5/21 - S - O - S: UMA JANGADA, UM
CONVITE AO CÉU
Sonhei que todos os meninos do oratório
estavam brincando alegremente num campo muito extenso. Eis que, de repente, dos
confins daquela planície, as águas de uma inundação começaram a crescer para
nós, rodeando de todos os lados. O rio PÓ tinha transbordado de sua margens
rolavam torrentes que se avolumavam impetuosas. Apavorados, fugimos todos para
um grande moinho que se via ao longe, afastado das demais habitações.
Protegia-o uma muralha espessa como a de uma fortaleza; eu me detive no pátio
interno, no meio dos meus alunos consternados. Mas, como as águas começassem a
subir, fomos obrigados a refugiar-nos dentro de casa e a subir depois para o
andar superior. Olhando pelas janelas, via-se toda a extensão do desastre. Da
colina de Superga até aos Alpes, em vez de prados, campos cultivados, hortas,
bosques, casas, aldeias e cidades, nada mais se via do que a superfície de um
lago imenso. À medida que as águas subiam, íamos galgando o andar superior.
Perdida enfim toda esperança humana, comecei a animar meus jovens, dizendo-lhes
que se colocassem todos, com absoluta confiança, nas mãos de Deus e se
abandonassem nos braços de Nossa Senhora, nossa mãe querida.
Aparece a jangada
Mas a água já tinha chegado quase ao
nível do último andar. O pavor foi geral. Não víamos outro recurso senão
recolhermo-nos a uma enorme jangada em forma de navio que naquele instante
apareceu flutuando junto de nós. Com a respiração ofegante, cada um queria ser
o primeiro a refugiar-se naquela embarcação. Ninguém, porém ousava fazê-lo
porque não era possível aproximar-se a barca da casa: uma parede emergia um pouco mais acima do
nível das águas. Para passar havia apenas um tronco de árvore, comprido e
estreito. Arriscar-se era difícil e perigoso, porque aquele tronco tinha uma
extremidade apoiada na embarcação e movia-se, acompanhado de oscilações
provocadas pelas ondas.
Cobrando coragem, fui o primeiro a
passar. Depois, para facilitar a passagem dos meninos, e para que se sentissem
mais seguros, determinei que alguns clérigos e padres, do lado do moinho,
ajudassem os que partiam, e outros, na jangada, dessem a mão aos que chegavam.
Mas era curioso! Passado pouco tempo, clérigos e padres se sentiam-se tão
esgotados que ora um, ora outro, estavam a ponto de desfalecer; o mesmo
acontecia com os que substituíam. Muito admirado, quis eu mesmo fazer a
experiência: fiquei tão logo extenuado que não conseguia permanecer de pé.
Entretanto, muitos jovens, impacientes,
seja pelo temor de morte, seja pelo desejo de parecerem corajosos, tendo
encontrado uma tábua bastante comprida e um pouco mais larga que o tronco,
improvisaram uma segunda ponte e, sem esperar o auxílio dos clérigos e dos
padres, atiraram-se a ela. Não queriam ouvir os meus gritos aflitos.
"Parem, parem, vocês vão
cair!", gritava eu. Aconteceu o que eu temia, porque muitos, ao serem
empurrados ou por perderem o equilíbrio, antes de alcançar a embarcação, caíram
e foram tragados por aquelas águas turvas e pútridas. Desapareceram. Aquela
frágil ponte afundou também, arrastando consigo os que sobre ela estavam. Era
tão grande o número desses infelizes, que uma quarta parte dos nossos jovens
pereceram vítimas de seu capricho.
Até então, eu estivera segurando a
extremidade do tronco, enquanto os meninos passavam; foi quando percebi que a
inundação já ultrapassava aquela parede e pude conduzir a embarcação até o
moinho. Encontrava-se lá o padre Cagliero que, colocando um pé no peitoril da
janela e o outro na beirada da barca, foi dando a mão aos meninos que estavam
naquele quarto e fazendo-os passar par o lugar seguro, na jangada.
Quando já se achavam todos na
embarcação, mas incertos ainda de escapar àquele perigo, assumi o comando e
disse aos jovens:
"Nossa Senhora é a Estrela do mar.
Não abandona quem nela confia: vamos nos colocar sob o seu manto; Ela nos há de
livrar dos perigos e nos conduzirá a um porto seguro."
Navegando
Abandonamos então a nau ao sabor das
ondas e, flutuando mansamente, ela se afastou daquele lugar. Mas o ímpeto do
vento impelia-a com tal velocidade, que
nos abraçamos uns aos outros, formando um só corpo, para não cair. Tendo
percorrido uma grande distância em tempo reduzíssimo, a barca pôs-se a girar em
torno de si mesma, com extraordinária rapidez, de tal forma de tal forma que
pensamos que fosse afundar. Um vento fortíssimo, porém, arrancou-a daquele
redemoinho. Voltou a vogar normalmente e quando, ocasionalmente, se repetia o
redemoinho, o vento salvador a impelia, até que foi parar perto de uma
ribanceira enxuta, bonita, ampla, que parecia brotar como uma colina no meio do
mar.
Muitos jovens ficaram encantados; diziam que Deus colocara o homem
sobre a terra e não sobre as águas e, sem pedir licença a ninguém, deixaram a
barca e subiram pela rampa, convidando ainda os outros a segui-los. A alegria
durou pouco. Avolumaram-se as águas, por um rápido recrudescer da tempestade,
invadiram as fraldas daquela ribanceira, subiram rapidamente, atingindo aqueles
infelizes que soltavam gritos de desespero ao sentirem-se mergulhados até a
cintura. Em breve desapareciam, tragados pelas ondas. Então exclamei:
"É bem verdade que aquele que quer
seguir sua própria cabeça paga com a própria bolsa."
A nau, entretanto , como um joguete
abandonado à fúria da tempestade, a cada momento parecia ir ao fundo. Notei que
os meus jovens estavam pálidos e ofegantes. "Coragem! - gritei-lhes -
Nossa Senhora não nos há de abandonar." Então, todos juntos, rezamos com
fervor os atos de fé, de esperança, de caridade e de contrição; rezamos alguns
Pai-nossos e ave-marias e uma salve rainha; em seguida, de joelhos,
segurando-nos pelas mãos, cada um rezou outras orações em particular.
Entretanto, alguns insensatos, indiferentes ao perigo, como se nada o
ameaçasse, de pé, andando de um lado para outro, levavam a coisa em gozação,
rindo em atitude suplicante de seus companheiros. Mas eis que, de repente, a
embarcação pára gira sobre si mesma com incrível rapidez, ao mesmo tempo um
vento furioso atira nas ondas aqueles infelizes. Eram trinta. Como as águas
fossem profundas e lamacentas, mal mergulharam, desapareceram para sempre. Nós
entretanto, entoamos uma salve rainha e nunca como então invocamos a Estrela do
Mar.
Os náufragos são salvos
Sobreveio a calma. Mas a embarcação,
como se fora um peixe, continuava a deslizar, sem que pudéssemos saber aonde
nos levava. Um variado trabalho de salvamento continuava todavia. Fazia-se de
tudo para impedir que os jovens caíssem nas águas e para delas retirar ao que
tombavam. É que sempre haviam alguns que se inclinavam demasiado sobre o
parapeito baixo da jangada e caíam no lago. Havia também alguns descarados e
maldosos que, atraindo os companheiros, empurravam-nos para fazê-los cair na
água. Em vista disso, vários sacerdotes preparavam varas resistentes, linhas
grossa e anzóis, distribuindo este material entre si; já alguns estavam a
postos, com varas erguidas e os olhos fixos nas ondas, atentos aos gritos de
socorro. Apenas caía um jovem, as varas se abaixavam e o náufrago se agarrava à
linha, ou melhor, prendia o anzol na cinta ou nas roupas e era assim posto a
salvo. Quanto a mim, encontrava-me ao pé de um alto estandarte, fincado no
centro da nau; cercavam-me muitíssimos jovens, padres e clérigos, todos sob
minhas ordens. Enquanto permaneciam dóceis, obedecendo ao que eu dizia, tudo ia
bem. Mas eis que alguns começaram a achar incômoda aquela jangada, a recear a
viagem, demasiado longa, a lamentar-se dos transtornos e perigos daquela
travessia, a discutir sobre o lugar em que haveríamos de aportar, a pensar de
que modo poderíamos encontrar outro refúgio, a iludir-se com a esperança de que
não muito longe haveria terra onde encontrar um abrigo seguro; enfim, receavam
que viessem em breve a faltar os víveres, discutiam entre si, recusavam-se a
obedecer. Em vão procurava eu dissuadi-los, empregando as melhores razões.
Eis senão quando aparecem outras
embarcações; ao se aproximarem, notamos que tomavam outra direção. Ao vê-las,
aqueles jovens imprudentes deliberaram seguir os seus próprios caprichos,
afastando-se de mim e governando-se por si mesmos. Lançaram às águas algumas
tábuas que estavam na nossa jangada e, avistando outras bem compridas que
flutuavam a pouca distância, saltaram para elas, afastando-se em direção às
embarcações avistadas. Para mim a cena foi extremamente dolorosa; via aqueles
infelizes correrem para a própria ruína. Soprava o vento, o mar se encapelava:
alguns foram logo ao fundo, tragados pelas ondas furiosas; outros iam de
encontro a obstáculos que surgiam á flor das águas e submergiam; alguns
conseguiram subir às embarcações que, entretanto, não tardaram a serem tragadas
pelo abismo. A noite desceu tenebrosa; ouviram-se ao longe os gritos
desesperados daqueles que pereciam. Naufragaram todos. In mare mundi
submergentur omnes illis quos non suscipit navis ista (no mar do mundo,
naufragarão todos aqueles que não forem recolhidos por esta nau), isto é, a Nau
de Maria Santíssima.
O terrível estreito
O número dos meus queridos filhos tinha
diminuído muito; não obstante isto, continuando a confiar em Nossa Senhora,
depois de uma noite inteira passada nas trevas, a nave entrou por um estreito
muito apertado, de margens lamacentas onde, em meio a tufos de verduras,
viam-se pedras lascadas, paus, ramos quebrados, restos de pranchas e antenas,
ramos, escondendo animais repugnantes.
Foi ali que vimos, com horror e espanto,
os pobres companheiros, perdidos ou que tinham desertado da nossa companhia.
Depois de haverem naufragado, tinham sido arremessados pelas ondas àquela
praia.
Uma fonte salutar
Então apontei a todos uma fonte da qual
jorrava com abundância água fresca e ferruginosa; todo aquele que nela ia
banhar-se voltava curado e podia voltar para a barca. A maior parte daqueles
infelizes obedeceram ao meu convite; alguns, porém, recusaram-se. Eu então,
para cortar as delongas, voltei-me para os que se tinham restabelecido e instei
para que me seguissem. Obedeceram resolutamente, retirando-se os monstros.
Apenas pusemos os pés na jangada, um vento forte impediu-a para a outra
extremidade do estreito e vimo-nos novamente em meio a um oceano sem
horizontes.
Lastimando a triste sorte e o fim
lastimável dos nossos companheiros abandonados naquele horrendo lugar,
começamos a cantar: "Louvemos Maria, Rainha gloriosa." Fizemo-lo em
agradecimento à nossa querida Mãe do Céu, por nos Ter então protegido; no mesmo
instante, a uma ordem dela, cessou a fúria do vento e a nau começou a deslizar
sobre as águas plácidas, com incrível facilidade. Dir-se-ia que, para mover-se,
bastava o ligeiro impulso que lhe davam os jovens, brincando de remar com as
mãos.
Mas eis que aparece no céu um arco-íris
mais belo e de forma mais variada do que a aurora boreal. Passamos sobre ele e
podemos ler a palavra MEDOUM, escrita com grande letra, e cujo significado não
chegamos a compreender. Pareceu-me, entretanto, que cada letra fosse a inicial
das seguintes palavras: Mater Et Domina Omnis Universi Maria ( Mãe e Senhora de
todo o universo é Maria).
Depois de um longo trecho de viagem, eis
que no horizonte distante avistamos uma nesga de terra. À medida que nos
aproximávamos, batia-nos o coração de incontida alegria. Era uma terra
encantadora, coberta de bosques com toda qualidade de árvores. Parecia-nos
ainda mais sedutora porque ia sendo iluminada pelo sol que nascia por detrás
das colinas. Era uma luz que brilhava suave e penetrante, deixando uma
impressão de repouso e de paz.
Afinal, depois de ter deslizado sobre a
praia, a jangada parou em lugar enxuto, defronte de um vinhedo lindíssimo. Era
enorme o desejo dos jovens de penetrar por aquele vinhedo. Alguns, mais afoitos
e curiosos, de um salto estavam na praia. Mas tinham apenas dado alguns passos
quando, recordando-se da sorte infeliz dos que se haviam encantado com a
ribanceira encontrada no meio do oceano, voltaram apressados para a barca.
Todos os olhos estavam voltados para mim
e podia-se ler na fronte de todos a pergunta:
"Dom Bosco, já é tempo de descer e
ficar aqui ?"
Refleti um pouco e depois disse-lhes:
"Vamos descer: é o momento certo: agora estamos seguros!"
Foi um grito unânime de alegria!
Esfregando as mãos de contente, entraram todos no vinhedo, todo ele plantado
com esmero. Dos ramos pendiam cachos de uvas semelhantes aos da terra da
promissão; os galhos das árvores ofereciam toda qualidade de fruta, cujo sabor
excedia tudo o que se possa imaginar. Bem no meio do vinhedo eleva-se um
castelo rodeado por lindíssimo jardim e protegido por uma alta muralha.
Dirigimos para lá nossos passos,
desejosos de visitá-lo, e tivemos franqueada a entrada. Estávamos cansados, com
fome, e eis que deparamos com uma grande sala, ornamentada de ouro fino, tendo
no centro uma mesa coberta das mais finas iguarias. Cada um pode servir-se
livremente. Acabávamos a refeição, quando entrou na sala um jovem de aparência
nobre, vestido ricamente. Era extraordinariamente belo. Com maneiras afetuosas,
tratou-nos familiarmente, chamando cada um pelo próprio nome. Percebendo que
estávamos maravilhados com sua beleza e com tudo mais que tínhamos visto, explicou:
"Isto ainda não é nada; venham ver."
O maravilhoso castelo
Seguimos-lhe os passo e, dos balcões,
fez-nos contemplar os jardins, dizendo que estavam a nossa disposição, para
nossas recreações. Conduziu-nos depois de sala em sala, cada qual mais bonita,
pela arquitetura, colunatas e ornatos de toda espécie. Abrindo depois uma porta
que dava para a capela, convidou-nos a entrar. Por fora, a capela parecia
pequena, mas, apenas transpusemo-lhe os umbrais, percebemos que era tão extensa
que mal se podia ver quem estivesse na outra extremidade. O pavimento, as
paredes, as abóbadas eram ornamentadas e enriquecidas com arte admirável. Por
toda parte mármores finos, ouro prata, pedras preciosas. Maravilhado, exclamei:
"Mas isto é uma beleza paradisíaca: proponho que fiquemos aqui para
sempre!"
No meio do templo, sobre rico pedestal,
estava uma magnífica imagem de Nossa Senhora Auxiliadora. Chamei então os
meninos, que estavam espalhados contemplando todo aquela beleza, e nos reunimos
todos (uma multidão) diante daquela imagem para agradecer a Nossa Senhora
tantos favores que nos concedera. De repente ela apareceu animar-se, sorriu. Um
frêmito de comoção perpassou pela multidão: "Nossa Senhora move os
olhos!", exclamaram alguns. Era verdade: Maria Santíssima, com inefável
bondade, volvia os olhos maternos para aqueles jovens. Pouco depois, outro
brado escapou do peito de todos: "Nossa Senhora move as mãos!".
Realmente, com gesto lento, Ela ia abrindo os braços, estendendo o manto, como
se quisesse recolher todos sob ele. Era tão grande a comoção, que lágrimas
corriam pelas nossas faces. "Nossa Senhora move os lábios!"
exclamaram alguns. Segui-se um silêncio profundo. A mãe de Deus, abrindo a
boca, com voz argentina, suavíssima, dizia-nos:
"Se vocês forem para mim filhos
devotos, eu serei para vocês Mãe Piedosa."
A estas palavras caímos todos de
joelhos, entoando o canto: "Louvemos Maria, Rainha gloriosa."
Esta harmonia era ao mesmo tempo tão
forte e suave que, vencido por ela, despertei. Terminou assim a visão.
Pontos para reflexão e discussão
"Coragem, Nossa Senhora não nos
abandonará." O que Nossa Senhora é para nós? Uma medalhinha que dá sorte?
Uma estatueta muito meiga que, afinal, não nos diz nada? Ou é "nossa
Mãe", que devemos invocar nos momentos de perigo, à qual devemos sempre
rezar, que é preciso sempre amar como Mãe de Jesus e nossa Mãe?