuravam afligi-lo o mais possível. Mas, como afirma o B. Dionísio Cartusiano, temiam que lhes morresse no caminho. Vendo que Nosso Senhor perdera na flagelação quase todo o sangue e que estava tão privado de forças que quase não podia mais ter-se em pé, caindo por isso debaixo da cruz ao longo do caminho e a cada passo, por assim dizer, exalando um último suspiro, foram constrangidos a obrigar a Cireneu a levar a cruz, visto que o queriam vivo no Calvário e pregado na cruz, como haviam resolvido, para que seu nome ficasse para sempre inflamado. “Arranquemo-lo da terra dos vivos e seu nome não seja mais recordado”, segundo a predição do Profeta (Jr 11,19).
Ah, Senhor, grande é a minha alegria sabendo quanto me tendes amado e que conservais por mim o mesmo amor que me tínheis no tempo de vossa paixão. Mas quão grande é a minha dor ao pensar que ofendi a um Deus tão bom. Pelos merecimentos de vossa flagelação, ó meu Jesus, vos suplico o meu perdão. Arrependo-me de vos haver ofendido e proponho antes de morrer que novamente vos ofender. Perdoai-me todas as ofensas que vos fiz e dai-me a graça de o futuro amar-vos sempre.
7. O profeta Isaías pinta-nos, mais claramente que todos os outros, o estado lastimoso a que foi reduzido nosso Redentor. Afirmou que sua santíssima carne na paixão não só seria toda dilacerada, mas também toda triturada e despedaçada (Is 53,5). Porque seu Eterno Pai, continua o Profeta, para dar à sua justiça uma maior satisfação e para fazer os homens compreenderem a malícia do pecado, não se contentou enquanto não viu seu Filho retalhado e pisado pelos açoites: “O Senhor quis quebrantá-lo na sua enfermidade” (Is 53,10), de maneira que o corpo bendito de Jesus tornou-se semelhante ao de um leproso, coberto de chagas dos pés à cabeça: “E nós o reputamos como um leproso ferido por Deus e humilhado” (Is 53,4). Ó meu Senhor dilacerado, a que estado vos reduziram nossas iniqüidades! “Ó bom Jesus, nós pecados e vós fostes castigado”, exclama S. Bernardo. Que a vossa imensa caridade seja para sempre bendita e vós amado como o mereceis por todos os pecadores e especialmente por mim, que vos desprezei mais do que os outros.
8. Apareceu uma vez Jesus flagelado a Sóror Vitória Angelini, e mostrando-lhe seu corpo todo ferido, disse-lhe: Estas chagas todas, Vitória, te pedem amor. E S. Agostinho, todo abrasado em amor, exclama:“Amemos o Esposo que tanto mais se nos recomenda, quanto mais disforme se nos apresenta e tanto mais caro e mais amável se mostra à sua esposa”. Sim, meu doce Salvador, eu vos vejo todo coberto de chagas: olho para vosso belo rosto, e, ó Deus, não me parece nada belo, mas horrível, denegrido pelo sangue, cheio de equimoses e escarros. “Não tem mais beleza, nem brilho e nós o vimos e não tinha mais aparência” (Is 53,2). Mas quanto mais desfigurado vos vejo, ó meu Senhor, tanto mais belo e amável me pareceis, pois sinais de que são essas deformidades, senão de ternura do amor que me tendes? Eu vos amo, ó Jesus, dilacerado e chagado por meu amor. Quisera ver-me também despedaçado por vós, como tantos mártires que tiveram tão feliz sorte. Se não posso agora oferecer-vos feridas e sangue, ofereço-vos ao menos todas as penas que me couberem em parte; ofereço-vos o meu coração, com o qual quero amar-vos o mais ternamente possível. E o que deverá amar com mais ternura a minha alma senão a um Deus flagelado e exangue por mim? Eu vos amo, ó Deus de amor, eu vos amo, bondade infinita, amo-vos, ó meu amor, meu tudo: amo-vos, e não quero cessar mais de dizer, nesta e na outra vida: eu vos amo, eu vos amo. Amém.

26 de junho de 2014

Sermão para o 2º Domingo depois de Pentecostes – Padre Daniel Pinheiro, IBP.

[Sermão] O amor ao próximo, mesmo aos pecadores e inimigos

Ave Maria…
 “Sabemos que fomos transladados da morte do pecado para a vida da graça porque amamos os nossos irmãos. Aquele que não ama, permanece na morte. Todo o que tem ódio a seu irmão é homicida.”
Nosso Senhor Jesus Cristo, durante sua vida entre os homens, e seus apóstolos, depois dEle, insistem na caridade fraterna, no amor ao próximo. É o que faz São João na Epístola de hoje. Essa caridade para com o próximo está no duplo mandamento divino de amar a Deus e ao próximo. É São João que nos diz também: “que aquele que ama a Deus, ame também seu irmão.” (I Jo 4, 21) Vejamos em que consiste essa caridade para com o próximo e vejamos que ela se estende mesmo ao pecador e ao inimigo.
Pode haver para com o próximo um amor puramente natural, em virtude de suas qualidades naturais. Esse amor natural que deseja o bem do próximo por motivos naturais não é um mal, claro, a não ser que envolva alguma desordem. Todavia, o amor que Deus nos ordena ter para com o próximo é um amor de ordem sobrenatural, muito superior ao mais perfeito amor natural. O amor sobrenatural que devemos ter é fundado no amor a Deus. Se amamos a Deus, desejamos a maior glória de Deus, isto é, desejamos que Deus seja mais conhecido, amado e servido. A maneira perfeita de Deus ser mais conhecido, amado e servido é justamente pela conversão dos homens a Deus e, sobretudo, pela salvação eterna dos homens, que, assim, poderão glorificar perfeitamente a Deus no céu. Ao amarmos verdadeiramente a Deus, amaremos necessariamente ao próximo, pois desejaremos o bem sobrenatural para o nosso próximo, que é a salvação dele, e agiremos para que ele alcance esse bem sobrenatural. Além disso, se amamos a Deus, obedecemos aos seus preceitos, entre os quais está, justamente, o de amar ao próximo. A razão de amar o próximo é Deus. Devemos amar ao próximo para que ele esteja em Deus (IIa IIae, q. 25, a.1).
O nosso próximo e o nosso irmão não devem ser entendidos como próximo fisicamente ou como irmão natural, é claro. Essa proximidade deriva do fato de sermos criados à imagem de Deus e pela possibilidade de alcançarmos a bem-aventurança eterna. (IIa IIae, q. 44, a. 7). Nosso próximo são todas as criaturas de Deus capazes de alcançar a bem-aventurança eterna. Nosso próximo são todos os homens que estão na terra, incluindo os maiores pecadores e nossos inimigos. Nosso próximo são também os bem-aventurados no céu e as almas do purgatório. Não são nosso próximo os que já estão condenados no inferno, pois são inimigos definitivos de Deus e incapazes da glória eterna. Já não é possível amá-los em Deus, pois eles rejeitaram definitivamente a Deus. Portanto, devemos amar com caridade todos aqueles que são capazes da glória eterna ou que já possuem essa glória eterna. Quanto aos primeiros, devemos desejar que cheguem à glória eterna e devemos cooperar para que a alcancem. Quanto aos outros, devemos nos alegrar pelo fato de já terem alcançado a glória eterna.
Como dissemos, o preceito de caridade se estende a todos os homens capazes de alcançar o céu. Ele se estende, então, mesmo aos pecadores e aos inimigos. É fácil amar quem é bom ou quem nos faz o bem, mas se estamos realmente no amor de Deus, amaremos também os maus e os inimigos. Dada a particular dificuldade de se amar o pecador e o inimigo, consideremos como deve ser o amor por essas duas classes de pessoas.
O preceito da caridade se estende ao pecador. O homem pecador – e falamos aqui mais propriamente daquele que se encontra em pecado mortal – enquanto pecador é mais digno de ódio do que de amor, já que, enquanto permanece nesse estado, é desagradável a Deus. Assim, se quisermos ser precisos não podemos dizer que devemos amar as pessoas como elas são. Não devemos amar um pecador como pecador, mas como capaz de se converter, de recobrar a amizade com Deus. O pecador, enquanto criatura humana, capaz ainda da bem-aventurança eterna pelo arrependimento de seus pecados deve ser amado com caridade. E, justamente, o maior amor e serviço que podemos prestar a esse nosso próximo é ajudá-lo a sair de sua triste e miserável situação. É, então, nosso dever amar os pecadores, mesmo os mais obstinados.
Não é lícito jamais desejar ao pecador um verdadeiro mal, como seria desejar que cometa um pecado ou que se condene. Desejar tais coisas seria o pecado do ódio, gravíssimo e diretamente oposto ao da caridade. É lícito, porém, desejar um mal material ou um mal físico para que desse mal venha um bem superior, como seria o bem da conversão da pessoa ou o bem da cessação de um escândalo que ela causa com suas ações. Mas a intenção não pode ser simplesmente que ocorra esse mal físico ou material por ódio à pessoa, mas em vista do bem dela ou da sociedade como um todo, sempre desejando também a salvação dela. Todavia, é preciso ter muito cuidado com isso, pois facilmente nossas boas intenções são deixadas de lado e pensamos exclusivamente no mal ao próximo.
O preceito da caridade se estende também aos inimigos. Inimigos são aqueles que nos fizeram um mal e que ainda não o repararam. Inimigos são aqueles que nos odeiam ou que são dignos de justa antipatia por um motivo racional, como por seus escândalos, seus maus exemplos, etc. Devemos amar mesmo aqueles que nos fizeram mal ou que nos odeiam. Não devemos amá-los porque são nossos inimigos, mas apesar disso. Devemos amá-los enquanto foram criados para conhecer, amar e servir a Deus. Devemos ter para com eles verdadeira caridade, desejando-lhes o céu e cooperando para que cheguem até lá, se temos a oportunidade para isso. Amar os inimigos não é ter por eles simpatia ou um algo sentimental, mas desejar-lhes o bem, rezar por eles e fazer-lhes o bem quando possível e necessário. É o que diz Nosso Senhor no Sermão da Montanha: “Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem. Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois Ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos” (Mat. 5, 43-45).
O amor aos inimigos prescreve que se dê a eles os sinais comuns de amizade e de educação. Assim, é preciso responder a uma saudação cordial feita pelo inimigo, é preciso responder a perguntas normais que ele pode fazer. Enfim, somos obrigados a nos comportar com os inimigos como faríamos com uma pessoa desconhecida. Negar esses sinais comuns de educação equivaleria a manifestar ódio e levaria ao escândalo dos demais. A caridade para com o inimigo nos proíbe de excluí-lo de nossas orações. Se disséssemos, rezo por todo mundo menos por tal pessoa que é minha inimiga, estaríamos cometendo um pecado grave. Os sinais especiais de afeto ou amizade não são obrigatórios, a não ser que as circunstâncias o exijam. Se nosso inimigo está em grave necessidade da qual só pode sair com nosso auxílio, devemos ajudá-lo. O preceito de amar o próximo obriga a procurar a reconciliação assim que possível. Interiormente, o ofendido deve estar pronto para perdoar prontamente, sem guardar rancor nem ódio. Exteriormente, não se pode negar o sincero pedido de perdão feito pelo ofensor. É preciso perdoar, ainda que posteriormente não se restabeleça uma harmonia perfeita entre as partes.
O amor aos inimigos nos obriga a deixar de lado todo ódio e todo desejo de vingança. O ódio é desejar que o inimigo peque ou que se condene, ou desejar-lhe o mal pelo mal. A vingança pecaminosa é aquela pela qual se deseja a punição do próximo simplesmente para lhe fazer mal. Se essa punição fosse desejada para emendar o próximo, para coibir o mal que ele faz, ou para restabelecer a justiça ultrajada, não haveria problema, mas sempre com muito cuidado para guardar a reta intenção nesses desejos.
A vida cristã no trato com o próximo se resume a esse preceito de caridade. Amar ao próximo por amor a Deus. Amar ao próximo desejando-lhe a virtude e a glória eterna, e ajudando-o a alcançar a virtude e o céu. Deixar de lado todo ódio, pecado gravíssimo, que se opõe à caridade e que se opõe a Deus, pois o ódio nos leva a desejar que o próximo ofenda a Deus, nos leva a desejar ao próximo um mal contra a vontade de Deus. O ódio mata o próximo em nossa alma. Nos torna homicidas e leva a atos externos contra o próximo. Não estamos falando aqui de um sentimento passageiro de aversão ao próximo que pode surgir em nossa alma e que combatemos, mas do desejo de mal ao próximo realmente alimentado e que não é afastado. Esse é o pecado de ódio, gravíssimo. O cristão vive da caridade. Não dessa caridade sentimental ou que aceita o pecado, mas da caridade que está na vontade e que favorece a virtude. Nós, católicos, devemos sempre pagar o mal com o bem, como nos diz São Paulo. Por maior que tenha sido o mal que alguém nos fez, devemos amá-lo sobrenaturalmente. E nessa caridade perfeita nos distinguiremos dos pagãos, do mundo, e chegaremos ao céu.
Em nome do Pai, e do Filho, e do espírito Santo. Amém.

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo - 7ª Parte

CAPÍTULO VII
Do amor de Jesus em sofrer tantos desprezos em sua paixão
1. Diz Belarmino que os espíritos nobres sentem mais com os desprezos que com as dores do corpo, pois se estas afligem a carne, aqueles atormentam a alma, a qual, sendo mais nobre que o corpo, tanto mais sente as ofensas que lhe são feitas. Mas quem poderia imaginar que a personagem mais nobre do céu e da terra, o Filho de Deus, vindo a este mundo por amor dos homens, tivesse de suportar deles tantos vitupérios e injúrias, como se fosse o último e o mais vil dos homens.“Nós o vimos desprezado e como o último dos homens” (Is 53,2). Assevera S. Anselmo que Jesus Cristo quis sofrer tantos e tão grandes desprezos que não podia ser mais humilhado do que o foi na sua paixão (In Fl 2). Ó Senhor do mundo, sois o maior de todos os reis e quisestes ser desprezado mais que todos os homens para ensinar-me a amar os desprezos. Já, pois, que sacrificastes a vossa honra por meu amor, quero sofrer por vosso amor todas as afrontas que me forem feitas. 2. E houve também uma espécie de afrontas que não sofresse na sua paixão o Redentor? Foi afligido por seus próprios discípulos. Um deles o atraiçoa e o vende por trinta dinheiros; um outro o renega mais vezes, protestando publicamente não o conhecer, atestando com isso envergonhar-se de o haver anteriormente conhecido. Os outros discípulos, vendo-o preso e ligado, fogem e o abandonam (Mc 14,50). Ó meu Jesus abandonado, quem tomará a vossa defesa se, no começo de vossa prisão, que vos são mais caros vos abandonam e fogem? E afinal, ó meu Deus, essa afronta não terminou com a vossa Paixão. Quantas almas, depois de se haverem dedicado ao vosso seguimento e serem favorecidas por vós com muitas graças e sinais especiais de amor, arrastadas por alguma paixão de vil interesse ou de loucos prazeres, vos abandonaram com ingratidão? Quem se encontrar ao número desses ingratos, diga gemendo: Ah! meu caro Jesus, perdoai-me que não quero mais abandonar-vos; prefiro perder mil vezes a vida a perder a vossa graça, ó meu Deus, meu amor, meu tudo.
3. Chegando Judas ao horto juntamente com os soldados, dirige-se para o mestre, abraça-o, beija-o. Jesus deixa-se beijar, mas, conhecendo seu pérfido desígnio, não pode deixar de se lhe queixar de sua pérfida traição, dizendo-lhe: Judas, é com um ósculo que entregas o Filho do homem? (Lc 22,48). E logo os insolentes ministros, seus comparsas, atropelam Jesus, põem-lhe a mão e o prende como a um malfeitor: Os ministros dos judeus prenderam a Jesus e o ligaram (Jo 18,12). Céus, que vejo? Um Deus preso: por quem? Pelos homens, por vermes criados por ele mesmo. Que dizeis isso , ó anjos do paraíso? Que têm convosco, pergunta S. Bernardo, as cadeias dos escravos e dos réus, convosco, que sois o Santo dos santos, o Rei dos reis e o Senhor dos senhores? (De Pass. c. 4). Mas se os homens vos prendem, por que vos não desligais e vos livrais dos tormentos e da morte que estes vos preparam? Eu o compreendo, não são tanto essas cordas que vos ligam, é o amor que vos prende e vos obriga a padecer e morrer por nós. “Ó caridade, quão fortes são os teus vínculos que prendem o próprio Deus, diz S. Lourenço Justiniano (Lg. vit. c. 6). Ó amor divino, só vós pudestes prender um Deus e conduzi-lo à morte por amor dos homens.
4. Contempla, ó homem, como esses cães arrastam sua vítima, diz S. Boaventura, e como ele os segue sem resistência como um mansíssimo cordeiro. Um o agarra, outro o liga; um o empurra e o outro o fere (Med. vit. Chr. c. 75). Preso, é nosso doce Salvador conduzido primeiramente à casa de Anás, depois à de Caifás, onde Jesus, sendo interrogado por esse malvado a respeito de seus discípulos e de sua doutrina, responde que não havia falado em segredo mas publicamente e que os mesmos que ali estavam presentes sabiam perfeitamente o que havia ensinado (Jo 18,20). A tal resposta um daqueles ministros, tratando-o de temerário, deu-lhe uma forte bofetada. Aqui exclama S. Jerônimo: Ó anjos do céu, como podeis guardar silêncio? será que tão grande paciência vos tornou mudos? Ah, meu Jesus, como é que uma resposta tão justa e tão modesta podia merecer uma afronta tão grande na presença de tanta gente? O indigno pontífice, em vez de repreender a insolência daquele atrevido, o louva ou ao menos dá-lhe sinais de aprovação. E vós, meu Senhor, sofreis tudo para pagar as afrontas que eu, miserável, tenho feito à divina Majestade com os meus pecados. Eu vos agradeço, ó meu Jesus! Eterno Padre, perdoai-me pelos merecimentos de Jesus.
5. Em seguida, o iníquo pontífice perguntou-lhe se ele era realmente o Filho de Deus: “Conjuro-vos pelo Deus vivo para que vos digais se sois vós o Cristo, Filho de Deus” (Mt 26,63). Jesus, por respeito ao nome de Deus, afirmou ser isso a verdade e então Caifás rasgou as vestes, dizendo que ele havia blasfemado. Todos gritaram então que ele merecia a morte. Sim, com razão, ó meu Jesus, eles vos declararam réu de morte, pois quisestes vos encarregar de satisfazer por mim, que merecia a morte eterna. Mas se com vossa morte me adquiristes a vida, é justo que eu empregue minha vida inteira e se necessário for a sacrifique por vós e vosso amor: socorrei-me coma vossa graça. 6.“Cuspiram-lhe então no rosto e deram-lhe bofetadas” (Mt 26,67). Depois de o julgarem digno de morte, como um homem já condenado ao suplício e declarado infame, aquela canalha pôs-se a maltratálo durante toda a noite com bofetadas, com golpes, com pontapés, arrancando-lhe a barba, cuspindo-lhe no rosto, motejando dele como dum falso profeta, dizendo-lhe: “Adivinha, ó Cristo, quem te bateu?” Tudo já predissera nosso Redentor por Isaías: “Entreguei meu corpo aos que me feriam e minha face aos que a laceravam; não desviei o rosto dos que me injuriavam e me cobriam de escarros” (Is 50,6). Diz o devoto Tauler ser opinião de S. Jerônimo que só no dia do juízo final serão conhecidas todas as penas e injúrias que Jesus sofreu naquela noite. S. Agostinho, falando das ignomínias sofridas por Jesus Cristo, diz: Se este remédio não curar a nossa soberba, não sei o que há de curá-la (Serm. 1 in dom. 2 quadr.) Ah, meu Jesus, vós tão humilde e eu tão soberbo! Senhor, dai-me luz, fazei-me conhecer quem sois vós e quem sou eu. Então suspiram-lhe no rosto! Ó Deus, que maior afronta, que ser injuriado com escarros! O último dos ultrajes é receber escarros, diz Orígenes. Onde se costuma escarrar, senão em lugares sórdidos? E vós, meu Jesus, sofreis escarros no rosto. Esses iníquos vos o maltratam com bofetadas e pontapés, vos injuriam e cospem no vosso rosto, fazem convosco o que querem e não os ameaçais, nem os reprovais: “O qual, sendo amaldiçoado, não amaldiçoava, sendo maltratado, não ameaçava, mas entregava-se àquele que o julgava injustamente” (1Pd 2,23). Como um cordeiro inocente, humilde e manso, tudo suportastes sem nenhum lamento, oferecendo tudo ao vosso Pai para nos obter o perdão de nossos pecados: “Como um cordeiro diante do que o tosquia, emudecerá e não abrirá sua boa” (Is 53,7). S. Gertrudes, meditando uma vez sobre as injúrias feitas a Jesus na sua paixão, pôs-se a louvá-lo e abençoá-lo; o Senhor com isso ficou tão satisfeito, que lho agradeceu amorosamente.
Ah, meu Senhor ultrajado, sois o rei dos céus, o Filho do Altíssimo, não deveríeis ser maltratado, mas adorado e amado por todas as criaturas. Eu vos bendigo e dou-vos graças, amo-vos de todo o meu coração, arrependo-me de vos ter ofendido; ajudai-me e tende compaixão de mim.
7.Tendo amanhecido, os judeus conduziram Jesus a Pilatos, para que fosse condenado à morte. Pilatos declara-o inocente: “Não encontro nenhuma culpa neste homem” (Lc 23,4). E para ver-se livro dos insultos dos judeus, que continuavam a exigir a morte do Salvador, o envia a Herodes. Muito se alegrou Herodes por ter Jesus em sua presença, esperando que, para livrar-se da morte, haveria de fazer diante dele algum dos muitos prodígios de que ouvira falar. Fez-lhe por isso muitas perguntas. Mas Jesus, porque não queria livrar-se da morte, haveria de fazer diante dele algum dos muitos prodígios de que ouvira falar. Fez-lhe por isso muitas perguntas. Mas Jesus, porque não queria livra-se porque aquele malvado não merecia resposta, cala-se e não responde. Então esse rei soberbo o desprezou com toda a sua corte e, cobrindo-o com uma veste branca, para mostrar que o considerava um ignorante e insensato, o reenviou a Pilatos (Lc 23,11). O cardeal Hugo diz: Zombando dele como de um louco, vestiu-lhe uma túnica. E S. Boaventura: Desprezou-o como inepto, porque não fez milagres; como ignorante, porque não respondeu uma única palavra; como louco, porque se não defendeu.
Ó Sabedoria eterna, ó Verbo divino, só vos faltava essa ignomínia de ser tratado de louco, privado de senso. Tanto vos interessa a nossa salvação, que por nosso amor quereis não só ser vituperado, mas saciado de vitupérios, como já profetizara a vosso respeito Jeremias: “Apresentará a face a quem o esbofetear e ficará saciado de opróbrios” (Lm 3,30). E como podeis amar tanto os homens, dos quais só ingratidões e desprezos recebeis? Ai de mim, que sou um desses que vos ultrajou mais do que Herodes. Ah, meu Jesus, não me castigueis como a Herodes, privando-me da vossa voz. Herodes não vos reconhecia por quem sois, eu vos proclamo meu Deus; Herodes não vos amava, eu vos amo mais do que a mim mesmo. Por isso não me recuseis as vozes das inspirações como eu merecia pelas ofensas que vos fiz. Dizei o que quereis de mim, que eu, com a vossa graça, estou pronto a executá-lo.
8. Reconduzido Jesus a Pilatos, o governador o apresentou ao povo, para saber a quem queriam libertar nessa páscoa, se a Jesus ou a Barrabás, o homicida. Mas o povo gritou: Não este, mas Barrabás. Ao que perguntou Pilatos: Que farei então de Jesus? Responderam: Crucifica-o. Que mal, porém, praticou este inocente? interroga Pilatos. Ao que replicam: Seja crucificado. Ó Deus! até agora a maior parte dos homens continua a dizer: Não este, mas Barrabás, preferindo a Jesus Cristo um prazer sensual, um ponto de honra, um desabafo de cólera.
Ah, meu Senhor, vós bem sabeis que houve um tempo em que vos fiz as mesmas injúrias, quando vos pospus aos meus malditos prazeres. Meu Jesus, perdoai-me, que eu me arrependo de meu passado e de hoje em diante quero preferir-vos a todas as coisas. Eu vos estimo e vos amo acima de todos os bens; prefiro mil vezes morrer a abandonar-vos. Dai-me a santa perseverança, dai-me o vosso amor.
9. Falaremos depois dos outros opróbrios que Jesus Cristo teve de sofrer até morrer numa cruz: suportou a cruz, desprezando a ignomínia (Hb 12,2). Consideremos, entretanto, como em nosso Redentor se realizou perfeitamente o que dissera o Salmista, isto é, que ele se tornaria na sua paixão o opróbrio dos homens e o ludíbrio da plebe: “Eu sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e a abjeção da plebe” (Sl 21,7), chegando a morrer coberto de vergonha, justiçado pela mão do carrasco num patíbulo, como um malfeitor, no meio de dois celerados: “E foi posto no número dos malfeitores” (Is 53,12). Ó Senhor altíssimo, tornado o mais baixo de todos os homens, exclama S. Bernardo; ó excelso tornado vil, ó glória dos anjos tornada o opróbrio dos homens!
10. Ó graça, ó força do amor de um Deus, continua S. Bernardo (Serm. de pass. Dm.). É assim que o senhor supremo de todos se fez o ínfimo de todos! E quem fez isto? O amor. Tudo fez o amor que Deus consagra aos homens, para nos patentear quanto ele nos ama e ensinar-nos com seu exemplo a sofrer pacientemente os desprezos e as injúrias. “Cristo padeceu por nós, diz S. Pedro, deixando-vos o exemplo para que sigais os meus vestígios (1Pd 2,21). Eleazar, perguntado por sua esposa como podia suportar com tanta paciência as injúrias que lhe eram feitas, respondeu: Eu me ponho a considerar Jesus desprezado e confesso que minhas afrontas nada são em comparação com as que ele, sendo meu Deus, quis suportar por amor de mim. Ah, meu Jesus, e como é que eu, à vista de um Deus tão ultrajado por meu amor, não sei suportar o mínimo desprezo por vosso amor? Pecador e soberbo! Donde, Senhor, me pode vir este orgulho? Ah! pelos merecimentos dos desprezos que sofrestes, dai-me a graça de suportar com paciência e alegria as afrontas e injúrias. Proponho de agora em diante com o vosso auxílio não mostrar mais ressentimento e receber com alegria todas as injúrias que me forem feitas. Outros desprezos mereci eu, que desprezei a vossa divina majestade e por isso mereci os desprezos do inferno. Vós, meu amado Redentor, me fizestes mui doces e amáveis as afrontas, abraçando tantos desprezos por meu amor. Proponho, além disso, para vos comprazer, beneficiar quanto puder quem me desprezar ou pelo menos dizer bem dele e rezar por ele. E agora vos suplico encher de graças aqueles de quem recebi alguma injúria. Eu vos amo, bondade infinita, e quero amar-vos sempre quanto eu puder. Amém.

25 de junho de 2014

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

7/14 -  Da paciência nas operações dolorosas.

Conceda-nos Nosso Senhor o seu Santo Espírito para sofrerdes tudo segundo a sua santa vontade.
Refiro-me à vossa perna doente, que convém operar, e não será sem grandes dores. Mas, meu Deus! que provas que nos dá a vossa vontade nestas ocasiões! Oh! Coragem! Pertencemos a Jesus Cristo; eis que Ele nos envia a sua vestimenta. Suponde que o ferro que atravessará as vossas carnes é um dos cravos que trespassou os pés de Nosso Senhor.
Oh! Que felicidade! Escolheu para si estes favores e amou-os tanto que os levou ao paraíso e eis que agora vos faz deles participante. Porém dizei-me que não podeis servir a Deus enquanto estais doente; e eu respondo-vos: Quando é que Nosso Senhor prestou o maior serviço a seu Pai? Sem dúvida, quando esteve pregado na cruz, tendo as mãos e pés atravessados por cravos. Foi este o maior ato do seu serviço. E como o servia? Sofrendo e oferecendo; os seus sofrimentos tinham uma suavidade imensa perante seu Pai. Eis pois o serviço que fareis a Deus na cama, sofrereis e oferecereis as vossas dores à sua Majestade; Ele estará convosco nessa tribulação e vos consolará.
Eis que vos chega a cruz; abraçai-a e amai-a por amor d'Aquele que vô-la envia. Davi aflito dizia a Deus: "Calei-me e nada disse, porque fostes vós, ó! Meu Deus que me enviastes o mal que eu sofro", como se dissera: Se uma outra pessoa e não vós ó! Meu Deus, me tivesse enviado essa aflição, não a estimaria mas rejeita-la-ia mas visto que fostes vós, calo-me aceito-a e honro-a.
Aceitai da sua mão o sofrimento:
1º - Como se o visses impô-lo na sua fronte.
2º - Oferecendo-vos para ainda sofrerdes mais.
3º - Pedindo-lhe pelos méritos dos seus tormentos que aceite esses pequenos incômodos, em união com as penas que sofreu na cruz.
4º - Protestando que quereis não só sofrer, mas amar os sofrimentos como vindos duma tão santa mão.
5º - Invocando os mártires e tantos servos e servas de Deus que gozam no céu por terem sido muito afligidos neste mundo.
Estamos unicamente neste mundo para trazer o doce Jesus na boca, anunciando-o; nos braços, praticando boas obras; aos ombros, suportando o seu jugo, securas e aridez, tanto nos sentidos exteriores, como nos interiores. Oh! como são felizes os que o levam doce e constantemente!
Mas eis um bálsamo precioso para aliviar as vossas dores. Tomai todos os dias uma ou duas gotas de sangue que destilam das chagas e dos pés de Nosso Senhor; tomai-as para meditação, e mergulhai, com a imaginação, os vossos dedos neste licor, aplicando-o aos vossos males, invocando o doce nome de Jesus, e vereis como diminuem as vossas dores.
A obediência que tiverdes ao médico será infinitamente agradável a Deus e levada em conta no dia do juízo. Enquanto estiverdes aflitos no leito terei para convosco uma reverência extraordinária, como a uma pessoa visitada por Deus, vestida com as suas vestes e sua esposa especial. Quando Nosso Senhor estava pregado na cruz, foi aclamado rei pelos seus próprios inimigos; e as almas que estão na cruz são rainhas.
São Paulo que estivera no céu, e nas felicidades do Paraíso, não estava contente senão nas enfermidades e na cruz de Nosso Senhor. Quando tiverdes a perna ferida dizei com o mesmo Apóstolo: "Ninguém me venha molestar nem perturbar, porque tenho os sinais do meu Senhor no meu corpo."
Oh! perna, que sendo bem empregada, vos levará mais depressa ao céu do que a mais sã do mundo!
O paraíso é uma montanha, para a qual se caminha melhor com as pernas quebradas e rasgadas do que com elas inteiras e sãs.

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo - 6ª Parte

CAPÍTULO VI
Do suor de sangue e agonia de Jesus no horto
1. Contemplai como o nosso amorosíssimo Salvador, chegando ao jardim de Getsêmani, quis dar começo à sua dolorosa paixão, permitindo que os sentimentos de temor, de tédio e de tristeza viessem afligi-lo com todas as suas conseqüência. Começou a ter pavor e angustiar-se e entristecer-se (Mt 26,37; Mc 14,33). Começou primeiramente a sentir um grande temor da morte e das penas que teria em breve de sofrer: Começou a atemorizar-se. Mas como é isso possível? Não foi então ele que se ofereceu espontaneamente a sofrer tais tormentos? Foi sacrificado porque ele mesmo o quis. Não foi ele que tanto desejara o momento de sua paixão, tendo dito pouco antes: Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco? E agora como é que está tão cheio de temor de sua morte, que chega a rogar a seu Pai que dela o livre: Meu Pai, se for possível, afastai de mim este cálice? (Mt 26,39). S. Beda, o Venerável, responde: Pede se afaste o cálice para mostrar que é verdadeiramente homem (In Mc 14). Nosso amantíssimo Senhor muito desejava morrer por nós, para com sua morte patentear-nos o amor que nos tinha; mas, para que os homens não pensassem que ele tinha tomado um corpo fantástico (como o afirmaram alguns hereges) ou então por virtude de sua divindade ele tivesse morrido sem experimentar nenhuma dor, fez essa súplica a seu Pai, não para ser atendido, mas para nos dar a entender que morria como homem e morria atormentado com um grande temor da morte e das dores que a deviam acompanhar. Ó Jesus amabilíssimo, quisestes tomar sobre vós a nossa timidez para nos conceder a vossa coragem no sofrer os trabalhos desta vida. Sede bendito para sempre por tanta piedade e amor. Que todos os corações vos amem quanto vós o desejais e mereceis.
2. Começou a angustiar-se. Começou também a sentir um grande tédio das penas que lhe estavam aparelhadas. Quando se está desgostoso, até as delícias enfastiam. Oh! quantas angústias inseparáveis de tal tédio não deveria causar a Jesus o horrendo aparato que então lhe passou pela mente, de todos os tormentos exteriores, que deveria martirizar horrendamente seu corpo e sua alma bendita! Apresentaram-se distintamente diante de seus olhos todas as dores que deveria sofrer, todos os escárnios que deveria receber dos judeus e dos romanos, todas as injustiças que lhe fariam os juízes de sua causa, e de modo particular se lhe apresentou à mente a morte dolorosíssima que teria de suportar, abandonado de todos, dos homens e de Deus, num mar de dores e de desprezos. E foi justamente isso que lhe ocasionou um desgosto tão amargo que o obrigou a pedir conforto a seu Pai eterno. Ah! meu Jesus, eu me compadeço de vós, vos agradeço e vos amo.
3. Apareceu-lhe então um anjo do céu que o confortou (Lc 22,43). Veio o conforto, mas este mais aumenta do que lhe alivia a dor, diz S. Beda. Sim, porque o anjo o confortou para padecer mais por amor dos homens e para glória de seu Pai. Oh! quantas angústias vos causou este vosso primeiro combate, ó meu amado Senhor! No decorrer de vossa paixão, os flagelos, os espinhos, os cravos vieram uns após outros atormentar-vos; no horto, porém, os sofrimentos de toda a vossa paixão vos assaltam todos juntos e vos afligem ao mesmo tempo. E vós aceitastes tudo por meu amor e por meu bem. Ah! meu Deus, quanto me penaliza não vos haver amado pelo passado e ter anteposto os meus gostos criminosos à vossa santa vontade. Detesto-os agora mais que todos os males e me arrependo de todo o coração. Jesus, perdoai-me! 4. Começou a entristecer-se e a magoar-se. Com o temor e com o tédio, começou Jesus a sentir ao mesmo tempo uma grande melancolia e aflição de espírito. Mas, Senhor, não fostes vós que infundistes tão grande alegria aos vossos mártires no meio dos tormentos, que chegavam até a desprezar os sofrimentos e a morte? De S. Vicente diz S. Agostinho que falava com tanta alegria ao ser martirizado, que parecia ser um o que padecia e outro o que falava. Narra-se de S. Lourenço que, ardendo nas grelhas, era tão grande a consolação que sentia em sua alma, que insultava o tirano, dizendo: “Vira-me e come”. Como é que vós, ó meu Jesus, que destes tanta alegria aos vossos servos na morte, escolhestes para vós uma tristeza tão grande ao morrer? 5. Ó alegria do paraíso, que alegrais o céu e a terra com o vosso júbilo, por que vos vejo agora tão aflito e tão triste, e vos ouço dizer que a tristeza que vos aflige é suficiente para dar-vos a morte? “Minha alma está triste até à morte” (Mc 14,34). Por que, meu Redentor? Ah! já vos compreendo: não foram tanto os sofrimentos de vossa paixão, quanto os pecados dos homens, entre estes os meus, que vos causaram então aquele grande temor da morte.
6. Tanto o Verbo eterno amava seu Pai quanto odiava o pecado, do qual bem conhecia a malícia. Por isso, para tirar o pecado do mundo e para não ver mais seu amado Pai ofendido, ele veio à terra e fez-se homem e resolveu sofrer uma paixão e uma morte tão dolorosa. Vendo, porém, que, apesar de todas as suas penas, ainda se cometeriam tantos pecados no mundo, esta dor, diz S. Tomás , superou toda a dor que qualquer penitente jamais sentiu por suas próprias culpas e excedeu igualmente qualquer pena que possa afligir um coração humano. E a razão é que todos os sofrimentos dos homens são sempre misturados de alguma consolação; mas a dor de Jesus foi pura, sem lenitivo. Suportou a dor pura sem mistura de nenhuma consolação (Contens. 1.10, d. 4,c. 1). Ah, se eu vos amasse, se eu vos amasse, ó meu Jesus, vendo o quanto padecestes por mim, doces se me tornariam todas as dores, todos os opróbrios e os maus tratos deste mundo. Concedei-me, peço-vos, o vosso amor, para que sofra com gosto ou ao menos com paciência o pouco que me é dado sofrer. Não permitais que eu morra tão ingrato a tantas finezas de vosso amor. Nas tribulações que me sobrevierem, proponho dizer sempre: Meu Jesus, abraço estes sofrimentos por vosso amor e os quero suportar para vos comprazer. 7. Na história lê-se que muitos penitentes, iluminados pela luz divina sobre a malícia de seus pecados, chegaram a morrer de puro dor. Que tormento, portanto, deveria suportar o coração de Jesus à vista de todos os pecados do mundo, todas as blasfêmias, sacrilégios, desonestidades e de todos os outros crimes cometidos pelos homens depois de sua morte, dos quais cada um vinha com sua própria malícia, à semelhança de uma fera cruel, lacerar-lhe o coração.Vendo isto, dizia então nosso aflito Senhor, agonizando no horto: É esta, então, ó homens, a recompensa que vós me dais pelo intenso amor meu? Oh! se eu visse que vós, gratos ao meu afeto, deixaríeis de pecar e começaríeis a amar-me, com que alegria iria agora morrer por vós. Mas ver, depois de tantos sofrimentos meus, ainda tantos pecados; depois de tão grande amor meu, ainda tantas ingratidões, é isto justamente o que mais me aflige, me entristece até à morte e me faz suar sangue vivo: “E seu suor tornou-se em gotas de sangue que corria até a terra” (Lc 22,44). No dizer do Evangelista, este suor sangüíneo foi tão copioso que primeiro molhou todas as vestes do Redentor e depois correu em abundância sobre a terra.
8. Ah! meu terno Jesus, eu não vejo neste horto nem flagelos nem espinhos, nem cravos que vos firam, e como é que vos vejo todo banhado em suor de sangue da cabeça aos pés? Foram os meus pecados a prensa cruel que, à força de aflições e tristeza, fez jorrar tanto sangue de vosso coração.Também eu fui então um dos vossos mais cruéis carnífices, ajudando com os meus pecados a atormentar-vos mais cruelmente. Certo é que se eu houvesse pecado menos, menos teríeis padecido, ó meu Jesus. Quanto maior foi o meu prazer em ofender-vos, tanto maior foi a aflição que vos causei ao vosso coração magoado. E como este pensamento não me faz agora morrer de dor, ao compreender que paguei o amor, que testemunhastes na vossa paixão, aumentando vossa tristeza e vossas penas? Fui eu quem atormentou esse tão amável e amoroso coração que tanto me amou! Senhor, como agora não possuo outro meio para vos consolar que arrependendo-me de vos haver ofendido, aflijo-me e arrependo-me de todo o meu coração, ó meu Jesus. Dai-me uma dor tão grande que me faça chorar continuamente até último suspiro de minha vida os desgostos que vos dei, meu Deus, meu amor, meu tudo. 9. Prostrou-se com o rosto por terra (Mt 26,39). Vendo-se Jesus sobrecarregado com a incumbência de satisfazer pelos pecados do mundo inteiro, prostrou-se com a face em terra para suplicar pelo homem, como se se envergonhasse de levantar os olhos para o céu ao ver-se sob o peso de tantas iniqüidades. Ah! meu Redentor, eu vos vejo todo aflito e pálido por vossos sofrimentos e, numa agonia mortal, rezais: Posto em agonia rezava com mais instância (Lc 22,43). Dizei-me por quem orais? não foi tanto por vós que então suplicastes, mas sim por mim, oferecendo ao Eterno Pai vossas poderosas súplicas unidas às vossas penas, para obter-me o perdão de minhas culpas. “O qual, nos dias de sua mortalidade, oferecendo com grande clamor e com lágrimas e súplicas àquele que o podia salvar da morte, foi atendido pelo seu submisso respeito” (Hb 5,7). Ah! meu Redentor, como pudestes amar tanto a quem tanto vos ofendeu? Como pudestes aceitar tantos sofrimentos por mim, conhecendo já então a ingratidão com que vos haveria de tratar? 10. Ó meu Senhor afligido, fazei que eu participe da dor que então sentistes pelos meus pecados. Eu os detesto no presente e uno este meu arrependimento ao pesar que sentistes no horto. Ah! meu Salvador, não olheis para meus pecados, pois não me bastaria o inferno; olhai para os sofrimentos que suportastes por mim. Ó amor de meu Jesus, sois o meu amor e minha esperança. Senhor, eu vos amo com toda a minha alma e quero amar-vos sempre. Pelos merecimentos daquela angústia e tristeza que sofrestes no horto, dai-me fervor e coragem nas empresas para vossa glória. Pelos merecimentos de vossa agonia, dai-me força para resistir a todas as tentações da carne e do inferno. Dai-me a graça de me recomendar sempre a vós e de repetir sempre com Jesus Cristo: Não o que eu quero, mas sim o que vós quereis. Não se faça a minha, mas sempre a vossa divina vontade. Amém.

24 de junho de 2014

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo - 5ª Parte

CAPÍTULO V
Do amor que Jesus nos mostrou, deixando-se a si mesmo em comida antes de entregar-se à morte.
1. Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus, amou-os até ao fim (Jo 13,1). Nosso amantíssimo Redentor, na última noite de sua vida, sabendo que já era chegado o tempo suspirado de morrer por amor dos homens, não teve ânimo de nos deixar sós neste vale de lágrimas. e para não se separar de nós nem mesmo depois de sua morte, quis deixar-se-nos todo em alimento no Sacramento do altar. Com isto deu-nos a entender que, depois desse dom infinito, não tinha mais o que dar-nos para nos testemunhar o seu amor. Cornélio e Lápide, com S. Crisóstomo e Teofilacto, explica segundo o texto grego a palavra até ao fim e escreve: É como se dissesse: amou-os com um amor supremo e sem limites. Jesus neste sacramento fez o último esforço de amor para o homem, como diz o Abade Guerrico (Serm. de Ascens.). Essa idéia foi ainda mais bem expressa pelo sagrado Concílio de Trento, que, falando do sacramento do altar, disse que nele nosso Salvador derramou, por assim dizer, todas as riquezas de seu amor para conosco. (Sess. 13, c.2). Tinha, pois, razão S. Tomás d’Aquino de chamar este sacramento de sacramento de amor e o maior penhor de amor que um Deus nos podia dar (Op. 18, c. 25). E s. Bernardo o chamava amor dos amores. S. Maria Madalena de Pazzi dizia que uma alma depois de comungar pode exclamar: “Tudo está consumado”, já que o meu Deus, tendo-se dado todo a mim nesta comunhão, nada mais tem para comunicar-me. Uma vez perguntou esta santa a uma de suas noviças em que havia pensado depois da comunhão? Respondeu-lhe a noviça: no amor de Jesus. Sim, replicou então a santa, quando se pensa no amor, não se pode ir mais avante, antes é preciso deter-se nele. O Salvador do mundo, que pretendeis dos homens, deixando-vos levar a dar-lhes como alimento o vosso próprio ser? E que mais vos resta dar-nos, depois deste sacramento para nos obrigar a vos amar? Ah! meu Deus amantíssimo, iluminai-me para que conheça qual foi o excesso de bondade que vos reduziu a vos fazerdes minha comida na santa comunhão. Se, pois, vos destes inteiramente a mim, é justo que eu também me dê todo a vós. Sim, Jesus, eu me dou todo a vós, vos amo acima de todos os bens e desejo receber-vos para vos amar ainda mais. Vinde, sim, vinde muitas vezes à minha alma e fazei-a toda vossa. Ah! se eu pudesse dizer que em verdade como S. Filipe Néri ao receber a comunhão em viático: “Eis aí o meu amor, eis aí o meu amor; dai-me o meu amor.”
2.“Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim e eu nele” (Jo 6,57). S. Dionísio Areopagita diz que o amor tende sempre à união com o objeto amado. E porque a comida se faz uma só coisa com quem a toma, por isso Nosso Senhor quis fazer-se comida, para que nós, recebendo-o na santa comunhão, nos tornássemos uma só coisa com ele: “Tomai e comei: isto é o meu corpo” (Mt 25,26). Como se quisesse dizer, assevera S. João Crisóstomo: Comeime, para que nos tornemos um só ser (Hom. 15 in Joan), alimenta-te de mim, ó homem, para que de mim e de ti se faça uma só coisa. Assim como dois pedaços de cera derretidos, diz S. Cirilo Alexandrino, se misturam e confundem, da mesma forma uma alma que comunga se une de tal maneira a Jesus que Jesus está nela e ela em Jesus. Ó meu amado Redentor, exclama S. Lourenço Justiniano, como pudestes chegar e amar-vos tanto e de tal modo unir-vos a vós, que o vosso coração e do nosso não se fizesse senão um só coração? (De div. amor, c. 5). Tinha, pois, razão S. Francisco de Sales de dizer, falando da santa comunhão: O Salvador não pode ser considerado em nenhum outro mistério nem mais amável nem mais terno que neste, no qual se aniquila, por assim dizer, e se reduz a comida para penetrar em nossas almas e unir-se ao coração de seus fiéis: E assim, diz S. João Crisóstomo, nós nos unimos e nos tornamos um corpo e uma carne com aquele em quem os anjos não ousam fixar seus olhares. Que pastor, ajunta o santo, alimenta suas ovelhas com seu próprio sangue? Mesmo as mães dão seus filhos a amas estranhas. Jesus, porém, nesse sacramento nos alimento com o seu próprio sangue e une-se a nós (Hom. 60). Em suma, ele quer fazer-se nosso alimento e uma mesma coisa conosco, porque nos amava ardentemente (Hom. 51). Ó amor infinito, digno de um infinito amor, quando vos amarei, ó meu Jesus, como vós me amastes? Ó alimento divino, ó sacramento de amor, quando me atraireis todo a vós? não podeis fazer mais para vos fazerdes amar por mim. Eu quero sempre começar a amar-vos, prometo-vos sempre, mas nunca o começo. Quero começar hoje a amar-vos deveras. Ajudai-me, inflamai-me, desprendei-me da terra e não permitais que eu continue a resistir a tantas finezas de vosso amor. Eu vos amo de todo o coração e por isso quero tudo abandonar para vos comprazer, minha vida, meu amor, meu tudo. Quero unir-me muitas vezes convosco neste sacramento, para desprender-me de tudo e amar somente a vós, meu Deus. Espero de vossa bondade poder executá-lo com o vosso auxílio.
3.Temos visto a Sabedoria como que enlouquecida pelo excesso de amor, diz S. Lourenço. E de fato não parece uma loucura de amor, pergunta S. Agostinho, um Deus dar-se em alimento às suas criaturas? (In ps. 33 en. 1). E que mais poderia dizer uma criatura a seu Criador? S. Dionísio Areopagita diz que Deus, por causa da grandeza de seu amor, como que caiu fora de sim, pois, mesmo sendo Deus, se fez não só homem, mas até alimento dos homens (Liv. V de div. Nom. p. 4). Mas tal excesso, Senhor, não convinha à vossa Majestade! Responde por Jesus S. João Crisóstomo: o amor não procura razões quando quer fazer bem e manifestar-se ao objeto amado; vai, não para onde lhe convém, mas para onde o arrasta seu desejo (Sem. 147). Ah! meu Jesus, quanto me envergonho ao pensar que, podendo vos possuir, bem infinito, mais digno de amor que todos os outros bens e tão abrasado em amor por minha alma, eu me deixei levar a amar bens vis e mesquinhos, pelos quais vos abandonei. Por favor, ó meu Deus, manifestai-me cada vez mais as grandezas de vossa bondade, para que eu me abrase sempre mais em amor por vós e mais me esforce para vos agradar. Ah! meu Senhor, que objeto mais belo, mais perfeito, mais santo, mais amável que vós posso encontrar para amar? Amo-vos, bondade infinita, amo-vos mais do que a mim mesmo e quero viver para vos amar e vós que mereceis todo o meu amor.
4. S. Paulo considera o tempo, em que Jesus nos presenteou com este sacramento, dádiva que ultrapassa todos os outros dons que um Deus nos podia fazer: (como afirma S. Clemente),o qual sendo onipotente, nada mais tinha depois disso para nos dar, como atesta S. Agostinho. O Apóstolo nota e diz: “O Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão e dando graças o partiu e disse: Tomai e comei, isto é o meu corpo, que será entregue por vós (1Cor 11,23). Naquela mesma noite, pois, na qual os homens pensavam em preparar a Jesus tormentos e morte, o amante Redentor pensou em deixar-lhes a si mesmo no SS. Sacramento, dando a entender que seu amor era tão grande que, em vez de arrefecer com tantas injúrias, antes mais se acendeu e inflamou com isso. Ah! Senhor amorosíssimo, como pudestes amar tanto os homens, querendo ficar com eles na terra como seu alimento, quando eles vos expulsavam com tanta ingratidão? Note-se, além disso, o imenso desejo que Jesus teve na sua vida de ver chegar aquela noite em que resolvera deixar-nos esse grande penhor de seu amor, declarando no momento de instituir este dulcíssimo sacramento: Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco (Lc 22,15). Estas palavras denunciam o ardente desejo que tinha de unir-se conosco na comunhão, pelo grande amor que por nós sentia, diz S. Lourenço Justiniano. E o mesmo desejo conserva Jesus ainda hoje por todas as almas que o amam. Não se encontra uma abelha, disse ele um dia a S. Mectildes, que se precipite com tanto ímpeto sobre as flores para lhes sugar o mel, como eu me dirijo à alma que me deseja, impelido pela violência de meu amor.
Ó Deus amabilíssimo, não podeis dar-me maiores provas de vosso amor. Agradeço-vos a vossa bondade. Atraí-me, ó meu Jesus, inteiramente a vós: fazei que vos ame de hoje em diante com todo o meu coração e com toda a ternura. Que os outros se contentem de amar-vos só com um amor apreciativo e predominante: sei que com isso vos contentais; eu só me contentarei quando vir que amo com maior ternura que a um amigo, um irmão, um pai e um esposo. E onde poderei encontrar um amigo, um irmão, um pai, um esposo que tanto me ame, como vós me amastes, meu Criador, meu Redentor e meu Deus, que por mim destes o sangue e a vida e ainda a vós mesmo todo inteiro neste sacramento de amor? Amo-vos, pois, ó meu Jesus, com todos os meus afetos, amo-vos mais do que a mim mesmo. Ajudai-me a amar-vos e nada mais vos peço.
5. Diz S. Bernardo que Deus nos amou somente para ser amado por nós (In Cant. serm. 83). E por isso protestou nosso Salvador que ele veio à terra para fazer-se amar: Vim trazer fogo à terra! Oh! que belas chamas de santo amor não acendeu Jesus nas almas por meio deste diviníssimo sacramento. Dizia o venerável S. Francisco Olímpio, teatino, que nenhuma coisa é tão apta para inflamar os nossos corações a amar o sumo bem como a santa comunhão. Hesíquio chamava a Jesus no SS. Sacramento o fogo divino e S. Catarina viu um dia nas mãos de um sacerdote a Jesus-Sacramento semelhante a uma fornalha de amor, admirando-se de não estar o mundo inteiro abrasado por ela. Segundo o abade Ruperto E S. Gregório Nisseno, o altar é aquela adega onde a alma, esposa de Jesus, se inebria de amor por seu Senhor, de tal modo esquecida da terra que se abrasa docemente e enlanguesce de santa caridade.“Introduziu-me na cela vinária, diz a esposa dos Cânticos, e ordenou em mim a caridade. Conformaime com flores e alentai-me com maçãs, porque desfaleço de amor” (Ct 2,4). Ó amor de meu coração, Santíssimo Sacramento! Oh! se eu me recordasse sempre de vós e me esquecesse de tudo para amar a vós somente, sem interrupção e sem reserva. Ah! meu Jesus, tanto batestes à porta de meu coração que afinal nele entrastes, como eu o espero. Já, porém, que nele entrastes, peço-vos expulseis dele todos os afetos que não tendem para vós. Tomai posse de tal modo de mim que eu possa doravante dizer em toda a verdade com o profeta: “Que tenho eu no céu e, fora de ti, que desejei sobre a terra?... Deus de meu coração e minha partilha, Deus para sempre” (Sl 72,25). Meu Deus, que desejo eu fora de vós nesta terra e no céu? Vós só sois e sempre sereis o único senhor de meu coração e de minha vontade e vós só haveis de ser toda a minha partilha, toda a minha riqueza nesta e na outra vida. 6. Ide, dizia o profeta Isaías, ide e publicai por toda parte as invenções amorosas de nosso Deus, para obrigar os homens a seu amor. “Tirareis água com alegria das fontes do Salvador e direis nesse dia: Louvai o Senhor e invocai o seu nome, fazei conhecidas aos povos as suas invenções” (Is 12,3). E que invenções não achou o amor de Jesus para se fazer amar por nós! Na cruz quis ele abrir-nos nas suas chagas tantas fontes de graças que, para recebê-las, basta o pedi-las com confiança. E não contente com isso quis dar-se todo a nós no SS. Sacramento. Ó homem, exclama S. João Crisóstomo, por que és tão mesquinho e te mostras tão reservado no amor para com teu Deus, que sem reserva se deu inteiramente a ti? É precisamente no SS. Sacramento, diz o Doutor Angélico, que Jesus nos dá tudo quanto é e quanto tem (Opusc. 63, c. 3). Eis o Deus imenso que o mundo não pode conter, ajunta S. Boaventura, tornado nosso prisioneiro e cativo, quando vem ao nosso peito na sagrada comunhão (In praep. Miss. c. 4). Por isso S. Bernardo, considerando, esta verdade, fora de si de amor, exclamava: O meu Jesus quis fazer-se hóspede inseparável de meu coração. E já que o meu Deus quis entregar-se inteiramente a mim para cativar-me o amor, é justo, concluía, que eu me empregue todo e inteiro em servi-lo e amá-lo. Ah! meu caro Jesus, dizei-me, que mais vos resta inventar para vos fazerdes amar? E eu continuarei a viver tão ingrato para convosco como o tenho sido até agora? Senhor, não o permitais.Vós dissestes que quem se alimenta de vossa carne na comunhão viverá por virtude de vossa graça:“Quem me comer viverá por mim” (Jo 6,58).Visto, pois, que vos não dedignais vir a mim na sagrada comunhão, fazei que minha alma viva sempre da verdadeira vida da vossa graça. Arrependo-me, ó sumo bem, de havê-la desprezado na minha vida passada, mas vos agradeço o tempo que me dais para chorar as ofensas que vos fiz. Quero pôr em vós, no restante de minha vida, todo o meu amor e pretendo agradar-vos quanto em mim estiver. Socorrei-me, ó meu Jesus, não me abandoneis. Salvai-me por vossos merecimentos, e minha salvação consista em amar-vos sempre nesta vida e na eternidade. Maria, minha Mãe, ajudai-me também vós.