VI. FORMA
Chega agora a vez de tratarmos da forma, que se deve empregar na consagração do pão. Salvo motivo particular, estas explanações não se destinam ao simples povo fiel – pois delas não precisam os que não receberam Ordens Sacras – mas são dadas, sobretudo, para que a ignorância da forma não induza os sacerdotes a cometerem erros palmares na consumação do Sacramento.
VI.1. Para a consagração do pão
Consoante a doutrina dos Evangelistas São Mateus e São Lucas, bem como do Apóstolo São Paulo (Mt XXVI, 26; Lc XXII, 19; I Cor XI, 24), sabemos que essa forma consiste nas seguintes palavras: "Isto é o meu Corpo". Pois está escrito: "Quando estavam na ceia, tomou Jesus o pão, benzeu-o, partiu-o, e deu-o aos Seus Discípulos, dizendo: Tomai e comei, isto é o meu Corpo" (Mt XXVI, 26).
Esta forma de consagração, a Igreja Católica sempre a empregou, por ser a que Cristo Nosso Senhor havia observado. E aqui deixamos de parte os testemunhos dos Santos Padres, cuja enumeração seria um nunca acabar, e o decreto do Concílio de Florença, por bastante conhecido e acessível a quantos o queiram consultar. Se assim procedemos, é porque se pode também inferir a mesma verdade daquelas palavras de Nosso Salvador: "Fazei isto em memória de Mim".
Aquilo, pois, que Nosso Senhor dera ordem de fazer, deve referir-se não só ao que Ele havia feito, mas também ao que Ele havia dito. Isto deve, sobretudo, entender-se das palavras que Ele proferira, tanto para significar, como para produzir o efeito sacramental.
O mesmo se pode facilmente demonstrar à luz da razão.
Forma é aquilo que significa o efeito operado por este Sacramento. Ora, como as palavras citadas declaram, de maneira explícita, o efeito que se opera, isto é, a conversão do pão no verdadeiro Corpo de Nosso Senhor, segue-se, portanto, que elas mesmas constituem a forma da Eucaristia. Nesse sentido se deve tomar a expressão do Evangelista: "benzeu-o". Era como se dissesse: "Ele tomou o pão, benzeu-o, pronunciando as palavras: Isto é o meu Corpo".
O Evangelista refere antes as palavras: "Tomai e comei". Sabemos, porém, que estas palavras não designam a consagração da matéria, mas apenas o uso que se deve fazer do Sacramento.
O sacerdote tem a estrita obrigação de pronunciá-las, mas não são de valor essencial para a realização do Sacramento. O mesmo se diga da conectiva "pois", na consagração do pão e do vinho.
Do contrário, não seria lícito consagrar o Sacramento, quando não houvesse a quem administrá-lo. No entanto, ninguém pode contestar que o sacerdote consagra realmente a matéria apta do pão, todas as vezes que profira as palavras de Nosso Senhor, ainda que não na mesma ocasião não administre a ninguém a Sagrada Eucaristia.
VI.2. Para a consagração do vinho
Pelas mesmas razões já alegadas, deve o sacerdote ter uma perfeita noção da forma para consagrar o vinho, que é a segunda matéria deste Sacramento.
Destas palavras, muitas foram tiradas das Sagradas Escrituras, algumas, porém, são conservadas pela Igreja, em virtude da Tradição Apostólica:
Senão vejamos. "Este é o Cálice" - são palavras escritas por São Lucas e o Apóstolo São Paulo (Lc XXII, 20; I Cor XI, 25). O que vem a seguir: "do Meu Sangue", ou "Meu Sangue da Nova Aliança, o qual por vós e por muitos será derramado em remissão dos pecados" - são palavras que se acham parte em São Lucas, parte em São Mateus (Lc XXII, 20; Mt XXVI, 28). As palavras "da eterna Aliança" e "Mistério da fé": foram-nos comunicadas pela Sagrada Tradição, que é a medianeira e zeladora da verdade católica.
Ninguém poderá contestar a exatidão desta forma, se também aqui tiver em vista o que já foi dito acerca da consagração da matéria do pão. Pois certo é que nas palavras que exprimem a conversão do vinho no Sangue de Cristo Nosso Senhor, está contida, pois, a forma correspondente a esta matéria. Ora, como aquelas palavras a exprimem claramente, é de toda a evidência que se não deve estabelecer outra forma.
Além disso, essas palavras exprimem certos efeitos admiráveis do Sangue derramado na Paixão de Nosso Senhor, efeitos que estão na mais íntima relação com este Sacramento. O primeiro é o acesso à eterna partilha, cujo direito nos advém da "nova e eterna Aliança". O segundo é o acesso à justiça pelo "Mistério da fé"; porquanto Deus nos propôs Jesus como vítima propiciatória, mediante a fé em Seu Sangue, para que Ele mesmo seja justo e justifique a quem acredita em Jesus Cristo. O terceiro é a remissão dos pecados.
Como estas palavras da Consagração do vinho encerram um sem-número de Mistérios, e são muito adequadas ao que devem exprimir, força é considerá-las com mais vagar e atenção.
Quando pois se diz: "Este é o Cálice do Meu Sangue" – cumpre entender "Este é o Meu Sangue, que está contido neste cálice". Como aqui se consagra sangue, para ser bebida dos fiéis, é oportuno e acertado fazer-se menção do cálice. O sangue como tal não lembraria bastante a idéia de bebida, se não estivesse colocado num recipiente.
Acrescentam-se depois as palavras "da Nova Aliança", para compreendermos que o Sangue de Cristo Nosso Senhor é dado aos homens, em sua absoluta realidade, pela razão de pertencer à Nova Aliança; não somente em figura, como acontecia na Antiga Aliança, da qual contudo lemos, na epístola do Apóstolo aos Hebreus, não ter sido selada sem sangue.
Nesse sentido é que o Apóstolo explicou: "Pois isso mesmo", Cristo "é Mediador" da Nova Aliança, para que, intervindo a Sua morte, recebam a promessa da herança eterna os que a ela forma chamados" (contração de Hb IX, 15).
O adjetivo "eterna" refere-se à herança eterna, que legitimamente nos cabe pela morte de Cristo Senhor Nosso, o eterno Testador.
A cláusula "Mistério da fé" não tem por fim excluir a verdade objetiva; significa que devemos crer, com fé inabalável, o que nele se oculta, de maneira absolutamente inacessível à vista humana.
Mas estas palavras não têm aqui o mesmo sentido, que se lhes atribui também com relação ao Batismo. Fala-se, pois, de "Mistério da fé", porque só pela fé vemos o Sangue de Cristo, velado que está na espécie de vinho. Como, porém, o Batismo abrange toda a profissão da fé cristã, temos razão em chamar-lhe "Sacramento da fé", o que corresponde ao "mistério" dos gregos.
Existe, ainda, outro motivo de chamarmos "Mistério da fé" ao Sangue de Cristo. A razão humana oferece muita dificuldade e relutância, quando a fé nos propõe a crer que Cristo Nosso Senhor, verdadeiro Filho de Deus, sendo Deus e Homem ao mesmo tempo, sofreu a morte por amor de nós. Ora, esta morte é juntamente representada pelo Sacramento do Seu Sangue.
Em vista deste fato, era bem comemorar-se aqui, e não na Consagração do Seu Corpo, a Paixão de Nosso Senhor, mediante as palavras "que será derramado em remissão dos pecados". Consagrado separadamente, o Sangue tem mais força e propriedade, para revelar, aos olhos de todos, a Paixão de Nosso Senhor, a Sua Morte, a modalidade de Seu sofrimento.
As palavras que se ajuntam "por vós e por muitos", foram tomadas parte de São Mateus, parte de São Lucas (Mt XXVI, 28; Lc XXII, 20). A Santa Igreja, guiada pelo Espírito de Deus, coordenou-as numa só frase, para que exprimissem o fruto e a vantagem da Paixão.
De fato, se considerarmos sua virtude, devemos reconhecer que o Salvador derramou Seu Sangue pela salvação de todos os homens. Se atendermos, porém, ao fruto real que os homens dele auferem, não nos custa compreender que sua eficácia se não estende a todos, mas só a "muitos" homens.
Dizendo, pois, "por vós", Nosso Senhor tinha em vista, quer as pessoas presentes, quer os eleitos dentre os Judeus, como o eram os Discípulos a quem falava, com exceção de Judas.
No entanto, ao acrescentar "por muitos", queria aludir aos outros eleitos, fossem eles Judeus ou gentios. Houve, pois, muito acerto em não se dizer "por todos", visto que o texto só alude aos frutos da Paixão, e esta sortiu efeito salutar unicamente para os escolhidos.
Tal é o sentido a que se referem aquelas palavras do Apóstolo: "Cristo imolou-Se uma só vez, para remover totalmente os pecados de muitos" (Hb II, 28) e as que disse Nosso Senhor no Evangelho de São João: "Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por estes que Vós me destes, porque eles são Vossos" (Jo XVII, 9).
Nestas palavras da Consagração do vinho vão ainda muitos outros Mistérios. Com a graça de Deus, poderão os pastores facilmente descobri-los, se fizerem assídua e aturada meditação das coisas divinas.