30 de abril de 2014

A pena que terá no inferno quem se condenar por ter perdido a vocação.

Pro eo quod abiecisti sermonem Domini, abiecit te Dominus, ne sis rex — “Como tu rejeitaste a palavra do Senhor, o Senhor te rejeitou a ti, para que não sejas rei” (1 Reg. 15, 23).

Sumário. O remorso de ter perdido por própria culpa qualquer grande bem, ou de ter sido causa de algum grande mal, é uma pena tão grande, que ainda nesta vida causa tormentos indizíveis. Qual não será, pois, no inferno o tormento de um religioso que se vir condenado àquele cárcere, por ter perdido a vocação, e sem esperança de poder remediar a sua eterna ruína? Desgraçado de mim! Exclamará desesperado; podia ser um príncipe no paraíso e tornei-me um dos réprobos mais infelizes!

I. O remorso de ter perdido por própria culpa algum grande bem, o de ter chamado voluntariamente sobre si qualquer grande mal, é um apena tão grande, que ainda nesta vida causa um tormento insofrível. Imagina, pois, que tormento terá no inferno um jovem, chamado por Deus, por favor singular, ao estado religioso, quando conhecer que, se obedecera a Deus, teria adquirido no paraíso um lugar distinto, e em vez disso se vir encerrado naquele cárcere de tormentos, sem esperança de remédio à sua ruína eterna!

É este o verme que, sempre vivo, sempre lhe roerá o coração com um contínuo remorso: Vermis eorum non moritur (1) — “O seu verme não morre”. Ele dirá então: Ó insensato que fui! Podia fazer-me um grande santo; se tivera obedecido, agora estaria salvo; e eis que em vez disso, por minha própria culpa, por um nada, estou condenado, e condenado sem remédio!

Conhecerá então o miserável para sua maior pena, e verá no dia do juízo universal colocados à direita de Jesus e coroados como santos, conhecerá, digo, e verá tantos companheiros seus, que obedeceram à vocação divina, e deixando o mundo, se recolheram à casa de Deus, a que ele também tinha sido chamado. Ver-se-á então apartado do consórcio dos bem-aventurados, e relegado no meio da chusma inúmera dos miseráveis réprobos, porque foi desobediente à voz de Deus. É certo que o pensamento de sua vocação lhe será no inferno como que outro novo inferno.

II. Já se sabe, como atrás se considerou, que à infelicíssima troca do céu com o inferno se expõe facilmente aquele que, para seguir o seu capricho, volta as costas ao chamamento divino. Por isso, meu irmão, já que foste chamado a fazer-te santo na casa de Deus, considera a que grande perigo te havias de expor, se voluntariamente perdesses a tua vocação. Esta vocação, que Deus te deu em sua infinita bondade, a fim de te apartar do meio dos fiéis comuns e de te dar um lugar entre os príncipes do paraíso, tornar-se-ia por tua culpa, se lhe fosses infiel, como que um inferno à parte para ti. Escolhe portanto, porque Deus Jesus Cristo põe na tua mão a escolha; escolhe: ou ser um grande rei no paraíso, ou então um condenado mais desesperado que os outros, no inferno.

Não, meu Deus, não permitais que eu Vos desobedeça e Vos seja infiel. Vejo a vossa bondade para comigo, e Vos agradeço, porque, em vez de me expulsardes da vossa face e de me desterrardes para o inferno, por mim tantas vezes merecido, me chamais a fazer-me santo e preparais para mim um lugar excelente no paraíso. Vejo que mereceria uma dupla pena se não correspondesse a esta graça, que não é concedida a todos. Senhor, quero obedecer-Vos; eis-me aqui, sou vosso, e vosso quero ser sempre.

De boa vontade aceito todas as penas e incômodos da vida religiosa a que me convidais. O que vem a ser estas penas em comparação com as penas eternas que tenho merecido? Eu já estava perdido pelos meus pecados; agora me dou todo a Vós. Disponde de mim e de minha vida como Vos aprouver.

Aceitai, ó Senhor, um condenado ao inferno, como eu era, a servir-Vos e amar-Vos nesta vida e na outra. Quero amar-Vos tanto quanto tenho merecido estar no inferno a odiar-Vos, ó Deus infinitamente amável. O Jesus meu, Vós despedaçastes as cadeias com que o mundo me tinha preso a si; Vós me livrastes da escravidão de meus inimigos. Meu amor, quero amar-Vos muito, e pelo amor que Vos tenho, quero servir-Vos sempre, e obedecer-Vos. — Minha advogada, Maria, agradeço-vos por me terdes impetrado esta misericórdia. Ajudai-me e não permitais que eu torne a ser ingrato a meu Deus, que tanto me tem amado. Obtende de Deus que eu morra sem que haja de ser infiel a tão grande graça. (IV 417.)

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1. Marc. 9, 43.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 24-27.)

Preparação para a Morte

PONTO II

Pobres pecadores! Afadigam-se com empenho para adquirir a ciência humana e procurar os bens da vida presente, que tão cedo se acaba, e desprezam os bens dessa outra vida, que jamais terá fim! De tal modo perdem o juízo, que não somente se tornam insensatos, mas se reduzem à condição dos brutos; porque, vivendo como irracionais, sem considerar o que é o bem e o mal, seguem unicamente o instinto das afeições sensuais, entregam-se ao que lisonjeia a carne, sem pensar no que perdem, nem na ruína eterna que os ameaça. Isto não é portar-se como homem, senão como besta. “Chamamos homem, — diz São João Crisóstomo, — aquele que conserva a imagem essencial do ser humano”. Ser homem é, por conseguinte, ser racional, isto é, governar-se segundo os ditames da razão e não segundo o apetite sensual.
Se Deus desse a uma besta o uso da razão, e ela conforme a razão procedesse, diríamos que procedia como homem. E, ao contrário, quando o homem se deixa guiar pelos sentidos contra a razão, deve dizer-se que procede como besta.
“Oxalá que eles tivessem sabedoria e compreendessem e previssem o fim” (Dt 32,29). O homem que se guia razoavelmente em suas obras, prevê o futuro, isto é, considera o que lhe há de acontecer no fim da vida: a morte, o juízo, e depois dele o inferno ou a glória. Quanto mais sábio é um simples aldeão que se salva, do que um monarca que se condena. “Vale mais um moço pobre, mas sábio, do que um rei velho e néscio, que não sabe prever nada para o futuro” (Ecl 4,13). Ó Deus! Não teríamos por louco aquele que, para ganhar um real, se arriscasse a perder todos os bens? E não deve passar por louco aquele que, a troco de um breve prazer, perde a sua alma e se expõe ao perigo de perdê-la para sempre? Esta é a causa da condenação de muitíssimas almas: ocupam-se em demasia dos bens e dos males presentes, e não pensam nos eternos.
Deus não nos colocou neste mundo para alcançarmos riquezas, nem adquirirmos honras ou contentarmos os sentidos, senão para procurarmos a vida eterna (Rm 6,22). E a consecução desta finalidade deve ser o nosso único interesse. Uma só coisa é necessária (Lc 10,42).
Ora, os pecadores desprezam este fim. Só pensam no presente. Caminham até ao término da vida e se acercam da eternidade, sem saberem para onde se dirigem. “Que diríeis de um piloto — diz Santo Agostinho — que mostrasse ignorar completamente o rumo que deve dar a seu navio? Todos diriam que leva a nau à sua perdição”. “Tais são — continua o Santo — esses sábios do mundo, que sabem ganhar dinheiro, entregar-se aos prazeres, obter altos cargos, mas não acertam salvar suas almas”. Sábio do mundo foi Alexandre Magno, que conquistou numerosos reinos; mas, decorrido pouco tempo, morreu, e se condenou para sempre. Sábio foi o rico avarento que soube enriquecer; e, todavia, morreu e foi sepultado no inferno (Lc 15,22). Sábio dessa espécie foi Henrique VIII, que soube manter-se no trono, apesar de sua revolta contra a Igreja. Mas, no fim de seus dias, reconhecendo que tinha perdida sua alma, exclamou: Tudo para mim está perdido! Quantos desgraçados gemem agora no inferno! Vede, dizem eles, como todos os bens do mundo passaram qual sombra e já não nos causam senão constante pesar e eterno pranto (Sb 5,8)! “Ante o homem, a vida e a morte: aquilo que ele escolher, ser-lhe-á dado” (Ecl 15,18). Cristão! diante de ti se apresentam a vida e a morte, isto é, a voluntária privação das coisas ilícitas para ganhar a vida eterna, ou o entregar-te a eles e à morte eterna... Que dizes? Que escolhes?...
Procede como homem e não como bruto. Escolhe como cristão que tem fé, e dize: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo todo e perder sua alma?” (Mt 16,26).

AFETOS E SÚPLICAS

Ó meu Deus! Destes-me a razão, a luz da fé e, contudo, portei-me como um irracional, preterindo vossa divina graça aos vís prazeres mundanos, que se dissiparam como o fumo, deixando apenas remorsos de consciência e dívidas para com vossa justiça. Ah, Senhor, não me julgueis pelo que mereço (Sl 142, 2), mas tratai-me segundo vossa misericórdia! Iluminai-me, meu Deus; dai-me dor sobre meus pecados, e perdoai-me. Sou a ovelha tresmalhada; se me não procurardes, perdido continuarei (Sl 118, 176). Tende piedade de mim, pelo sangue precioso que por mim derramastes. Arrependo-me, meu Sumo Bem, de vos ter abandonado e de ter renunciado voluntariamente à vossa graça.
Quisera morrer de dor; aumentai em mim essa contrição profunda e fazei que chegue ao céu para exaltar ali vossa infinita misericórdia...
Nossa Mãe Maria, meu refúgio e minha esperança, rogai por mim a Jesus; intercedei para que me perdoe e me conceda a santa perseverança.

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

12/26  -  Como devemos proceder nas tentações do amor próprio.

O amor próprio, a estima de nós mesmos, e a falsa liberdade de espírito, são raízes que não podemos completamente extirpar do coração, mas só impedir que deem frutos, que são os pecados; porque não podemos evitar os seus primeiros ímpetos ou movimentos, enquanto estamos nesta vida mortal, embora nos seja possível moderar ou diminuir a sua qualidade e ardor por meio da prática das virtudes contrárias, e sobretudo do amor de Deus.
É preciso, portanto, ter paciência, e cercear pouco a pouco, domar as nossas aversões e vencer as nossas tendências e gênio, segundo as ocasiões; porque em suma esta vida é uma guerra contínua, e qual é o que pode dizer: Eu não sou atacado? A paz nos esta reservada para o céu, onde nos espera a palma da vitória.
Na terra é preciso combater sempre entre o temor e a esperança, sob condição de que a esperança, deve ser mais forte, em consideração da onipotência daquele que nos auxilia.
O amor próprio só morre quando nós morremos; e tem mil meios de se abrigar na nossa alma, por ser natural, ou pelo menos, co-natural. Tem consigo uma multidão de movimentos, jeitos e paixões; é sútil e sabe mil voltas de agilidade. Convém sentir sempre os seus ataques sensíveis e as suas práticas secretas enquanto estamos neste exílio; basta que não consintamos com um propósito deliberado, firme, pleno e é tão excelente esta virtude da santa indiferença, que o nosso velho homem, na sua porção sensível, e a natureza humana, nas suas faculdades naturais não foram constantes, nem mesmo em Nosso Senhor, que, como filho de Adão, embora isento do pecado, e de tudo o que lhe pertence na sua porção sensível e faculdades humanas, não estava indiferente, mas desejava não morrer na cruz; estando reservada a indiferença e o seu exercício ao espírito, à porção suprema às faculdades abrasadas pela graça, e enfim a Ele próprio que era o novo Adão.
Estas pequenas surpresas das paixões são inevitáveis nesta vida mortal, e é por isso mesmo que clama ao céu o grande apóstolo: "Ah! como sou pobre criatura!" Sinto em mim dois homens: o velho e o novo; duas luzes: a dos sentidos e a do espírito; duas operações: a da natureza e a da graça. Ah! quem me livrará deste corpo de morte? 
É por isso que não temos a consolação que deveríamos ter quando vemos praticar o bem; porque o que em nós não vemos não é tão agradável para nós e o que vemos em nós é muito doce e bom em razão de nos amarmos terna e afetuosamente.
Este mesmo amor próprio faz com que desejamos praticar bem tal e tal coisa, à nossa escolha; mas não quereríamos fazer se outrem escolhesse, ou por obediência. Somos sempre nós que nos rendemos a nossa vontade e amor próprio. Pelo contrário, se tivéssemos perfeito amor de Deus, antes quereríamos fazer o que nos mandam; isso vem mais de Deus e menos de nós.
O vosso caminho é ótimo; nada mais há a dizer senão que considerais muito os passos temendo cair. Refletis muito sobre as tentações do vosso amor próprio, que são sem dúvida freqüentes; mas não são nunca perigosas, ao passo que sem lhe ligardes importância, podíeis dizer tranqüilamente, sem vos importardes do seu número: Não, não vos obedeço.
Caminhai com simplicidade; não desejeis tanto repouso de espírito e vereis como vos será vantajoso.
Porque vos atormentais? Deus é bom e bem vos conhece: por piores que fossem as vossas inclinações, não vos podem prejudicar, porque existem para unir com mais vantagem a vossa vontade superior com a de Deus. Elevai os vossos olhos, movidos de uma confiança perfeita na bondade de Deus. Não vos afadigueis por Ele, porque Jesus disse a Marta que o não queria, ou pelo menos achava melhor menos fadiga, ainda mesmo na prática das boas obras.
Não esquadrinheis tanto na vossa alma e nos seus progressos. Não queirais ser tão perfeito; mas vivei com boa fé nos vossos exercícios e ações que de tempos em tempos vos ocupam. Não vos inquieteis pelo dia de amanhã. E quanto ao caminho que tendes a seguir, Deus, que vos conduziu até agora, vos conduzirá até ao fim. Ficai em paz com a santa e amorosa confiança que deveis ter na benignidade da Providência celeste.
Não nos devemos admirar de encontrarmos amor próprio em nós por ele não fazer ruido. É que algumas vezes dorme como uma raposa, e depois acorda de repente; eis, aí está porque convém que o vigiemos e nos defendamos dele com paciência e coragem. Porque se algumas vezes nos fere, desdizendo-nos do que ele nos faz dizer, e desaprovando o que nos fez praticar, estamos curados. Não nos devem incomodar muitos, estes ímpetos do amor próprio; desprezando-os três ou quatro vezes cada dia, temos cumprido. Não é preciso impelí-los aos empurrões; basta dizer: Não.
Fiquemos, pois, em paz. Quando nos acontecer violar as leis da indiferença nas coisas indiferentes, por ímpetos súbitos do amor próprio e das paixões, prostremos, se pudermos, o nosso coração ante Deus, digamos com espírito de confiança e humildade: "Senhor! Misericórdia, porque estou enfermo". Levantemo-nos em paz e com tranqüilidade e reatemos o fio da nossa indiferença: depois continuemos a nossa obra.
Não devemos quebrar as cordas quando notamos desacordo; basta que prestemos atenção para ver donde provém o desarranjo e apertemos ou alarguemos a corda levemente, segundo as regras da arte.
As inclinações de orgulho, vaidade e amor próprio misturam-se em tudo e enchem com os seus sentimentos todas as nossas ações; mas nem por isso são a causa delas. São Bernardo, conhecendo um dia que o incomodavam enquanto pregava: "Retira-te de mim, Satanás, disse ele; não comecei por ti e portanto também não acaberei por ti".
Uma só coisa vos digo acerca do que me escreveis; é que excitais o vosso orgulho por afetação quando falais ou escreveis. Ao falar, a afetação passa insensivelmente, que quase se não percebe; mas embora se não perceba, convém mudar imediatamente de estilo. Ao escrever é diferente; é na verdade muito insuportável; porque percebemos melhor o que fazemos, e, se notamos afetação, convém punir a mão que escreveu, fazendo-lhe escrever outra coisa de forma diversa.
De resto, não duvido que haja alguns pecados veniais em tantas voltas e reviravoltas do coração; mas, no entanto, como são passageiras, não tiram o fruto das nossas resoluções, mas só a doçura que por estas faltas perdemos, se o permitisse o estado desta vida. Mas sejamos justos: não acuseis, nem desculpeis sem madura reflexão a vossa pobre alma, com receio de que, se a desculpardes sem fundamento, a torneis insolente, e se a acusardes ligeiramente, lhe tireis a coragem e a façais pusilânime. Caminhai com simplicidade e caminhareis com segurança.
Esta porção de pensamentos que afligem a vossa alma não devem por forma alguma se espancados, porque quando acabareis vós de os vencer? É só preciso algumas vezes ao dia desprezá-los em massa e depois deixar o inimigo fazer a bulha que quiser à porta do vosso coração, porque isso pouco importa, contanto que não entre. Deixai-vos, pois, ficar em paz na guerra, e não vos amotineis, porque Deus está por vós.

29 de abril de 2014

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XX

Loucura do pecador
Sapientia enim hujus mundi stultitta est apud Deum. A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus (1Cor 3,19).

PONTO I

O bem-aventurado João d’Ávila dizia que neste mundo deveria haver dois grandes cárceres: um para aqueles que não têm fé, e outro para aqueles que, tendo-a, vivem em pecado e afastados de Deus. A estes, acrescentava, conviria o hospício de loucos. Mas a maior desdita destes miseráveis consiste em que, não obstante sua cegueira e insensatez, julgam ser sábios e prudentes. E pior é que seu número é infinito (Ecl 1,15). Há quem enlouqueça pelas honras; outros, pelos prazeres; não poucos, pelas futilidades da terra. E se atrevem a considerar loucos os santos, que desprezam os bens mesquinhos do mundo para conquistar a salvação eterna e o Sumo Bem, que é Deus. A seus olhos é loucura sofrer desprezos e perdoar ofensas; loucura, o privar-se dos prazeres sensuais e preferir a mortificação; loucura, renunciar às honras e às riquezas, e amar a solidão, a vida humilde e oculta. Não consideram, no entanto, que a essa sua sabedoria mundana Deus chama necessidade:
“A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1Cor 3,19). Ah!... Virá o dia em que confessarão e reconhecerão a sua demência...
Quando, porém? Quando já não houver remédio possível e tenham que exclamar desesperados: “Desgraçados de nós, que reputávamos loucura a vida dos santos! Agora compreendemos que os loucos fomos nós. Eles já se contam no número feliz dos filhos de Deus e compartilham a sorte dos bem-aventurados, que durará eternamente e os fará felizes para sempre... ao passo que nós ficamos escravos do demônio, condenados a arder neste cárcere de tormentos por toda a eternidade!... Enganamo-nos, pois, querendo cerrar os olhos à luz divina (Sb 5,6), e nossa maior desventura é sabermos que o nosso erro não tem nem terá remédio enquanto Deus for Deus.
Que imensa loucura é, portanto, perder a graça de Deus em troca de um pouco de fumo, de um breve deleite!... Que não faz um vassalo para obter as boas graças de seu soberano?... E, no entanto, ó meu Deus, por uma miserável satisfação perder o Bem supremo, perder a glória, perder também a paz nesta vida, deixando que o pecado reine na alma e a atormente com seus incessantes remorsos... Perder tudo, e condenar-se voluntariamente à desgraça interminável!... Entregar-te-ias àquele prazer ilícito, se, de antemão, soubesses que te queimarias a mão ou que ficarias encerrado por um ano, num túmulo? Cometerias tal pecado, se, por causa dele, perderias cem escudos? E, contudo, tens fé e crês que, pecando, perderás a Deus e serás condenado ao fogo eterno... Como te atreves a pecar?

AFETOS E SÚPLICAS

Deus de minha alma!... Que seria agora de mim se não tivésseis tido tanta misericórdia para comigo? Estaria no inferno, entre os insensatos a quem fui semelhante. Dou-vos graças, Senhor, e vos peço que não me abandoneis em minha cegueira. Bem o merecia, mas vejo felizmente que vossa graça ainda não me tem abandonado. Ouço que me chamais amorosamente e me convidais a pedir-vos perdão e esperar de vós a concessão de dons altíssimos, apesar das graves ofensas que vos fiz. Sim, meu Salvador, espero que me acolhereis como filho vosso.
Não sou digno de que me chameis filho, porque vos ultrajei atrevidamente (Lc 5,21). Sei, porém, que vos comprazeis em ir à procura da ovelha tresmalha-da e em abraçar os filhos perdidos. Meu Pai amantíssimo, arrependo-me de vos ter ofendido; a vossos pés me prostro e os abraço e não me levantarei enquanto não me concederdes o perdão e a bênção! (Gn 32,26) Abençoai-me, meu Pai, e com vossa bênção despertai em mim grande dor de meus pecados e amor ardente por vós. Amo-vos meu Pai, de todo o coração. Não permitais que me afaste de vós! Privai-me de tudo, menos do vosso amor.
Ó Maria, se Deus é meu Pai, sois vós minha Mãe. Abençoai-me também, e, já que não mereço ser filho, recebei-me como vosso servo.
Fazei, porém, que seja um servo que vos ame sempre com ternura e confie sempre em vossa proteção.

Vaidade do mundo.

Quid prodest homini, si mundum universum lucretur, animae vero suae detrimentum patiatur? — “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma:” (Matth. 16, 26.)

Sumário. Os nossos parentes e amigos que estão na eternidade, lá da outra vida nos recomendam que não diligenciemos alcançar neste mundo senão os bens que nem mesmo a morte nos faz perder. Com efeito, de que aproveita ganharmos o mundo inteiro, se depois perdermos a alma? Perdida a alma, perdemos tudo! Penetrados desta grande máxima, quantos jovens se resolveram a encerrar-se nos claustros, quantos anacoretas a viver nos desertos, quantos mártires a dar a vida por Jesus Cristo!

I. Um filósofo antigo, de nome Aristipo, fez em certa ocasião uma viagem por mar. O navio naufragou e o filósofo perdeu todos os seus bens, mas arribou felizmente à praia. Como era muito conhecido pelo seu saber, os habitantes do país o indenizaram de tudo que tinha perdido. Pelo que escreveu depois aos amigos da pátria que, avisados pelo seu exemplo, se premunissem somente daqueles bens que nem com o naufrágio se perdem. É isto exatamente o que lá do outro mundo nos recomendam os parentes e amigos que estão na eternidade: isto é, que não diligenciemos alcançar neste mundo senão os bens que nem a morte nos faz perder.

De que nos serve, diz Jesus Cristo, ganhar o mundo inteiro, se na morte, perdida a alma, perdemos tudo? Quid prodest homini, si universum mundum lucretur? Penetrados desta grande máxima, quantos jovens resolveram encerrar-se nos claustros, quantos anacoretas foram viver no deserto, quantos mártires deram a vida por Jesus Cristo! — Com esta máxima Santo Inácio de Loyola ganhou muitas almas para Deus; especialmente a bela alma de São Francisco Xavier, que estando em Paris se entregava a projetos mundanos. “Francisco”, disse-lhe um dia o Santo, “pensa que o mundo é traidor, que promete e não cumpre. Ainda quando cumprisse o que te promete, nunca poderia contentar-te o coração. Suponhamos que te contente: quanto tempo durará a tua felicidade? Mais que a vida? E afinal, o que poderás levar para a eternidade? Há porventura algum rico que tenha levado consigo uma moeda sequer, ou um criado para a sua comodidade? Há porventura algum rei que tenha levado consigo um fio de púrpura como distintivo?”

Tocado destas reflexões, Francisco renunciou ao mundo, seguiu Santo Inácio; e se fez santo. Vanitas vanitatum — “Vaidade das vaidades!” — era assim que Salomão chamava a todos os bens do mundo, depois de não se ter recusado prazer algum dos que o mundo pode oferecer: Vanitas vanitatum, et omnia vanitas (1) — “Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade!

II. Procuremos viver de maneira que se nos não possa dizer na morte o que foi dito àquele egoísta do Evangelho: Stulte, hac nocte animam tuam repetent a te, quae autem parasti, cuius erunt? (2) — “Insensato, vais morrer, e que será feito dos bens que amontoaste?” Procuremos ser ricos não em bens mundanos, mas em Deus, em virtudes e em merecimentos, bens estes que nos acompanharão para sempre no céu. Numa palavra, cuidemos adquirir o grande tesouro do amor divino; pois que, no dizer de Santo Agostinho, embora estejamos de posse de todas as riquezas, seremos os mais pobres do mundo, senão possuirmos a Deus; o pobre, porém, que possui a Deus pelo amor, possui tudo.

Ah, meu Jesus, meu Redentor! Graças Vos dou por me terdes feito conhecer o meu desvairamento e o mal que fiz, voltando as costas a quem por mim sacrificou o sangue e a vida. Em verdade que não merecíeis da minha parte ser tratado como Vos tratei. Se a morte me surpreendesse nesta hora, que haveria em mim senão pecados e remorsos de consciência, que me fariam morrer em grande inquietação? Meu Salvador, confesso que fiz mal abandonando-Vos, o supremo Bem, pelas miseráveis satisfações deste mundo. Do fundo do coração me arrependo. Ah! Por essa dor que Vos fez morrer na cruz, dai-me tão grande dor de meus pecados que me faça chorar durante o resto da minha vida os agravos que contra Vós cometi. Meu Jesus, meu Jesus, perdoai-me; prometo nunca mais desagradar-Vos e amar-Vos sempre.

Senhor, não sou mais digno de vosso amor, porque o desprezei tanto no passado; mas Vós dissestes que amais a quem Vos ama: Ego diligentes me diligo (3). Amo-Vos; amai-me, pois, também. Não quero mais estar na vossa desgraça. Renuncio a todas as grandezas e gozos do mundo, contanto que me ameis. Meu Deus, atendei-me por amor de Jesus Cristo. Ele Vos pede que não me repilais do vosso coração. A Vós me consagro sem reserva; sacrifico-Vos a minha vida, as minhas satisfações, os meus sentidos, a minha alma, o meu corpo, a minha vontade e liberdade. Aceitai-me; e não me desprezeis, como o merecia, por ter tantas vezes desprezado a vossa amizade. — Virgem Santíssima e minha Mãe, Maria, pedi a Jesus por mim; em vossa intercessão deposito toda a minha confiança. (II 59.)

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1. Eccles. 1, 2.
2. Luc. 12, 20.
3. Prov. 8, 17.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 24-27.)

28 de abril de 2014

Da caridade fraterna.

Diliges proximum tuum tamquam teipsum — “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Marc. 12, 31).

Sumário. Ninguém pode amar a Deus sem que tenha amor ao próximo, porquanto o amor de Deus e o do próximo nascem da mesma caridade, e o mesmo preceito que nos obriga ao primeiro, obriga-nos também ao segundo. Examinemos em que estima tivemos até agora um preceito tão importante, e, se porventura tivermos de reconhecer faltas, façamos firme propósito de ser para o futuro mais exatos, lembrando-nos que da observância da caridade depende o sermos cristãos, não só de nome, mas de fato.

I. Não se pode amar a Deus sem amar ao mesmo tempo ao próximo. O mesmo preceito que nos manda o amor para com Deus, manda-nos igualmente o amor para com os nossos irmãos: Et hoc mandatum habemus a Deo, ut, qui diligit Deum, diligat et fratrem suum (1) — “Nós temos de Deus este mandamento, que o que ama a Deus, ame também a seus irmão”. D'onde infere Santo Tomás de Aquino, que da mesma caridade nasce o amor para com Deus e o para com o próximo, porque a caridade nos faz amar tanto a Deus como ao próximo, visto que assim o quer o próprio Deus. — Deste modo compreende-se o que São Jerônimo refere de São João Evangelista. Perguntando-lhe os seus discípulos, porque tão repetidas vezes lhes recomendava o amor fraternal, respondeu o Santo: “Porque é o preceito do Senhor; sendo bem observado, basta para a salvação.”

Certo dia Santa Catarina de Sena disse ao Senhor: “Meu Deus, quereis que eu ame ao meu próximo; mas eu não posso amar senão a Vós.” Respondeu-lhe o nosso Salvador: “Minha filha, aquele que me ama, ama todas as coisas que eu amo.” — Com efeito, quem ama alguma pessoa, ama também os parentes, os servos, as imagens e até as vestes da pessoa amada, pela razão que esta ama tais coisas. E porque é que nós devemos amar ao próximo? Porque aqueles a quem amamos são objeto da benevolência de Deus.

Por isso escreve São João que é mentiroso o que diz que ama a Deus e odeia a seu irmão (2). Ao contrário, diz Jesus Cristo que aceitará como feita a si próprio a caridade de que usarmos para com o mais pequenino de seus irmãos, que tais são os nossos próximos (3). — Examina-te aqui, se tens até agora tido na devida estima o preceito tão importante da caridade, e toma a resolução de seres mais exato para o futuro. Lembra-te que da observância deste preceito depende o seres cristão não só de nome, mas também de fato: In hoc cognoscent omnes, quia discipuli mei estis: si dilectionem habueritis ad invicem (4) — “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”.

II. Induite vos ergo, sicut electi Dei, viscera misericordiae (5) — “Vós, como escolhidos de Deus, revesti-vos de entranhas de misericórdia”. Eis aí o que, segundo São Paulo, deve fazer o cristão para conservar a caridade para com o próximo. Ele diz: induite: revesti-vos, de caridade. Assim como o homem leva para toda parte o seu vestido, que o cobre inteiramente, assim deve levar consigo a caridade em todas as suas ações e cobrir-se todo inteiro com ela. Diz ainda: induite viscera misericordiae — “revesti-vos de entranhas de misericórdia”. O cristão deve revestir-se, não somente de caridade, mas de entranhas de caridade, o que quer dizer que deve ter para com os seus irmãos tão grande ternura de afeto, como se cada um fosse o seu predileto particular.

Quem ama vivamente uma pessoa, pensa sempre bem dela, alegra-se pela sua prosperidade e entristece-se pelos seus males, como se fossem os próprios. Quando a pessoa amada comete uma falta, que empenho em defendê-la, ao menos em diminuir-lhe a culpa! Quando, ao contrário, faz algum bem, o amigo se desfaz em louvores e enaltece-a até às estrelas. Eis o que faz a paixão. Ora, o que a paixão faz nas pessoas mundanas, deve fazê-lo em nós a santa caridade, e não só para com aqueles que nos fazem bem, mas ainda para com aqueles que nos tenham ofendido.

Ah, meu Redentor, quão longe estou de me parecer convosco! Vós não fostes senão caridade para com os vossos perseguidores, e eu rancoroso e odiento para com o meu próximo! Vós rogastes com tanto amor pelos que Vos crucificaram, e eu só penso em tomar vingança de quem me desagradou! Perdoai-me, ó meu Jesus, não quero mais ser o que fui. Proponho firmemente imitar-Vos de hoje em diante, custe o que custar; proponho amar a quem me ofende e fazer-lhe bem. Dai-me a graça de Vos ser fiel. — Ó Maria, Mãe de Deus, rogai a Jesus por mim; dai-me uma parte de vosso amor para com o próximo; a vossa proteção é a minha esperança. (*IV 178).

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1. 1 Io. 4, 21.
2. 1 Io. 4, 20.
3. Matth. 25, 40.
4. Io. 13, 35.
5. Col. 3, 12.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 21 - 24.)

Preparação para a Morte

PONTO III

Consideremos agora o estado infeliz de uma alma que cai no desagrado de Deus. Vive separado de seu Sumo Bem, que é Deus (Is 59,2); de sorte que ela já não é de Deus, nem Deus já é seu (Os 1,9). E não somente não a considera como sua, mas detesta-a e a condena ao inferno. O Senhor não detesta a nenhuma das suas criaturas, nem às feras, nem aos répteis, nem ao mais vil dos insetos (Sb 2,25). Entretanto, não pode deixar de aborrecer o pecador (Sl 5,7); porque, sendo impossível que não odeie o pecado, inimigo absolutamente contrário à sua divina vontade, deve necessariamente aborrecer o pecador que se conserva unido à vontade do pecado (Sb 14,9).
Ó meu Deus! Se alguém tem por inimigo a um príncipe do mundo, não pode repousar tranqüilo, receando a cada instante a morte. E aquele que for inimigo de Deus, como pode ter paz? Da ira de um rei se pode escapar, ocultando-se ou emigrando para outro país; mas quem pode livrar-se das mãos de Deus? “Senhor, — dizia David, — se subir ao céu, ali estás, se descer ao inferno, estás ali presente... A todo e qualquer lugar aonde vá, tua mão alcançar-me-á” (Sl 138,8-10).
Desgraçados pecadores! São amaldiçoados por Deus, amaldiçoados pelos anjos, amaldiçoados pelos santos, e ainda amaldiçoados na terra, todos os dias, pelos sacerdotes e religiosos que, ao recitar o ofício divino, proferem a maldição (Sl 118,2). Além disso, o desafeto de Deus traz consigo a perda de todos os merecimentos. Ainda que uma pessoa tivesse merecido tanto como um São Paulo Eremita, que viveu noventa e oito anos numa gruta; tanto como um São Francisco Xavier, que conquistou para Deus dez milhões de almas; tanto como São Paulo, que por si só alcançou — segundo afirma São Jerônimo — mais merecimentos que todos os outros apóstolos, se tal pessoa cometesse um só pecado mortal, perderia tudo (Ez 18,24); tão grande é a ruína que produz a queda no desagrado do Senhor! De filho de Deus, o pecador converte-se em escravo de Satanás; de amigo predileto torna-se odioso inimigo; de herdeiro da glória, em condenado do inferno. Dizia São Francisco de Sales que, se os anjos pudessem chorar, certamente chorariam de compaixão ao verem a desdita de uma alma que comete um pecado mortal e perde a graça divina.
Entretanto, a maior tristeza é que os anjos chora-riam, se pudessem chorar, e o pecador não chora. Aquele que perde um cavalo, uma ovelha — diz Santo Agostinho — já não come, já não descansa, mas chora e lastima-se. Mas, se perde a graça de Deus, come, dorme e não se queixa!

AFETOS E SÚPLICAS

Vede, Redentor meu, a que estado lamentável me acho reduzido! Para me tornardes digno de vossa graça, passastes trinta e três anos de trabalhos e sofrimentos, e eu, em um instante, por um momento de prazer envenenado a desprezei e perdi. Graças mil rendo à vossa misericórdia, que ainda me dá tempo de recuperá-la, se, de fato, o quiser.
Sim, meu Senhor; quero fazer tudo quanto possa para readquiri-la.
Dizei-me o que devo fazer para obter o perdão. Quereis que me arrependa? Pois bem, meu Jesus, arrependo-me de todo o coração de ter ofendido a vossa bondade infinita... Quereis que vos ame? Amo-vos sobre todas as coisas. Mal andou na vida passada o meu coração, amando as criaturas e as vaidades do mundo. De agora em diante, só viverei para vós e só a vós amarei, meu Deus, meu tesouro, minha esperança e minha fortaleza (Sl 17,1). Vossos méritos, vossas sacratíssimas chagas, serão minha esperança. É de vós que espero a força necessária para vos ser fiel. Acolhei-me, pois, em vossa graça, ó meu Salvador, e não permitais que jamais vos abandone. Desprendei-me dos afetos mundanos e infla-mai meu coração em vosso santo amor.
Maria, minha Mãe, fazei que minha alma arda em amor de Deus, tal como arde a vossa eternamente.

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.


11/26  -  Das tentações de blasfêmia e de infidelidade.

Não deveis nem podeis crer que as tentações de blasfêmia e infidelidade venham de Deus; e quem vos disse que Deus era seu autor? Podem vir das trevas; da falta ou desvio da ação espiritual; da amargura da boca interior, que torna amargo o vinho mais doce; mas virem do nosso bom Deus sugestões de blasfêmia e infidelidade, isso não pode ser; é muito puro para as conceber.
Sabeis como Deus faz? Permite que o maligno, artífice de tais obras e as venha apresentar à venda, para que com o desprezo que lhe mostrarmos possamos provar o nosso afeto às coisas divinas. Fazia assim com o Santo Jó, com Santa Catarina de Sena e com um grande número de almas boas que eu conheço, e com a minha alma que nada vale e que eu não conheço. E então por esse motivo, havemos de afligir-nos? Deixai-o maquinar, conservai as portas bem fechadas, que ele se cansará, ou Deus, enfim, o obrigará a levantar o cerco.
Lembrai-vos do que me parece ter dito há pouco: É bom sinal que ele faça tanto barulho em torno da alma; é porque ainda não esta dentro. Coragem; enquanto puderes dizer com resolução, embora sem sentimento: Viva Jesus! nada devemos temer.
E não me objeteis que vos parece que o dizeis com franqueza e sem coragem, nem força, mas como com violência. "Oh meu Deus que nos dá os céus"!
Vede; é sinal de que esta tudo tomado, tudo ganhou na nossa fortaleza, menos o baluarte inexpugnável, que não se pode perder se não o quisermos. 
É enfim, esta vontade livre, que, desprovida ante Deus, reside na suprema e mais espiritual parte da nossa alma e que só depende de si e do seu Deus; e quando todas as outras faculdades da alma estão transformadas pelo inimigo, ela fica senhora de si mesma, para não consentir.
As almas afligem-se, porque o inimigo ocupando todas as outras faculdades, faz ali um ruído e vozeria enorme. Mal se pode ouvir o que se diz e faz na vontade superior, que tem a voz mais clara e viva do que a inferior; mas esta a tem tão áspera e grossa, que abafa a limpidez da outra.

27 de abril de 2014

PRIMEIRO DOMINGO DEPOIS DA PÁSCOA.

A personalidade de Jesus Cristo

O Evangelho tem descrições tão curtas quão sublimes para mostrar-nos a doce e insinuante fisionomia do divino Mestre.

Na cena de hoje, por exemplo, como tudo é suave e deixa entrever a personalidade única de Jesus! A paz seja convosco. E dito isto mostrou-lhes as mãos e o lado!... E disse-lhes pela segunda vez: A paz seja convosco. Assim como meu Pai me enviou, assim eu vos envio!

Tal linguagem não é de um simples homem; sente-se em cada palavra a inspiração divina... mais do que isso: a personalidade divina.

Há qualquer coisa de tão ideal nestas palavras, que nos sentimos como aniquilados diante da sua soberana penetração.

Procuremos conhecer a fundo a grande e incomparável personalidade de Jesus Cristo, meditando:

1. A transcendência e
2. A independência desta personalidade.

São dois caracteres que vão mostrar-nos Jesus Cristo na majestade da sua incomparável beleza de Deus-Homem.

I. Transcendência da sua personalidade

A beleza moral de Jesus Cristo é sem limites e sem termo de comparação. Esta beleza não é simplesmente um ideal, é uma realidade.

De fato, neste mundo a imaginação do gênio procura idealizar a realidade. Mas, em Jesus Cristo, a realidade é tão sublime que domina o ideal... e o homem sente-se impotente em imaginar uma beleza mais ideal do que a realidade que n'Ele admira.

A personalidade é outro traço da sua grandeza. O que limita a personalidade é o tempo, o lugar, a raça.

Por grande que seja um homem, ele sai das entranhas de um povo e traz os característicos deste povo. E tanto maior é o gênio que o distingue quanto mais profundamente encarna ele o gênio da parte da humanidade de que é filho.

O grande Hebreu é Isaías!
O grande Árabe é Jó!
O grande Romano é Tácito!
O grane Italiano é Dante!
O grande Inglês é Shakespire!
O grande Francês é Bossuet!
O grande Brasileiro é Rui Barbosa!

E Jesus Cristo, que é Ele? Nem Hebreu, nem Romano, nem Italiano, nem Francês, nem Inglês, nem Brasileiro; nem antigo, nem moderno... Ele é de todos os tempos, de todos os séculos, de todas as nações, sem ter a personalidade de uma nação, de um país ou de um século. Ele não é um homem de tempos, Ele é O homemFilius hominis, como Ele mesmo se intitula: o Filho do homem em geral, mas de nenhum homem em particular.

Nos demais homens nunca se encontra a humanidade completa, perfeita: é uma humanidade idealizada, limitada. Em Jesus Cisto é a humanidade perfeita, sem limites, sem localização de idéias nacionais.

Ele é O Homem acima de todos os homens; Ele é o Cristo, acima de todos os preconceitos e vacilações humanas.

É uma personalidade transcendental, universal. E convém notar que tal universalidade não é em Jesus Cristo uma impersonalidade.

Nunca personalidade foi tão acentuada e tão distinta como a d'Ele. É o que consiste seu segundo caráter: o da independência.

II. Independência da sua personalidade

Os homens dependem sempre de seu tempo, do lugar e da raça a que pertencem.

De quem depende Jesus Cristo?

Nem da multidão que O aclama, nem de seus discípulos, nem de seu século, nem das opiniões e idéias que O cercam.

Ninguém pode ufanar-se de te sido o seu mestre.

A sua personalidade é de uma universalidade original, tendo uma sublimidade pessoal, que é só d'Ele... e a qual Ele não recebeu de ninguém.

Moisés é Judeu, pelos seus sentimentos e costumes;
Sócrates nunca ultrapassou o tipo Grego;
Maomé é o Árabe em toda parte;
Bossuet, La Fontaine, Lacordaire, são os representantes da raça Francesa, como Rui Barbosa se conhece pela expansão do tipo Brasileiro.

Em cada um destes grandes homens há característicos locais, transitórios, que não compreendem os povos de outras nações e que não só podem imitar em outros países nem em outros séculos.

São diferenças curiosas que nos mostram serem esses gênios puros homens, só homens, embora os maiores dos homens.

Em Jesus Cristo, nada disso existe: o transitório e a dependência faltam em sua personalidade.

Vemos n'Ele a humanidade: não se vê o que limita ou restringe esta humanidade. Ele é o modelo universal proposto à imitação universal.

Todas as classes copiam-No: a criança, a mocidade, a mãe, o ancião; todas as condições d'Ele se aproximam para encontrar n'Ele consolação e força: o pobre como o rico, o prisioneiro como o Rei, todos olham para Ele; e para todos Jesus Cristo é O Homem-Deus.

O movimento dos séculos e a civilização traz novas fisionomias ao palco do mundo. Jesus Cristo é o mesmo para todos: Ele não muda, enquanto tudo se altera em redor d'Ele. Ele permanece a personalidade única, universal, simpática e acessível a todos, imitada por todos e nunca igualada.

A humanidade marcha, anda depressa. Ela aclama em sua passagem, os gênios que se levantam para segurar-lhes o archote; porém, logo depois, ela os deixa atrás de si.

Newton foi admirável, mas passou.
Cuvier fez um revolução na geologia, mas passou.
Copérnico espargiu nova luz, mas passou.
Galileo e Lavoisier passaram.
Montgolfier, Dumont foram ultrapassados pelos seus sucessores.

Mas quem já ultrapassou a Jesus Cristo?

Há 19 séculos que os homens se sucedem, que a humanidade progride, mas ainda ninguém soube completamente compreender, nem imitar a Jesus Cristo.

Ele permanece para todos a realidade ideal inesgotada e inesgotável.

III. Conclusão

Como conclusão, citemos uma passagem de um inimigo encarniçado do Catolicismo, o triste Renan, que procurou provar que Jesus Cristo não passava de um simples homem, mas que, mau grado seu, foi obrigado a confessar a sua divindade.

“Descansa em tua glória, nobre iniciador — escreve Renan — a tua obra está terminada!

Mil vezes mais vivo, mil vezes mais amado, depois da tua morte, do que durante os dias da tua vida, tu serás a pedra angular da humanidade, a tal ponto que, arrancar o teu nome deste mundo seria abalá-lo até em seus alicerces! Entre Deus e ti, não há mais distinção! Plenamente vencedor da morte, toma possessão de teu reino, onde te seguirão pelo caminho real que traçaste, séculos de adoradores.” (Renan, vida de Jesus Cristo. P. 426)

Sim, Jesus Cristo é Deus, Homem-Deus, e tal se nos aparece em sua sublime fisionomia e em sua incomparável personalidade.

EXEMPLO

A pessoa de Jesus Cristo

A propósito da página de Beauterno citada acima, recolhamos um curto comentário sobre o mesmo assunto, do eloqüente P. Lacordere.

Na 37a. Conferência em Notre-Dame, o inimitável orador dizia, em sua linguagem tão serena quão suave e profunda:

“A nossa época começou com um homem que sobrepujou todos os seus contemporâneos e que nós, vindos depois, não temos igualado.

Conquistador, legislador, fundador de império, Ele teve um nome e um pensamento que estão ainda na memória de todos.

Depois de ter feito a obra de Deus, sem nela acreditar, ele desapareceu quando esta obra esteve terminada; ele deitou-se como um astro nas águas profundas do Oceano Atlântico.

Ali, em cima do rochedo, ele gostava de repassar a sua própria vida e remontando de si a outras vidas, às quais tinha o direito de comparar-se, não pode evitar de entrever, neste teatro de que fazia parte, uma personalidade maior do que a sua.

Contemplou-a muitas vezes: a desgraça abre a alma para receber luzes que a prosperidade não sabe discernir.

A tal personalidade voltava sempre e cada vez mais imponente: era necessário julgá-la um dia.

Uma tarde deste longo exílio que redimia as faltas do passado e iluminava a estrada do porvir, o conquistador decaído indagou de um dos seus companheiros de catividade se podia dizer-lhe o que era Jesus Cristo.

O soldado desculpou-se; havia estado por demais absorvido em sua vida militar para ocupar-se deste assunto.

- Como? Retorquiu dolorosamente o interlocutor. Tu foste batizado na Igreja Católica e tu não podes dizer-me, a mim, sobre esse rochedo que nos devora, o que era Jesus Cristo?

Pois bem, sou eu que vou dizê-lo.

Então, abrindo o Evangelho, não com a mão, mas com o coração que dele estava repleto, ele começou a comparar Jesus Cristo consigo mesmo e com todos os grandes homens da história; salientou as diferenças características que colocam Jesus Cristo acima de todos os homens e depois de uma torrente de eloquência, que não desdenharia nenhum doutor da Igreja, terminou com estas palavras:

Eu conheço os homens a fundo e digo que Jesus Cristo não é um simples homem!

Estas palavras resumem tudo o que queria dizer da vida íntima de Jesus e a impressão que cedo ou tarde experimenta aquele que lê o Evangelho com atenção e equidade.

Um dia, sobre o túmulo de seu grande Capitão, a França gravará estas palavras e elas ali resplandecerão com uma intensidade mais imortal do que as Pirâmides e Austerbitz.

(MARIA, P. Júlio. Comentário Apologético do Evangelho Dominical. O Lutador, 1940, p. 173 - 179)

PRIMEIRO DOMINGO DEPOIS DA PÁSCOA.

Só em Deus se acha a verdadeira paz.

Venit Iesus, et stetit in medio, et dixit eis: Pax vobis — “Veio Jesus, e pôs-se no meio e disse-lhes: A paz seja convosco” (Io. 20, 9).

Sumário. Assim é: só em Deus se acha a verdadeira paz; porque, tendo Deus criado o homem para si, o Bem infinito, só Ele pode fazê-lo contente. Quem quiser gozar esta paz, deve repelir de seu coração tudo que não seja Deus, que feche as portas dos sentidos a todas as criaturas e viva como que morto aos afetos terrestres. É isto exatamente o que o Senhor quis dar a entender aos apóstolos, quando, aparecendo para lhes anunciar a paz, quis ambas as vezes entrar aonde estavam os apóstolos, estando as portas fechadas.

I. Refere São João que, achando-se os apóstolos juntos numa casa, Jesus Cristo ressuscitado entrou ali, posto que as portas estivessem fechadas, e pondo-se no meio, disse-lhes duas vezes: A paz seja convosco. Repetiu as mesmas palavras oito dias depois, aparecendo-lhes mais uma vez, estando fechadas as portas. Pax vobis — “A paz seja convosco”. — Com estas palavras quis Jesus Cristo dar-nos a entender “que Ele é a nossa paz; Ele que dos dois fez um, desfazendo em sua carne, com o sacrifício de sua vida, o inconsistente muro de separação, as inimizades”. (1)

Com efeito: só em Deus se acha a verdadeira paz; porque, tendo Deus criado o homem para si mesmo, o Bem infinito, só Ele pode plenamente satisfazê-lo. Delectare in Domino, et dabit tibi petitiones cordis tui (2) — “Deleita-te no Senhor, e te outorgará as petições de teu coração”. Quando alguém acha as suas delícias só em Deus e não busca coisa alguma fora d'Ele, Deus cuidará em satisfazer-lhe todos os desejos do coração.

Insensatos portanto são aqueles que dizem: Bem-aventurado o que pode gastar dinheiro à vontade! Que pode mandar nos outros! Que pode gozar os prazeres que deseja. Loucura! Bem-aventurado é somente o que ama a Deus, o que diz deveras que Deus só lhe basta. A experiência demonstra bem patentemente, que muitos dos que o mundo chama felizes, por grandes que sejam as suas riquezas e altas as suas dignidades, todavia levam vida infeliz, nunca estão contentes, jamais gozam um dia de verdadeira paz. Ao contrário, tantos bons religiosos que vivem num deserto ou numa gruta, sujeitos a enfermidades, à fome, ao frio, estão contentes e exultam de alegria. E porque? Porque eles só se ocupam com Deus, Deus os consola. Ah! A paz que o Senhor faz provar a quem O ama, está acima de todas as delícias que o mundo pode dar! Pax Dei quae exsuperat omnem sensum (3).

II. Gustate et videte, quoniam suavis est Dominus (4) — “Provai e vede quão suave é o Senhor”. Ah, mundanos! Exclama o Profeta, porque desprezais a vida dos santos, sem que a tenhais experimentado? Experimentai-a uma só vez: afastai-vos do mundo, dai-vos a Deus, e vereis quanto melhor sabe Ele consolar-vos do que todas as grandezas e delícias que andais procurando para vossa perdição. — Verdade é que também os santos sofrem na vida presente grandes tribulações; mas com a resignação à vontade de Deus, nunca perdem a paz. Numa palavra, eles estão acima das adversidades e vicissitudes deste mundo, e por isso vivem sempre numa tranqüilidade imperturbável.

Mas quem quiser estar sempre unido com Deus e gozar continua paz, deve banir do coração tudo que não seja Deus, guardar as portas dos sentidos fechadas a todas as criaturas e viver como que morto aos afetos terrestres. É exatamente o que o Senhor quis dar a entender, quando, na aparição aos apóstolos, entrou duas vezes, como narra o Evangelho, estando fechadas as portas: cum fores essent clausae. “Em sentido místico”, explica Santo Tomás, “devemos aprender disso que Jesus Cristo não entra em nossas almas enquanto não tivermos fechado as portas dos sentidos.”

Pai Eterno, pelo amor de Jesus Cristo, ajudai-me a romper todos os laços que me prendem ao mundo. Fazei com que eu não pense em outra coisa senão em Vos agradar. Felizes daqueles a quem só Vós bastais! Senhor, dai-me a graça de não buscar nada fora de Vós e de não desejar senão o vosso amor. Por vosso amor renuncio também as consolações espirituais. Nada mais desejo senão cumprir a vossa vontade e dar-Vos gosto. “Fazei, ó Deus todo poderoso, com que havendo concluído a celebração das festas pascais, pela vossa graça conserve, na vida e costumes, o espírito das mesmas. (5) — Ó Mãe de Deus, Maria, recomendai-me a vosso Filho, que não vos nega nada. (*II 301.)

---------------
1. Eph. 2, 14.
2. Ps. 36, 4.
3. Phil. 4, 7.
4. Ps. 33, 9.
5. Or. Dom. curr.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 19 - 21.)

Preparação para a Morte

PONTO II

Disse São Tomás de Aquino que o dom da graça excede a todos os dons que uma criatura possa receber, porque a graça é a participação da própria natureza divinal. Já antes havia dito São Pedro: “Para que por isso sejais participantes da divina natureza”. Tanta é sua dignidade que Jesus Cristo no-la mereceu por sua Paixão! Ele nos comunicou, de certo modo, o resplendor que recebeu de Deus (Jo 17,22). Deste modo, a alma que está na graça se une intimamente a Deus (1Cor 6,17), e, segundo afirma o Redentor, a Santíssima Trindade vem habitar nela (Jo 14,22).
É tão bela uma alma em estado de graça, que o Senhor se compraz nela e a elogia amorosamente: “Como és formosa, minha amiga, como és formosa!” (Ct 4,1). Parece que o Senhor não pode apartar os olhos de uma alma que o ama nem deitar os olhos de uma alma que o ama nem deixar de dar ouvido a quanto lhe peça (Sl 33,6). Dizia Santa Brígida que ninguém seria capaz de ver a beleza de uma alma em estado de graça, sem morrer de alegria. Santa Catarina de Sena, ao contemplar uma alma em estado tão feliz, disse que preferia dar sua vida para que aquela alma jamais viesse a perder tanta beleza. Era por isto que a Santa beijava a terra que os sacerdotes pisavam, considerando que por seu intermédio recuperavam as almas a graça de Deus.
Que tesouro de merecimentos pode adquirir uma alma em estado de graça! Em cada instante lhe é dado merecer a glória; pois, segundo disse Santo Tomás, cada ato de amor, produzido por tais almas, merece a vida eterna. Por que, pois, invejar os poderosos do mundo? Estando na graça de Deus, podemos adquirir continuamente as maiores grandezas celestes.
Um irmão coadjutor da Companhia de Jesus, segundo refere o Padre Patrignani em seu “Menológio”, apareceu depois de sua morte e revelou que se tinha salvado, assim como Filipe II, rei da Espanha, e que ambos gozavam já a glória eterna. Quanto menor, porém, fora ele neste mundo em comparação ao rei, tanto mais elevado era agora o seu lugar no céu.
Só aquele que a desfrutou pode compreender quão suave é a paz de que goza, mesmo neste mundo, uma alma que se acha na graça (Sl 33,9). Confirmam-no as palavras do Senhor: “Muita paz aos que ama tua lei”. (Sl 118,165). A paz que provém dessa união com Deus excede a quantos prazeres possam oferecer os sentidos e o mundo (Fp 4,7).

AFETOS E SÚPLICAS

Meu Jesus! Vós sois o Bom Pastor que se deixou crucificar para dar a vida a suas ovelhas. Quando eu fugia de vós, não deixastes de me procurar com amorosa diligência. Acolhei-me agora que vos procuro e volto arrependimento a vossos pés. Concedei-me de novo vossa graça, que miseramente perdi por minha culpa. Ao considerar que tantas vezes me tenho afastado de vós, quisera morrer de dor, e de todo o coração me arrependo. Perdoai-me, pela morte dolorosíssima que para mim padecestes na cruz. Prendei-me com as doces cadeias do vosso amor, e não permitais que outra vez me afaste de vós. Dai-me força para sofrer com paciência todas as cruzes que me destinais, já que mereci as penas eternas do inferno. Fazei que abrace com amor os desprezos que receber dos homens, já que mereci ser eternamente atormentado pelos demônios. Fazei, em suma, que obedeça em tudo às vossas inspirações, e vença todo o respeito humano por amor a vós.
Estou resolvido a servir unicamente a vós. Insistam os outros quanto quiserem, eu somente quero amar a vós, meu Deus amabilíssimo. Só a vós desejo agradar. Ajudai-me, Senhor, que sem vós nada posso. Amo-vos, meu Jesus, de todo o coração, e confio em vosso sangue preciosíssimo...
Maria, minha esperança, auxiliai-me com vossa intercessão. Já que vos gloriais de salvar os pobres pecadores que a vós recorrem, — eis que sou vosso servo humilde — socorrei-me e salvai-me.

26 de abril de 2014

Aparição de Jesus ressuscitado a sua Mãe Maria Santíssima.

Secundum multitudinem dolorum meorum in corde meo, consolationes tuae laetificaverunt animam meam — “Segundo as muitas dores que provou o meu coração, as tuas consolações alegraram a minha alma” (Ps. 93, 19).

Sumário. Era de justiça que Maria Santíssima, que mais do que qualquer outro tomou parte na Paixão de Jesus Cristo, fosse também a primeira a gozar da alegria da sua ressurreição. Imaginemos vê-la no momento em que lhe aparece o divino Redentor glorificado, acompanhado de grande multidão de Santos, entre os quais São José, São Joaquim e Santa Ana. Oh! Que ternos abraços! Que doces colóquios! Alegremo-nos com a nossa querida Mãe e digamos-lhe: Regina coeli, laetare, alleluia — “Rainha dos céus, alegrai-vos, aleluia!”.

I. Entre as muitas coisas que Jesus Cristo fez e os Evangelistas passaram em silêncio, deve, com certeza, ser contada a sua aparição a Maria Santíssima logo em seguida à sua ressurreição. Nem necessidade havia de referi-la, porquanto é evidente que o Senhor, que mandou honrar pais e mães, foi o primeiro a dar o exemplo, honrando sua Mãe com a sua presença visível. Demais, era de inteira justiça que o divino Redentor glorificado fosse, antes de mais ninguém, visitar a Santíssima Virgem; a fim de que, antes dos outros e mais do que estes, participasse da alegria da ressurreição quem mais do que os outros participara da paixão.

Um dia e duas noites a divina Mãe ficou entregue à dor pela morte do Filho, mas firme e imóvel na fé da ressurreição; e quando começou a alvorecer o terceiro dia, posta em altíssima contemplação, começou com ardentes suspiros a suplicar ao Filho que abreviasse a sua vinda.

Enquanto está assim absorta nos seus veementíssimos desejos, eis que o seu divino Filho se lhe manifesta em toda a sua glória e claridade; fortalecendo-lhe a vista, tanto a do corpo como a da alma, para que fosse capaz de ver e de gozar a divindade. Oh! Com tão bela aparição como não devia sentir-se satisfeita e contente! Quão ternamente não deviam abraçar-se Filho e Mãe! Quão doces e sublimes não devia ser os colóquios que trocavam!

Avizinhemo-nos, em espírito, de Nossa Senhora, que é também nossa Mãe, e roguemos-lhe que nos permita beijar as chagas glorificadas de Jesus Cristo. — Colhamos deste mistério, como são recompensados por Deus aqueles que acompanham Jesus até ao Calvário, quer dizer, que Lhe são fiéis nas tribulações. Cada um pode fazer suas as palavras da Bem-aventurada Virgem: Secundum multitudinem dolorum meorum, consolationes tuae laetificaverunt animam meam — “Segundo as minhas muitas dores, as tuas consolações alegraram a minha alma”.

II. Em companhia de Jesus, seu Filho, a divina Mãe viu grande número de Santos, entre os quais o seu Esposo São José, e os seu santos pais, Joaquim e Ana. — Alegraram-se todos com ela, reconhecendo-a por verdadeira Mãe de Deus e agradecendo-lhe os trabalhos e dores sofridas pela Redenção de todos. — Oh! Que satisfação não devia sentir a Virgem, vendo o fruto da Paixão do Filho em tantas almas resgatadas do limbo. Enquanto ela se regozija com Jesus Cristo por tão grande conquista, os anjos ali presentes, ledos e jubilosos, solenizam o dia cantando com melodia celeste: Regina Coeli, laetare, alleluia — “Rainha do céu, alegrai-vos, aleluia”. Unamo-nos aos coros dos anjos, unamo-nos com todos os fiéis da Igreja, para nos congratularmos com a divina Mãe, e cantemos também: Regina Coeli, laetare, alleluia.

“Rainha do céu, alegrai-vos; porque o que merecestes trazer em vosso puríssimo seio, ressuscitou como disse. Alegrai-vos, mas ao mesmo tempo, rogai por nós, para que sejamos dignos de ir cantar um dia no reino da glória o eterno alleluia.

“É o que vos peço também, ó Eterno Pai. Sim, meu Deus, Vós que Vos dignastes alegrar o mundo com a ressurreição do Vosso Filho e Senhor nosso Jesus Cristo, concedei-nos, Vos suplicamos, que pela Virgem Maria, sua Mãe, alcancemos os prazeres da vida eterna. Fazei-o pelo amor do mesmo Jesus Cristo.” (1)

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1. Antiph. temp. pasch.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 17-19.)

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XIX

Do bem inefável que é a graça divina e do grande mal que é a inimizade com Deus
Nescit homo pretium ejus. Não compreende o homem o seu preço (Jo 28,13).

PONTO I

Diz o Senhor que aquele que sabe distinguir o precioso do vil é semelhante a Deus, que reprova o mal e escolhe o bem (Jr 15,19).
Vejamos quão grande é a graça divina, e que mal mesmo é a inimizade com Deus. Os homens não conhecem o valor da graça divina (Jo 28,13).
Por isso é que trocam por ninharia, um fumo subtil, um punhado de terra, um deleite irracional. E, todavia, ela é um tesouro de valor infinito, que nos torna dignos da amizade de Deus (Sb 7,14); de modo que a alma no estado da graça é amiga do Senhor. Os pagãos, privados da luz da fé, julgavam impossível que a criatura pudesse manter relações de amizade com Deus; e, falando segundo o ditame de seu coração, não deixavam de ter razão, pois que a amizade — conforme diz São Jerônimo — torna os amigos iguais. Deus, contudo, declarou repetidas vezes que, por meio de sua graça, podemos tornar-nos seus amigos se observarmos e cumprirmos sua lei (Jo 15,14). Exclama São Gregório: “Ó bondade de Deus! Não merecemos sequer ser chamados servos seus, e ele se digna chamar-nos seus amigos”.
Quanto se julgaria feliz aquele que tivesse a dita de ser amigo de seu rei! Mas, se a um vassalo fora temeridade pretender a amizade de seu príncipe, não obsta que uma alma aspire à amizade de Deus. Refere Santo Agostinho que, achando-se dois cortesãos num mosteiro, um deles começou a ler a vida de Santo Antônio Abade e, à medida em que ia lendo, seu coração se desprendia de tal modo dos afetos mundanos, que falou a seu companheiro nestes termos: “Amigo, que é que procuramos?...
Servindo ao imperador, que mais poderemos pretender do que conseguir sua amizade? E, mesmo que a tanto chegássemos, exporíamos a grande perigo a salvação eterna. Com grande dificuldade logra-ríamos ser amigos de César, enquanto desde já, se o quiser, posso ser amigo de Deus”.
Aquele, portanto, que está na graça, é amigo do Senhor. E não é só isso, porque se torna filho de Deus (Sl 71,6). Tal é a dita inefável que nos alcançou o divino amor por meio de Jesus Cristo. “Considerai a caridade que nos fez o Pai Eterno, querendo que tenhamos o nome de filhos de Deus e o sejamos” (1Jo 3,1). Além disso, a alma que está na graça é esposa do Senhor (Lc 15,22). Por isso, o pai do filho pródigo, ao acolhê-lo e recebê-lo de novo, deu-lhe o anel, sinal de esponsais. Ainda mais: essa alma venturosa é templo do Espírito Santo. Soror Maria de Ognes viu sair o demônio do corpo de um menino, que estavam batizando, e notou que no neo-cristão ingressava o Espírito Santo, rodeado de anjos.

AFETOS E SÚPLICAS

Meu Deus, quando minha alma, por felicidade sua, possuía vossa graça, era vosso templo e vossa amiga, vossa filha e esposa. Mas pelo pecado perdeu tudo, e fez-se vossa inimiga e escrava do inferno. Com profundo agradecimento, meu Deus, vejo que me dais tempo de recuperar vossa graça. Arrependo-me de ter ofendido vossa bondade infinita, e vos amo sobre todas as coisas. Dignai-vos, pois, aceitar-me de novo em vossa amizade. Não me desprezeis, por piedade! Bem sei que merecia ser repelido, mas meu Senhor Jesus Cristo, pelo sacrifício que de si mesmo fez sobre o Calvário, merece que, ao ver-me arrependido, me aceiteis de novo. Adveniat regnum tuum. Meu Pai (assim me ensinou a chamar-vos vosso divino Filho), reinai em mim pela vossa graça, e fazei que somente a vós sirva, somente a vós ame e por vós viva. Et ne nos inducas in tentationem. Não permitais que me vençam os inimigos que me comba-tem. Sed libera nos a malo. Livrai-me do inferno, ou melhor: livrai-me do pecado, único mal que pode condenar-me.
Ó Maria, rogai por mim e livrai-me do mal horrível de me ver em pecado sem a graça de nosso Deus!

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

10/26  -  Como se devem combater as tentações contra a fé.

Voltaram as vossas tentações contra a fé, e, embora lhe não repliqueis uma só palavra, incomodam-vos.
Não lhe respondeis, e fazeis bem; mas pensais muito nelas temei-as muito; sem isto nenhum mal vos poderiam fazer. Sois muito sensível às tentações. Amais a fé e nenhum pensamento quereríeis ter contrário a ela; e logo que vos toca de leve algum entristecei-vos e confundi-vos. Sois muito ciumento da pureza da fé; parece-vos que tudo a mancha.
Convém nesta tentação procedermos como na carnal; não disputar, nem pouco nem muito; mas fazer como faziam os filhos de Israel aos ossos do cordeiro pascal, que não quebravam, mas lançavam ao fogo. Não é necessário responder nem se dar por entendido do que diz o inimigo. Embora faça muito barulho à porta, não se deve dizer: Quem está aí?
É verdade me dizeis vós, mas importuna-me e o seu ruído interrompe os pensamentos interiores. É o mesmo, falemos por sinais; prostremo-nos aos pés de Deus; e Ele entenderá por esta postura humilde que lhe pertenceis e pedis o seu auxílio, embora não possais falar. Mas sobretudo mantende-vos firmes, bem fechados por dentro, e não abrais a porta, nem para ver quem é, nem expulsar o importuno; porque ele enfim cansar-se-á de gritar e vos deixará em paz.
Durará isso muito tempo, me dizeis vós; pouco importa o tempo, contanto que o inimigo não entre. É um bom sinal o inimigo lutar e fazer barulho, à porta, porque indica que não consegue o que deseja. Se o conseguisse, não o gritaria, mas entrava. É conveniente notar isto para não terdes escrúpulo.
Desejaria que estivéssemos firmes e fossemos simples na fé como o ensina a Igreja, crendo firmemente tudo o que esta escrito nesta pedra; porque já vos disse que ali estava escrita a lei evangélica. Creiamos pois firmemente e submetamos a nossa inteligência à fé, que Nosso Senhor fundou sobre esta pedra; porque as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Nosso Senhor orou por São Pedro, para que ele não se enganasse; é o chefe da Igreja, que é a coluna e fundamento da verdade, como diz São Paulo à Timóteo: "Bem aventurado o que esmagar os seus filhos contra a pedra", diz o salmista.
Quando as vezes não vêm pensamentos contra a fé, mas só algumas fantasias, imaginações e pensamentos de infidelidade, que fazeis? Se os deixais entrar no espírito, perturbar-vos-ão e roubar-voa-ão a paz; esmagai esses pensamentos contra a pedra da Igreja e dizei à vossa inteligência: "Ó inteligência, Deus não vos mandou apascentar; é a esta pedra e aos seus sucessores que isto pertence": Bem aventurado pois o que esmaga os seus filhos contra esta pedra.
Além deste remédio, dou-vos outro. As tentações contra a fé vão diretamente à inteligência para constranger, a disputar, a imaginar e a fantasiar. Sabeis o que deveis fazer enquanto o inimigo se entretêm a querer abrir brecha no entendimento? Sai pela porta da vontade e dai-lhe batalha, isto é, mal se apresenta a tentação contra a fé. Mas como se pode fazer isto? Em lugar de disputardes com o inimigo com discursos, fazei que a vossa palavra expressa se lance contra ele, juntando mesmo a voz interior com a exterior, e exclamando: Ah tratante! Ah desgraçado! deixaste a Igreja dos anjos e queres que eu deixe a dos santos? Desleal, infiel, perdido! Apresentaste à primeira mulher o pomo da perdição e queres que eu coma? Arreda Satanás! Esta escrito: "Não tentarás o Senhor teu Deus". Não disputarei contigo. Eva, querendo disputar, perdeu-se. Eva, deu-te ouvidos e foi seduzida. Viva Jesus em quem creio. Viva a Igreja, a quem pertenço! e outras semelhantes palavras. Convém também dirigir a Jesus Cristo e à Igreja as palavras que Ele vos sugerir: "Ó Mãe dos filhos de Deus, nunca de vós me separarei; quero viver e morrer na vossa grei".
Não sei se me faço compreender. Quero dizer que se deve responder e combater com afetos e não com razões, com paixões e não com considerações. É verdade que no tempo da tentação a vontade não dá nada; mas tanto melhor; os seus golpes serão tanto mais terríveis contra o inimigo, porque vendo em lugar de atrasar vosso adiantamento vos dá ocasião de exercitardes mil afetos virtuosos, e particularmente de submissão à fé, vos deixará em paz. Afinal de contas estas tentações não são senão aflições como as outras; convém fortalecermo-nos com o que diz a Escritura: "Bem aventurado o que sofre a tentação; porque sendo provado, receberá a coroa da vida". Poucas pessoas tenho visto adiantadas sem esta prova e é necessário ter paciência. Nosso Senhor enviará a calma depois da tormenta.

25 de abril de 2014

Preparação para a Morte

PONTO III

“Filho, pecaste? Não tornes a pecar; mas roga pelas culpas antigas, a fim de que te sejam perdoa-das” (Ecl 21,1). Assim te adverte, ó cristão, Nosso Senhor, porque deseja salvar-te. “Não me ofendas, filho, novamente, mas pede perdão dos pecados cometidos”. Quanto mais tiveres ofendido a Deus, meu irmão, tanto mais deves temer a reincidência em ofendê-lo; porque talvez mais um pecado que cometeres fará pender a balança da justiça divina, e serás condenado. Falando absolutamente, não quero dizer, porque não o sei, que não haja perdão se cometeres novo pecado; afirmo, porém, que isto pode acontecer. Por conseguinte, quando te assaltar a tentação, deves considerar: quem sabe se Deus me perdoará outra vez ou ficarei condenado? Dize-me, por favor: Provarias uma comida, que supusesses estar provavelmente envenenada? Se presumisses fundamente que em determinado caminho estavam teus inimigos à espreita para matar-te, passarias por ali, podendo tomar outra via mais segura? Do mesmo modo, que certeza ou que probabilidade podes ter de que, tornando a pecar, sentirás logo verdadeira contrição e não voltarás à culpa detestável? Ou ainda, se novamente pecares, não te fará Deus morrer no próprio ato do pecado, ou te abandonará depois da queda? Ao comprar uma casa, tomas prudentemente as necessárias precauções para não perderes teu dinheiro. Se vais usar algum remédio, procurarás certificar-te que não te possa fazer mal. Ao atravessar um rio, evitas o perigo de cair nele. E, por um vil prazer, por um deleito brutal arriscas tua salvação eterna, dizendo: Eu me confessarei. Mas, pergunto eu: Quando te confessarás? — No domingo. — E quem te assegura que no domingo estarás vivo? — Amanhã mesmo. — E quem te afiança esse dia de amanhã, quando não sabes sequer se tens ainda uma boa hora de vida?
“Tendes um dia — diz Santo Agostinho — quando não tendes certeza de uma hora?” Deus — prossegue o mesmo Santo — promete o perdão ao que se arrepende, não promete o dia de amanhã a quem o ofende: Se agora pecares, Deus, talvez, te dará tempo de fazer penitência, ou talvez não. E se não to der, que será de ti eternamente? E, não obstante, queres perder tua alma por um mísero prazer e a expões ao perigo da perdição eterna. Arriscarias mil ducados por essa vil satisfação? Digo mais: darias tudo, fazenda, casa, poder, liberdade e vida, por um breve gosto ilícito? Não, sem dúvida. E, contudo, por esse mesmo indigno prazer, queres perder tudo: Deus, a alma e o céu. Dize-me, pois: as coisas que ensina a fé são verdades altíssimas, ou não passam de puras fábulas que haja céu, inferno e eternidade? Crês que se a morte te surpreender em pecado estarás perdido para sempre?... Que temeridade, que loucura, condenares a ti mesmo às penas eternas com a vã esperança de remediá-lo mais tarde! “Ninguém quer enfermar com a esperança de curar-se” — diz Santo Agostinho.
Não teríamos por louco a quem bebesse veneno dizendo: depois, por meio de um remédio, me salva-rei? E tu queres a condenação à morte eterna, fiado em que talvez mais tarde possas livrar-te dela?... Loucura terrível, que tantas almas tem levado e leva ao inferno, segundo a ameaça do Senhor! “Pecaste confiando temerariamente na misericórdia divina; mas o castigo virá de improviso sobre ti, sem que saibas donde vem” (Is 47,10-11).

AFETOS E SÚPLICAS

Aqui tendes, Senhor, um desses insensatos, que tantas vezes perdeu a sua alma e a vossa graça, esperando recuperá-la depois. Ai de mim, se me tivésseis enviado a morte no instante em que pequei! Que seria de mim?... Agradeço de todo o coração à vossa clemência o ter-me esperado, dando-me a conhecer meu desvairamento. Reconheço que desejais salvar-me, e eu quero me salvar. Dói-me, Bondade infinita, de me ter afastado de vós tantas vezes. Amo-vos com todo o fervor de meu coração, e espero, ó Jesus, que, pelos merecimentos de vosso precioso sangue, não recairei em tal demência. Perdoai-me, Senhor, e acolhei-me em vossa graça, que jamais quero separar-me de vós. In te, Domine, speravi non confundar in aeternum. Espero, ó meu Redentor, não ter de sofrer a desdita e confusão de ver-me privado outra vez de vosso amor e de vossa graça. Concedei-me a santa perseverança, e fazei que sempre vo-la peça, particularmente nas tentações, invocando vosso santo nome e o de vossa Mãe santíssima: “Meu Jesus, socorrei-me!...
Maria, nossa Mãe, amparai-me!...” Sim, Rainha e Senhora minha, enquanto recorrer a vós, não serei vencido. E se persistir a tentação, fazei, ó minha Mãe, que persista em invocar-vos.

XXV de Abril.

Jesus, o médico de nossas almas.

Et orietur vobis, timentibus nomen meum, sol iustitiae, et sanitas in pennis eius — “Para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, e estará a salvação nas suas azas” (Mal. 4, 2).

Sumário. Por muito que os médicos terrestres amem os doentes, nenhum tomará sobre si as doenças a fim de as curar. Somente Jesus-Menino foi o médico tão caridoso, que tomou sobre si todas as nossas enfermidades, e para delas nos livrar tomou o remédio amargoso de uma vida de trabalhos contínuos e de uma morte dolorosíssima sobre um patíbulo infame. Admiremos a grande bondade do divino Redentor, agradeçamo-la e retribuamos-Lhe com o nosso amor.

I. Virá, disse o Profeta, o vosso médico para curar os enfermos; e virá depressa, qual pássaro que voa, ou qual sol que ao sair no horizonte já envia os seus raios até a extremidade da terra. Mas eis que já veio. Consolemo-nos e rendamos-Lhe ações de graças. Diz Santo Agostinho: Descendit usque ad lectum aegrotantis. Jesus abaixou-se até ao leito do enfermo, quer dizer, até tomar a nossa carne; porquanto os corpos são como que os leitos das nossas almas enfermas. Por muito amor que os outros médicos tenham aos doentes, por muito que se esforcem para lhes restituir a saúde: qual é o médico que para curar um doente toma sobre si a doença? Tal médico tem sido tão somente Jesus Cristo, que para nos curar tomou sobre si todas as nossas enfermidades.

Nem quis mandar outro qualquer; Ele mesmo quis vir para desempenhar o ofício de médico piedoso, a fim de ganhar todo o nosso amor: Languores nostros ipse tulit, et dolores nostros ipse portavit (1) — “Tomou sobre si as nossas fraquezas, e Ele mesmo carregou com as nossas dores”. Com o seu próprio Sangue quis Jesus sarar as nossas chagas e com a sua morte livrar-nos da morte eterna por nós merecida. Numa palavra, quis tomar o remédio amargo de uma vida de trabalhos contínuos e de uma morte crudelíssima, para nos dar a vida e nos livrar de todos os nossos males.

Calicem quem dedit mihi Pater, non bibam illum? (2) — “Não queres”, disse o Senhor a  São Pedro, “que eu beba o cálix que o Pai meu deu”. Foi necessário que Jesus Cristo abraçasse tantas ignominias, para curar o nosso orgulho; que abraçasse uma vida tão pobre, para curar a nossa cobiça; que abraçasse um oceano de sofrimentos até morrer de pura dor, para sarar a nossa avidez de prazeres.

II. Para retribuirmos a Jesus o seu entranhado amor para conosco, amemo-Lo com todas as nossas forças, e não recuemos diante de qualquer sacrifício por amor d'Ele. E visto que Ele disse que considera como feito a si o que fizermos a um dos seus irmãos mais pequeninos (3), amemos também ao próximo por amor de Jesus Cristo; saibamo-nos compadecer das suas fraquezas e socorre-lo em suas necessidades.

Ó amado Redentor, seja para sempre louvado e bem-dito o vosso amor! Que seria da minha alma,enferma e chagada como estava pelos meus pecados, se Vós, ó meu Jesus, a não pudésseis e quisésseis sarar? Ó Sangue do meu Salvador, em vós confio; limpai-me e curai-me. Meu amor, pesa-me de Vos haver ofendido. Para me provar o amor que me tendes, levastes uma vida tão cheia de tribulações e uma morte tão margosa. Também eu quisera provar-Vos o meu amor; mas que posso fazer, fraco e enfermo como sou? Ó Deus de minha alma, Vós sois todo-poderoso, Vós me podeis curar e fazer-me santo.

Ó Senhor, acendei em mim um grande desejo de Vos dar gosto. Renuncio a todas as minhas satisfações para Vos agradar, meu Redentor, que tanto mereceis que a todo o custo Vos procuremos agradar. Ó Bem supremo, amo-Vos e estimo-Vos acima de todos os bens; fazei com que Vos ame de todo o meu coração e Vos peça sempre o vosso amor. Pelo passado Vos ofendi e não Vos amei, porque não pedi o vosso amor. Agora Vo-lo peço, juntamente com a graça de o pedir sempre. Atendei-me pelos merecimentos da vossa Paixão. — Ó Maria, minha Mãe, vós estais sempre disposta a atender a quem vos roga, e amais a quem Vos ama: amo-vos, minha Rainha; alcançai-me a graça de amar a Deus; é tudo quanto vos peço. (*II 342.)

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1. Is. 53, 4.
2. Io. 18, 11.
3. Matth. 25, 40.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 377-379.)

Conformidade com a vontade de Deus a exemplo de Jesus Cristo.

Descendi de coelo, non ut faciam voluntatem meam, sed voluntatem eius qui misit me — “Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Io. 6, 38).

Sumário. É tão agradável a Deus o sacrifício da nossa própria vontade, que Jesus Cristo desceu sobre a terra para nos ensinar a maneira de o fazer e em toda a sua vida não fez outra coisa senão dar-nos disso as mais sublimes lições com as suas palavras e com os seus exemplos. Eis, portanto, o que devemos ter em mira em todas as nossas ações: conformar a nossa vontade com a divina, especialmente no que mais repugna ao amor próprio. Vale mais um Bendito seja Deus, dito nas adversidades, do que mil agradecimentos na prosperidade.

I. É certo que a nossa salvação consiste em amar a Deus, nosso supremo Bem; porque a alma que não O ama, já não vive, mas está morta (1). A perfeição, porém, do amor consiste em conformar a nossa vontade com a divina; pois que, como diz o Aeropagita, o efeito principal do amor é unir as vontades dos que se amam, de sorte que não tenham senão um só coração e uma só vontade.

É isto o que antes de mais nada com as suas palavras e com os seus exemplos veio ensinar-nos Jesus Cristo, que nos foi dado por Deus tanto para ser nosso Salvador como nosso modelo. Pelo que o Apóstolo escreve que as primeiras palavras de Jesus, ao entrar no mundo, foram estas: Ecce venio ut faciam, Deus, voluntatem tuam (2) — “Eis que venho para fazer, ó Deus, a tua vontade”. Meu Deus, recusastes as hóstias e oblações dos homens; não Vos agradaram os holocaustos que Vos ofereciam pelos seus pecados. Quereis que Vos sacrifique morrendo este meu corpo, que Vós mesmo me haveis dado. Eis-me aqui, Senhor, estou pronto para fazer a vossa santíssima vontade.

No correr de sua vida, Jesus Cristo tem manifestado diversas vezes a sua submissão e conformidade de vontade, dizendo: Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, senão a d'Aquele que me enviou. Quis que conhecêssemos o grande amor a seu Pai pelo ver ir à morte por obediência à vontade d'Este. Por isso disse aos apóstolos: Para que conheça o mundo que amo ao Pai, e assim como me ordenou o Pai, assim faço: Levantai-vos; vamo-nos d´aqui (3).

Depois no horto de Getsêmani, parece que o Senhor, opresso pelo temor, pelo aborrecimento e pela tristeza, não sabe fazer outra oração senão esta: Meu Pai, não seja como eu quero, mas sim como Tu (4). Meu Pai, se não pode passar este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade (5). — Numa palavra, é tão grande a excelência da conformidade com a vontade de Deus, e Jesus Cristo exige tão rigorosamente que a pratiquemos, que protesta ter por seus discípulos somente aqueles que cumprem a vontade divina (6).

II. Se agrada tanto o Deus o sacrifício de nossa vontade, que enviou à terra seu próprio Filho para nos ensinar a maneira de a sacrificarmos, tinha razão o santo abade Nilo de dizer que nas nossas orações não devemos pedir a Deus que faça o que nós queremos, mas que nos dê a graça para bem fazermos o que Ele quer. — É a isso que se devem dirigir todos os nossos desejos, devoções, meditações e comunhões: o cumprimento da vontade divina, especialmente naquilo que repugna mais ao nosso amor próprio. Lembremo-nos sempre do que costumava dizer o Bem-aventurado João de Ávila: Um só Bendito seja Deus, nas adversidades, vale mais do que mil agradecimentos na prosperidade.

Toda a minha desgraça, ó meu Deus, foi não querer sujeitar-me no passado à vossa santa vontade. Detesto e amaldiçôo mil vezes esses dias e momentos em que, para seguir a minha vontade, me opus à vossa, ó Deus de minha alma. Eu Vô-la consagro agora sem reserva e quero unir esta minha oferta à que vosso divino Filho fez de si mesmo e continua a fazer sobre os nossos altares. Recebei-a, ó meu Senhor, e ligai-me de tal modo ao vosso amor, que nunca mais me possa revoltar contra Vós.

Amo-Vos, bondade infinita, e pelo amor que Vos tenho me ofereço todo a Vós. Disponde de mim, e de tudo o que me pertence, como Vos aprouver. Resigno-me em tudo à vossa divina vontade. Preservai-me da desgraça de contrariar as vossas disposições, e depois fazei de mim segundo a vossa vontade. Pai Eterno, pelo amor de Jesus Cristo, atendei-me. Meu Jesus, escutai-me pelos merecimentos da vossa Paixão. E vós, o Maria Santíssima, ajudai-me; obtende-me a graça de executar a vontade divina, na qual consiste toda a minha salvação e nada mais de vós desejo. (*III 465.)

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1. 1 Io. 3, 14.
2. Hebr. 10, 9.
3. Io. 14, 31.
4. Matth. 26, 39.
5. Matth. 26, 42.
6. Matth. 12, 50.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 14-17.)

24 de abril de 2014

Preparação para a Morte

PONTO II

Dirá talvez o pecador que Deus é Deus de misericórdia... Quem o nega?... A misericórdia do Senhor é infinita; mas, apesar dela, quantas almas se condenam todos os dias? Deus cura os que têm boa vontade (Is 61,1). Perdoa o pecado, mas não pode perdoar a vontade de pecar...
Replicará o pecador que ainda é muito jovem... És moço?... Deus não conta os anos, conta as culpas. Ora, a medida dos pecados não é igual para todos. A um perdoa Deus cem pecados; a outro, mil; outro, ao segundo pecado, se verá precipitado no inferno. A quantos condenou após o primeiro pecado!
Refere São Gregório que um menino de cinco anos, por ter proferido uma blasfêmia, foi lançado no inferno. Segundo revelou a Santíssima Virgem à bem-aventurada Benedita de Florença, uma menina de doze anos fora condenada por seu primeiro pecado.
Outro menino, de oito anos de idade, também morreu com o primeiro pecado e se condenou. Lemos no Evangelho de São Mateus que o Senhor, a primeira vez em que achou a figueira sem fruto a a-maldiçoou, e a árvore secou (Mt 21,19). Em outro lugar diz o Senhor: “Depois das maldades que o povo de Damasco cometeu três e quatro vezes, eu não mudarei o meu decreto” (não revogarei os castigos que lhe tenho decretado) (Am 1,3). Algum temerário talvez ouse perguntar por que Deus perdoa a tal pecador três culpas e não quatro. Neste ponto é preciso adorar os inefáveis juízos de Deus e exclamar com o Apóstolo: “Ó profundidade das riquezas da sabedoria e ciência de Deus! Quão incompreensíveis são seus juízos e imperscrutáveis seus caminhos” (Rm 11,33). O Senhor sabe, diz Santo Agostinho, a quem há de perdoar e a quem não. Àqueles a quem se concede misericórdia, gratuitamente se concede a mesma, e àqueles a quem se lha nega, com justiça lhes é negada”.
Replicará a alma obstinada que, tendo ofendido tantas vezes a Deus, e Deus lhe tendo perdoado, espera que ele ainda lhe perdoará um novo pecado... Mas porque Deus não o tem castigado até esta hora, segue-se que sempre há de proceder assim? Encher-se-á a medida e o castigo virá. Sem interromper as relações com Dalila, esperava Sansão salvar-se das mãos dos filisteus, como antes tinha feito (Jt 16,20); mas nesta última vez foi preso e perdeu a vida. — “Não digas — exclama o Senhor — pequei, e qual a adversidade que me sobreveio? (Ecl 5,4).
Porque o Altíssimo, ainda que nos tolere, dá-nos o que merecemos” (Ecl 5,4), isto é: chegará o dia em que tudo lhe pagaremos, e quanto maior tiver sido a misericórdia tanto maior será a pena. Afiança-nos São João Crisóstomo que há mais para recear quando Deus tolera um pecador obstinado, do que quando lhe aplica o castigo sem detença.
Com efeito, observa São Gregório, todos aqueles a quem Deus espera com mais paciência, são de-pois, se perseverarem na sua ingratidão, castigados com mais rigor; e muitas vezes acontece, acrescenta o mesmo Santo, que os que foram por mais tempo tolerados por Deus, morrem de improviso sem ter tempo de se converter. Especialmente, quanto maiores tenham sido as luzes que Deus te haja dado, tanto maiores serão tua cegueira e obstinação no peca-do, se a tempo não fizeres penitência. “Era-lhe melhor — diz São Pedro — não ter conhecido o caminho da justiça, que depois do conhecimento voltar-lhe as costas” (2Pd 2,21). São Paulo diz que é (moralmente) impossível que uma alma ilustrada por luzes celestes, quando reincidir no pecado, se converta de novo (Hb 190 6,4.6).
Terríveis são as palavras do Senhor contra aqueles que não querem atender a seu convite: “Já que vos chamei e dissestes: não... eu também me rirei na hora da vossa morte e vos escarnecerei” (Pr 1,24- 26). Note-se que as palavras eu também significam que, assim como o pecador zombou de Deus, confessando-se, fazendo propósitos e não os cumprindo nunca, assim o Senhor zombará dele na hora da morte.
O sábio diz além disso: “Como cão que volta ao que vomitou, assim é o imprudente que recai na sua loucura” (Pr 26,11). Dionísio, o Cartuxo, desenvolve este pensamento e diz que tão abominável e asqueroso como o cão que devora o que tinha vomitado, se faz odioso a Deus o pecador que volta a cometer os pecados de que se arrependeu no sacramento da Penitência.

AFETOS E SÚPLICAS

Eis me aqui, Senhor, a vossos pés. Sou como o cão repugnante e asqueroso, que tantas vezes voltei a deleitar-me com o que antes tinha 58 detestado. Não mereço perdão, meu Redentor. O precioso sangue, porém, que por mim derramastes, me alenta e me obriga a esperar...
Quantas vezes vos ofendi e vós me perdoastes! Prometi não tornar a ofender-vos e daí a pouco de novo recaí, e vós outra vez me concedestes perdão! Que devo esperar, pois? Que me envieis ao inferno ou que me abandoneis a meus pecados, castigo mai-or que o próprio inferno? Não, meu Deus; quero emendar-me, e, para vos ser fiel, ponho em vós toda minha confiança e prometo recorrer sempre a vós quando me vir assediado de tentações. No passado fiei-me em minhas promessas e resoluções, olvidando encomendar-me a vós nas tentações. Daí proveio a minha ruína. Mas, de hoje em diante, sereis vós minha esperança, minha fortaleza e assim tudo me será possível (Fp 4,13). Dai-me, pis, meu Jesus, por vossos méritos, a graça de encomendar-me sempre a vós, e de pedir vosso auxílio em todas as minhas ne-cessidades. Amo-vos, Sumo Bem, digno de ser ama-do sobre todos os bens e só a vós amarei se me aju-dais para isso.
Vós também, ó Maria, Mãe nossa, auxiliai-me por vossa intercessão; abrigai-me debaixo de vosso manto; fazei que vos invoque sempre na tentação, e vosso nome dulcíssimo será minha defesa.

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

09/26  -  Remédio para as tentações contra a pureza.

Quando temos alguma inclinação a deleitar-nos na tentação, provém esta da condição da nossa natureza, que tanto ama o bem, que muitas vezes se engana com o que tem as aparências dele; e o que a tentação nos apresenta para engodo é sempre assim; porque ou é um bem honroso, segundo o mundo, para nos provocar ao orgulho da vida mundana, ou é um bem deleitável em todo o sentido, para nos levar ao gozo carnal; ou um bem útil para nos enriquecer, para nos incitar à avareza dos olhos. Depois da queda de Eva, todos os seus filhos estão contaminados por este defeito, que os torna mais aptos para gozarem das honras, riquezas e prazeres do mundo, que não são senão vaidade e loucura e nunca um bem verdadeiro.
Assim como os dois filhos de Rebeca, pela contrariedade de seus movimentos, lhe causavam tantas convulsões e dores; assim os dois amores da nossa alma dão grandes trabalhos ao coração; e como disseram dos dois filhos de Rebeca que o maior serviria o menor, assim também se ordenou que dos dois amores do nosso coração, o sensual servirá o espiritual.
Logo que sentirdes em vós alguma tentação, fazei como as criancinhas quando vêem no campo o lobo ou o urso; porque logo correm para os braços de seu pai, ou de sua mãe, ou pelo menos, os chamam e seu socorro. Recorrei a Deus da mesma forma.
Conservai-vos em paz no meio das tentações; a fé, esperança e caridade, peças imóveis do nosso coração, estão bastante sujeitas ao vento, embora não estejam à ruína; como queremos pois que as nossas resoluções estejam isentas? Sois admirável se não só quereis que a vossa árvore esteja solidamente plantada mas também que nem ainda uma folha lhe caia ou seja agitada! Não, não, deixai correr o vento e não penseis que o agitar das folhas seja o ruído das almas. Há pouco tempo estava eu ao pé de um cortiço de abelhas: e algumas pousaram-me na face; queria eu enxotá-las com a mão para as afastar. "Não, me disse um camponês, não tenhais medo e não enxoteis, porque elas não vos ferirão, e se lhes tocardes, ferram-vos imediatamente". Assim o fiz e nenhuma me ferrou. Crede-me; não temais as tentações; não lhe toqueis e elas não vos ofenderão. Passai avante, sem lhes dar atenção.
Usai muito de diversões em ocasiões semelhantes por atos positivos de amor de Deus e de confiança na sua graça; e depois não temais por estas bagatelas faltar às vossas resoluções, nem à confiança que nelas deveis ter, são crueldades sem proveito; porque se Satanás esbofeteando São Paulo com tantas agitações e pensamentos desonestos; não pode no entanto ofender a sua pureza, porque julgarmos ofendidas as nossas resoluções por estes movimentos do espírito?
Não respondais uma única palavra aos pensamentos desonestos que vos venham; dizei só a Deus, no vosso coração: "Oh! meu Deus, vós sabeis que vos honro; eu sou todo vosso", e não percais tempo em disputar com a tentação.
Pelo que toca às tentações desta boa alma, que se humilhe muito e não se admire; os lírios, repito, que crescem entre os espinhos são mais brancos e as rosas ao pé dos álamos mais odoríferas e docemente musgosas. Quem sabe o que não é tentado? Se o trabalho a faz pensar, como parece suceder, mude de exercício corporal quando estiver aflita; se não puder mudar de exercício, mude de lugar ou posição e a tentação se dissipará.
Se a pena lhe tortura a imaginação, cante, acompanhe com as outras, mude de exercício espiritual, as mudanças de lugar ainda a ajudarão. Sobretudo, não se assuste; renove muitas vezes os seus votos e humilhe-se perante Deus, que promete a vitória ao seu coração, por intercessão da Santíssima Virgem.
Se alguma coisa lhe causa escrúpulo diga-o com coragem, sem fazer reflexão alguma, quando se for  confessar. Mas eu confio em Deus que, com um espírito nobre manter-se-á isenta de tudo o que lhe possa causar escrúpulo. Desejo que tome folga uma vez por semana, a não ser que conheça que isto a torna preguiçosa para com os outros exercícios mais importantes, como algumas vezes sucede.