30 de junho de 2013

FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO

XXIX DE JUNHO.
Festa dos santos Apóstolos Pedro e Paulo.

Constitues eos principes super omnem terram – “Estabelecê-los-as príncipes sobre toda a terra” (Ps. 44, 17).

Sumário. A eleição destes dois varões para príncipes dos apóstolos foi um dom todo gratuito de Deus e um puro rasgo da misericórdia divina. Mas eles corresponderam perfeitamente a um favor tão assinalado pela prática de todas as virtudes e especialmente pelo zelo da glória divina e da salvação das almas. Nós também, apesar da nossa indignidade, recebemos de Deus grandes favores. Mas como lhes temos correspondido?... Sejamos para o futuro mais diligentes e imitemos estes nossos grandes protetores.

I. Considera que a eleição destes dois varões para príncipes dos apóstolos foi um dom todo gratuito de Deus e um puro rasgo da misericórdia divina. Mas eles também corresponderam perfeitamente a um favor tão assinalado pela prática de todas as virtudes, especialmente pelo zelo da glória divina e da salvação das almas.

Já antes da sua queda se mostrara São Pedro sempre apóstolo zelosíssimo, muito mais, porém, depois da queda, que ele chorou com lágrimas tão abundantes, até lhe gravarem sulcos nas faces. - Depois de Pentecostes começou ele logo, o primeiro dos apóstolos, a desempenhar a sua missão e com resultado tal, que com um só sermão converteu cerca de três mil pessoas (1); compensando com este número a tríplice negação do seu divino Mestre. E daquele dia em diante trabalhou incansavelmente durante mais de trinta anos e sempre com a mesma abundância de frutos. - Continuou o seu apostolado mesmo na prisão Mamertina, onde converteu os guardas, continuou-o ainda sobre a cruz, tendo a sorte feliz de morrer como Jesus Cristo.

A vida de São Paulo, depois da sua conversão prodigiosa, pode igualmente chamar-se um apostolado contínuo e, portanto, um contínuo martírio. Pelo que ele mesmo, constrangido a dar uma resenha das suas missões, pôde atestar na presença de Deus, que trabalhara mais do que todos os outros apóstolos, que suportara cárceres e açoites e para a glória de Deus fora exposto a toda a espécie de perigos (2).

Numa palavra, destes dois apóstolos, mais do que dos outros, se pode dizer que o Senhor, na sua bondade, os estabeleceu príncipes sobre toda a terra e que eles, pela sua fiel cooperação, se fizerem pregoeiros dos louvores de Deus: Constitues eos principes super omnem terram... In fines orbis terrae verba eorum (3). Alegra-te com estes teus grandes Protetores e dá graças a Deus pelos favores a eles concedidos.

II. Se examinares a tua consciência, verás que também tu, apesar de teus deméritos, tens recebido de Deus grandes favores. Mas como lhes correspondeste?... Como desagravaste a Deus de teus pecados?... Que fizeste até agora pela salvação do próximo? – Eis aí o fruto que deves colher da solenidade de hoje. Esforça-te por imitar as virtudes destes dois apóstolos, e em particular o seu zelo pela glória divina e pela salvação das almas.

Ó santos apóstolos Pedro e Paulo, eu vos escolho hoje e para sempre para meus especiais protetores e advogados; e humildemente me alegro, assim convosco, ó glorioso São Pedro, Príncipe dos apóstolos, por serdes aquela pedra sobre a qual Deus edificou a sua Igreja; como convosco, ó Bem-aventurado São Paulo, escolhido por Deus para vaso de eleição e pregador da verdade em todo o mundo. Eu vos rogo que me alcanceis viva fé, firme esperança e caridade perfeita, total desapego de mim mesmo, desprezo do mundo, paciência nas adversidades e humildade nas prosperidades, atenção na oração, pureza de coração, reta intenção nas obras, diligência no cumprimento das obrigações do próprio estado, constância nos propósitos, resignação na vontade de Deus e perseverança na divina graça até a morte, para que, mediante vossa intercessão e gloriosos merecimentos, vencidas as tentações do demônio, do mundo e da carne, eu me torne digno de aparecer na presença do supremo e eterno Pastor das almas, Jesus Cristo, que com o Pai e com o Espirito Santo vive e reina por séculos de séculos, para o gozar e amar eternamente (4).

“E Vós, ó Senhor, que santificastes o dia presente com o martírio dos vossos apóstolos Pedro e Paulo: fazei que a vossa Igreja siga em tudo os preceitos daqueles que foram os seus primeiros ministros.” (5) Fazei-o pelo amor de Jesus Cristo, vosso divino Filho, e pela intercessão de Maria Santíssima, nossa querida Mãe.

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1. Act. 2, 41
2. 2 Cor. 11, 5.
3. Ps. 44, 17
4. Indulg. de 100 dias acrescentando-se um Pai-Nosso, Ave-Maria e Glória.
5. Or. festi.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 348-351.)

29 de junho de 2013

Maria Santíssima, modelo de obediência.

Ecce ancilla Domini: fiat mihi secundum verbum tuum – “Eis aqui a escrava do Senhor: faça-se em mim segundo a tua palavra” (Luc. 1, 38).

Sumário. A obediência de Maria foi incomparavelmente mais perfeita que a dos outros santos; porque, imune de todo labéo de culpa, ela era como que uma roda que pronta se movia a cada inspiração divina. Pelo mérito desta virtude Maria remediou o dano que causou Eva com sua desobediência. E tu como é que obedeces a teus superiores? Como é que observas as leis de Deus e da Igreja e os deveres próprios do teu estado? Lembra-te de que a virtude de obediência faz entrar os bem-aventurados na glória.

I. Pelo afeto que Maria consagrava à virtude de obediência, não quis, quando São Gabriel lhe veio anunciar a maternidade divina, chamar-se com outro nome senão com o de escrava: Eis aqui a escrava do Senhor. Sim, diz Santo Tomás de Villanova, porque esta fiel escrava, nem com suas obras nem com o pensamento contradisse jamais ao Senhor; mas, despida de toda a vontade própria, viveu sempre e em tudo obediente à divina vontade.

Observa São Bernardino de Sena que a obediência de Maria foi muito mais perfeita que a dos outros santos, porque todos os homens, por causa da inclinação ao mal pelo pecado original, sentem dificuldade em fazer o bem. Maria, ao contrário, imune, como era, de todo o labéo de culpa, foi como que uma roda que prontamente se movia a cada inspiração divina e outra coisa não fazia senão observar e executar o que agradava a Deus. – Dela é que foi dito: Anima mea liquefacta est, ut dilectus meus locutus est (1) – “A minha alma se derreteu, assim que meu amado falou”; porque, na explicação de Ricardo, a alma da Virgem era como que um metal derretido, disposta a tomar todas as formas que Deus queria.

Quanto era pronta para obedecer, mostrou-o claramente Maria quando, para agradar a Deus, quis obedecer também ao imperador romano, fazendo a viagem a Belém, em tempo de inverno, grávida e tão pobre que se viu obrigada a dar à luz numa gruta. – Foi igualmente pronta quando São José a avisou, que se pusesse a caminho na mesma noite, para viagem mais longa e perigosa ao Egito.

Mas, sobretudo, demonstrou a sua heróica obediência quando, para obedecer à divina vontade, ofereceu seu Filho à morte, com tão grande constância, que, como disse Santo Ildefonso, estaria pronta a crucificar o Filho se faltassem os algozes. – pelo que São Beda, o Venerável, escreveu que Maria foi mais feliz pela sua obediência à vontade divina do que por ter sido feita Mãe do mesmo Deus. E Santo Agostinho conclui dizendo que a divina Mãe com sua obediência remediou o dano que fez Eva com a sua desobediência.

II. Muito agradam a Maria aqueles que são amantes da obediência, e ela mesma repreendeu certo dia um religioso que, tocando-se o sino para certo exercício da comunidade, se demorou para terminar certas devoções privadas. – Falando a Santíssima Virgem com Santa Brígida a respeito da segurança que há em obedecer ao pai espiritual, lhe disse que é a obediência que faz entrar os bem-aventurados na glória. Acrescentou que, pelo merecimento da sua obediência, obteve do Senhor que todos os pecadores que arrependidos a ela recorrerem, obtenham perdão.

Se, pois, queres agradar a Maria Santíssima e assegurar a salvação da tua alma, faze hoje o firme propósito de imitar sempre a sua obediência e de cumprir exatamente todos os deveres do teu estado. – Entretanto, pede a seu Filho perdão das culpas que no passado cometeste contra tão bela virtude.

Ah meu Jesus! Por minha salvação fostes obediente até à morte e até à morte de cruz, e eu, ingrato, para não me privar de alguma miserável satisfação, tantas vezes Vos desrespeitei e Vos desobedeci. Meu Senhor, tende paciência comigo; não me abandoneis como merecia. Arrependo-me de todos os desgostos que Vos dei e quisera morrer de dor. Ouço vossa divina voz que me convida a vosso amor; não quero mais resistir. Eis-me aqui, entrego-me a Vós; não recuseis aceitar-me.

Dizei-me o que tenho de fazer para Vos agradar; estou pronto para tudo. (Renovo meus votos de Pobreza, de Castidade e de Obediência.) Prometo que de hoje em diante nunca mais resistirei às ordens de meus superiores. Amo-Vos, Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas, e porque Vos amo, quero fazer tudo para Vos agradar. Dai-me o vosso auxílio para executar esta resolução. – E Vós, minha Rainha e Mãe Maria, rogai a Jesus por mim, e pelo merecimento da vossa obediência, obtende-me a graça de obedecer a sua santa vontade e às ordens do meu Pai espiritual. (*I 268.)

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1. Cant. 5, 6.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 230-232.)

28 de junho de 2013

Quanto agrada a Jesus a lembrança da sua Paixão.

Gratiam fideiussoris ne obliviscaris; dedit enim pro te animam suam – “Não te esqueças da graça que te fez teu fiador, pois ele expos sua alma para te valer” (Ecclus. 29, 20).

Sumário. Quão agradável é a Jesus que nos lembremos da sua Paixão, conclui-se de que o Santíssimo Sacramento foi instituído exatamente para conservar em nós a memória dela. Eis porque todos os santos meditavam continuamente nos sofrimentos e desprezos que o Redentor padeceu em toda a sua vida e particularmente na morte. Procuremos dar esta satisfação ao Coração amabilíssimo de Jesus; contemplemo-lo muitas vezes, mormente na sexta-feira, moribundo por nós, lembrando-nos as penas que com tamanho amor sofreu por nós.

I. Quão agradável é a Jesus Cristo que nos lembremos freqüentemente da sua paixão e da morte ignominiosa que por nós sofreu, conclui-se da instituição do Santíssimo Sacramento do altar, a qual foi feita exatamente para guardar sempre viva a lembrança do amor que nos mostrou Jesus, sacrificando-se sobre a cruz pela nossa salvação. – Já sabemos que Jesus instituiu este Sacramento de amor na véspera da sua morte e que depois de ter dado seu corpo aos discípulos, lhes disse, e na pessoa deles também a nós, que quando tomassem a santa comunhão, anunciassem a morte do Senhor (1), quer dizer, que se lembrassem do muito que por nosso amor sofreu. Por isso, a Igreja ordena que na missa o celebrante diga depois da consagração, em nome de Jesus Cristo: Haec quotiescumque feceritis, in mei memoriam facietis – “Todas as vezes que fizerdes estas coisas, as fareis em memória de mim”.

Se alguém padecesse pelo seu amigo injúrias e açoites e depois lhe contassem que o amigo, ouvindo falar disso, nem quer escutar dizendo: Falemos em outra coisa, que pena não havia de sentir de tamanha ingratidão? Que consolação teria, ao contrário, sabendo que o amigo proclama a sua gratidão eterna e dele sempre se lembra e fala com lágrimas de ternura? – Eis porque os santos, sabendo quanto agrada a Jesus Cristo a lembrança freqüente da sua Paixão, se tem aplicado sempre a meditar nas dores e nos desprezos que o amantíssimo Redentor sofreu em toda a sua vida e especialmente em sua morte.

Refere-se na vida do Bem-aventurado Bernardo de Corlione, capuchinho, que, quando os religiosos, seus irmãos, queriam ensiná-lo a ler, foi primeiro tomar conselho com Jesus crucificado. Respondeu-lhe o Senhor: Que leitura! Que livros! Eu, o crucificado, quero ser teu livro, no qual poderás ler o amor que te hei consagrado. – Jesus crucificado foi também o livro predileto de São Filipe Benício. No leito da morte pediu o Santo lhe dessem seu livro. Os assistentes não sabiam qual era o livro que desejava, mas frei Ubaldo, seu confidente, deu-lhe a imagem de Jesus crucificado e então disse o Santo: “É este o meu livro”; e, beijando as chagas sagradas, exalou a sua alma bendita.

II. Visto que Jesus deseja tanto que nos lembremos da sua Paixão, procuremos, ó almas devotas, imitar a Esposa dos Cânticos que dizia: Eu me assentei debaixo da sombra daquele que é o objeto dos meus desejos (2). Representemo-nos muitas vezes, particularmente nas sextas-feiras, Jesus moribundo sobre a cruz. Detenhamo-nos com ternura na consideração prolongada das suas chagas e do amor que nos tinha quando estava agonizando sobre aquele leito de dor: Não te esqueças da graça que te fez teu fiador, porque Ele expos por ti sua alma.

Ó Salvador do mundo, ó amor das almas, ó Senhor, objeto mais digno de todo o amor! É pela vossa Paixão que quisestes ganhar nossos corações, mostrando-nos o amor imenso que nos tendes e consumando uma Redenção que nos trouxe a nós um mar de bênçãos e a Vós Vos custou um mar de dores e de opróbrios. Com tantos prodígios de amor alcançastes que muitas almas santas, abrasadas pelas chamas do vosso amor, renunciassem a todos os bens da terra, para se consagrarem inteiramente a vosso amor, ó Senhor amabilíssimo! – Suplico-Vos, meu Jesus: fazei com que eu me lembre sempre da vossa Paixão, e que, miserável como sou, mas vencido, afinal, por tantas finezas do vosso amor, me renda a Vos amar e a dar-Vos com o meu amor alguma prova de gratidão pelo amor excessivo que Vós, meu Deus e meu Salvador, me haveis tido.

Lembrai-Vos, meu Jesus, que sou uma dessas ovelhas, por cuja salvação viestes à terra sacrificar a vossa vida. Sei que, depois de me haverdes remido pela vossa morte, não deixastes de me amar e que ainda me tendes o mesmo amor que me quisestes ter morrendo por mim. Não permitais que eu viva ainda ingrato para convosco, meu Deus, que tanto mereceis meu amor e tanto haveis feito para ser amado por mim. – É esta a graça que vos peço também, ó Maria, pelos merecimentos da dor que sentistes na Paixão de vosso Filho Jesus. (*I 642.)

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1. 1 Cor. 11, 26.
2  Cant. 2, 3.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 227-229.)

27 de junho de 2013

Jesus no Santíssimo Sacramento é prisioneiro de amor.

Descendit cum illo in foveam, et in vinculis non dereliquit eum – “Desceu (Deus) com ele ao fosso, e não o deixou nas cadeias” (Sap. 10, 13).

Sumário. Considera que Jesus está noite e dia sobre os altares como em outras tantas prisões de amor. Bastava que ali ficasse só de dia; porém Ele quis ficar também durante a noite, afim de que de manhã o possa achar quem o venha buscar. Só esta fineza devia excitar todos os homens a ficar sempre na presença de Jesus sacramentado; mas é o contrário que se dá. Nós ao menos procuremos dar-Lhe alguma compensação, multiplicando o mais possível nossas visitas, e ao sairmos da Igreja, deixemos nossos corações com todos os seus afetos ao pé do altar, ou encerrados dentro do santo Tabernáculo.

I. Nosso amantíssimo Pastor, que deu a vida por nós, suas ovelhas, não quis pela morte separar-se de nós. Eis-me aqui, diz Ele, eis-me aqui, sempre no meio de vós, minhas queridas ovelhas. Por vós me deixei ficar sobre a terra neste Sacramento; aqui me achareis sempre que quiserdes, para vos ajudar e consolar com a minha presença; não vos deixarei até o fim dos séculos, enquanto estiverdes sobre a terra.

Eis, pois, que Jesus Cristo está sobre os altares como em outras tantas prisões de amor. Os sacerdotes tiram-No do Tabernáculo para O exporem, ou para O darem na santa comunhão, e depois tornam a encerra-Lo. E Jesus de boa vontade aí fica dia e noite. – Mas, meu Redentor, para que ficar em tantas igrejas também durante a noite, quando se fecham as portas e os homens Vos deixam só? Bastava que ficásseis somente de dia. Não; Jesus quer ficar também de noite, embora sozinho, afim de que de manhã o possa achar logo quem O queira procurar.

A sagrada Esposa andava procurando a seu Amado e perguntava a todos que encontrava: Não vistes porventura àquele que meu coração ama? (1) E, não o achando, prorrompia em lamentos, dizendo: Meu esposo, fazei-me saber, onde estais. Então a Esposa não o achava, porque ainda não havia o Santíssimo Sacramento; mas agora se uma alma deseja achar Jesus Cristo, basta que vá a uma igreja ou a qualquer mosteiro, e ali achará seu amado, que está à espera dela.

Não há freguesia, por pobre que seja, nem mosteiro de religiosos, onde não se ache o Santíssimo Sacramento e em todos esses lugares o Rei do céu de boa vontade se deixa ficar encerrado em uma caixinha de madeira ou pedra, onde muitas vezes fica sozinho, apenas com a lâmpada, sem visitante algum. – Mas, Senhor (diz São Bernardo), tal não convém a vossa majestade! – Não importa, responde Jesus Cristo, se não convém a minha majestade, muito convém a meu amor.

II. Só a fineza do amor de Jesus Cristo, em querer fazer-se nosso prisioneiro, devia excitar todos os homens a visitarem-No muitas vezes no santo Tabernáculo e não saírem daí senão à força. Ao retirarem-se, deviam deixar ao pé dos altares todo o seu coração com todos os afetos de amor para com o Deus humanado que fica sozinho e encerrado no tabernáculo, todo olhos para ver e remediar nossas necessidades e todo coração, ficando ali para nos amar e esperando o dia para receber as visitas das almas que o amam.

Sim, meu Jesus, quero contentar-Vos. Consagro-Vos toda a minha vontade e todos os meus afetos. Ó Majestade infinita de Deus, Vós estais presente nesse divino Sacramento, não somente para ficardes perto de nós, mas principalmente para Vos comunicar às almas que Vos amam. Mas, Senhor, quem se atreverá a chegar-se a Vós e alimentar-se com a vossa carne? Mas também, quem se animará a afastar-se de Vós? Vós quisestes ocultar-Vos na Hóstia consagrada para entrardes em nós e possuirdes nossos corações. Vós ardeis em desejo de ser recebido de nós e achais vossas delícias em estar unido conosco.

Vinde, pois, ó meu Jesus, vinde. Desejo receber-Vos dentro de mim, para que sejais o Deus de meu coração e de minha vontade. Quanto a mim, meu amado Redentor, sacrifico a vosso amor minhas satisfações, prazeres, vontade própria e todo meu ser. Ó amor, ó Deus de amor, reinai e dominai em mim; destruí e aniquilai em mim tudo que é meu e não vosso. Não permitais, ó meu amor, que minha alma, cheia da majestade de um Deus, depois de Vos ter recebido pela santa comunhão, venha a apegar-se novamente às criaturas. Amo-Vos, meu Deus, amo-Vos e só a Vós quero sempre amar. – Ó Maria, Mãe do belo amor, suplico-vos, pelo amor de vosso divino Filho, que me alcanceis a santa perseverança. (*II 164.)

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1. Can, 5, 1.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 224-227.)

26 de junho de 2013

Deus é o bem que faz o paraíso.

Ego ero merces tua magna nimis – “Eu serei tua recompensa infinitamente grande” (Gen. 15, 1).

Sumário. A formosura dos Santos, as harmonias celestiais e todas as outras delícias do céu, são os menores bens desse reino bem-aventurado. O bem que faz a alma plenamente feliz e faz propriamente o céu é o Bem supremo, é Deus, é vê-lo face a face e amá-lo. Ânimo, pois, meu irmão, visto que tão grande recompensa nos aguarda também. Mas, para o conseguirmos, mister é que abracemos de boa vontade as cruzes e tribulações da vida presente, mormente se no passado houvéssemos tido a desgraça de merecer o inferno.

I. A formosura dos Santos, as harmonias celestiais e todas as outras delícias do céu são os menores bens desse reino bem-aventurado. O bem que faz a alma plenamente feliz e que constitui propriamente o paraíso é o Bem supremo, é o Deus, é ver Deus face a face e amá-lo. – Diz Santo Agostinho que, se Deus se deixasse ver aos réprobos, o inferno com todos os seus tormentos se mudaria para ele no mesmo instante em um paraíso. E acrescenta que, se fosse dada a uma alma, ao sair desta vida, a escolha de ver a Deus ficando nas penas do inferno, ou de ser livre das penas do inferno, mas privada da vista de Deus, preferiria ver o Senhor nos tormentos do inferno.

A felicidade de ver e amar a Deus face a face, não pode ser de nós concebida nesta terra. Procuremos, porém, formar dela alguma idéia. Em primeiro lugar, sabemos que o amor divino é tão encantador, que mesmo nesta terra chegou a arrebatar não só as almas, como também os corpos dos Santos. São Filipe Neri foi certa vez arrebatado ao ar, juntamente com o banco em que estava sentado. São Pedro de Alcântara foi também elevado sobre a terra, a ponto de desarraigar a árvore à qual estava abraçado.

Sabemos, além disso, que os santos mártires, pela doçura do amor divino, se regozijavam até no meio dos tormentos. São Vicente falava de tal maneira, enquanto o atormentavam, que, na expressão de Santo Agostinho, parecia ser um que sofria e outro que falava. São Lourenço, enquanto estava na grelha em brasa, zombava do tirano nestes termos: Vira-me e come. – Que suavidade não enche a alma, quando, iluminada na oração por um raio da luz divina, vê a bondade divina e as misericórdias de Deus para com ela e o amor que lhe teve Jesus Cristo. Então a alma se sente toda abrasada e como que cair desfalecida pelo amor.

No entanto, neste mundo não vemos Deus tal qual é. Temos uma venda sobre os olhos e Deus está oculto sob o véu da fé e não se deixa ver. Que será, porém, quando se tirar a venda dos nossos olhos, se levantar o véu e virmos a Deus face a face? Veremos então como Deus é belo, quanto é grande, quanto é justo, quanto é perfeito, quanto é amável, quanto é amante!

II. Tinha razão o Apóstolo São Paulo em dizer que todos os sofrimentos da vida presente não são nada quando comparados com a futura glória que se manifestará em nós: Non sunt condignae passiones huius temporis ad futuram gloriam, quae revelabitur in nobis (1). Por isso, meu irmão, abracemos de boa vontade as cruzes e tribulações que Deus nos envia para nosso bem; e, mais ainda, se no passado temos tido a desgraça de merecer o inferno. Digamos freqüentemente com São Filipe: É tão grande o bem que espero, que toda a pena me é gozo.

Meu soberano Bem, eu sou esse desgraçado que Vos voltou às costas e renunciou ao vosso amor. Não merecia mais ver-Vos e amar-Vos. Mas, Vós sois aquele que, tendo compaixão de mim, não teve compaixão de si próprio, condenando-se a morrer de dor sobre um madeiro ignominioso e infame. A vossa morte me dá a esperança de Vos ver um dia e gozar de vossa presença, amando-Vos então com todas as minhas forças. Agora, que estou ainda em risco de Vos perder para sempre, depois de já Vos haver perdido pelos meus pecados, que farei no resto da minha vida? Continuarei a ofender-Vos? Não, meu Jesus, abomino com todo o horror de que sou capaz as ofensas que Vos fiz: pesa-me extremamente de Vos haver ultrajado e amo-Vos de todo o meu coração.

Repelireis uma alma que está arrependida e Vos ama? Não, meu amado Redentor; bem sei que dissestes que não sabeis repelir aquele que arrependido volta a vossos pés. – Ó meu Jesus, eu abandono tudo e me converto a Vós; abraço-Vos, aperto-Vos ao coração; abraçai-me também e apertai-me ao vosso. Ouso falar-Vos assim; porque falo a uma bondade infinita; falo a um Deus, que quis morrer por meu amor. Meu querido Salvador, dai-me a perseverança em vosso amor. – Minha querida Mãe Maria, pelo grande amor que tendes a Jesus Cristo, obtende-me a perseverança.

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1. Rom. 8, 18.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 222-224.)

25 de junho de 2013

Sermão 5º Domingo depois de Pentecostes - Padre Daniel Pinheiro - IBP

Sermão para o Quinto Domingo depois de Pentecostes
23 de junho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…
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“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus.” “Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás e quem matar será condenado em juízo. Pois eu vos digo que todo aquele que se irar contra seu irmão, será condenado em juízo.” (Mateus V, 21)

Neste trecho do Sermão da Montanha, que é o resumo da Lei Evangélica – lei do amor a Deus e ao próximo -, Nosso Senhor, legislador supremo, que aperfeiçoa a lei antiga e condena as interpretações erradas dadas pelos fariseus e escribas, mostra o valor profundo do quinto mandamento.  Não matar é insuficiente. É preciso cortar o mal em suas origens, pela raiz, é preciso coibir a ira, causa do homicídio.
O divino legislador parece, porém, violar a própria lei por Ele estabelecida. Pouco antes de estabelecer o perfeito sentido do quinto mandamento, Nosso Senhor atacou e condenou os fariseus, dizendo que a justiça deles era insuficiente para entrar no céu. Mas não somente isso: Nosso Senhor expulsa os vendilhões do templo com ira e condena os fariseus chamando-os de hipócritas, de cegos, de serpentes, de víboras, de orgulhosos. Haveria, então, uma contradição entre o preceito dado por Cristo e a sua atitude face aos fariseus?
A contradição, claro, é somente aparente. Para resolvê-la, devemos compreender o verdadeiro sentido do preceito e conhecer quem eram os fariseus e os escribas. Como explicam todos os Padres da Igreja baseados no texto grego do Evangelho de São Mateus, o que Nosso Senhor proíbe como pecado é a ira sem motivo. A ira é o sentimento, a paixão, que nos move a agir para restabelecer a ordem lesada por uma injustiça, para defender um bem que é atacado, uma verdade que é atacada. Assim, se esse movimento de cólera se dirige contra um verdadeiro mal a fim de restabelecer a justiça, a verdade ou a virtude por meios lícitos e dentro dos devidos limites, a ira não somente não é proibida, mas é mesmo louvável porque, neste caso, ela é conforme à razão e à moral. A ira encontra sua origem no amor do bem e da justiça. Quando o bem ou a justiça são atacados, nada mais virtuoso do que defendê-los dentro dos devidos limites. A ira deve, então, ser dirigida pela razão e voltar-se contra o mal, contra o vício, contra o pecado, que são uma ofensa a Deus, nosso maior bem. E face ao pecado e ao vício, a ausência de ira pode ser um pecado porque mostra a falta de amor por Deus. O preceito de Nosso Senhor – “todo aquele que se irar contra seu irmão, será condenado em juízo” – encontra seu verdadeiro sentido quando se compreende desse modo: todo aquele que se irar contra seu irmão, sem motivo, será condenado em juízo.
Resta saber se a ira de Nosso Senhor relativa aos fariseus é justa ou não.  Para tanto, é preciso conhecê-los. Fariseu quer dizer separado e comumente se pensa que os fariseus são aqueles que cumprem com exatidão a lei de Deus. Com frequência, católicos sérios são acusados de serem fariseus por buscarem, apesar de suas inúmeras fraquezas e defeitos, praticar bem a lei de Cristo, opondo-se às leis desse mundo. Ora, se os fariseus fossem simplesmente fiéis observadores da Lei de Deus, Nosso Senhor não teria razão para repreendê-los e condená-los, mas sim para elogiá-los dizendo: “servos bons e fiéis entrem na alegria do Senhor”. Nosso Senhor observou perfeitamente a Lei Mosaica e Nossa Senhora também. Seriam eles fariseus? Os fariseus não são aqueles que observam perfeitamente a lei de Deus.  Ao contrário, os fariseus não praticavam a lei dada por Deus e não deixavam os outros praticá-la: em primeiro lugar porque os fariseus e escribas – seguindo tradições puramente humanas, inventadas por eles, e interpretando a Lei segundo seus gostos – violavam essa mesma lei. Sob pretexto de cumprir tais tradições, a lei dada por Deus era desprezada. Sabemos que nenhuma lei humana, nem mesmo a lei de um país pode contrariar a lei estabelecida por Deus. Assim, inventaram uma consagração de certos bens a Deus para não ajudar os pais, evitando perder, dessa forma, certa riqueza (Marcos VII, 11), e se opondo ao quarto mandamento. Em segundo lugar, os fariseus violavam a lei porque praticavam uma religião puramente exterior, em que a pureza exterior substituía a santidade interior. Assim, eles pagavam o dízimo de todas as ervas (o que era bom e louvável), mas negligenciavam a justiça e a misericórdia (Mateus XXIII, 23). Eram hipócritas, bonitos por fora como um túmulo pintado de branco, mas no interior cheio de podridão. Finalmente, os fariseus violavam a lei pelo orgulho: todas as suas boas obras eram para ser vistas pelos homens e não por amor a Deus, em franca oposição ao que é preciso fazer, pois “quer comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (I Cor X, 31) . Com essa doutrina, os fariseus não entravam no céu e também não deixavam os outros entrar, uma vez que eram os guias do povo. Eram, então, cegos guiando cegos. Haveria maior mal do que esse, haveria maior ofensa a Deus do que essa: impedir que os outros entrem no céu?
Nosso Senhor Jesus Cristo – que amava a Deus da maneira mais perfeita possível e que buscava a salvação das almas – não poderia ficar impassível face à péssima doutrina dos fariseus. Ele, sendo bom, amava a justiça, e a justiça lesada pede reparação. Assim, a ira de Nosso Senhor contra os fariseus é, em realidade, virtuosa porque ela tem um motivo perfeito: os direitos de Deus atacados e a salvação das almas impedida pela doutrina dos fariseus e escribas. É importante sabermos que existe uma ira santa. Muitos católicos pensam que a santidade consiste numa total indiferença face ao mal, no fato de não reagir de maneira alguma, na tolerância da diferença. Tudo isso baseado em um falso conceito de mansidão. A mansidão não impede a ira, mas a regula segundo a reta razão iluminada pela fé. De um lado, a mansidão impede a ira desordenada que pode ser pecado mortal ou venial, segundo exceda grave ou levemente os limites impostos pela razão na correção do próximo, na reparação da justiça, na defesa de um bem, de uma verdade. Do outro lado, ela impede uma excessiva brandura, originada do amor por uma falsa paz.  O exemplo de santidade e de mansidão é Cristo e Ele mostrou que em determinados momentos uma ira santa é indispensável. Assim, Santo Agostinho nos diz que aquele que não se enfurece (de maneira ordenada), quando há uma causa para isso, peca por uma paciência imprudente que favorece os vícios, aumenta a negligência e encoraja o agir mal. A ausência da ira seria então pecar contra a justiça e a caridade. Nós católicos e, sobretudo, aqueles constituídos em autoridade deveríamos, então, nos levantar para defender os direitos de Deus e nos opormos, com vigor, às leis e doutrinas iníquas: divórcio, aborto, contracepção, união contra a natureza, entre tantas outras… A nossa paciência imprudente já permitiu males enormes…
Todavia, a ira para ser santa deve ser prudente.
Ela deve ter como causa uma verdadeira injustiça. Ela deve proceder da inteligência e da vontade e não de um sentimento impetuoso e descontrolado. Ela tem que ser dominada pelo homem e não o homem ser dominado por ela. Se nossa inclinação é de falar bruscamente, com voz destemperada e expressões indevidas, com grosserias, palavras de baixo calão, nossa ira é desordenada, pecaminosa. Se nossa ira nos leva a agressões ou destruição do bem alheio, ela é pecaminosa (a não ser, claro, em caso de legítima defesa, ou em caso de exercício da legítima autoridade, mas sempre proporcionalmente ao mal que é combatido).
A ira santa deve ser exercida quando há alguma esperança de êxito e principalmente por aqueles que têm obrigação de denunciar a injustiça e de restabelecer a ordem. E, ainda que não haja a possibilidade de êxito, às vezes é preciso para não escandalizar os outros, dando a impressão de que estamos de acordo com o mal. Ela deve ser sempre proporcional ao mal causado, como já dissemos.
Ela deve ter em vista mais o bem comum e a glória de Deus do que o bem privado. A ira santa não deve ter como objeto os males e as pequenas injustiças que sofremos porque eles têm para nós algo de justo – pois merecemos ser punidos pelos nossos pecados – e de bom – porque se os aceitamos de bom grado, Deus nos conduz à vida eterna. Devemos ter muita paciência nas tribulações, unindo-nos a Nosso Senhor. Podemos, claro, buscar afastar essas adversidades e a causa do sofrimento, mas sempre com serenidade e com submissão à vontade de Deus. Diante do sofrimento e das adversidades, que nossa ira nunca se volte contra Deus, que é o autor de todo o bem.
Na ira santa, não devemos desejar o mal do pecador, mas o bem que é sua correção e o bem que é o restabelecimento da ordem violada – que no mais das vezes passa, claro, pela punição daquele que fez o mal.
Atenção. É muito fácil equivocar-se na apreciação dos justos motivos que justificam a ira e é muito fácil perder o controle no exercício dela. É preciso estar, então, muito alerta e, na dúvida, o melhor é inclinar-se à doçura e não à ira. 
Assim, Nosso Senhor, verdadeiramente manso, soube perfeitamente o momento de irar-se ou e não irar-se, pois muitas vezes o remédio mais eficaz diante de um mal não é a ira. Nosso Senhor irou-se contra os fariseus, pertinazes no erro e no pecado, mostrando a falsidade da doutrina desses mestres hipócritas, a fim de conduzir o povo a Deus e a fim de tentar converter os próprios fariseus. Mas Ele não se encolerizou contra Herodes ou Pilatos no momento de sua paixão, pois não convinha que Nosso Senhor reagisse: sua ira não os tiraria do mal no qual estavam afogados e convinha que ele morresse para nos salvar. Nosso Senhor também não se encolerizou nem com os apóstolos lentos para compreender os seus ensinamentos nem com outros pecadores (Maria Madalena, Zaqueu): neste caso, Ele sabia que o melhor remédio para conduzi-los a Deus era a paciência e a doçura e não ira.
Como diz, então, o Salmo: “Irai-vos, mas não pequeis”. Irai-vos por uma causa justa, irai-vos dentro dos justos limites. Irai-vos sem deixar se levar pela ira. Irai-vos mantendo sempre o controle da razão iluminada pela fé e pela caridade. Irai-vos amando o próximo, afastando o ódio pelos outros. Na dúvida, vale mais inclinar-se à doçura.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
[Nota do Editor: os destaques são nossos.]

Grandeza da divina misericórdia.

Superexaltat autem misericordia iudicium – “A misericórdia se eleva sobre o juízo” (Iac. 2, 13).

Sumário. Toda a terra está cheia da misericórdia de Deus, que nos ama tanto e tão grande desejo tem de nos dispensar suas graças, que nós não o temos igual de as receber. Basta dizer que foi a misericórdia que levou o Senhor a enviar à terra o seu próprio Filho mesmo para se fazer homem, levar uma vida de trabalhos e fadigas e afinal morrer sobre uma cruz por nosso amor. Mas, ai daquele que deixa passar o tempo da divina misericórdia! De repente lhe virá o da justiça, e da justiça tanto mais inexorável, quanto maior tiver sido a misericórdia.

I. É tão grande o desejo de Deus de nos dispensar suas graças, que, no dizer de Santo Agostinho, Ele mais deseja no-las comunicar do que nós as desejamos receber. A razão é que, como explicam os filósofos, a bondade é por natureza levada a dilatar-se em benefício dos outros. Por isso, Deus, que é a bondade infinita, tem um desejo infinito de se comunicar a nós suas criaturas e fazer-nos participantes de seus bens.

Dali nasce a grande misericórdia do Senhor para com as criaturas. Davi diz que a terra está cheia da divina misericórdia. Não está cheia da divina justiça, porque Deus não exerce sua justiça para castigar os pecadores, senão quando se vê obrigado ou quase constrangido a exercê-la. Ao contrário, é generoso e liberal no uso da sua misericórdia para com todos e em todo tempo, pelo que São Tiago escreve: Superexaltat autem misericordia iudicium – “A misericórdia se eleva sobre o juízo”. Muitas vezes a misericórdia arranca das mãos da justiça os açoites aparelhados para os pecadores e obtém para eles o perdão.

Eis porque o profeta no salmo 58 dá a Deus o nome de misericórdia (1), e no 24 suplica queira perdoa-lhe pelo seu nome, por ser Ele a própria misericórdia (2). No salmo 135, no qual exorta todos a louvarem a Deus por causa da sua providência e dos benefícios conferidos a seu povo, repete vinte e sete vezes estas palavras: In aeternum misericordia eius — “A sua misericórdia é para sempre”. – Em suma, foi a sua grande misericórdia que moveu Deus a enviar a terra seu próprio Filho, para se fazer homem e morrer sobre uma cruz, afim de nos livrar da morte eterna. Por isso Zacarias cantou: Per viscera misericordiae Dei nostri (3) –  “Pelas entranhas da misericórdia de nosso Deus” (Lc 1,78). Por “entranhas de misericórdia” entende-se uma misericórdia que procede do íntimo do Coração de Deus; porquanto preferiu ver morrer seu Filho feito homem, a ver-nos perdidos.

II. Para compreendermos quão grande é a misericórdia de Deus para conosco e o desejo que Ele tem de nos fazer bem, basta a leitura destas poucas palavras suas no Evangelho: Petite et dabitur vobis (4) – “Pedi e vos será dado”. Que mais poderia dizer um amigo ao outro, para lhe provar a sua afeição? Pede-me o que quiseres e eu te darei. Ora, é isso o que Deus diz a cada um de nós; e além disso convida-nos a recorrermos a Ele para achar alívio em nossas misérias: Venite ad me omnes, qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos (5).

Vendo algum pecador obstinado no pecado, Deus espera pacientemente, para usar de misericórdia com ele. Entretanto emprega todos os meios para reconduzi-lo à penitência; ora pondo-lhe diante dos olhos o castigo que lhe está reservado, se não se converte (6); ora batendo à porta do coração, a fim de que se lhe abra (7); ora gritando atrás dele: Quare moriemini, domus Israel? (8) – “Porque morrereis, ó casa de Israel?” Como se a compaixão lhe fizesse dizer: Meu filho, porque te queres assim perder? Volta, lança-te em meus braços, sou ainda sempre teu Pai. – Não contente com isso, o Senhor vai ainda mais longe, e, como escreve o Apóstolo, chega a suplicar aos pecadores que se reconciliem com Deus: Obsecramus pro Christo, reconciliamini Deo (9).

Se porém, apesar de tamanha bondade e misericórdia, alguém se obstinar no pecado, que fará o Senhor? Protesta que sempre está disposto a usar de misericórdia com ele, enquanto não o vir comparecer perante o seu tribunal divino; e ali, depois de lhe ter lançado em rosto a má correspondência à graça, condena-lo-á ao inferno, com as palavras: Perditio tua, Israel: tantummodo in me auxilium tuum (10) – “A tua perdição, ó Israel, toda vem de ti; só em mim está o teu auxílio”.

Ó Eterno Pai, em nome de Jesus Cristo e por amor de Maria Santíssima, livrai-me de tamanha desgraça e fazei com que me aproveite bem da vossa misericórdia. Se viesse a me perder, que inferno seria para mim a lembrança da misericórdia que tivestes comigo e o pensar que me quis perder em vosso despeito? (*II 273.)

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1. Ps. 58, 18.
2. Ps. 24, 11.
3. Luc. 1, 78.
4. Matth. 7, 7.
5. Matth. 11, 28.
6. Ps. 59, 6.
7. Ap. 3, 20.
8. Ez. 18, 31.
9. 2 Cor. 5, 20.
10. Os. 13, 9.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 219-222.)

24 de junho de 2013

O grande segredo para viver bem.

In omnibus operibus tuis memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis – “Em todas as tuas obras lembra-te de teus novíssimos e nunca, jamais pecarás” (Ecclus. 7, 40).

Sumário. Meu irmão, se queres viver bem, procura pensar sempre na morte. Ao veres um túmulo, ao assistires às exéquias de um parente ou amigo, ao veres um cadáver sendo levado à sepultura, contempla nisso a tua própria imagem e dize: Dentro de breves anos, talvez meses ou dias, será tal a sorte de meu corpo e, estando então perdida a alma, estará perdida para sempre. Por terem pensado na morte, quantos deixaram a morte e subiram à mais alta perfeição.

I. Meu irmão, se queres viver bem, procura, durante o tempo de vida que te resta, viver pensando sempre na morte. Ao veres um túmulo, ao assistires às exéquias de um amigo ou parente, ao veres um cadáver sendo levado à sepultura, contempla nisso a tua própria imagem e o que um dia há de ser de ti. Reflete então e dize contigo: dentro em poucos anos, talvez meses ou dias tudo acabará para mim; meu corpo será apenas podridão e vermes. Estando então perdida a alma, tudo estará perdido para mim e perdido para sempre.

Assim é que fizeram os Santos, que agora reinam no céu; é por este meio que chegaram a desprezar todos os bens desta terra, que venceram as tentações mais fortes e subiram a alta santidade. Jó dizia à podridão: Tu és meu pai; e aos vermes: Vós sois minha mãe e minha irmã (1). São Carlos Borromeu conservava sempre sobre a sua mesa uma caveira, para te-la continuamente diante dos olhos. O cardeal Barônio fez gravar no seu anel estas palavras: Memento mori – “Lembra-te da morte”. O bem-aventurado Juvenal, bispo de Saluzzo, escrevera sobre uma caveira estas palavras: O que tu és, fui eu; o que eu sou, tu serás um dia. Outro santo solitário, perguntando na hora da morte porque estava tão alegre, respondeu: Sempre tive a lembrança da morte diante dos olhos; por isso, agora que ela vem, não vejo coisa nova.

Finalmente, para não falar de outros, São Camilo de Lelis, ao ver os túmulos, dizia consigo: Se estes defuntos voltassem ao mundo, quanto não fariam pela vida eterna! E eu, que ainda tenho tempo, que faço pela minha alma? – O Santo falava assim por humildade. Mas tu, meu irmão, tens talvez razão para temer que sejas aquela figueira sem fruto da qual disse o Senhor: Já há três anos que venho procurar fruto nesta figueira e não o acho (2). Tu que estás no mundo há mais de três anos, que fruto tens produzido? Considera, diz São Bernardo, que o Senhor não procura somente flores, mas quer também frutos; isto é, não somente bons desejos e propósitos, senão também obras santas.

II. Saibamos aproveitar o tempo que Deus nos dá na sua misericórdia e não esperemos para fazer o bem até que não haja mais tempo e se nos diga: Tempus non erit amplius... proficiscere: É tempo de partir deste mundo; vamos depressa; o que está feito, está feito. 

Considera-te, diz São Lourenço Justiniano, considera-te desde já como morto, já que é certo que deves morrer. Se já estivesses morto, quanto não quererias ter feito! Diz São Boaventura que o piloto para bem governar o navio, se coloca na popa: assim o homem, para levar uma vida boa, deve considerar-se sempre como se estivesse para morrer. Foi isto que fez São Bernardo dizer: Vide prima et erubesce, considera os pecados da tua mocidade e cora; - vide media et ingemisce, considera os pecados da idade viril e geme; - vide novissima et contremisce, considera as desordens da idade atual e treme e apressa-te em os remediar.

Eis-me aqui, meu Deus, sou aquela árvore que há tantos anos mereceu ouvir a sentença: Corta-a, para que ocupa ainda a terra? Sim, porque nos muitos anos que estou no mundo, ainda não dei outros frutos senão cardos e espinhos de pecados. Mas Vós, Senhor, não quereis que eu desespere. Vós dissestes que o que Vos procurar, Vos achará: Quaerite et invenietis. Procuro-Vos, meu Deus, e desejo vossa graça. Detesto de todo o coração todas as ofensas que Vos fiz e quisera morrer de dor. Quero empregar o resto da minha vida em Vos amar e honrar. Sim, amo-Vos, ó meu soberano Bem, e, com o vosso auxílio, quero viver e morrer fazendo atos de amor a Vós, que por meu amor morrestes sobre a cruz. Doce Coração de Maria, sêde minha salvação. (*II 9.)

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1. Iob 17, 14.
2. Luc. 13, 7.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 217-219.)

23 de junho de 2013

QUINTO DOMINGO DEPOIS DE PENTECOSTES.

O vício da ira e o modo de refreá-la.

Omnis qui irascitur fratri suo, reus erit iudicio – “Todo aquele que se irar contra seu irmão, será réu em seu juízo” (Matth, 5, 22).

Sumário. É com razão que Jesus Cristo disse que, quem se encoleriza, se torna réu do juízo; porquanto a ira faz o homem cair em mil excessos, sem que lhe deixe ver o mal que faz. Roguemos ao Senhor que nos livre desta paixão, sejamos mansos para com todos; e façamos com nossa língua a convenção que nos guardaremos de falar, quando se diga contra nós alguma coisa que nos possa irar. Se por desgraça nos tivéssemos irado, não se ponha o sol sobre nossa ira.

I. Oh, quantos males nascem do vício insensato da ira! Ela é semelhante ao fogo, porque assim como o fogo é veemente na sua força destrutiva e logo que pegou impede a vista pelo fumo que despede, assim a ira faz o homem cair em mil excessos, e não lhe deixa ver o que está fazendo e assim, conforme à palavra de Jesus Cristo no Evangelho de hoje, torna-o réu do juízo: Ominis qui irascitur fratri suo, reus erit indicio.

É tão prejudicial ao homem a ira, que ainda mesmo exteriormente o desfigura. Ainda que seja a pessoa mais bela e graciosa do mundo, quando a cólera a transporta, será, como diz São Boaventura e confirma a experiência, semelhante a um monstro, a uma fera que atemoriza. Portanto, se a ira nos desfigura aos olhos dos homens quanto mais nos desfigurará aos olhos de Deus.

Ira viri; escreve São Thiago, institiam Dei non operatur (1), quer dizer que as obras de um homem iracundo não podem harmonizar-se com a justiça divina, nem, por conseguinte, estar isentas de pecado, talvez mesmo grave. Sim, porque a ira, no dizer de São Jerônimo, faz o homem perder a razão e obrar cegamente como um louco ou uma fera. Fá-lo cair em pecados de murmurações, de injustiças, de vinganças, de blasfêmias, de escândalos e de mil outras iniqüidades. Numa palavra, concluí o mesmo Santo, é pela ira que entram na alma quase todos os vícios: Omnium vitiorum ianua est iracundia.

Ai, porém, dos iracundos! Ao mesmo tempo que os desgraçados se inflamam em cólera contra o próximo, Deus não somente se afasta deles pela subtração das graças, mas arma também sua mão com o açoite do castigo para puní-los neste mundo e no outro. Além disso, os iracundos, nos dias de sua vida, passam uma existência infeliz por estarem sempre agitados como numa tempestade.

II. Sendo tão numerosos e funestos os prejuízos que o vício da ira causa à alma, mister é que usemos de todo o cuidado em refreá-la, afeiçoando-nos à mansidão, que é a virtude predileta de Jesus Cristo. Dizia São Francisco de Sales: “O que se deixa levar por leves movimentos de ira, em breve se tornará furioso e insuportável”. - Devemos, portanto, conforme à exortação de São Paulo (2), vestir-nos de entranhas de misericórdia para com o próximo e suportar os seus defeitos, lembrando-nos de que ele deve também suportar os nossos, que são talvez mais graves.

Quando recebermos algum agravo, respondamos com brandura, ou, melhor ainda, abstenhamo-nos de responder, à imitação de São Francisco de Sales, que tinha feito com a sua língua a convenção que havia de ficar calada quando se dissesse alguma coisa que o pudesse encolerizar. - Quando, porém, por desgraça, a ira tivesse entrada em nosso coração, tenhamos cuidado de não a deixar descansar ali: Sol non occidat super iracundiam vestram (3) – “O sol não se ponha sobre a vossa ira”. E Jesus Cristo conclui o Evangelho de hoje com estas palavras: “Se, estando a apresentar a tua oferenda ante o altar, te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, larga a tua oferenda ao pé do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão e depois virás fazer a tua oblação”.

Mas, sobretudo, para que não nos deixemos dominar por alguma paixão, e em particular pela ira, roguemos muitas vezes ao Senhor com o Eclesiástico: Não me entregues a uma alma sem pejo e sem recato: Animo irreverenti et infrunito ne tradas me (4).

Ó Pai Eterno, pelo amor de Jesus Cristo, suplico-Vos, não permitais que eu seja escravo do vício da ira; infundi em meu coração o espírito de mansidão e de doçura, afim de que eu não ofenda a ninguém e perdoe aos que me ofendem. – “Ó Deus, que preparastes bens invisíveis para os que Vos amam, infundi em nossos corações o afeto do vosso amor, para que, amando-Vos em tudo e sobre tudo, alcancemos vossas promessas, que excedem todos os desejos” (5). Fazei-o pelos méritos de Jesus Cristo e pela intercessão de Maria Santíssima. (*III 495.)

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1. Iac. 1, 20.
2. Col. 3, 12.
3. Eph. 4, 26.
4. Ecclus. 23, 6.
5. Or. Dom. curr.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 214-216.)

QUINTO DOMINGO DEPOIS DE PENTECOSTES.

O erro protestante

O Evangelho começa com uma solene afirmação da necessidade da justiça e com a condenação dos fariseus:

Se a vossa justiça não exceder à dos escribas e fariseus, diz o Salvador, não entrareis no reino dos céus!

Tal justiça farisaica era toda de aparência.

Evitavam os fariseus cuidadosamente tudo o que podia desacreditá-los aos olhos dos homens, mas não davam importância ao interior que só Deus enxerga.

Assim fazem também as seitas religiosas falsas, fazem consistir a sua religião em certas práticas exteriores e não se preocupam com o interior.

Entre estas seitas apresenta-se em primeiro lugar o protestantismo.

Depois de termos estudado os quatro principais distintivos da Igreja verdadeira, e em conseqüência, da religião verdadeira, será útil verificar que nenhuma das seitas religiosas humanas possui tais característicos.

Falemos do erro mais espalhado, ou melhor, dos milhares de erros englobados sob o título de protestantismo, averiguando que tal protestantismo, fundado por Lutero, é uma aberração radical contra os princípios básicos da religião.

Vejamos:

1. O que é o protestantismo.
2. Quais são os seus erros básicos.

Basta conhecer estes dois aspectos do protestantismo para se compreender que nada possui dos requisitos de uma religião divina.

I. O que é o protestantismo

Não devia haver no cristianismo senão uma única religião, pois que Jesus Cristo ensinou um único conjunto de doutrinas e estabeleceu uma única autoridade, porém espíritos irrequietos, levados pelo orgulho ou arrastados pela sensualidade, achavam certas verdades difíceis de crer e penosas de praticar, por isso procuravam adaptá-las às suas paixões, negando-as ou desnaturando-as.

É a origem das seitas heréticas entre as quais a principal é o protestantismo.

A igreja protestante foi fundada por Martinho Lutero, monge apóstata, de um orgulho sem medida e de uma sensualidade sem barreira.

Foi em 1517 que o herege separou uma parte da Alemanha da Igreja Católica.

Pouco depois, em 1532, Calvino fez na França o que Lutero havia feito na Alemanha.

Os discípulos destes dois hereges, ambos de vida escandalosa e devassa, chamam-se protestantes, porque protestaram contra a autoridade da Igreja.

O nome de reformados lhes foi dado em alusão à pretensa missão que Lutero e Calvino se arrogaram, de reformarem a Igreja de Jesus Cristo.

Um protestante é, pois, um cristão que protesta contra as doutrinas e práticas da Igreja Católica.

É a sua definição essencial: É uma aversão comum à doutrina Católica, ou ainda: É a doutrina Católica hostilizada, ou ainda: É uma negação de tudo o que afirma a Igreja Católica.

Eis três definições exatas da essência do protestantismo.

Quando a Igreja Católica diz: Sim; o protestantismo retruca: não. Quando Ela diz: Não; o protestantismo brada: sim.

Esta mania de protestar fez dizer a um bispo protestante com uma sinceridade um tanto brutal, porém, clara: O protestantismo é a abjuração do papismo.

O celebre De Maistre, tem uma frase profunda neste mesmo sentido: O protestantismo, diz ele, conserva apenas o mesmo nome, mudando continuadamente a sua fé, porque, seu nome sendo puramente negativo e exprimindo apenas a renúncia ao Catolicismo, menos ele acredita, mais ele protesta e melhor protestante ele é. (Do Papa L. IV. C. 5)

Protestar é, pois, da essência do protestantismo.

“No dia em que eles deixassem de reformar e protestar, diz Sabatier, professor protestante da faculdade de Paris, no dia em que reconhecessem uma autoridade exterior, como regra e prova de fé, nesse dia deixariam de ser protestantes, nesse momento se suicidariam.”

O protestantismo, como religião não existe, o que existe são protestantes, ou homens que protestam contra a religião Católica e estes homens não têm outra ligação entre eles, senão o protesto comum.

São comunistas na doutrina, como os bolchevistas são comunistas nos bens exteriores.

II. O erro básico

Os erros protestantes são tantos quantas são as verdades que a Igreja Católica ensina.

O protestantismo só acredita em seu protesto contra a Igreja e se fossem sinceros deviam resumir a sua religião nesta frase: “afirmamos tudo o que a Igreja Católica nega; e negamos tudo o que Ela afirma.”

- A Igreja Católica crê que S. Pedro e seus sucessores são os representantes de Cristo na terra.

Os protestantes protestam: não querem chefe.

- A Igreja crê que Jesus Cristo está realmente presente na Eucaristia.

Os protestantes protestam: não admitem a Eucaristia.

- A Igreja crê na pureza imaculada da Mãe de Jesus honrando-a e invocando-a.

Os protestantes protestam: Maria Santíssima é uma mulher como as demais.

- A Igreja crê na confissão, no poder que o sacerdote recebe de Cristo de perdoar os pecados.

Os protestantes não admitem o perdão dos pecados, são uns santinhos.

- A Igreja crê no céu para os justos, no inferno para os maus e no purgatório para aqueles que têm de expiar ainda umas faltas.

Os protestantes protestam: o céu é para eles só; o inferno para os Romanos e o purgatório não existe.

- A Igreja crê na intercessão dos santos, no culto dos finados, na união entre os vivos e os mortos.

Os protestantes protestam: não há santos; os mortos devem ficar esquecidos e nada há de comum entre os vivos e os mortos.

- A Igreja crê nos sete sacramentos, no poder da oração, no valor das boas obras, nas indulgências concebidas para o bem das almas.

Os protestantes protestam: não há sacramentos, a oração não tem valor, só valem os cânticos; o homem não deve fazer boas obras e as indulgências são uma invenção do demônio.

- A Igreja crê na Bíblia como um livro divino, exigindo uma interpretação autêntica, feita por uma autoridade legítima.

Os protestantes protestam, considerando a Bíblia toda humana, a qual interpretam humanamente e que se adapta ao sabor de cada um.

- A Igreja crê na tradição, ou palavra pregada por Nosso Senhor e os Apóstolos e não escrita.

O protestantismo só aceita a palavra escrita que torce a seu talante e faz dizer o que ele quer.

III. Conclusão

Tal é o protestantismo: é uma continua oposição à Igreja; um parasita do Catolicismo; só vive pela negação e da negação.

A Igreja Católica tem um ensino positivo: o protestantismo é a sua negação.

A Igreja Católica é o sol luminoso e resplandecente do dia; o protestantismo constitui as trevas da noite.

A Igreja Católica é uma instituição divina, harmoniosa, hierárquica; o protestantismo é a desordem, a revolta, a balbúrdia.

A Igreja Católica é a árvore frondosa, em cujos ramos as aves do céu, que são os Santos, se aninham; o protestantismo é o parasita que chupa a seiva do tronco e dos galhos, para esterilizá-los.

A Igreja Católica é a ponte que liga a terra ao céu, onde os homens devem passar, para da terra subirem ao céu.

O protestantismo é o abismo horrendo, que passa por baixo da ponte, onde se precipitam aqueles que desprezam a ponte.

Para terminar, resumamos tudo em duas palavras.

A Igreja Católica é a obra de Deus, fundada por Deus, sustentada por Deus, inspirada por Deus, fazendo as obras de Deus.

O protestantismo é obra de Lutero, Calvino, Knox, Leyde e outros hereges, cada um mais triste que o outro; obra inspirada pelo orgulho e a libertinagem, sustentada pela teimosia e o interesse, fazendo obras de revolta e destruição. Vós os conhecereis pelos seus frutos, profetizou o divino Mestres (Math. VII. 20).

Para retomar o versículo do Evangelho, por onde começamos, pode-se dizer que o protestantismo é a justiça dos fariseus e estes não entrarão no reino dos Céus.

EXEMPLOS

1. Lutero e Catarina

Uma tarde Lutero passeava no seu jardim com a sua amásia Catarina de Bora.

As estrelas brilhavam com extraordinário fulgor: o céu parecia em festa.

- Vês como brilham estas estrelas, disse Catarina, apontando para o firmamento, como é belo lá em cima!

Lutero, levantado os olhos, exclamou com um riso zombeteiro:

- Oh! Deslumbrante iluminação!... mas... infelizmente não é para nós!

- E por que? Replicou Catarina, seríamos, por acaso, deserdados do reino do céu?

Lutero suspirou tristemente, impressionado por esta pergunta, e respondeu:

- Talvez, em castigo de termos abandonado o nosso estado.

- Seria bom, então, voltar para ele? Perguntou Catarina.

- É muito tarde, o carro está por demais atolado, respondeu o herege, mudando de conversa.

Que confissão dolorosa, porém, clara!

2. O medo de Lutero

Conta-se na vida de Lutero o seguinte:

Uma noite estava sentado ao lado da sua amásia Catarina, esquentando as mãos ao fogão da sala. Parecia taciturno, contrariado.

De repente, pegando pelo pulso o braço da companheira, introduziu-lhe a mão violentamente no meio das chamas.

Catarina soltou um grito...

- Que tens, mulher? Disse Lutero, sombrio, que tens?! Temos que nos acostumar ao fogo, pois é o que nos espera no outro mundo!

Vê-se neste fato, que o fundador do protestantismo não acreditava em sua reforma; nem podia acreditar, pois ele sabia que tudo era o fruto da revolta.

Naqueles momentos de lucidez, não podia impor silêncio à sua consciência e, mau grado seu, revoltada contra si mesma, ela proclamava a única verdade.

3. Confissão de Melanchton

Melanchton era companheiro inseparável de Lutero. A seu próprio convite, sua mãe se fizera protestante, porém, sem convicção.

Caiu, doente e sentiu a morte aproximar-se. Chamou o filho, que a amava sinceramente. Juntando as mãos, a velhinha perguntou suplicante a Melanchton: “Meu filho, como sabes eu abjurei o Catolicismo para lhe agradar, mas sinto-me perturbada; seja sincero, agora que estou para morrer, e diga-me, se é melhor morrer como protestante ou voltar atrás e morrer como católica!”

O apóstata não hesitou.

- Minha mãe, disse ele, inclinando a cabeça, não posso enganá-la: O protestantismo é talvez melhor para viver, mas o catolicismo é melhor para morrer.

E Melanchton mandou chamar um Padre católico para dar os últimos Sacramentos à sua mãe moribunda. (1)

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1) Cf. o nosso livro: “O diabo, Lutero e o protestantismo”

(MARIA, P. Júlio. Comentário Apologético do Evangelho Dominical. O Lutador, 1940, p. 260 – 268)

22 de junho de 2013

Da Saudação Angélica.

Ave, gratia plena, Dominus tecum – “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Luc. 1, 28).

Sumário. Entre todas as orações que a Igreja dirige à Santíssima Virgem, a Saudação Angélica, ou a Ave-Maria, é a mais excelente em si mesma, a mais agradável ao coração da divina Mãe e a mais útil para nós. A experiência demonstra que o que saúda a Maria com esta oração é logo retribuído por ela com algum favor especial. Recitemo-la, pois, freqüente e devotamente durante o dia, mormente no princípio e no fim de cada ação. Felizes as ações que forem compreendidas entre duas Ave-Marias.

I. Considera que entre todas as orações que a Igreja dirige à Santíssima Virgem, a mais excelente, a mais aceita e a mais útil é a Ave-Maria.

Ela é a mais excelente considerada em si mesma; porque foi composta, por assim dizer, pela Santíssima Trindade e pronunciada a primeira vez pelo Arcanjo São Gabriel e depois por Santa Isabel, então cheia do Espírito Santo. Pelo que o Bem-aventurado Alano afirma que a Saudação Angélica, pela sua excelência, alegra todo o céu, enche a terra de prodígios, faz tremer e põe em fuga o demônio.

Em segundo lugar, ela é a mais aceita ao coração da Virgem, pois, quando dizemos Ave-Maria, parece que se lhe renova o prazer que sentiu quando lhe foi anunciado que havia sido eleita para Mãe de Deus. Mais, pela Ave-Maria mostramos que tomamos parte em sua felicidade, lembrando-lhe as suas grandezas. Disse a mesma divina Mãe a Santa Mechtildes, que nada lhe podia ser mais honroso e mais agradável do que a oferta freqüente da saudação do Anjo.

Finalmente, a Ave-Maria é, depois da Oração Dominical, a mais útil para nós, porque, quem saúda Maria, será também por ela saudada. São Bernardo ouviu uma vez distintamente saudar-se por uma imagem da Virgem, que lhe disse: Ave, Bernarde; e a saudação de Maria, diz São Boaventura, consistirá numa graça especial.

“Com efeito”, pergunta Ricardo, “como poderá a divina Mãe negar a graça a quem a invoca com uma oração tão sublime?”

Em suma, Maria mesma prometeu a Santa Gertrudes tantos auxílios para a hora da morte, quantas Ave-Marias ela tivesse rezado; e são inúmeros os fatos que o confirmam.

II. A prática do obséquio tão excelente, tão aceito e tão útil, da Ave-Maria, seja: em primeiro lugar, recitar cada dia, pela manhã e à noite, ao levantar e deitar-se na cama, três vezes a Ave-Maria, com o rosto em terra ou ao menos de joelhos, acrescentando a cada Ave esta ejaculatória: Pela tua pura e imaculada conceição, ó Maria, faze puro o meu corpo e casta a minha alma. Depois, pedir a benção a nossa boa Mãe, conforme sempre praticava Santo Estanislau; e em seguida, pôr-se debaixo do manto de Nossa Senhora, pedindo-lhe que nos guarde de cair em pecado, naquele dia, ou noite que se segue. Para este fim, convém ter perto da cama uma bela imagem da Virgem.

Segundo, dizer o Angelus Domini ou o Anjo do Senhor, com as costumadas três Ave-Marias, pela manhã, ao meio dia e à noite. Os Religiosos podem nesses três tempos renovar mentalmente os seus votos, como costumava fazer São Leonardo de Porto Maurício.

Em terceiro lugar, saudar a Mãe de Deus com uma Ave-Maria quando se ouve tocar o relógio, ou cada vez que se passa por diante de uma imagem da Virgem.

Finalmente, dizer sempre uma Ave-Maria, no princípio e no fim de cada ação, quer espiritual, como a oração, a confissão, a comunhão, a leitura espiritual e outras semelhantes; quer temporal, como estudar, dar conselho, trabalhar, ir para a mesa, para a cama, etc. Felizes as ações que ficarem compreendidas entre duas Ave-Marias. – Assim digamos também a mesma oração quando acordamos pela manhã, quando adormecemos, em qualquer tentação, perigo, ímpeto de ira e semelhantes. Amado leitor, pratica isso e verás a suma utilidade que para ti resultará d’aí.

“Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto de vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém.” (*I 273.)

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 212-214.)

21 de junho de 2013

A cruz de Jesus e as tribulações da vida presente.

Et baiulans sibi crucem, exivit in eum qui dicitur Calvariae locum – “Carregando sua cruz, foi ao lugar chamado Calvário” (Io. 19, 17).

Sumário. Lida que foi a sentença de morte, Jesus não espera que os algozes lhe impusessem a cruz: Ele mesmo a abraça, beija-a e põe-na sobre os ombros chagados e vai ao Calvário. Quis o Senhor ensinar-nos o modo como também devemos abraçar as cruzes que nos envia, para remédio dos pecados cometidos e para penhor da felicidade eterna. Persuadamo-nos de que, para sermos glorificados com Jesus Cristo, é mister que primeiro padeçamos com Ele, e que, exceção feita as crianças, ninguém entrou no céu senão pelo caminho das tribulações.

I. Consideremos como Pilatos, temendo perder a amizade de César e depois de tantas vezes ter declarado Jesus Cristo inocente, por fim o condena a morrer na cruz. Lida que foi a sentença, os algozes agarram violentamente o inocente Cordeiro, restituem-Lhe os vestidos próprios, e, tomando a cruz, feita de duas rudes peças de madeira, apresentam-na a Jesus. Jesus não espera que lh’a imponham; Ele mesmo a abraça, beija-a e põe-na sobre os ombros cobertos de chagas, dizendo: “Vem, ó querida Cruz, há trinta e três anos que te busco; em ti quero sacrificar a vida por minhas ovelhas.”

Os condenados saem do tribunal e põem-se a caminho em direção ao lugar do suplício e no meio deles vai também o Rei do céu com a cruz aos ombros. Carregando sua cruz, foi ao lugar chamado Calvário. Saí vós também do céu, ó Serafins, e vinde acompanhar vosso Senhor, que vai ao monte para ser crucificado! Ó espetáculo horrível! Um Deus que vai ser crucificado por amor dos homens!

Minha alma, contempla teu Salvador que vai morrer por ti. Vê como caminha inclinado, os joelhos trêmulos, todo dilacerado de feridas e gotejando sangue; vê-o com a coroa de espinhos na cabeça e o pesado lenho sobre os ombros! Ó Deus, ele caminha com tanto custo que a cada passo parece estar prestes a expirar. – Dize-lhe: Ó Cordeiro de Deus, aonde ides? – Eu vou, responde, a morrer por ti. Quando me vires já morto, lembra-te do amor que te dediquei; lembra-te dele e ama-me também.

Ah! Meu Redentor, como pude viver no passado, tão esquecido de vosso amor? Ó pecados meus, vós amargurastes o Coração do meu Senhor, esse Coração que tanto me amou. – Meu Jesus, arrependo-me do ultraje que Vos fiz; agradeço-Vos a paciência que para comigo tivestes, e Vos amo. Amo-Vos de toda a minha alma e só a Vós é que quero amar. Por piedade, lembrai-me sempre o amor que me tivestes, afim de que nunca mais me esqueça de vosso amor.

II. Jesus Cristo, caminhando para o Calvário com a sua cruz, convida-nos para irmos em seu seguimento e nos diz: Si quis vult post me venire, abneget semetipsum, et tollat crucem suam quotidie, et sequatur me (1) – “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me”. Compenetremo-nos bem do que diz Santo Agostinho, a saber: que “toda a vida do cristão deve ser uma cruz contínua”. – Esta cruz, como o indica a palavra quotidie, cada dia, são as tribulações quotidianas, que Deus nos manda como remédio e como motivo de esperança.

São remédio, porquanto, na frase de São João Crisóstomo,  “o pecado é uma úlcera da alma, e se a tribulação não tirar os humores infectos, a alma está perdida.” Infeliz do pecador que depois do pecado não sofre castigo! – São motivo de esperança, porque, no dizer de São Gregório,  “o ser atribulado na vida presente é próprio dos escolhidos, aos quais está reservada a beatitude eterna”. É incomparavelmente mais glorioso estar com Jesus pregado na cruz, do que ficar ao pé da mesma a contemplar as dores de Jesus. Pelo que São Jerônimo, escrevendo à virgem Eustochium, disse: “Investiga quanto quiseres e verás que todos os santos passaram por tribulações”, e estas tanto mais graves quanto é mais bela a sua coroa: Delicati mei ambulaverunt vias asperas (2) – “Os meus escolhidos trilharam caminhos ásperos”.

Numa palavra, assim conclui o Apóstolo: para sermos glorificados com Jesus Cristo, mister é que padeçamos com Ele e levemos após Ele nossa cruz: Si tamen compatimur, ut et conglorificemur (3). – Ó meu Senhor, Vós que sois inocente, ides adiante de mim com a vossa cruz: caminhai, já que não Vos quero mais deixar. Imponde-me a cruz que quiserdes; eu a abraço e com ela Vos quero seguir até à morte. Quero morrer unido convosco, que morrestes por meu amor. Vós me mandais que Vos ame; e eu não quero outra coisa senão amar-Vos. Meu Jesus, Vós sois e sereis sempre o meu único amor. Ajudai-me a ser-Vos fiel. – Maria, minha esperança, rogai a Jesus por mim. (*I 739.)

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1. Luc. 9, 23.
2. Bar. 4, 26.
3. Rom. 8, 17.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 209-212.)

20 de junho de 2013

Jesus no Santíssimo Sacramento, modelo de obediência.

Humiliavit semetipsum, factus oboediens usque ad mortem – “(Jesus) se humilhou, feito obediente até à morte” (Phil. 2, 8).

Sumário. São Paulo louva a obediência de Jesus Cristo, dizendo que obedeceu ao Pai Eterno até à morte. Mas no Santíssimo Sacramento vai mais longe, visto que quis fazer-se obediente até o fim do mundo e não somente ao Pai Eterno, senão a todos os sacerdotes da terra. Qualquer que seja o nosso estado, esforcemo-nos por imitar a obediência de Jesus, depositando em suas mãos a nossa vontade e pedindo-Lhe que disponha de nós conforme for do seu agrado. Animemo-nos à prática de tão bela virtude pela lembrança de que nunca uma pessoa obediente se condenou.

I. Para uma alma que se aplica à perfeição, não há coisa tão prejudicial como o reger-se pela própria vontade. Diz São Bernardo que o que se arvora em mestre de si mesmo, fazendo o que lhe dita o amor próprio, se faz discípulo de um doido. – Ao contrário, o Espírito Santo diz que o sacrifício da própria vontade em seguir a obediência, é o sacrifício mais agradável a Deus; pelo que é este o meio mais apropriado para nos elevar em breve tempo à mais alta perfeição: Melior est oboedientia quam victimae (1) – “Melhor é a obediência do que vítimas”.

Eis porque Jesus Cristo, que pelo Pai divino nos foi dado por mestre e modelo de todas as virtudes, tomou tanto a peito o ensinar-nos a virtude de obediência, protestando que veio de propósito para sacrificar a Deus a vontade própria: Descendi de coelo, non ut faciam voluntatem meam, sed voluntatem eius, qui misit me (2) – “Desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. Com efeito, como diz São Paulo, Jesus “se fez obediente até à morte, e até à morte de cruz”. – Não contente, porém, em nos ter dado em toda a sua vida tão belos exemplos, quer ainda continuar depois da morte a no-los dar no Santíssimo Sacramento, no qual quer obedecer não somente a seu Eterno Pai, mas também ao homem, e isto não mais até à morte, mas até o fim do mundo.

Ó prodígio! O Rei do céu desce do céu por obediência ao homem; e parece em seguida ficar sobre os altares só para obedecer aos homens. Ali fica sem movimento próprio: deixa-se ficar onde o colocam, seja que o exponham no ostensório, seja que o encerrem no cibório: deixa-se levar para onde querem leva-Lo, pelas ruas, pelas casas: deixa-se dar na comunhão a todos os que o querem, justos ou pecadores. Quando ele vivia na terra, como diz São Lucas (3), obedecia a Maria Santíssima e a São José; mas neste Sacramento obedece a tantas criaturas, quantos sacerdotes há no mundo: Ego autem non contradico (4) – “Quanto a mim, não resisto”.

II. Se tu, que lês esta meditação, vives em comunidade, para melhor imitares os exemplos de Jesus Cristo, presta obediência exata às tuas Regras e aos teus superiores. Lembra-te de que a tua predestinação está ligada à observância da Regra. – Se és secular, observa exatamente a lei de Deus, os mandamentos da Igreja e os deveres do teu estado. Escolhe, além disso, um confessor certo e consulta-o sempre, mesmo nos negócios temporais de mais importância. Assim fazendo, estarás certo de fazer a vontade de Deus; e qualquer que seja o resultado das tuas empresas, não terás de dar conta a Deus. Diz São Francisco de Sales: Nunca um obediente verdadeiro se perdeu.

Meu amabilíssimo Jesus: adoro-Vos no sacramento do altar; graças Vos dou pelos exemplos de virtude, que nele me dais, e de hoje em diante deposito nas vossas mãos todos os meus interesses. Aceitai-me, e disponde de mim, por meio dos superiores, como quiserdes. Não quero mais queixar-me das vossas santas disposições; sei que todas elas serão para meu bem, visto que todas provêm do vosso Coração amantíssimo. Basta que Vós as queirais, para eu também as aceitar no tempo e na eternidade. Fazei em mim e de mim tudo o que quiserdes; uno-me à vossa vontade toda santa, toda boa, toda bela, toda perfeita, toda amável. Ó vontade de Deus, como me sois cara! Quero sempre viver e morrer unido e estreitado convosco. O vosso agrado será o meu agrado; quero que os vossos desejos sejam os meus desejos.

Meu Deus, ajudai-me! Fazei que doravante eu viva somente para Vós; somente para querer o que Vós quereis, somente para amar a vossa bondade amabilíssima. Morra eu por vosso amor, já que morrestes por mim e Vos fizestes meu sustento. Detesto os dias em que, com grande desgosto vosso, fiz a minha vontade. Amo-vos, ó vontade de Deus, amo-vos tanto quanto amo à Deus, pois sois o próprio Deus. Amo-vos de todo o meu coração e meu dou todo a vós. – Ó grande Mãe de Deus, Maria, alcançai-me a santa perseverança. (*I 393.)

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1. 1 Reg. 15, 22.
2. Io. 6, 38.
3. Luc. 2, 51.
4. Is. 50, 5.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 206-209.)

19 de junho de 2013

Sermão 4º Domingo depois de Pentecostes - Padre Daniel Pinheiro - IBP


[Sermão] Ecologismo e ambientalismo?


Sermão para o Quarto Domingo depois de Pentecostes
02 de junho de 2013 – Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…
***
“Sabemos que todas as criaturas gemem e estão como que em dores de parto.”
Caros católicos, temos, na Missa de hoje, esse trecho da Epístola de São Paulo aos Romanos que nos fala dos gemidos e da ânsia das criaturas para se libertarem da sujeição da corrupção, e que poderíamos chamar de ecologia católica. Uma leitura apressada poderia nos fazer crer que São Paulo é um ecologista ou ambientalista de nossos tempos, preocupado com a natureza que sofre diante da perspectiva de esgotar-se, mal tratada pelo homem que se utiliza dela. Poderíamos pensar que o Apóstolo São Paulo é daqueles que, não contentes de estabelecer a oposição violenta da luta de classes entre ricos e pobres (marxismo ordinário), entre homem e mulher (feminismo), entre superiores e inferiores (entre pais e filhos, entre professores e alunos, etc.) estabelecem também uma oposição violenta entre o homem e o resto da criação, como faz o ecologismo ou ambientalismo de nossos dias.
Ora, é claro que não deve existir oposição entre ricos e pobres, mas cooperação, cada membro do corpo da sociedade exercendo a função que lhe cabe para o bem do corpo inteiro. Não deve existir oposição entre homem e mulher, mas complementaridade, cada um praticando bem o seu papel na família e na sociedade, conforme a especificidade dada por Deus a cada um dos sexos. Também é evidente que não deve haver oposição entre pais e filhos, superiores e inferiores. Os superiores devem governar para o bem dos inferiores, para o bem comum e os inferiores devem obedecer. Da mesma forma, não há oposição entre o homem e o resto da natureza. Para entendermos bem essa frase de São Paulo – “sabemos que todas as criaturas gemem como que em dores de parto” – para entendermos o que é esse sofrimento das criaturas de que fala São Paulo, precisamos compreender primeiramente o que é sofrer.
Se a felicidade consiste em possuir um verdadeiro bem que desejamos, a tristeza ou o sofrimento consiste justamente na privação desse bem desejado, ou no fato de que o bem possuído é atacado. Por exemplo, aquele que deseja a salvação das almas se alegra ao ver a conversão das almas, mas sofre ao ver que as almas pecam ou que elas são atacadas pelos mais diversos inimigos. São Paulo diz que as criaturas sofrem, gemem. Isso significa que elas estão sendo privadas do bem delas. Ora, o bem de cada coisa é alcançar a sua finalidade e também tudo o que pode levar a essa finalidade. Assim, o bem do homem é alcançar a vida eterna, pois foi para isso que fomos criados, e é bom para nós tudo o que pode nos ajudar a alcançar essa vida eterna. Como sabemos, Deus criou todas as coisas para que as perfeições divinas fossem manifestadas pelas criaturas. A finalidade das criaturas é dar glória a Deus, manifestando, por suas perfeições limitadas, a perfeição infinita de Deus. A finalidade das criaturas irracionais é manifestar a perfeição infinita divina e levar os homens a reconhecerem e louvarem a Deus e servir aos homens para que os homens sirvam melhor Deus. Como cantamos no Sanctus: os céus e a terra estão cheios de sua glória. O bem das criaturas irracionais é manifestar as perfeições divinas. O bem delas consiste mais precisamente em servir ao homem para que, por meio delas, o homem possa conhecer melhor as perfeições divinas e para que o homem as submeta, a fim de poder servir melhor a Deus. Por exemplo, podemos dizer que a uva alcança de modo sublime a sua finalidade e o seu bem quando ela é utilizada para a fabricação do vinho que servirá para a Missa. Podemos dizer que a madeira ou a pedra alcançam seu bem perfeitamente, quando nelas se realiza o santo sacrifício do altar. Podemos dizer que a água alcança a sua finalidade ao matar a sede do homem, ou como meio para assegurar a limpeza, etc… Portanto, o bem das criaturas consiste em servir ao homem para que o homem possa servir melhor a Deus. Uma árvore sozinha no meio do mato daria pouca glória a Deus. Uma árvore que se torna conhecida do homem e que pela sua beleza leva o homem até Deus, dá maior glória a Deus. Uma árvore que dá ao homem o alimento para que ele tenha forças para praticar o bem dá grande glória a Deus. Uma árvore que fornece a madeira para o altar dá uma glória sublime a Deus. Deus disse ao criar o homem: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra.” (Gênesis I, 26). Reinar é governar e ordenar as criaturas irracionais em vista do nosso bem, que são nossas necessidades e, sobretudo, a nossa salvação.
Tal governo e ordem existiam perfeitamente quando Deus criou o homem. Quando Deus criou o homem, ele criou o homem no que se chama estado de justiça original. No estado de justiça original, o homem foi criado em estado de graça. Ao estado de graça estavam vinculados outros quatro dons gratuitos, que também superam as exigências da nossa natureza: 1) o dom da imortalidade (o homem não podia morrer), 2) o dom da impassibilidade (o homem não podia sofrer, nem no corpo, nem na alma), o 3) dom da ciência infusa (Deus deu a Adão toda a ciência necessária para que ele pudesse governar bem os filhos e a natureza, sem precisar aprender pela experiência, ao contrário de nós, que aprendemos aos poucos e somos, no início de nossa existência, como uma tábua rasa). Falamos de três dons. O quarto dom era o dom da integridade. Pelo dom da integridade, tudo estava perfeitamente ordenado no homem, o inferior ao superior. Dessa forma, a inteligência e a vontade estavam perfeitamente submetidas a Deus. As paixões, os sentimentos, estavam perfeitamente submetidos à inteligência e à vontade. Assim, Adão e Eva não desejavam comer mais do que o suficiente, não precisavam de roupas, pois não tinham tentações contra a pureza, etc. Vale lembrar que o pecado original não podia ser um pecado de concupiscência, mas somente um pecado de orgulho, pois Adão e Eva, em virtude do dom de integridade não podiam cometer pecados desse gênero. O pecado original foi um pecado de orgulho, pelo desejo de ser como deuses, empregando outros meios do que os meios dados por Deus. A inteligência e a vontade estavam submetidas a Deus. As paixões e sentimentos à inteligência e à vontade. O corpo estava submetido à alma. Os seres irracionais também estavam perfeitamente submetidos ao homem, que só os utilizava bem, que reinava sobre eles, em conformidade com a lei natural e com a lei divina. Mesmo os animais selvagens e ferozes eram submissos ao homem, como animais domesticados. Portanto, nos estado de justiça original, toda a criação estava perfeitamente submetida ao homem, que, por sua vez, estava perfeitamente submetido a Deus. A criação cumpria a sua finalidade perfeitamente: servir ao homem para que o homem servisse a Deus. O homem só usava com virtude a criação, sempre tendo Deus por finalidade. Todavia, todos esses dons dados por Deus estavam vinculados e eram dependentes do dom mais importante, que era a graça santificante. Ao cometer o pecado original, Adão e Eva perderam para si e para seus descendentes (todos os homens) não só a graça, mas todos os outros quatro dons: perderam o dom da imortalidade, o dom da impassibilidade, o dom da ciência, o dom da integridade. Depois do pecado, o homem está sujeito à morte, à dor e aos sofrimentos. A inteligência e a vontade se inclinam respectivamente para o erro e para o mal, as paixões tendem a se revoltar contra a razão e a vontade, as criaturas só podem ser dominadas com esforço. Depois do pecado original, podemos, pela bondade divina, recuperar a graça, mas não temos os outros dons e não temos direito a eles, pois haviam sido dados gratuitamente por Deus. Depois do pecado original, perdido o dom de integridade, o homem começa a usar – muitas vezes – mal as criaturas, que foram colocadas sob o seu domínio. Em vez de usá-las para a glória de Deus, utiliza-as para ofendê-lo, para cometer pecados e facilitar os pecados.
Caros católicos, quando São Paulo diz que a criação geme e está sujeita à corrupção, é no sentido de que ela é desviada do fim para que foi criada, no sentido de que ela é desviada pelo homem do bem dela, que é justamente servir ao homem para que ele sirva a Deus. São Paulo não quer dizer em nenhum momento que a natureza é uma entidade dotada de personalidade, ou que a natureza se confunde com a divindade, ou que nós formamos junto com a natureza um todo divino e vital. Muito se diz atualmente que devemos buscar a harmonia com a natureza. Devemos estar plenamente de acordo com isso, pois harmonia quer dizer ordem e a ordem natural significa sujeição do inferior ao superior. O solo é usado pelas plantas, para a nutrição delas. As plantas pelos animais. As plantas e os animais pelo homem. É, portanto, natural que o homem domine sobre as criaturas irracionais. E, por isso, o Filósofo – Aristóteles – diz que a caça de animais é justa e natural, pois pela caça o homem simplesmente reivindica o que lhe pertence naturalmente: o animal para a sua alimentação.  A harmonia com a natureza quer dizer, então, que o homem deve dominá-la e usá-la para o seu bem, em última instância usá-la para servir melhor a Deus. Portanto, o ecologismo ou o ambientalismo, que eleva a natureza ao grau de divindade ou que prefere preservar a natureza a preservar o homem – ao ponto de ser melhor abortar do que ter mais um ser humano na terra, que irá comer plantas e carne de animais – é uma grande desarmonia e falta de sintonia com a natureza. Respeitar a natureza, como se ela contivesse uma partícula da divindade ou como se fosse o próprio Deus, respeitá-la como se ela estivesse acima do homem, respeitá-la como se ela fosse a nossa mãe – a “mãe natureza” – ou virar vegetariano por respeito aos animais e à natureza é violar a ordem estabelecida por Deus e é desviar as criaturas irracionais da sua finalidade: servir o homem para que ele possa servir melhor a Deus. Os católicos podem deixar de comer carne, claro, mas é por penitência e não por respeito aos animais.
Sem dúvida, é preciso dominar e usar das criaturas racionais com prudência, mas não em virtude delas mesmas, e, sim, em razão de nosso bem e do bem de nossos descendentes. Assim, por exemplo, pode ser melhor preservar uma determinada área florestal ou determinada espécie de animal, não por simples respeitou e devoção a eles, mas para que pela contemplação dessas coisas possamos chegar até o autor delas, que é a Santíssima Trindade. Em todo, caso, não devemos nos preocupar demasiadamente com isso: “buscai primeiro o reino de Deus e tudo o mais vos será acrescentado”. Quantas vezes falsos profetas avisaram da escassez de alimentos e de recursos, caso a população humana continuasse crescendo, e com isso justificaram a contracepção, a destruição da família? Jamais faltou alimento e jamais faltará, por mais que a população cresça. Se Deus alimenta até mesmo as aves do céu, quanto mais os homens que buscam viver segundo a sua lei? Além disso, Deus deu ao homem a inteligência, capaz de encontrar soluções impressionantes.
Portanto, caros católicos, a natureza geme, em sentido figurado, porque a utilizamos mal e não porque ela sofre como um ser vivo, ou porque ela é desrespeitada, ou porque ela tem os mesmos direitos que nós. Não, ela sofre porque é usada contra a finalidade para a qual foi criada, que é dar maior glória a Deus, sendo utilizada retamente pelo homem. Devemos, então, caros católicos, utilizar as criaturas irracionais para o nosso bem, para o bem do próximo e para a maior glória de Deus, para que Ele seja mais conhecido e melhor servido.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.