31 de outubro de 2013

Imitação de Cristo - Livro 4 Capítulo 6

CAPÍTULO 6

Pergunta concernente ao exercício antes da comunhão

Voz do discípulo

1. Senhor, quando considero vossa dignidade e minha baixeza, tremo de medo e me envergonho diante de mim mesmo. Porque, se me não chego a vós, fujo da vida, e se me apresento indignamente, incorro em vossa indignação. Que farei, pois, Deus meu, meu auxílio e conselheiro em meu apuros?
2. Ensinai-me vós o caminho direto, mostrai-me algum breve exercício. Porque me é útil saber de que modo devo, com devoção e respeito, preparar o meu coração para receber com fruto vosso Sacramento ou celebrar tão grande e divino sacrifício.

Pensamentos escolhidos do Cura d'Ars.

XXII -  Grandeza do sacerdote : respeito que lhe é devido.

Que coisa é o sacerdote? Um homem que ocupa o lugar de Deus, um homem que esta revestido de todos os poderes de Deus. "Ide, diz Nosso Senhor ao sacerdote. Como meu Pai me enviou, eu vos envio... Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, instruí todas as nações... Quem vos escuta a mim escuta; quem vos despreza a mim despreza".
Quando o sacerdote perdoa os pecados, não diz: "Deus vos perdoe". Diz: "Eu vos absolvo".
São Bernardo assegura-nos que tudo nos vem por Maria; pode-se dizer também que tudo nos vem pelo sacerdote: sim, todas as venturas, todas as graças, todos os dons celestes.
Se nós não tivéssemos o sacramento da ordem, não teríamos Nosso Senhor. Quem foi que o pôs lá naquele tabernáculo? Foi o sacerdote. Quem foi que recebeu a sua alma à entrada da vida? O sacerdote. Quem é que a alimenta para lhe dar a força de fazer a sua peregrinação? O sacerdote. Quem a preparará para comparecer perante Deus, levando essa alma pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se essa alma vier a morrer, quem a ressuscitará? quem lhe restituíra a calma e a paz? Ainda o sacerdote. Não vos podeis recordar um só benefício de Deus, sem encontrardes, ao lado dessa recordação, a imagem do sacerdote.
Ide confessar-vos à Santíssima Virgem ou a um anjo: eles porventura vos absolverão? Não. Dar-vos-ão o corpo e o sangue de Nosso Senhor? Não. A Santíssima Virgem não pode fazer descer seu divino Filho à hóstia. Tivésseis duzentos anjos lá, que eles não vos poderiam absolver. Um sacerdote, por mais simples que seja, pode-o; pode dizer-vos: "Ide em paz; eu vos perdoo".
Oh ! como o sacerdote é alguma coisa de grande.
Os outros benefícios de Deus de nada nos serviriam se não fosse o sacerdote. De que vos serviria uma casa cheia de ouro, se não tivésseis  ninguém para vos abrir a porta? Sem o sacerdote, a morte e a paixão de nosso Senhor de nada serviriam. 
Depois de Deus, o sacerdote é tudo !... Deixai uma paróquia vinte anos sem padre, acabarão ali por adorar os animais.
Quando se quer destruir a religião, começa-se por atacar o padre, porque onde não há mais padre, não há mais sacrifício, não há mais religião.


Amor de Jesus na instituição do Santíssimo Sacramento, antes de ir morrer.

Dominus Iesus, in qua nocte tradebatur, accepit panem ... et dixit: Hoc est corpus meum — “O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão... e disse: Isto é o meu corpo” (I Cor. 11, 23).

Sumário. Porque os testemunhos de amor, dados pelos amigos no momento de morrer, se gravam mais fundo na memória e se conservam mais preciosamente, o Senhor quis instituir a santíssima Eucaristia na véspera de sua morte. Ó prodígio de amor! Os homens preparam para Jesus açoites, espinhos e uma cruz, e ele escolhe exatamente esse tempo para nos dar a prova mais preciosa de seu amor. Este amor de Jesus convida-nos a que lhe correspondamos pelo nosso afeto e façamos alguma coisa por seu amor.

I. O Santíssimo Sacramento é um dom feito unicamente por amor. Segundo os decretos divinos, foi necessário para nossa salvação que o Redentor morresse e que, pelo sacrifício de sua vida, satisfizesse à divina justiça pelos nossos pecados. Mas que necessidade havia que Jesus Cristo se nos desse em sustento, depois de sua morte? Assim o quis o seu amor. Se Ele instituiu a Eucaristia, diz São Lourenço Justiniani, foi unicamente para nos fazer compreender o imenso amor que nos tem.

É o que escreve também São João: Sciens Iesus quia venit hora eius (1) — Sabendo Jesus que era chegado o tempo de deixar a terra, quis deixar-nos a maior prova de seu amor, isto é, o dom do Santíssimo Sacramento. Tal é o precisamente o sentido destas palavras: In finem dilexit eos – “Amou-os até o fim”, isto é, segundo a explicação de Teofilato e São João Crisóstomo, extremo amore, summe dilexit eos — “amou-os com amor extremo”. — E observemos o que nota o Apóstolo: o tempo em que Jesus nos quis fazer este donativo, foi o de sua morte: na noite em que foi entregue. Enquanto os homens preparavam açoites, espinhos e uma cruz para o supliciarem, é que o bom Salvador nos quis dar este último penhor de sua ternura.

Mas porque instituiu este sacramento no momento de sua morte, e não antes? Diz São Bernardino que Jesus assim fez, porque os testemunhos de afeto dados pelos amigos no momento da morte, se imprimem mais profundamente na memória e mais preciosamente se conservam. Jesus Cristo, continua o mesmo Santo, já se nos tinha dado por muitos modos: por amigo, por mestre, por pai, por guia, por modelo, por vítima. Restava um último grau de amor, que era dar-se por alimento, a fim de se unir todo a nós, assim como o sustento se une ao que o toma, e é o que fez dando-se-nos no Santíssimo Sacramento.

II. Dizia o Padre Colombière: “Se alguma coisa pudesse abalar a minha fé no mistério da Eucaristia, não duvidaria do poder que Deus nele manifesta, mas sim do amor que Deus nos mostra no Santíssimo Sacramento. A pergunta: como é que o pão se torna o corpo de Jesus? Como é que Jesus está presente em diversos lugares? Respondo que Deus tudo pode. Mas se me perguntarem como é que Deus pode amar o homem a ponto de se lhe dar em alimento? Não sei responder senão que não o compreendo e que o amor de Jesus é incompreensível.” Ah, bem se vê, ó meu Senhor, que o amor não reflete, e faz o amante esquecer-se da própria dignidade, e, como diz São João Crisóstomo, quando o amor se quer patentear ao amado, não vai aonde convém, mas aonde o leva o seu ardor: Amor ratione caret.

O amor imenso de Jesus convida-nos a que lhe correspondamos com outro tanto amor. Ad nihil amat Deus, nisi ut ametur — Deus, diz São Bernardo, não ama senão para ser amado. Se, pois, o amor de Jesus para conosco o levou a sacrificar-se todo para nosso bem, justo é que nós também nos sacrifiquemos todos para sua glória e o amemos tanto quanto deseja.

Ó amor infinito de Jesus, digno de infinito amor! Quando, ó meu Jesus, Vos amarei assim como Vós me amastes? Vós não tendes mais o que fazer para serdes amado por mim; e eu tive ânimo para Vos abandonar, a Vós, ó Bem infinito, a fim de correr atrás de bens vis e miseráveis! Ó meu Deus, suplico-Vos que me ilumineis, descobri-me cada vez mais as grandezas de vossa bondade, a fim de que me inflame todo no vosso amor e me esforce por Vos agradar. Amo-Vos, † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas; e muitas vezes me quero unir a Vós no Santíssimo Sacramento para me desprender de tudo e amar somente a Vós, minha vida, meu amor, meu tudo. Socorrei-me, Redentor meu, pelos merecimentos de vossa paixão. — Também vós, ó Mãe de Jesus e minha Mãe, Maria, rogai a Jesus que me abrase todo no seu amor. (*II 160.)

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1. Io. 13, 1.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 235 - 238.)

30 de outubro de 2013

Imitação de Cristo - Livro 4 Capítulo 5

CAPÍTULO 5

Da dignidade do Sacramento e do estado sacerdotal

Voz do Amado

1. Ainda que tiveras a pureza dos anjos e a santidade de São João Batista, não serias digno de receber ou administrar este Sacramento. Porque não é devido a merecimento algum humano que o homem pode consagrar e administrar o Sacramento de Cristo e comer o pães dos anjos. Sublime mistério e grande dignidade dos sacerdotes, aos quais é dado o que aos anjos não foi concedido! Porque só os sacerdotes legitimamente ordenados na Igreja têm o poder de celebrar a Missa e consagrar o corpo de Cristo, porquanto é tão-somente o ministro de Deus que usa das palavras de Deus, por ordem e instituição de Deus; Deus, porém, é o autor principal e invisível agente, a cujo aceno tudo obedece.
2. Neste augustíssimo Sacramento deves, pois, mais crer em Deus onipotente que em teus próprios sentidos ou em qualquer sinal visível. Por isso deves aproximar-te deste mistério com temor e reverência. Olha para ti e considera que ministério te foi confiado pela imposição das mãos do bispo. Foste ordenado sacerdote e consagrado para o serviço do altar; cuida agora em oferecer a Deus o sacrifício em tempo oportuno, com fé e devoção, e de levar uma vida irrepreensível. Não se te diminui o encargo, ao contrário, estás agora mais apertadamente ligado aos vínculos de disciplina e obrigado a maior perfeição e santidade. O sacerdote deve ser ornado de todas as virtudes de dar aos outros o exemplo de vida santa. Ele não deve trilhar os caminhos vulgares e comuns dos homens, mas a sua convivência seja com os anjos do céu ou com os varões perfeitos na terra.
3. O sacerdote, revestido das vestes sagradas, faz as vezes de Cristo, para rogar devota e humildemente a Deus por si e por todo o povo. Traz o sinal da cruz do Senhor no peito e nas costas, para que continuamente se recorde da paixão de Cristo. Diante de si, na casula, traz a cruz, para que considere, com cuidado, os passos de Cristo, e se empenhe de os seguir com fervor. Nas costas também está assinalado com a cruz, para que tolere com paciência, por amor de Deus, qualquer injúria que outros lhe fizeram. Diante de si traz a cruz para chorar os próprios pecados; atrás de si, para deplorar também os alheios, por compaixão, e para que saiba que é constituído medianeiro entre Deus e o pecador. Também não cesse de orar e oferecer o santo sacrifício, até que mereça alcançar graça e misericórdia. Quando o sacerdote celebra a Santa Missa, honra a Deus, alegra os anjos, edifica a Igreja, ajuda os vivos, proporciona descanso aos defuntos e faz-se participante de todos os bens.

Sermão Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei – Padre Daniel Pinheiro.

[Sermão] Cristo, Rei das Nações pelo reinado em nossas almas

Sermão para a Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei

                Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
                Ave Maria…

                “A turba ímpia grita: não queremos que Cristo reine. Nós, com alegria, dizemos que sois o Rei Supremo de todas as coisas” (Hino das Vésperas da Festa de Cristo Rei).

                Caros católicos, hoje é talvez a festa mais importante do ano litúrgico para os nossos tempos atuais: a Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei. Não digo que seja a festa litúrgica mais importante em si mesma, pois é claro que temos o Natal, a Páscoa, a Epifania e tantas outras festas tão tradicionais e importantíssimas. Digo que ela é a mais importante pelas circunstâncias em que vivemos, pelo momento da história em que vivemos. Momento de apostasia das nações. Não há, infelizmente, outra palavra, caros católicos. As nações abandonam completamente Deus, abandonam completamente NSJC, abandonam completamente a Igreja. Constatando o estado de coisas já em 1925, o Papa Pio XI, com grande sabedoria, instituiu a Festa de Cristo Rei no último domingo de outubro. O Santo Padre sabia que a melhor maneira de inculcar no povo e lembrar ao povo o reinado social de NSJC é por meio da liturgia. Uma liturgia que proclamasse claramente o reinado de NSJC sobre todas as coisas. Rei das almas e das consciências. Rei das inteligências e das vontades. Rei das famílias, da cidade, do povo, da nação, do mundo todo, de todas as coisas. O drama de nossa época é o abandono completo de Cristo e de sua Igreja por parte da sociedade. Daí a importância da festa de Cristo Rei ser celebrada em conformidade com a verdadeira intenção com que foi criada, ou seja, para que se afirme a realeza social de NSJC. Essa festa não diz respeito ao reinado de NS com a sua vinda gloriosa. Não. Essa festa diz que NS deve reinar desde já, em todos os aspectos da vida humana, do aspecto mais individual ao mais social. E por isso a celebramos agora e não no final do ano litúrgico, que faz referência à vinda gloriosa de Cristo, como se ele fosse reinar somente a partir desse momento. Não. Ele reina desde já. Do íntimo de nossa consciência aos atos públicos do governo, em todas as coisas Cristo deve reinar. Essa festa de Cristo Rei bem compreendida é o terror dos inimigos da Igreja, é o terror do mundo e do demônio. Ela se opõe frontalmente ao laicismo, esse erro perverso que afirma que o Estado não deve ter religião ou que o Estado deve dar iguais direitos a todas as religiões. Pio XI classificava o laicismo como peste da nossa época. O laicismo, fruto do protestantismo e da filosofia moderna, busca construir o reino do homem. Por trás da bandeira do laicismo, excluindo toda possiblidade do reino social de Cristo, se unem as forças dissolventes do liberalismo, da maçonaria, do socialismo, do comunismo, para citar alguns dos inimigos da Igreja (Mons. Antonio Piolanti, antigo Reitor da Pontifícia Universidade Lateranense, no Livro Dio Uomo, 2ª edição, 1995, p. 653).  Mas se essa festa é o terror dos inimigos da Igreja, Ela deve ser de um grande consolo para os católicos e celebrada com muita alegria.
                Nosso Senhor é, portanto, Rei. Ele é Rei porque é Deus e todas as coisas dependem dele para ser e existir e para se conservar no ser e para poder agir. Todavia, Ele é Rei também enquanto homem. NS é Rei enquanto homem em virtude da união íntima com o Verbo de Deus, ao ponto de haver em Cristo uma só Pessoa, a Pessoa Divina, embora haja nEle duas naturezas, a divina e a humana. Em virtude dessa união, chamada união hipostática, a humanidade de Cristo tem uma excelência e uma dignidade que superam toda e qualquer criatura e que faz dEle verdadeiramente a cabeça, o chefe de todo o gênero humano e de todas as coisas. E NS é Rei enquanto homem também por direito de aquisição. Ao morrer na Cruz, ao derramar o seu sangue divino por nós, Cristo adquiriu sobre nós um domínio soberano, tornou-se nosso Rei por direito. Como nos diz a Igreja no Hino Vexilla Regis, para o Tempo da Paixão: Regnavit a ligno Deus. Deus reinou do madeiro, da cruz. Deus Reinou do madeiro por amor, ao morrer para nos salvar. Portanto, toda criatura deve se submeter a Cristo como a um rei soberano porque Ele é Deus, porque Ele está acima de todos nós por sua excelência e porque nos redimiu na Cruz.
Entre as criaturas, estão as sociedades, que são consequência da natureza social do homem. O homem precisa da sociedade para assegurar o que é útil e necessário para a sua vida, para poder viver com perfeição. Portanto, ao criar o homem assim, Deus criou também a sociedade. As sociedades, por meio de seus representantes, são capazes de reconhecer a verdade e de praticar o bem. Por exemplo, o Estado, por meio de seus representantes competentes, é capaz de chegar à conclusão de que se deve fazer tal obra para o bem dos cidadãos. De modo semelhante, a sociedade pode e deve reconhecer que Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e Rei e ela deve reconhecer que para honrá-lo como tal é preciso se conformar àquilo que Ele Revelou, ou seja, é preciso estar unido à Igreja que Ele fundou e favorecer essa Igreja. Assim, as sociedades são obrigadas a cultuar NS publicamente conforme a verdadeira religião. Todas as sociedades são obrigadas a isso, desde a família até o Estado. Tudo deve se submeter a Nosso Senhor Jesus Cristo e a suas leis. Os governantes devem honrá-lo publicamente. Os magistrados e professores devem venerá-lo. As artes e as leis devem exprimir a realeza de Nosso Senhor (como nos diz o hino das Véperas da Festa de hoje. Hino Te Saeculorum Principem, das Vésperas de Cristo Rei).
Deve, portanto, haver união entre a Igreja e o Estado. Não se trata de uma confusão entre os dois, mas de união. Essa união não significa que a Igreja deva gerir as coisas puramente temporais do Estado ou ditar qual deve ser a forma de governo, por exemplo. Não. Essa união significa que as leis da Igreja e a doutrina católica, que dizem respeito à salvação das almas, devem ser respeitadas pelo Estado. Assim, por exemplo, na educação e no matrimônio o Estado deve aplicar as leis da Igreja. O Estado ao buscar o bem comum dos seus cidadãos, deve garantir não somente os bens temporais – materiais e culturais – aos cidadãos, mas deve proceder de forma que os cidadãos possam ter com facilidade e em abundância os bens espirituais que são necessários para que eles conduzam religiosamente a sua vida. Entre esses bens espirituais, o mais importante é o de poder conhecer, amar e servir a NSJC. E não basta ao Estado garantir o acesso dos cidadãos à religião católica, mas deve ele próprio prestar vassalagem a NS pelos atos de culto da religião católica, respeitando as leis de Deus e da Igreja. Resta óbvio que essa doutrina do Reinado Social de NSJC, da união entre Igreja e Estado, só pode aplicar-se plenamente em um Estado em que a maioria dos cidadãos é católica. Nesse caso, o poder civil deve procurar os meios e condições intelectuais, sociais e morais pelos quais os fiéis possam perseverar na fé. Isso inclui a regulação das manifestações públicas de outras religiões, que podem colocar em perigo a salvação dos cidadãos. Não se trata, como é evidente, de converter ninguém à força, nem de forçar a consciência, mas de favorecer a verdadeira religião. Por outro lado, o Estado pode ver-se obrigado, em alguns casos, a tolerar uma falsa religião, para evitar um mal maior ou para que se alcance um bem maior. Mas trata-se de tolerância, portanto, de se permitir um mal em vista de um bem. Não se trata de igualar a verdade e o erro, não se trata de colocar em pé de igualdade a religião fundada por NS e o erro. No Estado em que a maior parte dos cidadãos não professa a fé católica ou não conhece a Revelação, o poder civil não católico deve ao menos conformar-se aos preceitos da lei natural – se submetendo assim ao criador – e deve assegurar a liberdade para que a Igreja exerça com liberdade a sua missão.
O Estado, como criatura, deve, então, honrar devidamente a NSJC, isto é, deve honrá-lo como Ele quer ser honrado. Uma criatura que não venera e não cultua devidamente o seu criador está fadada a sofrer graves consequências. Para o homem individualmente considerado, essa consequência é a condenação eterna. Para a sociedade, a consequência de não se cultuar NSJC é o caos social, é o desaparecimento dos primeiros princípios necessários para vida em comum, é o desaparecimento dos primeiros princípios da vida moral, é o indiferentismo religioso dos cidadãos. O Estado que não cultua  NSJC devidamente está fadado ao fracasso na sua mais alta missão, que é a de ajudar seus cidadãos a praticarem a virtude. E, assim, os cidadãos são prejudicados no caminho da salvação. Um Estado que não cultua seu criador prepara a sua ruína mais completa.
Nós, então, diante disso, devemos fazer algo pela nossa pátria, cumprindo nosso dever da virtude de piedade, virtude de piedade que nos manda ajudar a nossa pátria e nos manda procurar o bem dela. Nós devemos fazer algo para que a nossa pátria reconheça e se submeta à realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo. É preciso fazer a nossa parte para que a sociedade compreenda que ela deve honrar NSJC e sua Igreja. Alguns acham que a solução está na volta da monarquia. Ora, é preciso dizer que uma monarquia por si só não resolve nada, pois uma monarquia também pode ser liberal, desligada de Deus e da Igreja. A Igreja não tem preferência por uma forma de governo particular, desde que na democracia, na aristocracia ou na monarquia se reconheça que o poder vem de Deus e não do povo, desde que se reconheça a realeza de NSJC e se submeta a suas leis. Claro que para uma dada nação pela sua mentalidade e pelas circunstâncias, uma forma de governo pode ser mais adaptada do que outra. Isso, porém, não é o essencial. O essencial é que o poder civil honre publicamente a NSJC, cultuando-o e observando as suas leis. Outros acham que a solução consiste no combate ao marxismo, aliando todas as forças contra ele. Aqui, também, o mero combate ao marxismo não basta se não se combate ao mesmo tempo os outros erros, em particular o liberalismo, que diz que o homem pode professar livremente sem problema a religião que mais lhe agrada, que afirma que a consciência é livre para decidir o que é bom ou mau, que diz que o Estado não deve ter religião. Não basta combater o marxismo sem propor a solução: o reinado social de NSJC. A única solução para ajudar o nosso país é ter como finalidade o Reino Social de NSJC, é buscar que a sociedade o reconheça e se submeta a ele. Para fazer isso, caros católicos, o primeiro e mais importante passo é que NS reine nas nossas vidas e nas nossas famílias, é buscar realmente a santidade, com determinação, desejando-a realmente. O reinado de Cristo deve começar pelas nossas almas, por todos os aspectos de nossas vidas. É preciso que Cristo reine nas nossas inteligências pela fé. É preciso que Ele reine na nossa vontade pela caridade. É preciso que Ele reine em todos os nossos afetos pela temperança, pela fortaleza. É preciso que Ele reine em todas as nossas atividades, na profissão, nas diversões, nosso modo de ser. É preciso que Ele reine na vida familiar, no matrimônio, no uso do matrimônio, na educação dos filhos. É preciso que Ele reine, caros católicos, em tudo. Não adianta reclamar das condições em que vivemos se não buscamos mudar isso pela santidade. É pela santidade, pela prática das virtudes e reconhecendo a realeza de Nosso Senhor em todos os aspectos de nossa vida que poderemos alcançar a realeza social de NS. É observando os mandamentos e evitando o pecado que contribuiremos para o reinado social de Cristo. Quando pecamos, recusamos obedecer a Nosso Senhor Jesus Cristo, e aumentamos o poder do príncipe do mundo, do demônio. Pelo pecado, favorecemos o reinado do príncipe desse mundo. Portanto, será pouco eficaz o combate pelo reinado social de Cristo, o combate para que a civilização volte a ser formada pela lei de Cristo, se com os nossos pecados favorecemos justamente o reino do príncipe desse mundo. Não adianta, ou muito pouco, ser um paladino da Tradição e do reinado social de Cristo, na internet ou algures, se Cristo não é realmente o Rei de nossas almas.  Portanto, caros católicos, façamos um profundo exame de consciência, para que Cristo possa reinar na nossa inteligência, na nossa vontade, na nossa consciência, em nossos afetos, em todas as nossas ações, em nossa família, em tudo. Primeiro, para podermos nos salvar. Mas também para que Ele reine na sociedade. Se Cristo reinar em nossa alma, o necessário combate público pelo seu reinado social será verdadeiramente eficaz. Convertamo-nos a Cristo Rei. Coloquemos tudo a seus pés e carreguemos o jugo leve e suave de Cristo Rei. A Missa Tradicional exprime claramente o reinado de Cristo. Tudo nela, absolutamente tudo, está voltado para Ele, diz respeito a Ele. Nela, é Cristo o centro, o Rei. Aprendamos com a liturgia. Oportet illum regnare (é preciso que Ele Reine), como diz São Paulo. E esse reinado de Cristo trará grandes benefícios para a sociedade. Ele trará a verdadeira ordem, e o verdadeiro progresso, que é o progresso nas virtudes. Viva Cristo Rei! Rei de nossas almas. Rei das Nações.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Obrigação que temos de socorrer as almas do purgatório.

Mortuo non prohibeas gratiam — “Não impeças que a liberalidade se estenda aos mortos” (Ecclus. 7, 37).

Sumário. A caridade cristã não só nos aconselha, mas até nos obriga a socorrermos as almas do purgatório; porquanto são nossos próximos e se acham em grandíssima necessidade. Tanto mais que entre elas podem penar também as almas de nossos pais, parentes e amigos; e, não podendo valer-se por si próprias, recomendam-se a nós por socorro. Que crueldade, pois, não nos apressarmos a socorrê-las, ainda que à custa de algum sacrifício!... Receemos ser tratados depois como nós agora tratamos os outros.

I. A caridade cristã não só nos dá o conselho, mas nos impõe a obrigação de rezarmos pelas almas do purgatório. Sim, porque, conforme ensina Santo Tomás, a caridade estende-se não só aos vivos, senão também a todos os que morreram na amizade de Deus; e, além disso, ela pede que socorramos especialmente aqueles próximos que mais precisem do nosso auxílio. Ora, quem dentre os nossos próximos está em tão grande necessidade de socorro, como essas santas prisioneiras? As infelizes ardem continuamente naquele fogo, que as atormenta muito mais do que qualquer fogo terrestre, e fá-las sofrer juntamente toda a espécie de suplícios cruciantes.

Mais. Em cada uma de suas faculdades padecem penas indizíveis. Aflige-as a vista pavorosa dos pecados, pelos quais amarguraram o seu Deus, a quem tanto amam, e atraíram sobre si mesmas as dores acerbas que estão sofrendo. Aflige-as a lembrança dos grandes benefícios recebidos de Deus, quando estavam na terra; e especialmente a lembrança daquelas misericórdias e graças especiais que lhes podiam adquirir mais merecimentos no paraíso, ao passo que só ganharam mais tormento no purgatório, porque não corresponderam às graças com a devida gratidão. Aflige-as finalmente e sobretudo o estarem longe de seu esposo, isto é, de Deus, sem sequer saberem quando terão a consolação de O irem ver.

O que, porém, mais nos deve excitar a aliviarmos essas santas almas é o pensamento de que entre elas penam talvez as almas de nossos pais, irmãos ou outros parentes e amigos e benfeitores; que não se podendo valer a si próprias, porque se acham em estado de satisfação pelas suas faltas, socorrem-se a nós por alívio e dizem-nos com Jó: Miseremini mei, miseremini mei, saltem vos amici mei (1) — “Compadecei-vos de mim, compadecei-vos de mim, ao menos vós que sois meus amigos”.

II. Examinemos o nosso procedimento para com as almas dos defuntos e particularmente para com as almas dos nossos parentes, amigos e benfeitores. Quero crer, meu irmão, que não és do número daqueles que, tendo adquirido uma herança, não se importam com o cumprimento das últimas vontades dos testadores, e por qualquer pretexto fútil se descuidam dos legados pios.

Mas atende bem que não sejas do número daqueles outros que, tendo pago a seus defuntos um pequeno tributo de lágrimas e satisfeito aquilo a que o obrigava a justiça mais rigorosa, depois se esquecem por completo daquelas almas santas e as tratam como se lhes fossem estranhas. Se for este o caso, ah, lembra-te que talvez em breve estejas também nessa prisão, ardendo nas chamas. Então o Senhor permitiria com justiça que teus supérstites te tratem da mesma maneira como tu trataste os teus antepassados: Eadem mensura, qua mensi fueritis, remetietur vobis (2) — “Com a mesma medida com que tiverdes medido, se vos há de medir a vós”.

“Ó meu Senhor Jesus Cristo, Rei da glória, livrai as almas de todos os fiéis defuntos das penas do purgatório. Livrai-as das goelas do demônio, a fim de que não sejam absorvidas pelo abismo e não venham a cair no inferno. Conduza-as o Arcanjo São Miguel àquela pátria bem-aventurada prometida a Abraão e a seus descendentes.”

“Ó Deus, que folgais em perdoar os pecadores e salvar os homens, suplicamos vossa clemência, pela intercessão da Bem-aventurada Maria sempre Virgem e de todos os Santos, concedei que os confrades de nossa congregação, parentes e benfeitores, que deixaram este mundo, cheguem à morada da eterna felicidade. — Dai, Senhor, o descanso eterno a essas almas benditas e a todas as que penam na prisão do purgatório; fazei brilhar para elas a luz perpétua e que elas possam em breve descansar na paz dos justos. Amém.”(3) (*II 467.)

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1. Iob. 19, 21.
2. Luc. 6, 38.
3. Orationes Eccl.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 233 - 235.)

29 de outubro de 2013

Imitação de Cristo - Livro 4 Capítulo 4

CAPÍTULO 4

Dos admiráveis frutos colhidos pelos que comungam devotamente

1. Senhor, meu Deus! Preveni vosso servo com as bênçãos de vossa doçura, para que mereça digna e devotamente chegar-me a vosso augusto Sacramento. Despertai meu coração para vós e tirai-me deste profundo entorpecimento. "Visitai-me com vossa graça salutar" (Sl 105,4), para que goze em espírito vossa doçura, que com abundância está oculta neste Sacramento, como em sua fonte. Iluminai também meus olhos para contemplar tão alto mistério, e fortalecei-me para crer nele com fé inabalável. Porque é obra vossa e não de poder humano, sagrada instituição vossa, não invenção dos homens. Ninguém, com efeito, se si mesmo é capaz de conceber e compreender este mistério, que transcende à própria inteligência dos anjos. Que, pois, poderei eu, pecador indigno, pó e cinza, investigar e compreender de tão alto e sagrado mistério?
2. Senhor, na simplicidade do meu coração, com firme e sincera fé, e obedecendo a vosso mandado, me aproximo de vós com esperança e reverência e creio verdadeiramente que estais presente aqui no Sacramento, Deus e homem. Pois quereis que vos receba e me uno convosco em caridade. Por isso imploro vossa clemência e vos suplico a graça particular de que todo me desfaleça em vós e me consuma em amor, sem mais cuidar de nenhuma outra consolação. Porque este altíssimo e diviníssimo Sacramento é a saúde da alma e do corpo, remédio de toda enfermidade espiritual; cura os vícios, reprime as paixões, vence ou enfraquece as tentações, comunica maior graça, corrobora a virtude nascente, confirma a fé, fortalece a esperança, inflama e dilata a caridade.
3. Muitos bens condedestes e concedeis ainda a miúdo aos vossos amigos, neste Sacramento, quando devotamente comungam, ó Deus meu, amparo da minha alma, reparador da humana fraqueza e dispensador de toda consolação interior. Porque lhes infundis abundantes consolações contra várias tribulações e os levantais do abismo do próprio abatimento à esperança da vossa proteção e os recreais e iluminais interiormente com a nova graça, de sorte que os mesmos que antes da comunhão se sentiam inquietos e sem afeto, depois de recreados com o manjar e a bebida celestiais se sentem melhorados e fervorosos. Tudo isso prodigalizais aos vossos escolhidos, para que verdadeiramente conheçam e evidentemente experimentem quanta fraqueza têm em si mesmos e quanta bondade e graça alcançam de vós. Pois de si mesmos são frios, tíbios e insensíveis; por vós, porém, tornam-se fervorosos, alegres e devotos. Quem, porventura, se chegará humilde à fonte da suavidade, que não receba dela alguma doçura? Ou quem, junto de um grande fogo, deixará de sentir algum calor? E vós sois a fonte sempre cheia e abundante; o fogo que sempre arde sem jamais se apagar.
4. Por isso, se me não é dado haurir da plenitude desta fonte, nem beber até me saciar, chegarei, todavia, meus lábios ao orifício do canal celeste, a fim de que receba daí ao menos uma gota, para refrigerar minha sede e não morrer de secura. E se não posso ainda ser todo celestial, nem tão abrasado como os querubins e serafins, contudo me empenharei por permanecer na devoção e dispor meu coração, para que pela recepção humilde deste vivificante Sacramento receba ao menos uma tênue faísca do divino incêndio. O que me falta, porém, ó bom Jesus, Salvador santíssimo, supri-o pela vossa bondade e graça, pois vos dignastes chamar-nos todos a vós, dizendo: Vinde a mim todos que penais e estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei.
5. Na verdade, eu trabalho com o suor do meu rosto, sou atormentado com angústias do coração, estou carregado de pecados, molestado de tentações, embaraçado e oprimido com muitas paixões e não há ninguém que me ajude, livre ou salve, senão vós, Senhor Deus, Salvador meu, a quem me entrego, com tudo o que me pertence, para que me guardeis e leveis à vida eterna. Recebei-me para honra e glória de vosso nome, pois me preparastes para a comida e bebida o vosso corpo e sangue. Concedei-me, Senhor Deus, Salvador meu, que com a frequência de vosso mistério se me aumente o fervor da devoção.

Necessidade da oração.

Oportet semper orare et non deficere — “É preciso orar sempre e não deixar de o fazer” (Luc. 18, 1).

Sumário. É certo que Deus, excetuando as primeiras graças, tais como a vocação para a fé ou penitência, nenhuma outra graça concede em regra geral (e menos ainda a perseverança) senão àquele que ora. Pelo que a oração é necessária aos adultos por necessidade de meio, de modo que o que ora, certamente se salva e o que não ora, certamente se condena. Este será o maior motivo de desespero para os réprobos, verem que tão facilmente se podiam salvar pela oração e que não há mais tempo para orar. Meu irmão, como usaste até hoje deste grande meio?

I. Afirma São João Crisóstomo que, assim como um corpo sem alma está morto, assim está morta a alma sem a oração. Diz ainda que, assim como a água é necessária às plantas para não murcharem, assim nos é necessária a oração para não nos perdermos. — Omnes homines vult salvos fieri (1) — Deus quer que todos os homens se salvem e não quer que ninguém se perca; mas ao mesmo tempo exige que lhe peçamos as graças necessárias para nos  salvarmos, pois, por um lado, não podemos observar os preceitos divinos e salvar-nos sem a assistência atual do Senhor; e por outro, não nos quer Ele dar graças (ordinariamente falando), se lh´as não pedirmos. O santo Concílio de Trento declarou que Deus não nos impõe ordens impossíveis, visto dar-nos, ou a graça próxima e atual para as cumprirmos, ou a graça de lhe pedirmos essa graça atual.

Ensina-nos Santo Agostinho que, à exceção das primeiras graças, tais como a vocação para a fé ou conversão, Deus nenhuma outra concede (e especialmente a perseverança) senão àquele que ora. — D´aqui concluem os teólogos, com São Basílio, Santo Agostinho mesmo, São João Crisóstomo, Clemente de Alexandria e outros, que a oração é necessária aos adultos por necessidade de meio, de modo que sem a oração é impossível salvarem-se. E o sábio Lessio diz que esta doutrina se deve considerar artigo de fé.

As Sagradas Escrituras são claras: Oportet semper orare — “É preciso orar sempre”. Orate, ut non intretis in tentationem (2) — “Orai, para não cairdes em tentação”. Petite et accipietis (3) — “Pedi e recebereis”. Sine intermissione orate (4) — “Rezai sem cessar”. Estes termos: é preciso, orai, pedi, segundo a opinião comum dos teólogos, de acordo com Santo Tomás (5), têm força de preceito que obriga sob pecado grave, particularmente em três casos: quando se está em pecado, quando se está em perigo de morte e quando se está em grande risco de pecar. Os teólogos ensinam que ordinariamente o que passa um mês ou, quando muito, dois, sem rezar, não está livre de pecado mortal. A razão é que a oração é um meio sem o qual não podemos obter os socorros necessários para nos salvarmos.

II. O que pede, obtém; por consequência, diz Santa Teresa, o que não pede, não obtém. E o mesmo fora declarado muito antes por São Tiago: Non habetis, propter quod non postulastis (6) — “Não tendes nada, porque não pedistes”. A oração é particularmente necessária para obter a virtude de pureza: “Sabendo que não podia ser continente, sem que Deus o desse, recorri ao Senhor e lh´o pedi.” (7) — Numa palavra, concluamos: O que reza, certamente se salva; o que não reza, certamente se condena. Todos os que se salvaram, salvaram-se pela oração todos os que se condenaram, condenaram-se porque não rezaram. O seu maior motivo de desespero no inferno será o verem que tão facilmente se podiam salvar pela oração e que não há mais tempo para rezar.

Ó meu Redentor, como pude viver no passado tão esquecido de Vós? Estáveis pronto a conceder-me todas as graças que Vos pedisse; esperáveis somente que Vos suplicasse; mas eu só pensava em contentar os meus sentidos, pouco se me dando de ficar privado do vosso amor e da vossa graça. Senhor, não vos lembreis de tantas ingratidões minhas e tende piedade de mim. Perdoa-me todos os desgostos que Vos dei; dai-me a perseverança, dai-me a graça de pedir sempre o vosso auxílio para nunca mais Vos ofender, ó Deus de minha alma.

Não permitais, Senhor, que no futuro seja tão descuidado como no passado. Dai-me luz e força para sempre me recomendar a Vós, especialmente quando meus inimigos me tentarem para de novo Vos ofender. Meu Deus, concedei-me esta graça pelos merecimentos de Jesus Cristo e pelo amor que lhe tendes. Bastante Vos ofendi; quero amar-Vos o resto de meus dias. Dai-me o vosso santo amor e que esse amor me faça pedir o vosso auxílio, todas as vezes que me vir em perigo de Vos perder pelo pecado. — Maria, minha esperança, de vós espero a graça de, em minhas tentações, me recomendar sempre a vós e a vosso Filho. Atendei-me, ó minha Rainha, pelo grande amor que tendes a Jesus Cristo. (II 138.)

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1. I Tim. 2, 4.
2. Luc. 22, 40.
3. Io. 16, 24.
4. I Thess. 5, 17.
5. P. 3, q. 29, a. 5.
6. Iac. 4, 2.
7. Sap. 8, 21.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 230 - 233.)

Pensamentos escolhidos de Cura d'Ars.

XXI -  A melhor das mães.

Compara-se muitas vezes a Santíssima Virgem a uma mãe, porém ela é ainda muito melhor que a melhor das mães: porquanto a melhor das mães pune ás vezes o filho que lhe causa mágoa; julga fazer bem assim. Mas a Santíssima Virgem não faz assim; é tão boa que nos trata sempre com amor.
O coração dessa boa Mãe é só amor e misericórdia, ela só deseja ver-nos felizes. Basta somente volver-nos para ela, para sermos atendidos...
A Santíssima Virgem mantém-se entre seu Filho e nós. Embora sejamos pecadores, ela é cheia de ternura e de compaixão para conosco. O filho que custou mais lágrimas a sua mãe é o mais caro ao seu coração. Uma mãe não corre sempre ao mais fraco e mais exposto? Um médico, num hospital, não tem porventura mais atenção para os mais doentes?
O Coração de Maria é tão terno para conosco, que os de todas as mães reunidas não passam de um pedaço de gelo ao pé do seu.
Quando se fala dos objetos da terra, do comércio, da política... a gente se cansa: mas quando se fala da Santíssima Virgem, é coisa sempre nova. Todos os santos tiveram grande devoção à Santíssima Virgem; nenhuma graça vem do céu sem passar por suas mãos.
Não se entra numa casa sem falar ao porteiro: pois bem, a Santíssima Virgem é a porteira do céu.
Quando se quer oferecer alguma coisa a um grande personagem, faz-se apresentar esse objeto pela pessoa que ele prefere, afim de que a homenagem lhe seja mais agradável. Assim as nossas preces apresentadas pela Santíssima Virgem, tem mérito inteiramente outro, porque a Santíssima Virgem é a única que nunca ofendeu a Deus.
Quando as nossas mãos tocam aromas, embalsamam tudo o que tocam; façamos passar as nossas preces pelas mãos da Santíssima Virgem, e ela as embalsamará.
Penso que no fim do mundo a Santíssima Virgem ficará bem tranquila; mas enquanto durar o mundo, puxam-na de todos os lados... A Santíssima Virgem é como uma mãe que tem muitos filhos. Esta continuamente ocupada em ir de um a outro.

28 de outubro de 2013

Das penas do inferno.

Omnis dolor irruet super eum — “Toda a sorte de dores virá sobre ele” (Iob 20, 22).

Sumário. É artigo de fé que há um inferno, isto é, uma prisão miserabilíssima toda cheia de fogo, onde cada sentido e cada faculdade do réprobo sofrem uma pena particular. Enquanto fazemos esta meditação, tantos cristãos desgraçados, talvez da mesma idade que nós, talvez conhecidos nossos, estão ardendo nessa fornalha ardente, sem a mínima esperança de saírem de lá. Reflete agora, meu irmão: qual é o estado de tua consciência? Se o Senhor te deixasse morrer na primeira noite, para onde iria a tua alma?

I. Considera que o inferno é uma prisão miserabilíssima, toda cheia de fogo. Nesse fogo estão submergidos os réprobos, tendo um abismo de fogo acima de si, um abismo ao redor de si e um abismo abaixo de si. Fogo há nos olhos, fogo na boca, fogo por todos os lados.

Cada um dos sentidos sofre a sua pena própria. Os olhos são cegados pela fumaça e pelas trevas, e aterrados pela vista dos outros condenados e réprobos. Os ouvidos ouvem dia e noite urros, gemidos e blasfêmias. O olfato é empestado pelo mau cheiro daqueles inumeráveis corpos infectos. — O gosto é atormentado por uma sede ardentíssima e uma fome devoradora sem jamais obter uma gota de água nem um pedaço de pão. Por isso os desgraçados prisioneiros, ardendo em sede, devorados pelo fogo, cruciados por toda a espécie de tormentos, choram, urram e se desesperam. Mas não há, nem haverá jamais, quem os alivie ou console. Oh inferno, oh inferno! Como é que alguns não querem crer em ti, senão quando se vêem precipitados dentro de ti!

Considera depois as penas que sofrerão as faculdades da alma. A memória será atormentada pelo remorso de consciência. O remorso é aquele verme que está roendo sempre no condenado ao pensar que se condenou por culpa própria, por uns poucos prazeres envenenados. Oh meu Deus! Como se lhe afigurarão aqueles prazeres momentâneos depois de cem, depois de mil milhões de anos? O verme do remorso lhe recordará o tempo que Deus lhe deu para salvação; a facilidade que teve de se salvar; os bons exemplos dos companheiros; as resoluções tomadas, mas não cumpridas. Verá então que não pode mais remediar a sua ruína eterna. Oh meu Deus, meu Deus! Que inferno no inferno será este! — A vontade será sempre contrariada; não terá nada do que deseja e terá sempre aquilo que não quer, isto é, toda a espécie de tormentos. O entendimento conhecerá o grande bem que perdeu, a saber: Deus e o paraíso. – Ó Senhor, perdoai-me, pelo amor de Jesus Cristo!

II. Meu irmão, dize-me se agora tivesses de morrer, para onde iria a tua alma? Não sabes suportar uma centelha caída de uma vela sobre tua mão e poderá suportar a permanência num abismo de fogo devorador, desolado e desamparado de todos, por toda a eternidade? — Ah! Quantos da mesma idade que tu, talvez conhecidos e companheiros teus, estão agora ardendo naquela fornalha ardente, sem a mínima esperança de poderem remediar a sua desgraça!

Agora talvez não te importe perder o paraíso e Deus; conhecerás porém a tua cegueira, quando vires os bem-aventurados em triunfo e no gozo do reino dos céus, e tu, como um cão lazarento, fores excluído daquela pátria feliz, da bela presença de Deus, da companhia de Maria Santíssima, dos Anjos e dos Santos. Então gritarás enfurecido: Ó paraíso de felicidades, ó Deus, Bem infinito, não sois nem sereis jamais para mim! — Ânimo, pois, faze penitência, muda de vida; não esperes que não haja mais tempo para ti. Pede a Jesus, pede a Maria que tenham piedade de ti.

Aqui tendes, Senhor, a vossos pés, o desgraçado que tão pouco caso fez da vossa graça e dos vossos castigos. Ai de mim! Quanto anos já devia estar abandonado por Vós e ardendo na fornalha do inferno! Mas vejo que me quereis salvar a todo o preço, porquanto com tamanha bondade me ofereceis o perdão, se eu quiser detestar os meus pecados; ofereceis-me a vossa graça e o vosso amor, se eu Vos quiser amar. Sim, meu Jesus, quero sempre chorar as ofensas que Vos fiz e amar-Vos de todo o meu coração. — Fazei-me saber o que quereis; quero satisfazer-Vos em tudo. Permiti que eu viva e morra em vossa graça; não me mandeis ao inferno onde não Vos poderia mais amar e disponde de mim segundo a vossa vontade. — Ó Maria, minha esperança, guardai-me sob a vossa proteção e não permitais que eu venha ainda a perder o meu Deus. (*II 478.)

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 228 - 230.)

Imitação de Cristo - Livro 4 Capítulo 3

CAPÍTULO 3
Da utilidade da comunhão freqüente

Voz do discípulo

1. Eis que venho a vós, Senhor, para aproveitar-me de vossa munificência, e deliciar-me neste sagrado banquete, que vós, Deus meu, preparastes, na vossa ternura, para o pobre. Em vós se acha tudo o que posso e devo desejar; vós sois minha esperança, fortaleza honra e glória. Alegrai, pois, hoje, a alma de vosso servo, porque a vós, Senhor Jesus, levantei a minha alma. Desejo receber-vos agora com devoção e reverência; desejo hospedar-vos em casa, para que, com Zaqueu, mereça ser abençoado e contado entre os filhos de Abraão. Minha alma suspira por vosso corpo; meu coração deseja ser convosco unido.
2. Dai-vos a mim e estou satisfeito; porque sem vós nada me pode consolar. Sem vós não posso estar, e sem vossa visita não posso viver. Por isso muitas vezes devo achegar-me a vós e receber-vos para remédio de minha salvação, a fim de não desfalecer no caminho quando estiver privado deste alimento celestial. Assim vós mesmo o dissestes uma vez, misericordiosíssimo Jesus, quando pregáveis e curáveis diversas enfermidades: "Não os quero despedir em jejum, para que não desfaleçam no caminho"(Mt 15, 32). Fazei também do mesmo modo comigo, pois ficastes neste Sacramento para consolação dos fiéis. Vós sois a suave refeição da alma, e quem dignamente vos receber se tornará participante e herdeiro da glória eterna. A mim, que tantas vezes caio e peco, tão depressa afrouxo e desfaleço, mui necessário me é que, com a oração, confissão e comunhão freqüente, me renove, purifique e afervore, para não abandonar meus santos propósitos, abstendo-me da comunhão por mais tempo.
3. Pois "os sentidos do homem estão inclinados para o mal desde a sua adolescência (Gên 8,21), e se não o socorre o remédio celestial, logo cai o homem de mal em pior. Porque, se agora, comungando ou celebrando, sou tão negligente e tíbio, que seria se não tomasse este remédio e não buscasse tão poderoso conforto? E ainda que não esteja, todos os dias, preparado, nem bem disposto para celebrar, contudo me quero esforçar para, nos tempos convenientes, receber os sagrados mistérios e tornar-me participante de tanta graça. Porque, enquanto a alma fiel, longe de vós, peregrina neste corpo mortal, a única e principal consolação para ela é - que muitas vezes se lembre do seu Deus e receba devotamente o seu Amado.
4. Ó maravilhosa condescendência de vossa bondade para convosco, que vós, Senhor Deus, Criador e vivificador de todos os espíritos, vos dignais de vir à minha pobre alma e saciar-lhe a fome com toda a vossa divindade e humanidade! Ó ditoso coração, ó alma bem-aventurada, que merece receber-vos com devoção a vós, seu Deus e Senhor, e nesta união encher-se de gozo espiritual! Oh! que grande Senhor recebe, que amável hóspede agasalha, que agradável companheiro acolhe, que fiel amigo aceita, que formoso e nobre esposo abraça, mais digno de ser amado que tudo o que se ama e deseja! Dulcíssimo Amado meu, emudeçam diante de vós o céu e a terra com todos os seus ornatos; porque tudo o que têm de brilho e beleza é dom de vossa liberalidade e não chega a igualar a glória de vosso nome, "cuja sabedoria não tem medida" (Sl 146,5).

27 de outubro de 2013

Pensamentos esclhidos do Cura d'Ars.

 XIX - Jesus no tabernáculo  espera-nos.

Nosso Senhor esta ali escondido, esperando que o vamos visitar e dirigir-lhe os nossos pedidos. Esta no sacramento de seu amor a suspirar e a interceder incessantemente junto a seu Pai pelos pecadores. Esta ali para consolar-nos; por isto devemos visitá-lo muitas vezes. Quanto um pequeno quarto de hora que roubamos  às nossas ocupações, a algumas inutilidades, para ir rezar-lhe, visitá-lo, consolá-lo de todas as injúrias que ele recebe, quanto esse quarto de hora lhe é agradável ! Quando ele vê virem com solicitude as almas puras, sorri-lhes... E que felicidade não sentimos na presença de Deus, quando nos achamos só a seus pés, diante dos santos tabernáculos !...
Atentai, meus filhos, quando acordardes de noite, transportai-vos em espírito para diante do tabernáculo, e dizei a Nosso Senhor: "Meu Deus, eis-me aqui! venho adorar-vos, amar-vos, fazer-vos companhia com os anjos !...
Se amássemos a Nosso Senhor, teríamos sempre diante dos olhos do espírito esse tabernáculo dourado, essa casa do bom Deus. Quando estamos em caminho e avistamos um campanário, esta vista deve fazer-nos pulsar o coração; não deveríamos poder despregar dele os nossos olhares.
Ah ! se tivéssemos os olhos dos anjos, vendo Nosso Senhor Jesus Cristo que esta ali presente, naquele altar, e que nos olha, como o haveríamos de amar ! não quereríamos mais separar-nos dele; quereríamos sempre ficar a seus pés: seria um antegozo do céu; tudo o mais se tornaria insípido. Mas...é a fé que falta.
Quando estivermos diante do Santíssimo Sacramento, em vez de olharmos em redor de nós, fechemos os olhos e abramos o coração; o bom Deus abrirá o seu.

Imitação de Cristo - Livro 4 Capitulo 2

CAPÍTULO 2

Como neste Sacramento se mostra ao homem a grande bondade e caridade de Deus

A Voz do discípulo

1. Confiado, Senhor, na vossa bondade e grande misericórdia, a vós me chego, qual enfermo ao médico, faminto e sequioso à fonte da vida, indigente ao Rei do céu, servo ao Senhor, criatura ao Criador, desconsolado ao meu piedoso Consolador. Mas donde me vem a graça de virdes a mim? Quem sou eu, para que vós mesmos vos ofereçais a mim? Como ousa o pecador aparecer diante de vós? e vós, como vos dignais vir ao pecador? Conheceis vosso servo e sabeis que nenhum bem há nele para que lhe presteis esse benefício. Confesso, pois, minha vileza, reconheço vossa bondade, louvo vossa misericórdia e dou-vos graças por vossa excessiva caridade. Por vós mesmos fazeis isso, não por meus merecimentos, mas para que vossa bondade me seja mais manifesta, maior caridade me seja infundida e a caridade me seja mais perfeitamente recomendada. Pois que assim vos apraz e assim ordenastes, a mim também me agrada vossa condescendência, e oxalá não ponham estorvo meus pecados!
2. Ó dulcíssimo e benigníssimo Jesus! louvor vos devo pela participação do vosso sacratíssimo corpo, cuja existência ninguém pode explicar! Mas que hei de pensar nesta comunhão, chegando-me a meu Senhor, a quem não posso devidamente honrar, e todavia desejo receber com devoção? Que coisa melhor e mais salutar posso pensar, senão humilhar-me totalmente diante de vós e exaltar vossa infinita bondade para comigo? Eu vos louvo, Deus meu, e vos engrandeço para sempre. Desprezo-me e a vós me submeto no abismo de minha vileza.
3. Vós sois o Santo dos santos, e eu a escória dos pecadores. Vós baixais para mim, que não sou digno de levantar os olhos para vós. Vindes a mim, quereis estar comigo, convidais-me ao vosso banquete. Quereis dar-me o alimento espiritual e o pão dos anjos, que outro, na verdade, não é senão vós mesmos, pão vivo, que descestes do céu e dais a vida ao mundo.
4. Eis a fonte do amor, donde resplandece a vossa misericórdia! Que ações de graças vos são devidas por este benefício! Oh! quão salutar e proveitoso foi o vosso desígnio, em instituir este Sacramento! Quão suave e delicioso banquete, em que a vós mesmos vos destes em alimento! Quão admiráveis, Senhor, são vossas obras, quão inefável vossa verdade! Porque dissestes - e tudo se fez, e fez-se aquilo que ordenastes.
5. Coisa maravilhosa e digna de fé e acima de toda compreensão humana é que vós, Senhor, meu Deus, verdadeiro Deus e homem, estejais todo inteiro debaixo das insignificantes espécies de pão e vinho, e, sem serdes consumido, alimentais aquele que vos recebe. Vós, Senhor do universo, que não precisas de coisa alguma, quisestes morar em nós por vosso Sacramento; conservai meu coração e meu corpo sem mancha, para que com alegre e pura consciência possa muitas vezes celebrar e receber vossos mistérios, para minha eterna salvação, visto que os instituístes e ordenastes principalmente para vossa honra e perpétua lembrança.
6. Regozija-te, minha alma, e agradece a Deus tão excelente dádiva e singular consolação, que ele te deixou neste vale de lágrimas. Porque todas as vezes que celebrares este mistério e receberes o corpo de Cristo, renovas a obra de tua redenção e te tornas participante de todos os merecimentos de Cristo. Pois a caridade de Cristo nunca se diminui, nem se esgota jamais a grandeza de sua propiciação. Por isso te deves preparar sempre para este ato pela renovação do espírito, e considerar com atenção este grande mistério de salvação. Tão grande, novo e delicioso se te deve afigurar, quando celebras ou ouves Missa, como se Cristo no mesmo dia descesse pela primeira vez ao seio da Virgem e se fizesse homem, ou como se, pendente da cruz, padecesse e morresse pela salvação dos homens.

26 de outubro de 2013

Maria Santíssima, modelo de oração.

Oportet semper orare et non deficere — “Importa orar sempre e não cessar de o fazer” (Luc. 18, 1).

Sumário. Desde o instante em que a Santíssima Virgem recebeu a vida, e com esta o uso perfeito da razão, começou também a orar e nunca mais deixou de orar até ao seu último suspiro. Se Maria, tão santa e imaculada, foi tão amante da oração, quanto mais nós a devemos amar, que estamos tão propensos ao mal e temos inimigos tão fortes que combater? À imitação de nossa querida Mãe, habitemos com os nossos afetos no céu, nunca percamos de vista a eternidade e seja a oração o nosso único ornato.

I. Jamais existiu neste mundo quem com tanta perfeição como a Santíssima Virgem executasse o grande preceito de nosso Salvador: Importa orar sempre e não cessar de o fazer. Pelo que diz São Boaventura, que ninguém melhor que Maria nos pode servir de exemplo e ensinar a necessidade que temos de perseverar na oração.

Primeiramente, como escreve Dionísio o Cartusiano, a oração da Virgem foi toda recolhida e sem distração alguma. Isenta como ficara do pecado original, estava também livre de qualquer afeto terrestre e de todo o movimento desordenado, e todos os seus sentidos estavam sempre em harmonia com o seu bendito espírito. Assim a sua bela alma, livre de todo o empecilho, elevava-se incessantemente a Deus, amava-O sempre e crescia sempre no amor.

A oração da Bem-aventurada Virgem foi além disso continua e perseverante. Desde o primeiro momento em que juntamente com a vida ela recebeu o uso perfeito da razão, começou também a fazer oração. Para melhor se aplicar à oração quis, sendo menina de três anos, encerrar-se no templo, e ali, além das outras horas destinadas à oração, levantava-se sempre à meia noite, como ela mesma disse à santa virgem Isabel, para orar diante do altar do templo.

Com tal fim também, e para sempre meditar nas penas de Jesus, como diz Odilon, Maria, depois da Ascensão do Senhor, visitava muitas vezes os lugares santos da Palestina, ora a Gruta de Belém, onde o Filho nasceu; ora a casa de Nazaré, onde o Filho viveu tantos anos, pobre e desprezado, ora o horto de Getsêmani, onde o filho começou a sua Paixão; ora o pretório de Pilatos, onde foi açoitado e coroado de espinhos; ora o Calvário, onde o viu expirar; e, finalmente, o sepulcro, no qual o acomodou com as suas próprias mãos. — Numa palavra, toda a vida da Santíssima Virgem foi uma oração contínua. E, como conclui o Bem-aventurado Alberto Magno, ela foi excelentíssima nesta virtude, e depois de Jesus Cristo a mais perfeita de todos quantos tem existido, existem ou existirão. Felizes de nós se a soubermos imitar!

II. Se Maria, toda santa e imaculada como era, foi sempre tão amante da oração, para se conservar e crescer na graça divina, com muito mais razão devemos nós amar e praticar esta virtude, nós que tão fracos somos, tão propensos ao mal, e que temos inimigos tão poderosos para combater e vencer. — Tratemos, pois, de imitar o espírito de oração de nossa boa Mãe, e procuremos reproduzir em nós o que o devoto Taulero diz da Santíssima Virgem: Mariae cella fuit coelum — “A morada de Maria foi o céu”. Seja o céu também a nossa habitação, e fixemos nele pelo afeto a nossa morada contínua. Schola aeternitas — “A sua escola foi a eternidade”. Nunca percamos de vista a eternidade, vivendo sempre desapegados dos bens terrestres. Paedagogus divina veritas — “Seu mestre foi a verdade divina”. Tomemos por nosso mestre aquele que é a verdade essencial, e guiemo-nos em nossas ações pela luz divina. Speculum divinitas — “O seu espelho foi a divindade”. Sirva-nos a divindade de espelho; tenhamos sempre Deus em mira, para nos conformarmos com a sua vontade. Ornatus eius devotio — “O seu adorno foi a devoção”. Seja também a devoção o nosso ornato, e estejamos sempre prontos a fazer a vontade de Deus. Numa palavra, façamos consistir a nossa paz na união com Deus, e seja Deus todo o repouso e todo o tesouro de nossa alma: Quies, unitas cum Deo.

Ó grande Mãe de Deus, proponho-me sempre a imitar os vossos santos exemplos e especialmente o vosso espírito de oração. Vós, porém, que conheceis a minha fraqueza e inconstância no bem, ajudai-me pela vossa intercessão. Fazei-me pontual em recomendar-me sempre a vós e a vosso Filho em todas as minhas necessidades, sobretudo nos perigos de ofender o meu Senhor. Minha Rainha, atendei-me; fazei-o pelo grande amor que tendes a Jesus Cristo. (*I 271.)

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 223 - 225.)

Sermão 22º Domingo depois de Pentecostes – Domingo das Missões – Pe Daniel Pinheiro

[Sermão] A Igreja e as missões

Sermão para o 22º Domingo depois de Pentecostes – Domingo das Missões

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…

 “Concedei-nos, Senhor, que do Oriente ao Ocidente o Vosso nome seja glorificado entre os povos, e que em todo lugar se sacrifique e se ofereça ao Vosso nome uma oblação pura.” (Secreta)
Caros católicos, para toda a Igreja hoje é o domingo consagrado às Missões. Em todas as Missas, ao menos naquelas celebradas no Rito Romano Tradicional, há orações que pedem a Deus que a verdade do Evangelho possa chegar a todos os cantos do orbe e a todos os homens, a fim de que Deus seja conhecido, amado e servido por todos os povos. Se a Igreja faz isso, é porque ela permanece fiel ao mandamento de NS dado aos Apóstolos e aos sucessores deles: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado será salvo; o que, porém, não crer, será condenado.” (Marcos 16, 15-16) “Ide, pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei.” (Mateus 28, 19) É, então, Nosso Senhor Ele mesmo que atribui à sua única Igreja a catolicidade, quer dizer, essa universalidade, devendo a Igreja dirigir-se a todo o mundo, a todas as gentes. Consequentemente, é NS Ele mesmo que faz da Igreja uma sociedade necessariamente missionária. A missão é justamente anunciar a verdade do Evangelho, a verdade revelada por NSJC àqueles povos que ainda não a conhecem.
E esse mandamento de NS, caros católicos, é bem lógico. Como diz a coleta de hoje, Deus quer que todos os homens se salvem e que cheguem ao conhecimento da verdade. Para que o homem se salve é preciso que ele acredite com total certeza no que Deus fala, pois Deus não pode se enganar nem nos enganar. E para que o homem se salve, é preciso fazer aquilo que Deus ordena, pois Deus só nos ordena o que é bom. Em suma, para salvar-se, o homem precisa da verdadeira religião. E entre tantas religiões que se contradizem, uma só pode ser a verdadeira. E sabemos que é a católica, confirmada com tantos verdadeiros milagres e anunciada por tantas profecias. Sabemos que é a católica porque somente ela corresponde perfeitamente ao ensinamento de Jesus Cristo, nosso Salvador. Assim, é natural que NS mande que seus Apóstolos preguem o Evangelho em todo o mundo e para todas as gentes, para que se salvem. A Igreja, seguindo seu divino fundador, tem sede das almas e quer levar essas almas que estão nas trevas do erro e na sombra da morte à verdade e à vida eterna. A Igreja se entristece profundamente de ver povos que ignoram o Deus único em três Pessoas, que ignoram o Deus que nos mostrou todo o seu amor ao se encarnar e ao sofrer por nós até a morte e morte de cruz. Ela se entristece de ver os povos que ignoram ou perseguem a Igreja fundada por Cristo. E a Igreja manifesta hoje essa tristeza pelos paramentos roxos, pela ausência do Glória.
Fiéis, então, ao preceito de NS de pregar a todas as gentes, os Apóstolos, de imediato, pregaram em todo lugar a palavra de Deus, ao ponto que o “som da voz deles estendeu-se por toda a terra e as suas palavras até as extremidades do mundo”, como afirma a Igreja (Ofício dos Apóstolos e Salmo 18, 5) Também os sucessores dos Apóstolos foram fiéis ao mandamento de Nosso Senhor. São Martinho, apóstolo da Gália. São Patrício, apóstolo dos irlandeses. Santo Agostinho de Cantuária, apóstolo dos ingleses. São Columba, apóstolo dos escoceses. São Bonifácio, apóstolo dos povos germânicos; Santos Cirilo e Metódio, apóstolos dos eslavos. São Francisco Xavier, apóstolo do oriente. Padre Anchieta, Apóstolo do Brasil. Isso para citar somente alguns poucos. A Europa foi convertida a Cristo, o norte da África foi convertido a Cristo com grande rapidez. Nos tempos modernos, a maior parte das Américas foi convertida a Cristo pelos missionários portugueses e espanhóis. E quantas obras missionárias feitas em outros cantos do globo. Por que, caros católicos, um zelo tão ardente pelas missões sempre consumiu a Igreja? Porque se trata da salvação das almas e a salvação das almas é a lei suprema da Igreja.
Hoje, infelizmente, muitos parecem ter esquecido este mandamento de NS: “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado será salvo; o que, porém, não crer, será condenado.” (Marcos 16, 15-16) “Ide, pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei.” (Mateus 28, 19) É por causa desse esquecimento que os infiéis não chegam ao conhecimento da fé. É também por causa desse esquecimento que nossa sociedade, outrora cristã, é cada vez mais paganizada. Esse esquecimento é devido, antes de tudo, ao indiferentismo religioso. Com o indiferentismo religioso se afirma que a salvação é possível em qualquer religião. Se você é mulçumano, seja um bom mulçumano, isso basta. Se você é protestante, seja um bom protestante e você será salvo. Se você é ateu, seja um bom ateu e você irá ao paraíso. São frases que ouvimos. Ora, se NS nos deu um mandamento tão claro incluindo nele a pena da morte eterna – “o que crer e for batizado será salvo; o que, porém, não crer, será condenado” – é justamente porque é extremamente difícil se salvar quando se pratica uma outra religião que não a verdadeira, fundada por Ele. E mesmo nesse caso, muito raro, em que a pessoa se encontra em ignorância invencível quanto à verdadeira religião, mas pratica o bem e evita o mal segundo uma consciência bem formada, é sempre por Cristo e na Igreja que a pessoa se salva. Quantas almas infelizmente se perdem por causa da negligência no cumprimento do preceito divino: ensinai todas as gentes, batizando-as.
Isso não significa, porém, que não haja mais missões. As missões existem, é claro. Todavia, elas são vistas, sobretudo, como uma coisa puramente social ou humana. Elas visam muitas vezes uma paz simplesmente humana, um bem-estar humano. E, para alcançar isso, dizem que é preciso evitar a todo o custo o apostolado, às vezes classificado como proselitismo, quer dizer, é preciso evitar buscar a conversão das almas à religião católica. A Igreja até poderia atrair as almas para si pelo testemunho, pelo exemplo, mas buscar as almas, argumentando, chamando-as à conversão seria já um meio ilegítimo, seria proselitismo dizem. O Papa João Paulo II aponta esse erro: “Hoje – diz o Papa – o apelo à conversão, que os missionários dirigem aos não cristãos, é posto em discussão ou facilmente deixado no silêncio. Vê-se nele – nesse apelo à conversão, continua o Papa – um ato de «proselitismo»; diz-se que basta ajudar os homens a tornarem-se mais homens ou mais fiéis à própria religião, que basta construir comunidades capazes de trabalharem pela justiça, pela liberdade, pela paz, e pela solidariedade.” Até aqui o Papa. Essa proibição do apelo à conversão – apelo que não se faz meramente pelo exemplo, embora o exemplo seja indispensável e a parte mais necessária – vem de uma falsa noção do que é o bem do homem, como se o bem do homem estivesse nos bens desse mundo ou numa paz sem o verdadeiro Deus. Ao contrário, o maior bem para o homem é conhecer, amar e servir a Deus. O verdadeiro bem do homem supõe, portanto, a verdadeira religião e, para isso, é preciso que os homens da Igreja sejam plenamente missionários, ensinando a doutrina de Cristo e batizando aqueles que crerão nEle. É preciso buscar primeiro o Reino de Deus, o resto será dado por acréscimo.
Ora, se decorre da própria natureza da Igreja ser missionária, todos os membros dela estão implicados nisso em alguma medida e devem cooperar com as missões. Há, basicamente, duas maneiras de cooperar efetivamente com as missões: a ajuda material e a oração.
Primeiro, devemos ajudar materialmente e segundo as nossas possibilidades as obras sérias, que têm por objetivo real a propagação da fé católica, o bem das almas e a glória de Deus.
Em segundo lugar, e muito mais importante que a ajuda material, devemos rezar e rezar muito. Em particular, devemos rezar para que Deus suscite numerosas vocações e, sobretudo, vocações sacerdotais, mas sacerdotes santos, de uma fé vivíssima e de uma caridade ardente. NS fundou uma Igreja hierárquica: os sacerdotes são os ministros da salvação trazida por Jesus Cristo. Sem padres e sem bons padres, a evangelização, a conversão das almas e dos povos não terá sucesso ou muito limitado. Eis aqui uma maneira fundamental para cooperar com as missões: rezar pedindo pastores dignos e santos. É exatamente isso que a coleta e o Evangelho de hoje nos lembram: que Deus possa enviar operários que transmitam o Evangelho com confiança, sem receio, a fim de que todos os povos possam conhecer o único Deus verdadeiro e Aquele que Ele enviou, Jesus Cristo, seu Filho. Devemos também rezar constantemente pela conversão daqueles que ainda não têm a fé católica: pagãos, hereges, infiéis, judeus… Comecemos essa oração nos unindo ao Santo Sacrifício da Missa que se consumará sobre o altar. Rezemos para que o Senhor mande operários e rezemos pela conversão dos que vivem na sombra do erro. Rezar com instância e fervor pelas missões é praticamente como tornar-se um missionário, dada a profundidade da cooperação. Santa Teresinha do Menino Jesus nos dá o exemplo, pois sem jamais ter saído de seu convento, ela se tornou a padroeira das missões, pelas orações e sacrifícios que oferecia pelo bom êxito das missões.
Todavia, não devemos considerar as missões simplesmente como algo longínquo e que ocorre somente na outra extremidade da terra. Hoje, as nações outrora católicas se tornaram, na prática, terra de missão. Nós devemos começar, portanto, pelo nosso país, pelo meio em que vivemos. Devemos praticar a ajuda material, e rezar pelas vocações e pela conversão dos não católicos no nosso país e não somente em terras distantes. Nesse caso, devemos também cooperar com a Missão pelo apostolado no meio em que vivemos. Esse apostolado está ao alcance de todos: em casa, no trabalho, na rua, com os amigos, nos lazeres, etc… Podemos exercer de várias maneiras o apostolado. Um bom argumento que damos em favor da religião católica, um bom conselho, uma correção caridosa, um bom livro que emprestamos, uma diversão imoral que se evita, etc.  Eis alguns atos de apostolado que Deus recompensará com generosidade. Se a esses atos nós acrescentarmos o apostolado do exemplo – que é um argumento mais forte do que todos os discursos e sem o qual todos os outros atos serão ineficazes – e se acrescentarmos também os sacrifícios, mesmo pequenos, nos tornaremos missionários, no sentido abrangente da palavra. Podemos pensar aqui no exemplo de Santo Afonso que converteu seu escravo mulçumano simplesmente pelo exemplo, sem precisar de outro argumento além do mero exemplo. Com as orações, com o apostolado, com o exemplo, podemos propagar a fé, iluminando as inteligências e inflamando as vontades e não simplesmente atiçando os sentimentos passageiros como, infelizmente, ocorre com muitos que se chamam hoje missionários.
Façamos, então, caros católicos, aquilo que podemos para converter os povos pagãos e para reconverter nossa sociedade a Cristo, para que o único Deus verdadeiro e seu Filho, Jesus Cristo, possam ser reconhecidos, confessados e glorificados pela prática da religião católica: devemos ajudar materialmente, na medida de nossas possibilidades, devemos rezar pelas vocações e pela conversão daqueles que não conhecem NS e sua Igreja, devemos oferecer pequenas penitências nessa intenção, e devemos fazer apostolado no meio em que vivemos, sobretudo pelo exemplo.
O ardor missionário que sempre inflamou a Igreja é a obra de caridade mais perfeita: não se pode demonstrar caridade maior para com o próximo do que o tirando das trevas do erro e o instruindo na verdadeira fé. “Essa obra de caridade, nos diz Pio XI, supera toda outra obra e prova de caridade, como a alma supera o corpo, como o céu supera a terra, como a eternidade supera o tempo. E, continua o Pontífice, quem exerce essa obra de caridade segundo suas forças, demonstra estimar devidamente o dom da fé e, além disso, manifesta sua gratidão para com a bondade divina partilhando com os pobres pagãos o mais precioso dos dons – a fé – e, com ela, todos os outros bens que lhe estão unidos.” (Rerum Ecclesiae) Cooperemos, portanto, caros católicos com as missões. É uma obra muito meritória e de grande caridade que Deus recompensará com generosidade.

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Imitação de Cristo - Livro 4 Capítulo 1

LIVRO QUARTO

DO SACRAMENTO DO ALTAR

Devota exortação à sagrada comunhão

Voz de Cristo

Vinde a mim todos que penais e estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei, diz o Senhor (Mt 11,78).
O pão que eu darei é a minha carne, pela vida do mundo (Jo 6,52).
Tomai e comei, este é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim (Lc 22,19).
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica em mim e eu nele (Jo 6,57).
As palavras que eu vos disse são espírito e vida (Jo 6,64).

CAPÍTULO 1

Com quanta reverência cumpre receber a Cristo

Voz do discípulo

1. São vossas essas palavras, ó Jesus, verdade eterna, ainda que não fossem proferidas todas ao mesmo tempo, nem escritas no mesmo lugar. Sendo vossas, pois, essas palavras e verdadeiras, devo recebê-las todas com gratidão e fé. São vossas, porque vós as dissestes; e são também minhas, porque as dissestes para minha salvação. Cheio de alegria as recebo de vossa boca, para que mais profundamente se me gravem no coração. Animam-se palavras de tanta ternura, atemorizam-me os meus pecados, e minha consciência impura me afasta da participação de tão altos mistérios. Atraime a doçura de vossas palavras, mas me oprime a multidão de meus pecados.
2. Mandais que me chegue a vós com grande confiança, se quero ter parte convosco; e que receba o manjar da imortalidade, se desejo alcançar a vida e glória eterna. Vinde, dizeis vós, vinde a mim todos que penais e estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Ó palavra doce e amorosa aos ouvidos do pecador: vós, Senhor meu Deus, convidais o pobre e indigente à comunhão de vosso santíssimo corpo, mas quem sou eu, Senhor, para ousar aproximarme de vós? Eis que os céus dos céus não vos pode abranger, e dizeis: Vinde a mim todos!
3. Que quer dizer essa condescendência tão meiga e esse tão amoroso convite? Como me atreverei a chegar-me a vós, quando não conheço em mim bem algum em que me possa confiar? Como posso acolher-vos em minha morada, eu, que tantas vezes ofendi a vossa benigníssima face? Tremem os anjos e os arcanjos, estremecem os santos e os justos, e vós dizeis: Vinde a mim todos! Se não fosse vossa essa palavra, quem a teria por verdadeira? Se vós o não ordenásseis, quem ousaria aproximar-se?
4. Noé, o varão justo, trabalhou cem anos na construção da arca para salvar-se com poucos: como me poderei eu preparar numa hora para receber com reverência o Criador do mundo? Moisés, vosso grande servo e particular amigo, fabricou a arca de madeira incorruptível, e revestiu-a de ouro puríssimo, para guardar nela as tábuas da lei; e eu, criatura vil, me atreverei a receber-vos com tanta facilidade, a vós, que sois o autor da lei e o dispensador da vida? Salomão, o mais sábio dos reis de Israel, levou sete anos a edificar o templo magnífico, em louvor de vosso nome, e celebrou por oito dias a festa de sua dedicação, ofereceu mil hóstias pacíficas, e ao som das trombetas e com muito júbilo colocou a arca da aliança no lugar que lhe havia sido preparado. E eu, o mais miserável de todos os homens, como poderei receber-vos em minha casa, quando mal sei empregar meia hora com devoção? e oxalá que uma vez sequer a houvesse empregado dignamente!
5. Ó meu Deus, quanto se esforçaram esses vossos servos para agradar-vos! Ai, quão pouco é o que eu faço! Quão pouco o tempo que gasto em preparar-me para a comunhão! Raras vezes estou de todo recolhido, raríssimo livre de toda distração. E, todavia, na presença salutar de vossa divindade não me devia ocorrer pensamento algum impróprio, nem eu me devia ocupar de criatura alguma, pois vou hospedar, não a um anjo, senão ao Senhor dos anjos.
6. Demais, há grandíssima diferença entre a arca da aliança com suas relíquias e vosso puríssimo corpo com suas inefáveis virtudes; entre aqueles sacrifícios da lei, que eram apenas figuras do futuro, e o sacrifício verdadeiro de vosso corpo, que é o cumprimento de todos os sacrifícios antigos.
7. Por que, pois, se me não acende melhor o meu coração na vossa adorável presença? Por que me não preparo com maior cuidado para receber vosso santos mistério, quando aqueles santos patriarcas e profetas, reis e príncipes, com todo o povo, mostraram tanta devoção e fervor no culto divino?
8. Com religioso transporte dançou o piedosíssimo rei Davi diante da arca da aliança, em memória dos benefícios concedidos outrora a seus pais; mandou fabricar vários instrumentos musicais, compôs salmos e ordenou que se cantassem com alegria, e ele mesmo os cantava muitas vezes ao som da harpa; ensinou ao povo de Israel a louvar a Deus de todo o coração e engrandecê-lo e bendizê-lo todos os dias, a uma voz. Se tanta era, então, a devoção e o fervor divino diante da arca do testamento, quanta reverência e devoção devo eu ter agora, e todo o povo cristão, na presença do Sacramento e na recepção do preciosíssimo corpo de Cristo!
9. Correm muitos a diversos lugares para visitar as relíquias dos santos, e se admiram ouvindo narrar os seus feitos; contemplam os vastos edifícios dos templos e beijam os sagrados ossos, guardados em seda e ouro. E eis que aqui estais presente diante de mim, no altar, vós, meu Deus, Santo dos santos. Criador dos homens e Senhor dos anjos. Em tais visitas, muitas vezes é a curiosidade e a novidade das coisas que move os homens; e diminuto é o fruto de emenda que recolhem, principalmente quando fazem essas peregrinações com leviandade, sem verdadeira contrição. Aqui, porém, no Sacramento do Altar, vós estais todo presente, Deus e homem, Cristo Jesus; aqui o homem recebe copioso fruto de eterna salvação, todas as vezes que vos recebe digna e devotamente. Aí não nos leva nenhuma leviandade, nem curiosidade ou atrativo dos sentidos, mas sim a fé firme, a esperança devota e a caridade sincera.
10. Ó Deus invisível, Criador do mundo, quão maravilhosamente nos favoreceis, quão suaves e ternamente tratais com vossos escolhidos, oferecendo-vos a vós mesmo como alimento, neste Sacramento! Isto transcende todo entendimento, isto atrai os corações dos devotos e acende o seu amor. Porque esses teus verdadeiros fiéis, que empregam toda a sua vida na própria emenda, recebem muitas vezes deste augusto Sacramento copiosa graça de devolução e amor à virtude.
11. Ó graça admirável e oculta deste Sacramento, que só dos fiéis de Cristo é conhecida, mas que os infiéis e escravos do pecado não podem experimentar! Neste Sacramento se dá a graça espiritual, recupera a alma a força perdida, refloresce a formosura deturpada pelo pecado. Tamanha é, às vezes, esta graça, que, pela abundância da devoção recebida, não só a alma, mas ainda o corpo fraco sente-se munido de maiores forças.
12. É, porém, muito para chorar e lastimar a nossa tibieza e negligência, o pouco fervor em receber a Jesus Cristo, em quem reside toda a esperança e merecimento dos que se hão de salvar. Porque ele é a nossa santificação e redenção, ele
o consolo dos peregrinos e o gozo eterno dos santos. E assim é muito pra chorar o pouco caso que tantos fazem deste salutar mistério, sendo
ele a alegria do céu e a conservação de todo o mundo. Ó cegueira e dureza do coração humano, que tão pouco estima esse dom inefável, antes, com o uso cotidiano que dele faz, chega a cair na indiferença!
13. Pois, se esse augusto Sacramento se celebrasse num só lugar e fosse consagrado por um só sacerdote no mundo, com quanto desejo imaginas que acudiriam os homens a visitar aquele lugar e aquele sacerdote a fim de assistir à celebração dos divinos mistérios? Agora, porém, há muitos sacerdotes, e em muitos lugares Cristo é oferecido, para que tanto mais se manifeste a graça e o amor de Deus para com os homens, quanto mais largamente é difundida pelo mundo a sagrada comunhão. Graças vos sejam dadas, bom Jesus Pastor eterno, que vos dignais sustentar-nos a nós, pobres e desterrados, com vosso precioso corpo e sangue, e até convidar-nos, com palavras de vossa própria boca, à participação desses mistérios, dizendo: Vinde a mim todos que penais e estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei.

25 de outubro de 2013

Imitação de Cristo - Livro 3 Capítulo 59

CAPÍTULO 59

Que só em Deus devemos firmar toda esperança e confiança

1. A alma: Senhor, que confiança posso eu ter nesta vida ou qual é minha maior consolação de tudo quanto existe debaixo do sol? Não o sois vós, Senhor, Deus meu, cuja misericórdia é infinita? Onde me achei bem sem vós, ou quando passei mal, estando vós presente? Antes quero ser pobre por vós, que rico sem vós. Prefiro peregrinar convosco na terra, que sem vós possuir o céu. Onde vós estais, aí está o céu; e lá existe a morte e o inferno, onde vós não estais. Vós sois o alvo de meus desejos, por isso por vós devo gemer, clamar e orar. Em ninguém, finalmente, posso plenamente confiar que me dê auxílio oportuno em minhas necessidades, senão em vós só, meu Deus. Vós sois minha esperança, vós minha confiança, vós meu consolador fidelíssimo em todas as coisas.
2. Todos buscam os seus interesses; vós, porém, só tendes em vista minha salvação e aproveitamento, e tudo converteis em bem para mim. Ainda quando me sujeitais a várias tentações e adversidades, tudo isso ordenais para meu proveito, pois de mil modos costumais provar os vossos amigos. E nessas provações não menos vos devo amar e louvar, como se me enchêsseis de celestiais consolações.
3. Em vós, portanto, Senhor meu Deus, é que ponho toda a minha esperança e refúgio; a vós entrego todas as minhas tribulações e angústias; porque tudo quanto vejo fora de vós acho fraco e inconstante. Nada me aproveitam os muitos amigos, nem me poderão ajudar os homens, nem os prudentes conselheiros me darão conselho útil, nem os livros dos sábios me poderão consolar, nem qualquer tesouro precioso me poderá salvar, nem algum retiro delicioso me proteger, se vós mesmo não me assistis, ajudais, confortais, consolais, instruís e defendeis.
4. Pois tudo que parece próprio para alcançar a paz e a felicidade nada é sem vós, nem pode trazer-nos a verdadeira felicidade. Vós sois, pois, o remate de todos os bens, a plenitude da vida, o abismo da ciência; esperar em vós acima de tudo é a maior das consolações dos vossos servos. A ti, Senhor, levanto os meus olhos, em vós confio, Deus meu, Pai de misericórdia! Abençoai e santificai minha alma com a bênção celestial para que seja vossa santa morada, o trono de vossa eterna glória, e nada se encontre nesse tempo da vossa divindade que possa ofender os olhos de vossa majestade. Olhai para mim segundo a grandeza de vossa bondade e a multidão de vossas misericórdias e ouvi a oração do vosso pobre servo desterrado tão longe, na sombria região da morte. Protegei e conservai a alma do vosso mísero servo entre os muitos perigos desta vida corruptível, e com a assistência de vossa graça guiai-o pelo caminho da paz à pátria da perpétua claridade. Amém.

XXV de Outubro - Solidão de Jesus na Gruta de Belém.

Ecce elongavi fugiens; et mansi in solitudine — “Eis que me alonguei fugindo, e permaneci na soledade” (Ps. 54, 8).

Sumário. A fim de nos sugerir o amor à solidão e ao silêncio, quis Jesus nascer fora da cidade e numa gruta solitária. Felizes de nós se, à imitação de José e Maria, nos entretivermos com Ele nessa santa solidão. Aí o divino Menino nos falará, não ao ouvido, mas ao coração. Vendo a sua pobreza, ouvindo os seus vagidos, considerando que um Deus se reduziu a tal estado pelo nosso amor, sentir-nos-emos atraídos suavemente a Ele, e não poderemos deixar de O amar de todo o nosso coração, copiando em nós as suas virtudes.

I. Nascendo Jesus, quis escolher para sua ermida e oratório a gruta de Belém, pelo que dispôs que nascesse fora da cidade, numa solitária espelunca, a fim de nos sugerir o amor à solidão e ao silêncio. Jesus, na sua manjedoura, conserva-se silencioso; silenciosos Maria e José O adoram e contemplam. — Foi revelado a Soror Margarida do Santíssimo Sacramento (chamada a esposa de Jesus Menino), que tudo que se deu na gruta de Belém, mesmo a visita dos pastores e a adoração dos santos Magos, foi tudo feito em silêncio.

O silêncio das demais crianças provém da sua impotência, mas em Jesus Cristo foi virtude. Jesus Menino não fala, mas quanto nos diz o seu silêncio! Feliz daquele que na santa solidão do presépio se entretem com Jesus, Maria e José! Por pouco que os pastores ali se tenham demorado, voltaram todo abrasados no amor divino, pois que não cessavam de O louvar e bendizer: Reversi sunt laudantes et glorificantes Deum (1). Ó feliz da alma que se encerra na solidão de Belém para contemplar a misericórdia divina e o amor que Deus teve e ainda tem aos homens.

Ducam eam in solitudinem et loquar ad cor eius (2)  — “Eu a levarei à solidão e lhe falarei ao coração”. Na sua solidão o divino Menino nos falará, não ao ouvido, mas ao coração, convidando-nos ao amor de um Deus que tanto nos ama. Contemplando ali a pobreza daquele lindo ermitãozinho, que está numa fria espelunca, sem lume, com uma manjedoura por berço e um pouco de palha por colchão; ouvindo os vagidos e vendo as lágrimas daquele Menino inocente; considerando, enfim, que ele é o nosso Deus, como poderemos pensar em outra coisa que não seja amá-Lo? Ah! Que doce ermida é para uma alma de fé a gruta de Belém, na qual o Senhor nos fala e conversa conosco, não como rei, mas como amigo, irmão e esposo! Oh! Que paraíso é o conversar a sós com Jesus Menino na lapinha de Belém!

II. Imitemos Maria e José, que, abrasados em amor, se detém na contemplação do grande Filho de Deus feito homem e sujeito às misérias terrestres. Contemplam à sabedoria feita criança sem fala; o grande feito pequenino; o supremo tão humilhado; o rico feito tão pobre, o todo-poderoso feito fraco. Numa palavra, considerando a majestade divina oculta sob a forma de uma criança pequenina, desprezada e abandonada do mundo, fazendo e padecendo tudo para se tornar amável aos homens, roguemos-Lhe que nos admita ao seu santo retiro. Paremos ali e nunca mais dali nos afastemos.

Querido Salvador meu, Vós sois o Rei do céu, o Rei dos Reis, o Filho de Deus; como estais pois nessa gruta, abandonado por todos? Para Vos assistir não vejo senão José e vossa santa Mãe. Desejo ajuntar-me a eles para Vos fazer companhia. Não me recuseis. Não sou digno disso, mas sinto que me convidais com os vossos doces convites interiores. Sim, a Vós venho, ó amadíssimo Menino; deixo tudo para ficar só convosco, durante toda a minha vida, ó meu querido Solitário, único amor da minha alma. Que insensato que sou! No passado Vos abandonei e Vos deixei só, meu Jesus, e fui mendigar junto das criaturas prazeres miseráveis e venenosos; mas agora, iluminado pela vossa graça, não desejo senão viver só convosco, que quereis viver solitário nesta terra.

Quis dabit mih penas sicut columbae? Volabo et requiescam (1) — “Quem me dará asas como da pomba? Voarei e descansarei”. Ah! Quem me dera poder fugir deste mundo, onde tantas vezes achei a minha ruína; fugir dele e ficar sempre convosco, que sois a alegria do paraíso e amigo verdadeiro da minha alma. Senhor, prendei-me aos vossos pés, a fim de que me não aparte mais de Vós e goze a felicidade de Vos fazer contínua companhia. — Ah! Pelos merecimentos da vossa solidão na gruta de Belém, concedei-me recolhimento contínuo; de tal forma que a minha alma se torne uma cela solitária, na qual a minha única ocupação seja entreter-me convosco, submeter-Vos todos os meus afetos, amar-Vos sempre e suspirar sem cessar por sair da prisão do meu corpo, para Vos ir amar sem véu no paraíso. Amo-vos, ó bondade infinita, e espero amar-Vos sempre, no tempo e na eternidade. — Ó Maria, ó vós que podeis tudo, pedi a Jesus me prenda com os laços do seu amor e não permita me suceda perder novamente a sua graça. (II 373.)

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1. Luc. 2, 20.
2. Os. 2, 14.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 416 - 418.)

Pensamentos escolhidos de Cura d'Ars.

X X -  O santo sacrifício da missa.

Todas as boas obras reunidas não equivalem ao santo sacrifício da missa, porque são obras dos homens, e a missa é obra de Deus. O martírio não é nada em comparação: é o sacrifício que o homem faz a Deus da sua vida; a missa é o sacrifício que Deus faz ao homem do seu corpo e do seu sangue.
A voz do sacerdote, Nosso Senhor desce do céu e se encerra numa pequena hóstia. Deus detém os olhares sobre o altar. "Aquele é meu Filho bem amado, em quem coloquei todas as minhas complacências". Aos merecimentos da oferta dessa vitima ele nada pode recusar.
Como é belo ! Depois da consagração, o bom Deus esta ali como no céu !... Se o homem conhecesse bem esse mistério, morreria de amor. Deus nos poupa por causa da nossa fraqueza...
Oh ! se tivéssemos fé, se compreendêssemos o valor do santo sacrifício, teríamos muito mais zelo em assistir-lhe !

Sexta palavra de Jesus Cristo na cruz.

Cum ergo accepisset Jesus acetum, dixit: Consummatum est — “Jesus, havendo tomado o vinagre, disse: Tudo está consumado”. (Io. 9, 30)

Sumário. Consideremos como Jesus moribundo, antes de expirar, percorreu em espírito toda a sua vida. Viu todos os seus trabalhos penosos, as suas dores, as ignomínias suportadas e tudo isso ofereceu-o de novo a seu eterno Pai para a salvação do mundo. Em seguida, virando-se para nós, disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: “Ó homens, nada mais tenho a fazer para ser amado por vós; tempo é que afinal resolvais amar-me.” Amemos, portanto, a Jesus e provemos-Lhe nosso amor fazendo e sofrendo alguma coisa por seu amor, assim como Ele fez e sofreu tanto por nosso amor.

I. Nosso amabilíssimo Jesus, chegado o momento de render o último suspiro, disse com voz moribunda: Tudo está consumado. Pronunciando estas palavras, repassou em seu pensamento todo o decurso de sua vida, viu todos os seus trabalhos, a pobreza, as dores, as ignomínias que tinha sofrido e tudo ofereceu de novo a seu Pai pela salvação do mundo. Depois, voltando-se para nós disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: Homens, tudo está consumado, tudo está cumprido; a ora da vossa redenção se completou, a divina justiça está satisfeita, o paraíso está aberto. Et ecce tempus tuum, tempus amantium (1) — Eis-aqui o vosso tempo, o tempo dos que amam. É tempo, enfim, ó homens, de vos resolverdes a amar-me. Amai-me, pois, amai-me; porque nada mais tenho a fazer para ser amado por vós.

Tudo está consumado. Vede, disse então Jesus moribundo, vede o que tenho feito para adquirir o vosso amor. Por Vós tenho levado uma vida cheia de tribulações; no fim de meus dias, antes de morrer, consenti que fosse derramado o meu sangue, que me escarrassem no rosto, que me despedaçassem o corpo, que me coroassem de espinhos; finalmente, sujeitei-me a suportar as dores da agonia sobre este madeiro em que me vedes. Que resta fazer? Uma só coisa: expirar por vós. Sim, quero morrer. Vem, ó morte, eu to permito, tira-me a vida pela salvação de minhas ovelhas, amai-me, amai-me, porque já não posso ir mais longe para me fazer amar. Consummatum est — “Tudo está consumado”.

Amemos, pois, a nosso Jesus, e, conforme à exortação do Apóstolo, provemos-Lhe nosso amor, correndo com paciência generosa ao combate que em vida teremos de sustentar conta os nossos inimigos espirituais; provemos-lho resistindo até ao fim as tentações, a exemplo de Jesus Cristo mesmo, que não desceu da cruz antes de expiar e quis consumar o seu sacrifício até morrer: Per patientiam curramus ad propositum nobis certamen, aspicientes in auctorem fidei et consummatorem Iesum (2) — “Corramos pela paciência ao combate que nos é proposto, olhando para o autor e consumador da fé, Jesus”.

II. Quando as paixões interiores, as tentações do demônio, ou as perseguições da parte dos bons, nos fizerem perder a paciência e aceitar a ofensa de Deus, olhemos para Jesus crucificado que derramou todo o seu sangue pela nossa salvação e lembremo-nos que por seu amor não temos ainda derramado uma só gota de sangue: Nondum enim usque ad sanguinem restitistis, adversus peccatum repugnantes (3) — “Ainda não resististes até o sangue, combatendo contra o pecado”.

Quando tivermos de ceder em algum pundonor, de reprimir algum ressentimento, de nos privarmos de alguma satisfação, de alguma curiosidade ou de outra coisa inútil à nossa alma, tenhamos pejo de o recusarmos a Jesus Cristo. Jesus se nos deu sem reserva, deu-nos toda a sua vida, todo o seu sangue: tenhamos, pois, pejo de usarmos de reserva para com Ele. Não nos enfastiemos de fazer e sofrer alguma coisa por amor de Jesus Cristo, que por nossa salvação chegou, no dizer de Taulero, “a consumar tudo o que a justiça divina exigia, tudo o que o amor pedia, tudo o que podia dar um claro testemunho de seu amor”.

Meu amabilíssimo Jesus, tomara que eu também pudesse dizer morrendo: Senhor, tudo está consumado; tenho feito tudo que me mandastes, tenho levado com paciência a minha cruz, tenho procurado agradar-Vos em tudo. Ah, meu Deus! Se tivesse de morrer agora, morreria bem descontente de mim mesmo, pois nada disto poderia dizer. Mas, Senhor, viverei sempre tão ingrato ao vosso amor? Suplico-Vos que me concedais a graça de Vos agradar nos anos de vida que me restam, a fim de que, quando vier a morte, possa dizer-Vos que ao menos desde o dia de hoje cumpri a vossa vontade. — Se no passado Vos ofendi, a vossa morte é a minha esperança; para o futuro não Vos quero trair mais. De Vós espero a minha perseverança; eu a peço e o espero, ó meu Jesus, pelos vossos merecimentos. — Ó Maria, Mãe das dores, ajudai-me pela vossa intercessão. (*I 585)

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1. Ez. 6, 8.
2. Hebr. 12, 1.
3. Hebr. 12, 4.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 220 - 223.)