9 de abril de 2014

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XXII
 
Dos mau hábitos
Impius, cum in profundum venerit peccatorum, contemnit. O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza (Pr 18,3).
 
PONTO I
 
Uma das maiores desventuras que nos legou a culpa de Adão é a nossa propensão ao pecado. Dela se lamenta o Apóstolo, sentindo-se levado pela concupiscência ao próprio mal que aborrecia: “Veio outra lei a meus membros que... me leva preso à lei do pecado” (Rm 8,25). Resulta daí que nós, infeccionados de tal concupiscência e cercados de tantos inimigos que nos incitam ao mal, dificilmente chegaremos sem culpa à glória. Reconhecida, pois, esta fragilidade a que estamos sujeitos, pergunto eu: “Que dirias de um viajante que, devendo atravessar o mar durante forte tempestade e num barco meio avariado, quisesse carregá-lo com tal peso que, mesmo que não houvesse tempestade e ainda que o navio fosse de construção resistente, bastaria para fazê-lo soçobrar?... Que prognóstico formarias sobre a vida deste viajante? Pois pensa o mesmo do indivíduo de maus hábitos e costumes, que deve cruzar o mar tempestuoso da vida, em que tantos naufragam, num barco frágil e avariado, como é nosso corpo no qual viaja a alma. Que sucederá se o carregarmos ainda com o peso irresistível dos pecados habituais? É difícil que tais pecadores se salvem, porque os maus hábitos cegam o espírito, endurecem o coração e ocasionam provavelmente a obstinação completa na hora da morte.
Primeiramente, o mau hábito nos cega. Qual o motivo que fazia os Santos implorar incessantemente a luz divina, temendo converter-se nos pecadores mais abomináveis do mundo? É porque sabiam que, se chegassem a perder a luz divina, poderiam cometer culpas horrendas.
E como se explica que tantos cristãos vivem obstinadamente em pecados, até que irremediavelmente se condenam? Porque o pecado os cega, e por isso se perdem (Sb 2,21). Toda culpa traz consigo cegueira e, acumulando-se os pecados, agrava-se a cegueira do pecador.
Deus é nossa luz; quanto mais se afasta a alma de Deus, tanto mais se mergulha nas trevas. “Seus ossos se encherão de vícios” (Jo 20,11).
Assim como o sol não pode penetrar através de um vaso cheio de terra, assim não pode entrar a luz divina num coração cheio de vícios. Vemos, por isso, com freqüência, muitos pecadores, sem luz que os guie, a cair de pecado em pecado e sem que procurem emendar-se (Sl 11,9). Caídos esses infelizes no abismo de trevas, só sabem pecar e falar em pecados; não pensam mais que em pecar e já não consideram sequer o grave mal que é o pecado. “O costume de pecar — diz Santo Agostinho — não deixa o pecador reconhecer o mal que pratica”. Vivem desta maneira como se não acreditassem na existência de Deus, do céu, do inferno e da eternidade.
Acontece que o pecado, que ao princípio causava horror, por efeito do mau hábito, já não repugna. “Agita-os como uma roda, e como uma palhinha diante do soprar do vento” (Sl 82,14). Vede — diz São Gregório — a facilidade com que é levantada uma palha pela brisa mais suave; assim também veremos muitos que antes da queda resistiam, ao menos por algum tempo, e combatiam até contra as tentações, mas agora, contraído o mau hábito, sucumbem a qualquer tentação, em toda ocasião de pecar que se apresente. E por quê? Porque o mau hábito os privou da luz. Diz Santo Anselmo que o demônio procede com certos pecadores como aquele que tem um passarinho preso por um cordel.
Ele o deixa voar, mas, quando quer, o faz cair por terra. Tal semelhança — afirma o Santo — é aplicável àqueles que são dominados pelo mau hábito1. Alguns há, acrescenta São Bernardino de Sena, que pecam sem que a ocasião se apresente. Compara-os este grande Santo aos moinhos de vento que qualquer aragem faz girar e que continuam em movimento mesmo que não haja grão para moer, e, às vezes, até rodam contra a vontade do dono. Estes pecadores, observa São João Crisóstomo, vão forjando maus pensamentos, sem ocasião, sem prazer, quase contra sua vontade, tiranizados pela força do mau hábito.
Porque, segundo disse Santo Agostinho, o mau hábito se converte logo em necessidade. O costume, segundo nota São Bernardo, se muda em natureza. Daqui se segue que, assim como ao homem é necessário respirar, assim parece que o pecado se torna necessário para aqueles que habitualmente pecam e se fazem escravos do demônio.
Disse escravos, porque os criados trabalham por seu salário; mas os escravos servem à força, sem paga de espécie alguma. Nisto caem alguns desgraçados: chegam a pecar sem prazer nem desejo.
“O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza” (Pr 18,3). São João Crisósto-mo aplica estas palavras ao pecador obstinado nos maus hábitos, que, mergulhado naquele abismo tenebroso, despreza a correção, os sermões, as censu-ras, o inferno e até Deus. Menospreza tudo e se torna semelhante ao abutre voraz que, longe de fugir do cadáver em que se repasta, prefere que os caçado-res o matem. Refere o padre Recúpito, que um condenado à morte, indo para o cadafalso, levantou os olhos e, vendo uma donzela formosa, consentiu logo num mau pensamento. O Padre Gisolfo conta que um blasfemo, também condenado à morte, proferiu uma blasfêmia no mesmo momento em que o verdugo o lançava na escada para enforcá-lo.
Com razão, pois, nos diz São Bernardo que é inútil, em geral, rezar pelos pecadores por hábito e que é melhor pranteá-los como condenados.
Como é que eles houveram de sair do precipício em que se lançaram, se perderam a vista? Seria necessário um milagre da graça. Abrirão os olhos no inferno, quando o reconhecimento de sua desgraça só lhes dá de servir para chorar mais amargamente a sua loucura.
 
AFETOS E SÚPLICAS
 
Haveis prodigalizado, meu Senhor e Deus, os vossos benefícios, favorecendo-me mais que a outros, e eu, em compensação, vos cumulei de ofensas, injuriando-vos mais que todos... Ó querido Coração do meu Redentor, que tão afligido e atormentado fostes na cruz pela perversidade de minhas culpas: concedei-me, por vossos merecimentos, profundo conhecimento e viva dor dos meus pecados... Ah, meu Jesus! estou cheio de vícios, mas vós sois onipotente e podeis encher minha alma do vosso santo amor. Em vós, portanto, confio, porque sois a bondade e misericórdia infinitas. Arrependo-me, soberano Bem, de vos ter ofendido e quisera ter morrido antes de pecar. Esqueci-me de vós, mas vós não me esquecestes; reconheço-o pela luz com que agora iluminais minha alma. Já que me dais essa luz divina, concedei-me também força para servir-vos fielmente. Prefiro a morte a separar-me de vós, e ponho em vosso auxílio todas as minhas esperanças. In te, Domine, speravi, non confundar in aeternum. Em vós espero, Jesus meu, que não hei de ver-me outra vez na confusão da culpa e privado da vossa graça. A vós também me recomendo, ó Maria, nossa Mãe. In te, Domina, speravi, non confundar in aeternum. Por vossa intercessão confio, ó esperança nossa, nunca mais me ver na inimizade do vosso divino Filho. Rogai-lhe que antes me envie a morte que permitir tamanha desgraça.

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