Pro eo quod abiecisti sermonem Domini, abiecit te Dominus, ne sis rex — “Como tu rejeitaste a palavra do Senhor, o Senhor te rejeitou a ti, para que não sejas rei” (1 Reg. 15, 23).
Sumário. O remorso de ter perdido por própria culpa qualquer grande bem, ou de ter sido causa de algum grande mal, é uma pena tão grande, que ainda nesta vida causa tormentos indizíveis. Qual não será, pois, no inferno o tormento de um religioso que se vir condenado àquele cárcere, por ter perdido a vocação, e sem esperança de poder remediar a sua eterna ruína? Desgraçado de mim! Exclamará desesperado; podia ser um príncipe no paraíso e tornei-me um dos réprobos mais infelizes!
I. O remorso de ter perdido por própria culpa algum grande bem, o de ter chamado voluntariamente sobre si qualquer grande mal, é um apena tão grande, que ainda nesta vida causa um tormento insofrível. Imagina, pois, que tormento terá no inferno um jovem, chamado por Deus, por favor singular, ao estado religioso, quando conhecer que, se obedecera a Deus, teria adquirido no paraíso um lugar distinto, e em vez disso se vir encerrado naquele cárcere de tormentos, sem esperança de remédio à sua ruína eterna!
É este o verme que, sempre vivo, sempre lhe roerá o coração com um contínuo remorso: Vermis eorum non moritur (1) — “O seu verme não morre”. Ele dirá então: Ó insensato que fui! Podia fazer-me um grande santo; se tivera obedecido, agora estaria salvo; e eis que em vez disso, por minha própria culpa, por um nada, estou condenado, e condenado sem remédio!
Conhecerá então o miserável para sua maior pena, e verá no dia do juízo universal colocados à direita de Jesus e coroados como santos, conhecerá, digo, e verá tantos companheiros seus, que obedeceram à vocação divina, e deixando o mundo, se recolheram à casa de Deus, a que ele também tinha sido chamado. Ver-se-á então apartado do consórcio dos bem-aventurados, e relegado no meio da chusma inúmera dos miseráveis réprobos, porque foi desobediente à voz de Deus. É certo que o pensamento de sua vocação lhe será no inferno como que outro novo inferno.
II. Já se sabe, como atrás se considerou, que à infelicíssima troca do céu com o inferno se expõe facilmente aquele que, para seguir o seu capricho, volta as costas ao chamamento divino. Por isso, meu irmão, já que foste chamado a fazer-te santo na casa de Deus, considera a que grande perigo te havias de expor, se voluntariamente perdesses a tua vocação. Esta vocação, que Deus te deu em sua infinita bondade, a fim de te apartar do meio dos fiéis comuns e de te dar um lugar entre os príncipes do paraíso, tornar-se-ia por tua culpa, se lhe fosses infiel, como que um inferno à parte para ti. Escolhe portanto, porque Deus Jesus Cristo põe na tua mão a escolha; escolhe: ou ser um grande rei no paraíso, ou então um condenado mais desesperado que os outros, no inferno.
Não, meu Deus, não permitais que eu Vos desobedeça e Vos seja infiel. Vejo a vossa bondade para comigo, e Vos agradeço, porque, em vez de me expulsardes da vossa face e de me desterrardes para o inferno, por mim tantas vezes merecido, me chamais a fazer-me santo e preparais para mim um lugar excelente no paraíso. Vejo que mereceria uma dupla pena se não correspondesse a esta graça, que não é concedida a todos. Senhor, quero obedecer-Vos; eis-me aqui, sou vosso, e vosso quero ser sempre.
De boa vontade aceito todas as penas e incômodos da vida religiosa a que me convidais. O que vem a ser estas penas em comparação com as penas eternas que tenho merecido? Eu já estava perdido pelos meus pecados; agora me dou todo a Vós. Disponde de mim e de minha vida como Vos aprouver.
Aceitai, ó Senhor, um condenado ao inferno, como eu era, a servir-Vos e amar-Vos nesta vida e na outra. Quero amar-Vos tanto quanto tenho merecido estar no inferno a odiar-Vos, ó Deus infinitamente amável. O Jesus meu, Vós despedaçastes as cadeias com que o mundo me tinha preso a si; Vós me livrastes da escravidão de meus inimigos. Meu amor, quero amar-Vos muito, e pelo amor que Vos tenho, quero servir-Vos sempre, e obedecer-Vos. — Minha advogada, Maria, agradeço-vos por me terdes impetrado esta misericórdia. Ajudai-me e não permitais que eu torne a ser ingrato a meu Deus, que tanto me tem amado. Obtende de Deus que eu morra sem que haja de ser infiel a tão grande graça. (IV 417.)
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1. Marc. 9, 43.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 24-27.)
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