31 de maio de 2013

NOVENA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS - TERCEIRO DIA.

TERCEIRO DIA – SEXTA-FEIRA
Coração amante de Jesus.

In caritate perpetua dilexi te: ideo attraxi te miserans – “Com amor eterno te amei; por isso compadecido de ti, te atraí a mim” (Ier. 31, 3).

Sumário. Oh, se compreendêssemos o amor de que o Coração de Jesus está abrasado para conosco! Não contente de nos ter criado, de preferência a tantos outros, o Verbo divino chegou a se fazer homem por nosso amor, a escolher uma vida penosíssima e a morrer sobre uma cruz. Este amor levou-O ainda a se deixar ficar conosco no Santíssimo Sacramento, onde parece que não tem outro ofício senão o de amar os homens. Mais: o amor levou-o a fazer-se nosso sustento, afim de se unir a nós e fazer dos nossos corações e o seu próprio uma só coisa. Porque então correspondemos tão mal ao amor de Jesus?

I. Oh! Se compreendêssemos o amor de que o Coração de Jesus está abrasado para conosco! Jesus nos ama tanto que, se todos os homens e todos os anjos se unissem para amar com todas as suas forças, não chegariam à milésima parte do amor que nos tem Jesus. Ele nos ama imensamente mais que nós mesmos nos amamos; Ele nos amou até ao excesso: Dicebant excessum eius, quem completurus erat in Ierusalem (1) – “Falavam do excesso que havia de cumprir em Jerusalém”. E que excesso maior do que um Deus morrer pelas suas criaturas?

Jesus nos amou até ao fim: Cum dilexisset suor, in finem dilexit eos (2). Sim, porque, depois de nos haver Deus amado desde a eternidade, de forma que em toda a eternidade não houve um instante em que não tenha pensado em nós e amado a cada um de nós; por nosso amor se fez homem e escolheu uma vida penosa e a morte de cruz. Amou-nos, portanto, mais que a sua honra, mais que seu repouso, mais que a vida, porquanto sacrificou tudo para nos provar o amor que nos tem. Não vai nisto um excesso de amor, que fará os anjos e o paraíso todo pasmarem por toda a eternidade?

Foi ainda o amor que levou Jesus a permanecer conosco no Santíssimo Sacramento, como num trono de amor. Ali está sob as aparências de um pouco de pão, encerrado numa âmbula, por assim dizer, num completo aniquilamento da sua majestade, sem movimento e sem o uso dos sentidos; de forma que parece que não tem outro ofício a cumprir senão o de amar aos homens. O amor faz desejar a presença contínua da pessoa amada; pois este amor e este desejo fizeram Jesus Cristo ficar conosco no Santíssimo Sacramento.

Em suma, parece que para o amor de nosso Senhor era demasiadamente breve a permanência com os homens durante trinta anos; pelo que, afim de mostrar seu desejo de estar entre nós, resolveu fazer o maior de todos os milagres, a instituição da Santíssima Eucaristia. – Mas, já estava realizada a obra da Redenção, já estavam os homens reconciliados com Deus. Para que servia então a permanência de Jesus na terra neste Sacramento? Ah! Jesus ali fica, porque não se pode separar de nós, dizendo que acha as suas delícias em estar conosco.

II. Mas não foi suficiente ao amor de Jesus Cristo, que na Santíssima Eucaristia se fizesse nosso companheiro; quis ainda Jesus fazer-se o sustento das nossas almas, afim de se unir a nós e fazer com que nossos corações fossem uma só coisa com o seu próprio coração: Qui manducat meam carnem, in me manet et ego in illo (3) – “Quem come a minha carne, fica em mim e eu nele”. Ó pasmo! Ó excesso do amor divino! Dizia um servo de Deus: “Se alguma coisa pudesse fazer vacilar a minha fé no mistério da Eucaristia, não seria o modo como o pão se torna carne, nem como é que Jesus está em tantos lugares e reduzido a tão pequeno espaço; a tudo isso eu responderia que Deus pode tudo. Mas quando se me pergunta, como Jesus ama aos homens a ponto de se lhes dar para sustento, já não sei mais que responder, senão que esta verdade da fé está acima de minha inteligência e que o amor de Jesus é incompreensível.”

Ó Coração adorável de meu Jesus, Coração consumido pelo amor aos homens, Coração criado de propósito para amar aos homens, como é possível que os homens correspondam tão mal a vosso amor e o desprezem? Ai de mim, miserável, que também fui um desses ingratos que não souberam amar-Vos! Meu Jesus, perdoai-me o grande pecado de não Vos ter amado, a Vós que sois tão amável e tanto me amastes, que nada mais podíeis fazer para me obrigar a amar-Vos. Reconheço que, por ter algum tempo desprezado vosso amor, mereceria ser condenado a não Vos poder amar. Mas não, meu amado Salvador, infligi-me qualquer castigo que não seja este. Dai-me a graça de Vos amar, e depois castigai-me como quiserdes. Como, porém, poderei receiar tal castigo, visto que Vos ouço ainda intimar-me o doce, o amável preceito de Vos amar, meu Senhor e meu Deus: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo (4) – “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração”.

Sim, meu Deus, desejais o meu amor e eu Vos quero amar; e não quero amar senão a Vos, que me tendes amado tanto. Ó amor de meu Jesus, Vós sois o meu amor. Ó Coração abrasado de Jesus, abrasai também o meu coração. Não permitais que no futuro eu viva um instante sem o vosso amor. – Deixai-me antes morrer; aniquilai-me; não seja o mundo testemunha desta ingratidão, que eu, tão amado de Vós, depois de tantas graças e luzes recebidas, torne a desprezar o vosso amor. Não, Jesus meu, não o permitais. Pelo sangue que por mim derramastes, espero que Vos amarei sempre e Vós sempre me amareis; e que este laço de nosso amor nunca mais será rompido em toda a eternidade. – Ó Mãe do belo amor, Maria, vós que desejais tanto ver vosso Jesus amado, ligai-me, estreitai-me a vosso Filho; mas estreitai-me de tal modo, que nunca mais dele me possa separar. (II 413.)

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1. Luc. 9, 31.
2. Io. 13, 1.
3. Io. 6, 57.
4. Matth. 22, 37.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Segundo: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 154-157.)

30 de maio de 2013

Tesouros de Exemplos - Parte 316

POR QUE ERA ATEU

Encontraram-se, certo dia, um pároco e um homem notóriamente ímpio e avarento. Na conversa com o padre não fez segrêdo de sua impiedade e declarou abertamente que, embora respeitador das crenças alheias, não acreditava em Deus. O vigário, tomando uma fôlha de papel, escreveu ela a palavra "Deus".
- O senhor está vendo esta palavra? - perguntou ao ateu.
- Perfeitamente, respondeu o outro.
O pároco tirou do bôlso uma moeda de dois mil réis (das antigas) e colocou-a exatamente sôbre a palavra que escrevera e tornou a perguntar:
- Ainda vê a palavra "Deus"?
- Agora não a vejo, porque a moeda mo impede.
- Pois é isso mesmo, meu amigo, o que se está dando com a sua pessoa. O sr. vê só o dinheiro e por isso não exerga mais a Deus. O Salvador disse: "Os cuidados dêste mundo e a ilusão das riquezas sufocam a palavra de Deus".

NOVENA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS - SEGUNDO DIA.

SEGUNDO DIA – QUINTA-FEIRA
Solenidade do Corpo de Deus.

Exulta et lauda, habitatio Sion; quia magnus in medio tui Sanctus Israel — “Exulta e louva, morada de Sião, porque o Grande, o Santo de Israel, está no meio de ti” (Is. 12, 6).

Sumário. Para celebrarmos com fruto a Solenidade do Corpo de Deus, conformemo-nos ao espírito da Igreja, que com a instituição da festa de hoje quis tributar a seu divino Esposo um tríplice preito: primeiro, um preito de veneração, em compensação das humilhações a que se sujeitou por nós; segundo, um preito de gratidão, pelo dom tão grande da Santíssima Eucaristia; terceiro, um tributo de reparação, para desagravá-Lo das injúrias que continuamente recebe neste divino Sacramento.

I. Consideremos os elevados fins que nossa Mãe a santa Igreja teve em mira pela instituição da festa do Santíssimo Sacramento com oitava solene. Com todo esse esplendor de missas, procissões e outros exercícios piedosos, ela quer tributar a seu divino Esposo um tríplice preito, de veneração, de gratidão e de reparação.

Um preito de veneração para compensar-Lhe de algum modo o estado de aniquilamento e humilhação a que se quis sujeitar e ainda se sujeita continuamente para ficar conosco sobre os altares; onde, na palavra de São Bernardo, esconde a sua divindade, esconde também sua humanidade, só deixando ver as aparências de pão para assim patentear a ternura do amor que nos tem: Latet divinitas, latet humanitas, sola patent viscera caritatis.

Quis a Igreja também tributar a Jesus Cristo um preito de gratidão, por um dom tão grande, no qual fez o supremo esforço de seu amor para com os homens. — “O Esposo”, diz São Pedro de Alcântara, “para consolar a sua Esposa durante a sua longa ausência, quis dar-lhe uma companhia; e instituiu este Sacramento, no qual reside em pessoa: era a melhor prova que lhe podia dar do seu amor”. Justo pois era que a Igreja excitasse os fiéis, seus filhos, por uma solenidade especial a agradecerem a Jesus sua amorosa presença e a venerarem com afetos de gratidão.

Finalmente, com a festa de hoje, a Igreja quer tributar a Jesus um preito de reparação, afim de O desagravar de tantas ofensas que Ele recebe continuamente neste divino Sacramento. A Igreja vê que a maior parte dos homens recusa adorá-Lo e reconhecê-Lo pelo que é neste adorável mistério. Sabe que mais de uma vez estes mesmos homens chegaram a calcar aos pés as hóstias consagradas, a lançarem-nas ao lodo, à água, ou às chamas. O que mais a aflige é ver que também a maior parte dos que crêem na Eucaristia, em vez de repararem tantos ultrajes por testemunhos de respeito e piedade, vêm aumentar a dor de Jesus pelas suas irreverências nas igrejas, ou deixam-No só sobre o altar, desprovido por vezes de lâmpada e dos ornamentos mais indispensáveis. Oh, que negra ingratidão!

II. Meu irmão, procura conformar-te ao espírito da Igreja e tributa a Jesus o tríplice preito de veneração, de gratidão e de reparação, assistindo com fé ás missas e outros exercícios piedosos, aproximando-te da santa comunhão e visitando-O nestes dias com mais freqüência.

Senhor meu Jesus Cristo, que por amor dos homens ficais noite e dia no Sacramento do altar, onde, cheio todo de misericórdia e bondade, chamais e acolheis todos os que Vos vêm visitar: eu creio que estais presente neste Sacramento. Desde o abismo de meu nada, Vos adoro, e graças Vos dou por todos os benefícios que me tendes feito; especialmente porque Vos destes a mim neste Sacramento, me concedestes por advogada vossa Mãe, a Santíssima Virgem Maria, e me chamastes a Vos visitar nesta igreja. Saúdo hoje o vosso Coração amantíssimo e quero saudá-lo por três fins: 1º. em reconhecimento deste grande dom; 2º. em reparação de todos os ultrajes que dos vossos inimigos tendes recebido neste Sacramento; 3º. na intenção de Vos adorar, por esta visita, em todos os lugares do mundo, onde sois menos reverenciado e mais abandonado neste Sacramento.

Amo-Vos, meu Jesus, de todo o meu coração. Pesa-me, de ter, no passado, desagradado tantas vezes vossa bondade infinita. Proponho, com o socorro de vossa graça, não Vos ofender mais no futuro. E nesta hora, miserável como sou, me consagro todo a Vós; eu Vos dou e sacrifico minha vontade, meus afetos, meus desejos e todos os meus interesses. D’ora avante fazei de mim, e de tudo que é meu, o que for de vosso agrado. Somente peço e quero o vosso santo amor, a perseverança final e a graça de cumprir perfeitamente a vossa vontade, — Recomendo-Vos as almas do purgatório, principalmente as mais devotas do Santíssimo Sacramento e de Maria Santíssima. Recomendo-Vos também todos os pobres pecadores. Enfim, amadíssimo Salvador meu, uno os meus afetos aos afetos do vosso Coração amantíssimo, e assim unidos, ofereço-os a vosso Eterno Pai, pedindo-Lhe em vosso nome que por vosso amor se digne de os aceitar e atender (1). (*I 371.)

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1. Indulg. de 300 dias cada vez; indulgência plenária uma vez por mês.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Segundo: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 151-154.)

29 de maio de 2013

NOVENA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS - PRIMEIRO DIA.

PRIMEIRO DIA – QUARTA-FEIRA
Coração amável de Jesus.

Totus desiderabilis: talis est dilectus meus – “Todo desejável, tal é o meu amado.” (Cant. 5, 16).

Sumário. O fim principal que nos devemos propor nesta novena é o nosso progresso contínuo no amor de Jesus Cristo, para assim o desagravar dos ultrajes que recebe, especialmente no Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Consideremos, pois, a amabilidade desse Coração divino, todo puro, todo santo, todo amor para com Deus e para conosco. Basta dizer que Deus nele acha as suas delícias, toda a sua complacência. Será então possível não as acharmos também?... Ah, meu Jesus, eu Vos amo e quero amar-Vos sempre de todo o coração.

I. Quem se mostra sempre e em tudo amável faz-se necessariamente amar. Ah! Se procurássemos conhecer todos os belos títulos que Jesus Cristo tem para ser amado, todos nós acharíamos na feliz necessidade de o amar. Que coração há mais amável que o de Jesus Cristo? Coração este, todo puro, todo santo, todo amor para com Deus e para conosco. Coração cujos desejos têm por objeto único a glória divina e o nosso bem. Coração no qual Deus acha todas as suas delícias e toda a sua complacência.

No coração de Jesus estão concentradas todas as perfeições e virtudes: um amor ardentíssimo a Deus seu Pai, unido à mais profunda humildade e reverência; uma suprema confusão pelos nossos pecados que tomou sobre si, unida à confiança mais perfeita de Filho terníssimo; uma extrema detestação das nossas culpas, unida a uma viva compaixão das nossas misérias; uma dor suprema unida a uma conformidade perfeita com a vontade de Deus. Em Jesus, portanto, acha-se tudo que possa haver de amável.

Uns são atraídos ao amor pela beleza, outros pela inocência, estes pela convivência, aqueles pela devoção. Mas se houvesse uma pessoa que em si reunisse todas estas e mais outras virtudes, quem poderia deixar de a amar? Se soubéssemos que longe de nós reina um monarca famoso, humilde, afável, piedoso, cheio de caridade, manso para com todos e bem-fazejo até para com os que lhe fazem mal; mesmo sem o conhecermos e termos que ver com ele, seríamos cativados pelo seu amor e constrangidos a amá-lo. – Como é então possível, que Jesus Cristo, que possui todas estas virtudes e em grau supremo, que nos ama tão ternamente, seja amado tão pouco pelos homens e não seja o objeto único de nosso amor?

Ah, Deus! Jesus, que só é amável e nos deu tantas provas do amor que nos tem, Jesus só, por assim dizer, é tão inditoso, que não consegue ver-se amado de nós, como se não fosse bastante digno de nosso amor! É o que fazia chorar uma Rosa de Lima, uma Catarina de Gênova, uma Teresa, uma Maria Madalena de Pazzi, que contemplando a ingratidão dos homens exclamavam entre lágrimas: O amor não é amado! O amor não é amado!

II. Ó meu amável Redentor, que objeto mais digno de amor podia o vosso Eterno Pai mandar-me amar fora de Vós? Vós sois o enlevo do paraíso e o amor de vosso Pai; vosso Coração é a sede de todas as virtudes. Amabilíssimo Coração do meu Jesus, Vós mereceis o amor de todos os corações. Muito pobre e infeliz é o coração que Vos não ama. Tão infeliz foi o meu coração durante todo o tempo que Vos não amou. Mas não quero continuar a ser tão desgraçado, pois amo-Vos, ó Jesus e quero sempre amar-Vos.

Ó Senhor, no passado vivi esquecido de Vós; e agora que esperarei? Talvez que a minha ingratidão Vos obrigue a Vos esquecer inteiramente de mim e a me desamparar? Não, meu dulcíssimo Salvador, não o permitais. Vós sois o amor de um Deus e não o sereis de um miserável pecador como eu, a quem tanto tendes amado e cumulado de benefícios? Ó formosas chamas, que ardeis no Coração amoroso do meu Jesus, acendei no meu pobre coração este fogo sagrado e bendito que Jesus veio trazer do céu à terra. Consumi e destruí todos os afetos impuros que reinam em meu coração e o impedem de ser todo de Deus. Fazei, ó meu Jesus, que eu viva unicamente para Vos amar, meu amado Salvador.

Se outrora Vos desprezei, sabei que hoje sois o meu único amor. Amo-Vos, amo-Vos, amo-Vos e só a Vós quero amar. Ó meu amadíssimo Senhor, não recuseis o amor de um coração que por tanto tempo Vos afligiu. Seja uma glória vossa mostrar aos Anjos um coração todo abrasado em vosso amor, que outrora fugia de Vós e Vos desprezava. – Virgem Santíssima e esperança minha, Maria, ajudai-me; rogai-Lhe que com a sua graça me torne tal qual seu Coração me deseja. (II 412.)

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(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 149-151.)

28 de maio de 2013

Acusação da alma no juízo particular.

Quid faciam, cum surrexerit ad iudicandum Deus? Et cum quaesierit, quid respondebo illi? – “Que farei quando Deus se levantar para me julgar? E quando me perguntar, que lhe responderei?” (Iob 31, 14.)

Sumário. Logo que o homem expira, assentar-se-á contra ele o juízo. Virão depois os acusadores, particularmente o demônio, que o tentou durante a vida e o Anjo da guarda, cujas inspirações desprezou. Jesus Cristo mesmo, que a tudo esteve presente, será, ao mesmo tempo, testemunha e juiz. Dize-me: que responderemos a tais acusadores se tivermos a desgraça de morrer em pecado?... E se a morte nos colhesse nesta noite, qual seria a nossa sentença?

I. Logo que o homem expira, assentar-se-á contra ele o juízo e serão abertos os livros (1). Esses livros serão dois: o Evangelho e a consciência. No Evangelho se lerá o que o culpado devia fazer; na consciência, o que tiver feito. – Na balança da divina justiça, não se pesarão as riquezas, nem a dignidade, nem a nobreza das pessoas, mas tão somente as obras. Pelo que Daniel disse ao rei Baltazar: Appensus es in statera, et inventus es minus habens (2) – “Foste pesado na balança e achou-se que tinhas menos do peso”. Notai bem, comenta o Padre Alvarez: não é o ouro, nem o poder de rei que está na balança, mas unicamente a sua pessoa.

Virão depois os acusadores e em primeiro lugar o demônio. O espírito maligno agora engana-nos com mil astúcias; mas ali, diz Santo Agostinho, perante o tribunal de Jesus Cristo: recitabit verba professionis nostrae, representará todas as obrigações que havíamos assumido e deixado de cumprir. Obiciet in faciem nostram, denunciar-nos-á todas as faltas, marcando o dia e a hora em que as cometemos. Depois, segundo diz o mesmo Santo, dirá ao Juiz: Senhor, por este culpado eu não sofri bofetadas como Vós, nem açoites, nem qualquer outro castigo e contudo ele Vos virou as costas, a Vós que morrestes pela sua salvação, para se fazer meu escravo; é, pois, justo que seja meu. Ordenais, pois, que seja todo meu, já que não quis ser vosso: Iudica esse meum qui tuus esse noluit.

Virá em seguida como acusador o Anjo da Guarda, que, na palavra de Orígenes, dirá: Senhor, durante tantos anos me empenhei junto dele, mas desprezou todas as minhas admoestações. Então sucederá o que diz Jeremias; os próprios amigos serão contra a alma culpada: Omnes amici eius spreverunt eum (3).

II. Não serão somente os demônios e os Anjos da guarda os acusadores da alma perante o tribunal de Jesus Cristo. Segundo o profeta Habacuc serão também acusadores as paredes, no recinto das quais se tiver pecado (4); e segundo São Paulo, a própria consciência dará testemunho contra o pecador, e São Bernardo acrescenta que também os pecados falarão e dirão: Sabes que tu nos praticaste, somos, pois, obras tuas; não te deixamos: Opera tua sumus, non te deseremus.

Mas acima de todos, diz São João Crisóstomo, bradarão por vingança as chagas de Jesus Cristo: “Os cravos”, diz o Santo, “queixar-se-ão de ti; as chagas falarão contra ti, a própria Cruz de Jesus Cristo levantará a voz contra ti.”

A tudo isso que poderá responder o pobre pecador?... E tu, minha alma, que é que responderás? Interroga-te a tia mesma e pergunta com o santo Jó: Quid faciam, cum surrexerit ad iudicandum Deus (5) – “Que farei quando Deus se levantar para me julgar?

Ah! Meu Jesus, se me quisésseis agora pagar segundo as obras que fiz, não receberia em paga senão o inferno. Quantas vezes eu mesmo escrevi a minha condenação àquele lugar de tormentos! Agradeço-Vos a paciência que tivestes em me suportar. Ó meu Deus, se devesse agora comparecer no vosso tribunal, que conta daria de toda a minha vida? Non intres in iudicium cum servo tuo (6) – “Não entreis em juízo com vosso servo”. Esperai, Senhor, um pouco; não me julgueis ainda! Já que tantas misericórdias me tendes prodigalizado até ao presente, concedei-me ainda esta: dai-me uma grande dor de meus pecados. Arrependo-me, ó Bem supremo, de Vos ter tantas vezes desprezado. Amo-Vos sobre todas as coisas. – Perdoai-me, Eterno Pai, pelo amor de Jesus Cristo e pelos seus merecimentos dai-me a santa perseverança. Tudo espero, meu Jesus, do vosso sangue. – Maria Santíssima, em vós confio. Lançai, ó minha Mãe, um olhar sobre a minha miséria e tende piedade de mim. (*II 110.)

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1. Dan. 7, 10.
2. Dan. 5, 27.
3. Thren. 1, 2.
4. Hab. 2, 11.
5. Iob. 31, 14.
6. Ps. 142, 2.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 146-149.)

27 de maio de 2013

Sermão 1º Domingo depois de Pentecostes, da Santíssima Trindade - Padre Daniel Pinheiro - IBP

Sermão para a Festa da Santíssima Trindade
(Primeiro Domingo depois de Pentecostes)
26 de maio de 2013 - Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…
“Ide, pois, e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.”
Caros católicos, a Igreja nos fez reviver, desde o Tempo do Advento até Pentecostes, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Preparamo-nos para o seu nascimento, comemoramos o seu nascimento, festejamos a sua circuncisão na oitava do Natal, comemoramos a visita dos reis magos na Epifania, festejamos a Purificação de Nossa Senhora e a Apresentação do Menino Jesus no Templo. Entramos na Quaresma, com a tentação de Nosso Senhor no deserto, com sua pregação e a oposição mortal dos fariseus. Lembramos sua entrada triunfante em Jerusalém no Domingo de Ramos, a Instituição da Eucaristia, da Missa, do Sacerdócio na Quinta-Feira Santa. Sua Paixão e Morte na Cruz na Sexta-Feira Santa. Sua Ressureição gloriosa, sua Ascensão, o envio do Espírito Santo sobre Nossa Senhora e os Apóstolos, encerrando o Tempo Pascal. Nós começamos agora o Tempo que, na liturgia tradicional, se chama Tempo depois de Pentecostes e que significa liturgicamente a aplicação dos méritos infinitos obtidos por Cristo durante toda a sua vida na terra. Essa aplicação se faz por obra do Espírito Santo, a quem se atribuem as obras de santificação. Esse Tempo depois de Pentecostes é justamente um prolongamento de Pentecostes, com o Espírito Santo que atua na Igreja e nas almas, para nos conduzir ao céu.
Nesse primeiro domingo depois de Pentecostes, festejamos a Santíssima Trindade. São dois os principais mistérios da religião revelada por Deus aos homens. O mistério da Encarnação do Verbo e o mistério da Santíssima Trindade. Se queremos ser agradáveis a Deus, devemos ter a fé, quer dizer, devemos acreditar – com nossa inteligência – firmemente e com toda certeza aquilo que Deus nos revelou. São Paulo diz que sem a fé não podemos agradar a Deus e, com o mesmo sentido, Santo Atanásio diz que se queremos nos salvar, devemos, antes de tudo, ter a fé e conservá-la íntegra e sem mancha. Assim, se queremos agradar a Deus, devemos crer e confessar que Deus é Uno e Trino. Se queremos nos salvar, devemos crer e confessar que existe um só Deus em três Pessoas, pois Deus, que não pode se enganar nem nos enganar, nos disse que Ele é um só Deus em três Pessoas. Portanto, caros católicos, quando cultuamos Deus, quando adoramos Deus e o servimos, não estamos cultuando uma entidade mais ou menos vaga, não estamos cultuando o supremo arquiteto do universo da maçonaria, não estamos cultuando a mãe natureza ou uma força, uma energia positiva. Não estamos cultuando um Deus que se confunde com o mundo. Cultuamos, isso sim, um Deus que é puro espírito, infinitamente bom e amável, onisciente, onipotente, eterno… Cultuamos um Deus que é distinto das criaturas e que mantém na existência tudo o que criou e que governa tudo com suprema bondade e misericórdia. Nós cultuamos um só Deus em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essas três Pessoas são um só Deus e não três deuses porque as três têm uma só substância, uma só natureza, uma só essência, uma só divindade; as três são igualmente eternas, igualmente poderosas, nenhuma das três é uma criatura. Um só Deus, um só Senhor em três Pessoas realmente distintas. A única diferença que existe entre as três Pessoas da Santíssima Trindade é o fato de uma proceder da outra. O filho procede do Pai desde toda a eternidade. O Espírito Santo procede do Pai e do Filho desde toda a eternidade. O Pai não procede de ninguém.
A Santíssima Trindade, como falamos, é um mistério. É um mistério pois nossa razão não pode sozinha chegar à conclusão de que Deus é um em três Pessoas. Precisamos da Revelação para conhecer isso. É famosa a história de Santo Agostinho, que buscava compreender a Santíssima Trindade quando escrevia seu livro sobre o assunto. Deus lhe mostrou como esse mistério é inacessível à pura razão comparando o seu desejo ao desejo de um menino que queria colocar toda a água do mar em um buraco cavado na areia da praia. Diante do mistério da Santíssima Trindade, muitos inimigos da religião pretendem combatê-la dizendo que a fé é irracional, pois não podemos compreender aquilo em que acreditamos. Caros católicos, a fé não é irracional. Ao contrário, ousaria dizer que não existe nada de mais conforme à razão  do que a fé. A fé supera a razão, mas a fé não contradiz a razão. Poderíamos comparar as verdades da fé com relação à nossa inteligência com uma equação do segundo grau para uma criança de cinco anos. A equação supera a inteligência da criança, mas nem por isso a equação contradiz a inteligência daquela criança ou se torna irracional. Da mesma forma, as verdades sobrenaturais não se tornam irracionais pelo fato de superarem nossa razão. Nossa inteligência não consegue compreender o mistério da Santíssima Trindade, mas ela consegue mostrar que não se trata de um absurdo, ela consegue responder às objeções contrárias à Santíssima Trindade, ela consegue mostrar que é possível a existência de um só Deus em três Pessoas. Ela consegue, por meio de analogias e comparações, entender melhor o mistério, embora não consiga demonstrá-lo ou explicá-lo completamente. Podemos compreender um pouco o mistério da Santíssima Trindade fazendo, por exemplo, uma analogia com a nossa inteligência e com a nossa vontade. O Verbo é gerado porque Deus conhece a si mesmo perfeitamente desde toda a eternidade. Esse conhecimento que Ele tem de si gera o Filho ou Verbo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Esse Filho gerado é em tudo igual ao Pai, salvo justamente o fato de proceder do Pai. Do amor que existe entre o Pai e o Verbo – amor que existe desde toda a eternidade – procede o Espírito Santo. O Espírito Santo é em tudo igual ao Pai e ao Filho, salvo o fato de proceder de ambos. Essa geração do Filho e o proceder do Espírito Santo não diminuem em nada o Filho e o Espírito Santo com relação ao Pai. Os três são igualmente eternos, igualmente perfeitos. Os três são um só Deus. O mistério da Santíssima Trindade supera a nossa razão, mas não a contradiz.
Além disso, caros católicos, nossa razão é capaz de reconhecer a existência de Deus e ela reconhece que Deus é infinitamente perfeito. Diante disso, a nossa razão reconhece que se Deus nos falar, somos obrigados a aceitar porque Deus, infinitamente perfeito, não pode se enganar nem nos enganar. E aceitar aquilo que Deus nos falou não é humilhar a nossa inteligência, mas ao contrário, aceitar as verdades de fé é a maior exaltação a que pode chegar nesse mundo a nossa inteligência, pois a fé aumenta a capacidade de conhecimento da nossa razão e faz que nossa razão penetre na ordem sobrenatural. A fé não é contrária à razão. Deus é o autor da fé e da razão. Ele não pode se contradizer colocando as duas em oposição. A fé não diminui a razão. A fé aperfeiçoa e eleva a nossa razão, a nossa inteligência humana. É melhor ser mais perfeito com a ajuda de outro – no caso, Deus – do que permanecer sozinho na imperfeição ou na mediocridade.
Se Deus falou, devemos, então, acreditar. Lendo a Sagrada Escritura, aparece claramente que Deus revelou ser Uno e Trino. Ele revelou isso abertamente no Novo Testamento e deu indícios fortíssimos no Antigo Testamento.
Não convinha que a Santíssima Trindade fosse revelada plenamente aos judeus pelo risco que havia de eles caírem no politeísmo, sem compreender bem a Trindade das pessoas e pelo fato de estarem cercados de pagãos politeístas. Mas já a primeira frase da Sagrada Escritura indica a Santíssima Trindade: “No Princípio criou Deus o céu e a terra e o Espírito de Deus movia-se sobre a água”. Ora, “no Princípio” era o Verbo, diz São João. “Deus” é Deus Pai. O “Espírito de Deus que se move sobre a água” é o Espírito Santo. Além disso, nessa mesma frase em hebreu, a palavra “Deus” é Elohim, que é uma forma plural, mas o verbo – “criou” – se encontra no singular. No plural da palavra Elohim, temos a pluralidade de pessoas. No singular do verbo “criou” temos a unidade da essência. Ainda no primeiro capítulo do Gênesis Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. O verbo “façamos” no plural indica a pluralidade de pessoas. “À nossa imagem e semelhança” no singular indica a unidade da essência. Davi diz no Salmo (LVI): “Abençoe-nos Deus, o nosso Deus, abençoe-nos Deus.” Invoca três vezes Deus: Deus Pai, Deus Filho, Deus Esp. Santo. E o que está no meio é chamado de maneira sublime nosso Deus, pois faz referência ao Filho, que assumiu nossa carne, veio ao mundo para nos salvar. O Profeta Isaías diz: “Sanctus, Sanctus, Sanctus”, referência ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo. E poderíamos ainda citar outras passagens do Antigo Testamento que fazem referência à Sant. Trindade.
No Novo Testamento, Nosso Senhor ensina abertamente a Trindade das Pessoas em Deus. Temos o Evangelho de hoje: “Ide, pois, e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.” “Nome” está no singular, para significar a unidade de essência em Deus. Também quando Nosso Senhor diz: “Quando vier o Paráclito, que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará testemunho de mim.” Há o Pai, o Filho e o Paráclito, que procede dos dois, que é enviado pelo Pai e pelo Filho. Podemos citar também o Batismo de Nosso Senhor e sua Transfiguração, em que tanto o Pai como o Espírito Santo se manifestam para glorificar o Filho. Também os Apóstolos ensinam a Santíssima Trindade. São João diz: “três são os que dão testemunha no céu: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E esses três são um.” São Paulo na Epístola de hoje diz “dEle, por Ele e para Ele”, com referência à Santíssima Trindade. E, claro, poderíamos multiplicar os exemplos.
Também a Tradição exprime claramente a fé na Santíssima Trindade. Podemos mencionar o Credo de Santo Atanásio – que recomendo a todos que leiam – e poderíamos citar os outros Padres da Igreja. Basta, porém, considerarmos esse monumento da Tradição e da fé que é o Rito Tradicional da Missa, e que é, em particular, uma confissão clara da fé na Santíssima Trindade. No ofertório, pedimos à Santíssima Trindade que receba a oblação que oferecemos na Missa: Suscipe Sancta Trinitas hanc oblationem. Logo antes da Bênção final, exprimimos o nosso desejo de que o sacrifício que acabou de ser oferecido aplaque a Santíssima Trindade e lhe seja agradável. Recitamos em todos os Domingos depois de Pentecostes o Prefácio da Santíssima Trindade. Peço que considerem atentamente as palavras desse Prefácio que será cantado logo mais e vejam que sublime síntese do Mistério da Santíssima Trindade está contida nessa bela oração.
Todas as nossas ações devem ser feitas em nome da Santíssima Trindade. Na Santa Missa, o primeiro rito é o sinal da Cruz, para indicar que o sacrifício da Cruz vai ser renovado e oferecido em honra da Santíssima Trindade. Permaneçamos firmes e inabaláveis na fé na Santíssima Trindade, caros católicos, sem a qual não podemos agradar a Deus, sem a qual não podemos nos salvar. E que, pela firmeza dessa fé, sejamos protegidos de toda a adversidade (Coleta). Peçamos à Santíssima Trindade que habite em nossas almas pela graça. Bendita seja a Santíssima Trindade e a Unidade Indivisa, como nos diz o Intróito da Missa de hoje.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

O Corpo na Tumba.

Subter te sternetur tinea, et operimentum tuum erunt vermes – “Debaixo de ti se estenderá por cama a polila, e a tua coberta serão os bichos” (Is. 14, 11).

Sumário. Meu irmão, para ver melhor o que és, aproxima-te de um túmulo. Eis como daquele cadáver sai uma matéria infecta, na qual se gera uma multidão de vermes que se nutrem da carne. Caem as faces, os lábios, os cabelos. E finalmente, daquele corpo nutrido com tanta delicadeza, causa talvez de tantas ofensas do Senhor, não resta nada senão um esqueleto fétido, um punhado de pó. Quantos têm, à vista de um cadáver, deixado o mundo e entrado numa ordem religiosa!

I. Para melhor ver o que és, ó cristão, diz São João Crisóstomo: Perge ad sepulchrum – “vai visitar os túmulos”. Vê como esse cadáver se vai tornando de amarelo em negro. Em seguida aparece pelo corpo todo uma penugem branca e repelente. Sai dela uma matéria viscosa e infecta que corre pela terra. Nesse pus gera-se em breve uma multidão de vermes que se nutrem das carnes. Despegam-se e caem as faces, os lábios, os cabelos; e daquele corpo só resta finalmente um esqueleto fétido, que com o tempo se divide, destacando-se os ossos uns dos outros, e separando-se a cabeça do tronco. Redacta quasi in favillam aestivae areae, quae rapta sunt vento (1) – “Como a miúda palha, que o vento leva fora da eira em tempo de estio”. Tal é o homem, um pouco de pó arrastado pelo vento.

Onde está aquele cavalheiro, outrora encanto e alma da sociedade? Entra no seu quarto; já lá não está. Se procurares o seu leito, saberás que foi dado a outro. Os vestidos, as armas: outros já tomaram posse delas e as dividiram entre si. Se o queres ver, vai a essa cova, onde jaz em podridão e com os ossos descarnados. Ó Deus! A que estado ficou reduzido o corpo nutrido com tanta delicadeza, vestido com tanta pompa, cercado de tantos servos! Quantos têm, à vista de um cadáver, deixado o mundo e entrado numa ordem religiosa!

II. Santos do céu, como haveis sido prudentes, vós que pelo amor de Deus, a quem só amastes na terra, soubestes mortificar o vosso corpo. Agora, vossos ossos são conservados e honrados como relíquias santas em relicários de ouro, enquanto que vossas belas almas gozam de Deus, esperando o dia final em que vossos corpos irão também tomar parte na glória eterna, como tomaram parte na cruz durante a vida. É assim que se ama verdadeiramente o corpo, carregando-o neste mundo de aflições, afim de que seja eternamente feliz e recusando-lhe as doçuras que o tornariam infeliz na eternidade.

Aí está, meu Deus, o que deve ser um dia este corpo, pelo qual tanto Vos ofendi, presa dos vermes e da podridão! Mas não me aflijo, ó Senhor, antes me regozijo, de que assim se deve corromper e consumir esta carne, que me fez perder-Vos, ó soberano Bem. O que me aflige é ter-Vos dado tantos desgostos, só para alcançar mais algum prazer. Não quero, porém, desconfiar da vossa misericórdia. Vós esperastes por mim para me perdoar: Expectat Deus, ut misereatur vestri (2). Quereis perdoar-me, se eu me arrepender. Oh, sim! Eu me arrependo de todo o meu coração, de Vos haver desprezado, ó bondade infinita. Dir-Vos-ei com Santa Catarina de Gênova: Meu Jesus, nunca mais pecarei; não, nunca mais pecarei! Não, não quero mais abusar de vossa paciência.

Ó meu amor crucificado, não quero esperar para Vos abraçar até que me sejais apresentado pelo confessor no momento da morte. Desde já Vos abraço; desde já Vos recomendo a minha alma: In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum (3). A minha alma entregou-se anos e anos ao mundo e não Vos amou: dai-me a luz e a força para Vos amar o resto de minha vida. Não quero, para Vos amar, esperar pela hora da morte; desde já Vos amo, Vos abraço, e Vos estreito ao coração; e prometo nunca mais abandonar-Vos. – Ó Virgem Santíssima, ligai-me a Jesus Cristo e alcançai-me a graça de nunca mais o perder. (II 8)

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1. Dan. 2, 35.
2. Is. 30, 18.
3. Ps. 30, 6.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 144-146.)

26 de maio de 2013

PRIMEIRO DOMINGO DEPOIS DE PENTECOSTES.

Festa da Santíssima Trindade.

Tres sunt qui testimonium dant in coelo: Pater, Verbum et Spiritus Sanctus, et hi tres unum sunt – "Três são os que dão testemunho no céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo, e estes três são um" (1 Jo. 5, 7)

Sumário. A Santíssima Trindade é nosso tudo; e todos os bens que já temos recebido e ainda esperamos para o futuro, nos vieram e virão da Santíssima Trindade. É, pois, com razão que a Igreja embora Lhe consagre todos os Domingos, Lhe dedique o dia de hoje de um modo especial. Veneremos devotamente tão augusto mistério, dizendo à miúde o Gloria-Patri; respeitemos também a imagem da Santíssima Trindade que se acha em nosso própria alma como na do próximo.

I. Posto que todas as homenagens tributadas aos Santos redundem em honra da Santíssima Trindade, cuja imagem se honra na pessoa deles, exigem, contudo, a justiça e a gratidão que, tanto para glória do Altíssimo como para nosso próprio proveito, veneremos tão augusto mistério com obséquios especiais. É-nos isto um dever absolutamente indispensável; porquanto a Santíssima Trindade é o princípio d'onde procedemos, e o fim para o qual havemos de voltar. A primeira graça que nos foi conferida no batismo, veio-nos em nome da Santíssima Trindade e a glória essencial que se goza no paraíso é ainda a Santíssima Trindade.

É este o nome que faz tremer o inferno, põe em fuga os demônios, faz cessar as tentações, alegra os céus, beatifica os Santos, consola os justos, derrama a abundância das graças. Numa palavra, a Santíssima Trindade é nosso tudo. Todos os bens, que já temos recebido e ainda esperamos para o futuro, quer na ordem da natureza, quer na ordem graça e da glória, todos nos vieram da Santíssima Trindade.

Eis porque os Ofícios divinos da Igreja abundam em louvores, invocações e súplicas dirigidas expressamente às três Pessoas divinas. Não satisfeita ainda com isto e apesar de ter consagrado à augustíssima Trindade todos os domingos do ano, dedica-Lhe o dia de hoje de um modo especial. Quer nossa boa Mãe que todos os fiéis sejam devotos fervorosos de tão grande mistério; ou, antes, quer que esta seja a sua devoção particular. Todavia é talvez a devoção mais descuidada.

II. Para acharmos e visitarmos à Santíssima Trindade, não é mister que subamos ao céu ou entremos numa igreja; basta que lancemos um olhar de fé sobre nossa própria alma, na qual está impressa a bela e amada imagem de Deus que ali habita como em seu templo. Recolhe-te, portanto, dentro de ti mesmo, e ali, todo silencioso, adora, louva, ama e bendiga à Santíssima Trindade. Em particular diga freqüente e devotamente o Gloria-Patri, onde, na palavra de São Francisco de Assis, se acha resumida toda a ciência e virtude das Sagradas Escrituras.

Se porventura manchaste por alguma culpa a tua alma, feita à semelhança de Deus, procura purificá-la quanto antes no sacramento da Penitência pelas lágrimas da contrição e esforça-te por adorná-la com todas as virtudes cristãs. Habitua-te também a ver na alma do próximo outras tantas imagens vivas da Santíssima Trindade e por este motivo ama-as, compadece-te delas e ajuda-as conforme puderes, ao menos rezando por elas.

Afim de que esses teus obséquios sejam mais agradáveis à Santíssima Trindade, une-os àqueles que lhe tributam todos os anjos e santos do paraíso, Maria Santíssima, e especialmente o divino Redentor. Imagina que Jesus Cristo te diz o que um dia disse a Santa Gertrudes: "Minha Filha, eis aí o meu Coração, que faz as delícias da Santíssima Trindade. Eu t'o dou afim de que por ele possas suprir o que te falta".

Ó Santíssima Trindade, objeto, agora de minha fé e um dia da minha eterna beatitude, creio em Vós, adoro-Vos, amo-Vos; e em união com toda a corte celeste quero sempre dizer: "Santo, Santo, Santo é o Senhor, Deus dos exércitos. A terra está cheia da vossa glória. Glória ao Pai, glória ao Filho, glória ao Espírito Santo" (1); assim como foi no princípio, agora e sempre, e por todos os séculos dos séculos, Amém. "Ó Deus, que concedeste aos vossos servos conhecer na confissão da verdadeira fé a glória da eterna Trindade e adorar sua Unidade no poder da Majestade; nós Vos rogamos que com a firmeza da mesma fé possamos vencer todas as adversidades."(2) Fazei-o pelo amor de Jesus e Maria.

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1. Indulg. de 100 dias; indulg. plenária para quem rezar este Trisagio durante um mês inteiro, contanto que se confesse e comungue.
2. Or. fest.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 142-144.)

DOMINGO DA SANTÍSIMA TRINDADE

A unidade da Igreja

Jesus Cristo manda os seus Apóstolos pregarem o Evangelho a todas as criaturas, prometendo estar com eles até à consumação dos séculos, para que, na multiplicidade de pessoas, de lugares e de séculos, conservem sempre a unidade da fé verdadeira, na unidade da Igreja Verdadeira.

Para conservar esta unidade, é preciso, antes de tudo, poder reconhecer a Igreja única fundada por Jesus Cristo.

Várias igrejas, antigas e novas, intitulam-se Igreja de Cristo; qual delas é a verdadeira?

Jesus Cristo, que conhecia as dúvidas e os erros do futuro como os do presente, deve ter resolvido tais dúvidas, dando à sua Igreja uns característicos tão claros que possam ser conhecidos por todos; tão certos que excluam a possibilidade do erro; e tão decisivos que permita num relance reconhecer a única Igreja por Ele fundada.

Sim, tais caracteres existem; são quatro, os quais vamos analisar sucessivamente nas instruções destes Domingos, a saber: a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade.

A unidade é a forma da Igreja.
A santidade é a sua vida.
A catolicidade é o seu domínio.
A apostolicidade é a sua origem.

Limitemo-nos hoje ao estudo da unidade da Igreja:

1. Em sua fé e em seus sacramentos.
2. Em seu governo e em seu ensino.

Este primeiro caráter é universal, pois a verdade é necessariamente una e imutável. Tudo o que muda perde a unidade, e o que é uno não pode mudar.

I. Unidade da fé e dos sacramentos.

A unidade é a marca especial da verdade, que é una, porque a verdade por excelência é Deus, que é um.

Fomos batizados, diz São Paulo, para formar um só corpo e ter um mesmo espírito. Não deve haver divisões neste corpo... Recebestes todos um mesmo espírito, como fostes chamados a uma mesma esperança. Um só Senhor, uma só fé, um só batismo. (l Cor. XII).

A Igreja é Jesus Cristo continuado. Ora, Jesus Cristo é sempre o mesmo: não muda, nem em sua pessoa, nem em sua doutrina.

A Igreja verdadeira deve, pois, ser una em sua fé, impondo aos seus membros uma única crença, porque duas coisas contraditórias não podem ser ambas verdadeiras. Deus não pode ratificar ao mesmo tempo os mandamentos do Papa, e os de certas autoridades terrenas, impondo uma crença radicalmente oposta.

Do mesmo modo que se reconhecem pela língua que falam, aqueles que pertencem a uma nação, assim se reconhecem pela fé que professam, os que pertencem à religião verdadeira.

Só a Igreja Católica conservou em sua integridade, sem nada suprimir, sem nada ajuntar, a doutrina que recebeu de Jesus Cristo.

Esta fidelidade absoluta em sua crença tem sido violentamente exprobrada, porque todos os hereges, capazes de refletir, devem reconhecer que este fato é decisivo para a conservação da sua autoridade absoluta e exclusiva sobre todas as seitas religiosas.

O Pe. Lacordaire, numa das suas conferências, representa o mundo sob a forma de um viandante que vai bater à porta do Vaticano.

A , sob a forma do Papa, mostra-se na soleira e lhe pergunta:

- Que queres de mim?
- Mudança, responde o mundo.
- Eu não mudo!
- Ora, tudo mudou e continua a mudar na terra. Porque ficas tu sempre o mesmo?
- Porque venho de Deus, e Deus é imutável.

Esta palavra há de ser sempre a última da Igreja: Eu não mudo.

A Igreja deve também ser una em seus sacramentos, porque os sacramentos são meios ordinários, estabelecidos por Jesus Cristo, para obter a graça, sem a qual a salvação é impossível.

O número dos sacramentos, tendo sido fixado por Jesus Cristo, ninguém o pode mudar.

Todos os sacramentos não são absolutamente necessários a todos do mesmo modo, é certo; porém todos eles concorrem a estabelecer e manter a união com Jesus Cristo e dos fiéis entre si de tal modo que cada sacramento estabelece um laço particular, necessário para a santificação do indivíduo e da sociedade.

Suprimir um deles seria ferir gravemente uma das artérias do corpo místico de Jesus Cristo, seria mutilar os meios de santificação

II. Unidade do governo ensino

A esta unidade perfeita de fé e de sacramentos, junta-se necessariamente a unidade do governo e do ensino.

A razão é clara. A Igreja é uma sociedade. Ora, toda sociedade supõe um chefe que a governa.

A diversidade de costumes, de linguagem, de caracteres e mil outras coisas gerais ou particulares trariam fatalmente à uma sociedade sem governo, à divisão e à morte.

Todo reino dividido entre si será destruído, diz o Divino Mestre.

Tal lei não sofre exceção. É por isso que o próprio Jesus Cristo estabeleceu um chefe supremo em sua Igreja, grupando em redor deste outros chefes inferiores para ajudá-lo no governo dos fiéis.

É inútil acrescentar que tal chefe deve ser um só, pois a multiplicidade de autoridades geraria necessariamente a desunião

Tal autoridade una e suprema, só existe na Igreja Católica.

Ali há uma sede suprema, única, que todas as demais sedes escutam: é a sede de Roma, a sede de Pedro, a quem Jesus Cristo confiou o cuidado das ovelhas e dos cordeiros, isto é: dos fiéis e dos seus chefes imediatos.

Pelo Episcopado, a Igreja Romana grupa em redor de si todo o sacerdócio; pelo sacerdócio todos os fiéis; pelos fiéis, o mundo inteiro.

Nada há mais admirável, mais sábio que tal organização.

Nós católicos, recebemos o ensino dos sacerdotes e dos Bispos, eles porém recebem-no do Soberano Pontífice, que o recebe diretamente de Jesus Cristo. O Papa é Jesus Cristo continuado.

Os ramos de uma árvore não têm seiva senão quando estão unidos ao tronco; e a sua diversidade não impede a unidade da sua origem.

E se nesta árvore imensa, à qual Jesus Cristo comparou a sua Igreja, e que deve espalhar-se no mundo inteiro, os fiéis são as folhas e os frutos, eles não podem ter vida senão enquanto estão unidos aos ramos, que são os sacerdotes e os Bispos, unidos ao Soberano Pontífice, que é o tronco tendo as suas raízes fixas no Coração de Jesus Cristo.

Os ensinamentos que a Igreja vai manifestando nas diversas épocas, em nada prejudicam a sua unidade, ao contrário, manifestam-na com mais fulgor.

A Igreja é um corpo vivo, perfeito em sua origem; mas desenvolvendo-se através dos anos, tal uma criança, que não adquire nada de essencial pelo crescimento, mas desenvolve apenas aos olhares, a sua beleza e as suas faculdades.

A Igreja esclarece os dogmas, mas não os cria. A fé propõe verdades, a ciência as explica.

III. Conclusão

Notemos bem este primeiro caráter da Igreja verdadeira de Jesus Cristo: a unidade. E tal unidade deve manifestar-se: na fé, nos sacramentos, no governo e no ensino.

Desde que não há unidade não há mais coordenação do conjunto, e toda agregação se dissolve.

Pode haver igrejas, não há mais uma Igreja; pode haver bispos; não há mais Episcopado; pode haver padres, não há mais Sacerdócio.

Deste modo, não havendo mais Papa, não há unidade; não havendo unidade, não há autoridade, não há mais fé. É o efeito definitivo do cisma e da heresia, a vida está na unidade: fora da unidade é a morte.

A fé permanece a mesma, embora se desenvolva, em seus motivos, suas relações e suas conseqüências; fica a mesma, embora neste desenvolvimento se introduzam certas opiniões ou sistemas, mais ou menos plausíveis. Santo Agostinho diz muito bem:

Nas coisas da Fé: unidade; nas coisas duvidosas, liberdade; em todas caridade.

A mudança de certos pontos disciplinares prescritos pela autoridade, não muda tão pouco nem a moral, nem a hierarquia; como a mudança de uns regulamentos da polícia, não altera a constituição de um país.

A Igreja conserva ciosamente a doutrina de Jesus Cristo, sem nada ajuntar, mudar ou suprimir; e se um cristão dos primeiros séculos, cujos ossos embranquecidos repousam nas catacumbas, voltasse em nossa época, entrando na primeira Igreja Católica que encontrasse, poderia ali unir-se aos fiéis e cantar o mesmo símbolo que havia aprendido em sua infância, o qual nunca variou.

EXEMPLOS

1. Testemunho de Guizot

Guizot era protestante, mas tinha bom senso. Eis o que ele escreveu: "O Catolicismo é a maior e a mais santa escola de respeito que existe no mundo. Temos precisão dela. Respeito profundamente a Igreja Católica, e admiro a sua unidade perfeita através dos séculos e das nações. Considero a sua dignidade, a sua liberdade, a sua autoridade moral, como essenciais à sorte da cristandade inteira".

2. Reflexões de um protestante

Há pouco tempo, um protestante, ex-senador dos Estados Unidos, M. Lorimer, converteu-se ao Catolicismo. Interrogado por um jornalista a respeito de sua conversão, respondeu:

Durante 15 anos, li todos os livros de controvérsia religiosa que pude adquirir, e cheguei à conclusão de que somente uma coisa me restava a fazer: tornar-me católico.

No começo, a idéia de entrar no seio da Igreja romana me repugnava; resolvi, porém, examinar a religião, e, à medida que ia estudando, as minhas convicções se tornaram mais nítidas, de modo que me tornei católico quase mau grado meu.

Nasci na Escócia. Meu pai era pastor presbiteriano, muito rígido. Segui os cursos de religião até os meus 20 anos, e, durante todo este tempo, não ouvi senão invectivas contra a Igreja Católica.

Cresci no ódio contra esta Igreja; ora, foi precisamente este ódio que provocou a minha conversão. Muitas vezes eu disse de mim para mim: Como é que a Igreja Católica, se é tão perversa como dizem, pode continuar a existir?

Comecei uma investigação com idéias pré-concebidas e como defensor decidido do protestantismo.

O resultado não se fez esperar; descobri uma Igreja diametralmente oposta a tudo o que havia lido a seu respeito. Averigüei a unidade perfeita de seus ensinamentos através dos séculos, a sua conformidade perfeita com o Evangelho, a legitimidade da sua autoridade, etc.

Em vez de protestante, tornei-me desde então um católico decidido, de fé, e convencido de que não se pode procurar a religião verdadeira sem terminar na Igreja Católica.

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(MARIA, P. Júlio. Comentário Apologético do Evangelho Dominical. O Lutador, 1940, p. 227 – 234)

25 de maio de 2013

Maria Santíssima, modelo de castidade.

Sicut lilium inter spinas, sic amica mea inter filias - "Como é a açucena entre os espinhos, assim é a minha amiga entre as filhas" (Cant. 2, 2).

Sumário. A pureza da Santíssima Virgem foi tão grande, que o Verbo divino a elegeu para sua Mãe, afim de que servisse a todos de exemplo de castidade. Como recompensa da sua inefável virgindade, Maria tem o privilégio de preservar do pecado os seus devotos e de os levantar depois da queda. É necessário, porém, que da nossa parte ponhamos em prática os meios para vencer, especialmente o evitar as ocasiões, e praticar a oração, consagrando-nos à Virgem de manhã e à noite, e invocando o seu nome em cada assalto do inimigo infernal.

I. Depois da queda de Adão e de os sentidos se haverem rebelado contra a razão, a virtude da castidade tornou-se a mais difícil de ser praticada. Mas, seja para sempre louvado o Senhor, que em Maria nos deu um grande modelo desta virtude. Diz o Bem-aventurado Alberto Magno que Maria é chamada com razão Virgem das virgens; pois que, sendo ela a primeira, sem conselho nem exemplo de ninguém, a oferecer a sua virgindade a Deus, deu ao mesmo Deus todas as virgens que depois a imitaram, segundo a profecia de Davi: Adducentur Regi virgines post eam (1) - "Serão apresentadas ao Rei virgens depois dela". E São Sofrônio acrescenta que Deus escolheu esta Virgem puríssima por Mãe, exatamente para que ela servisse a todos de modelo de castidade. Pelo que Santo Ambrósio lhe dá o belo título de Porta-bandeira da virgindade.

Por motivo desta sua pureza foi a Santíssima Virgem chamada pelo Espírito Santo bela como a rola (2); como também açucena: sicut lilium inter spinas. E aqui adverte Dionísio Cartusiano, que ela foi chamada açucena entre os espinhos, porque todas as demais virgens foram espinhos para si próprias ou para os outros; Maria Santíssima, ao contrário, não o foi nem para si nem para os outros. Segundo observa Santo Tomás, a beleza de Maria inspirava a todos amor à pureza e só ao ser vista infundia pensamentos e afetos castíssimos.

Numa palavra, diz um autor que a Bem-aventurada Virgem foi tão amante desta virtude, que, para a conservar, estaria disposta a renunciar ainda à dignidade de Mãe de Deus. Isto se colige das mesmas palavras que dirigiu ao Arcanjo e das que por fim acrescentou: Fiat mihi secundum verbum tuum (3) - "Faça-se em mim segundo a tua palavra"; significando que dava o seu consentimento porque o Anjo lhe assegurava que devia ser mãe unicamente por obra do Espírito Santo.

II. Os que são castos, tornam-se anjos, como já disse o Senhor: Erunt sicut angeli Dei (4) - "Eles serão como anjos de Deus". Mas os impuros fazem-se odiosos a Deus como os demônios. Quantos homens caem todos os dias no inferno por causa da impureza! Diz São Bernardo: "Este vício arrasta quase o mundo todo ao suplício" - Hoc peccatum quasi totum mundum trahit ad supplicium.

Como recompensa de sua pureza singular a Santíssima Virgem obteve de Jesus Cristo o privilégio de poder preservar os seus devotos desde vício e de os erguer da queda, se por ventura viessem a cair. Ela quer, porém, que ponhamos em prática os meios de que ela mesma usou, posto que não tivesse necessidade disso. Estes meios são três: a mortificação dos sentidos, em particular da gula e da vista; a fuga das ocasiões e a oração.

Será sobretudo utilíssimo para a conservação da pureza, que tomemos o hábito tão louvável de rezar de manhã e à noite três Ave-Marias com o rosto em terra, de nos consagrarmos inteiramente a esta divina Mãe, de recorrer com confiança a ela nos momentos da tentação; de lhe recordar que somos seus filhos, e de repetir os dulcíssimos Nomes de Jesus e Maria, enquanto durar a tentação. Oh! quantas almas, que deviam estar no inferno, estão agora no céu por terem tomado este hábito tão salutar! E ao contrário, quantas almas, que atualmente estão ardendo no abismo, teriam sido grandes santos no céu, se tivessem seguido tão bela prática!

† "Ó minha Senhora e Mãe, eu me ofereço todo a vós, e como prova de minha devoção, vos consagro hoje os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração, todo o meu ser. E já que sou vosso, ó boa Mãe, guardai-me, defendei-me como coisa e propriedade vossa (5). - Ó minha Senhora e Mãe, lembrai-vos de que sou vosso; salvai-me, defendei-me como propriedade vossa"(6). (I 265)

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1. Ps. 44, 14.
2. Cant. 1, 9.
3. Luc. 1, 38.
4. Matth. 22, 30.
5. Indulg. de 100 dias, para quem reza de manhã e à noite uma Ave-Maria com esta oração.
6. Indulg. de 40 dias nos momentos da tentação.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Segundo: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 139-141)

24 de maio de 2013

Devoção de Santo Afonso à Paixão de Jesus Cristo.

Mihi autem absit gloriari, nisi in cruce Domini nostri Iesu Christi – “Quanto a mim, livre-me Deus de me gloriar, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gal. 6, 14).

Sumário. Com muita razão a Igreja chama Santo Afonso contemplador assíduo e propagador admirável da devoção à paixão e morte de Jesus Cristo. Foi este o assunto quase contínuo de suas meditações, de seus colóquios públicos e particulares. Se queremos ser devotos verdadeiros e dignos filhos do santo Doutor, sejamos, à sua imitação, devotos da Paixão de Jesus, façamos dela em todas as circunstâncias o assunto habitual de nossas meditações.

I. Com muita razão a Igreja (1) chama Santo Afonso contemplador assíduo e propagador admirável da devoção à paixão e morte de Jesus Cristo. Foi este o assunto mais freqüente, ou antes contínuo, de suas meditações; não deixava passar um dia sem percorrer as estações da Via sacra, e a cada instante lançava um olhar sobre o Crucifixo que tinha no seu quarto, acompanhando o olhar de alguma oração jaculatória de amor. – As suas mortificações e penitências eram sempre mais rigorosas nas sextas-feiras do ano; mas aumentava-as quase até ao excesso na Semana Santa, especialmente nos três últimos dias da mesma. Então via-se Afonso silencioso, pálido e triste, como que fora de si e absorto, na contemplação dos mistérios dolorosos da Paixão do Senhor, da qual a Igreja faz então comemoração especial.

Para desafogar os afetos de sua devoção e excitá-los também no coração de outros, o Santo falava muitas vezes desta devoção em seus colóquios privados; ensinava-a ao povo em quase todas as suas prédicas, e compôs diversas obras para transfundir à alma de seus leitores as puras chamas de seu amor. – Mais, não contente com isso, quis que todos os pregadores da sua diocese e especialmente os membros de sua Congregação, nunca deixassem de inculcar ao povo a meditação dos sofrimentos de Jesus Cristo. “Nas missões”, dizia o Santo, “são muito úteis os sermões sobre o juízo e o inferno, porque incutem o temor; mas as conversões que provém do temor, são pouco duráveis. Ao contrário, as conversões por meio do amor a Jesus crucificado, são mais fortes e constantes. Quem se afeiçoa a Jesus crucificado, não tem mais medo.”

Numa palavra, foi tão grande em Afonso a devoção à Paixão, que não querendo, à imitação do Apóstolo, saber coisa alguma senão a Jesus crucificado, bem podia dizer com o mesmo São Paulo: Mihi autem absit gloriari, nisi in cruce Domini nostri Iesu Christi – “Quanto a mim, livre-me Deus de gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”. Felizes de nós, se soubermos imitá-lo!

II. O fruto a tirar de nossa consideração, nos é indicado pelo próprio Santo Afonso, quando diz: “Todas as meditações são boas, mas a que se faz sobre a Paixão de Jesus Cristo é a mais útil. Por isso recomendo-vos que a façais cada dia, ao menos um quarto de hora. Mas não vos detenhais tão somente na superfície; penetrai na humildade, na mortificação e nas penas do Redentor. Fazei com que esta meditação vos seja familiar; e quando virdes cordas, espinhos, cravos, lembrai-vos logo do que Jesus Cristo sofreu na sua dolorosa Paixão; quando virdes uns cordeiros serem levados ao matadouro, pensai, como fazia São Francisco de Assis, que é assim que o inocente Jesus foi conduzido à morte.

“Cada um procure ter uma bela imagem do Crucificado, suspenda-a no seu quarto e lance sobre ela de vez em quando um olhar, dizendo: Ah, meu Jesus, Vós morrestes por mim e eu não Vos amo! Se alguém sofresse por um amigo injúrias, golpes e cadeias, ser-lhe-ia muito agradável se o amigo disso se lembrasse e falasse. Assim também agrada muito a Jesus, que nós freqüentemente pensemos na sua Paixão. Oh, que consolação nos darão na morte as dores e a morte de Jesus Cristo, se em vida tivermos a miúde e com amor meditado nelas!

“Quem é devoto da Paixão do Senhor, não deixará de sê-lo também das dores de Maria, cuja lembrança nos consolará muito no momento da morte. Oh, que bela meditação, meditar em Jesus Cristo crucificado! Que bela morte, morrer abraçado com Jesus crucificado; morrer de boa vontade por amor de um Deus que morreu por nosso amor.” (2) – Senhor, prometo-Vos que quero seguir os ensinamentos e os exemplos de Santo Afonso; e Vós, pelo amor deste grande Santo, dai-me a graça de Vos ser fiel. – Esta mesma graça peço-a a vós, óh grande Mãe de Deus e minha Mãe, Maria.

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1. Lect. Brev.
2. Passim.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 136-139.)

23 de maio de 2013

Sermão Domingo de Pentecostes- Padre Daniel Pinheiro - IBP


[Sermão] A Festa de Pentecostes


Sermão para o Domingo de Pentecostes
19 de maio de 2013 - Padre Daniel Pinheiro

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…
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E ficaram todos cheios do Espírito Santo e falavam das grandezas de Deus (Communio).
Festejamos hoje, caros católicos, Pentecostes. Pentecostes é a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e Nossa Senhora no cenáculo em Jerusalém. A descida do Espírito Santo em Pentecostes é importantíssima. Ela é a festa da promulgação da Igreja e a festa da promulgação da nova lei.
No Antigo Testamento, a festa de pentecostes comemorava a promulgação da lei mosaica, dada por Deus a Moisés no Monte Sinai, e que constituiu perfeitamente os judeus como o povo eleito. Podemos dizer que Pentecostes que nós comemoramos hoje foi a promulgação da Nova Lei, a promulgação da Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a Cruz. Nosso Senhor começou a fundar a Igreja por sua pregação; Ele consumou a fundação quando estava pregado na Cruz e, finalmente, Ele promulgou a sua Igreja aos olhos de todos quando mandou o Espírito Santo aos apóstolos, para que anunciassem o Evangelho a toda a criatura. Portanto, Pentecostes é um acontecimento capital na vida da Igreja e um acontecimento único. Pentecostes é, praticamente, o começo da Igreja.
Hoje, é muito comum ouvirmos que estamos vivendo um novo Pentecostes. Em geral, diz-se que estamos vivendo um novo Pentecostes em razão do atual fervor de caridade de nossa época, que se assemelharia ao fervor dos Apóstolos logo após Pentecostes. Basta, porém, olhar ao nosso redor e ter um pouco de bom senso para constatar que estamos bem longe do ardor apostólico, que, em um único dia, levou ao batismo cerca de três mil pessoas. O número de católicos tem diminuído proporcionalmente, o número de católicos que levam a sério a religião é ainda menor. Outros, porém, dizem, às vezes de modo inconsciente, que estamos vivendo um novo Pentecostes no sentido de que uma nova Igreja foi fundada nessas últimas décadas, a Igreja antiga e antiquada tendo sido abandonada. É um novo Pentecostes porque pretendem que uma nova Igreja foi fundada, com uma nova lei, com uma nova moral. Isso é um erro gravíssimo. A Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo é só uma e sempre a mesma até a consumação dos tempos. O Espírito Santo ensinou aos apóstolos todas as coisas, portanto, desde o início nada falta à Igreja. O Espírito Santo assiste a Igreja, garantindo sua infalibilidade e infectibilidade. A Igreja não pode mudar sua constituição, sua doutrina, sua moral. Ela é sempre a mesma, tal qual fundada por NS, que está com ela todos os dias até a consumação dos séculos.
Pentecostes, sendo a promulgação plena da Igreja, é também a promulgação plena da nova Lei. Se a Antiga Lei se baseava sobretudo no temor, a nova lei se baseia, antes de tudo, no amor. É breve a diferença entra a antiga lei e a nova lei, diz Santo Agostinho, é uma sílaba (breve): temor, amor. É uma diferença breve na palavra, mas longa no significado. A nova lei é a lei da caridade, em que devemos agradar a Deus não tanto pelo medo de punições quanto pelo amor. As punições continuam existindo, claro, e são úteis para a nossa conversão, mas o que deve nos mover a sermos bons cristãos é, antes de tudo, o amor, em resposta a todo o bem que Nosso Senhor Jesus Cristo fez por nós, indo até a morte e morte de cruz para nos salvar. O que deve nos mover é o amor, que é desejar e agir para o bem de Deus e do próximo. O que deve nos mover é o amor, quer dizer, o fato de reconhecermos as perfeições divinas e o fato de desejar que Deus seja mais conhecido, amado e servido. A Nova Lei é a lei da caridade, é a lei do amor. Todos sabem disso, mas como é mal compreendida essa lei da caridade! Para evitar todo equívoco a respeito do que é essa caridade, Nosso Senhor deixa claro que aquele que o ama verdadeiramente é aquele que guarda as suas palavras. A nova lei não é o politicamente correto. A nova lei não é um sentimento vago e difuso. A nova lei não é se sentir bem e está tudo ótimo. A nova lei não é a união sentimental em detrimento da verdade ou a paz em detrimento de Deus. A nova lei não é cada um faz o que quiser desde que não prejudique seu próximo. A nova lei é guardar as palavras de Nosso Senhor e coloca-las em prática, porque assim agimos para o nosso bem, para a nossa salvação. Assim agimos para o bem do próximo e da sociedade. Assim agimos para que Deus seja mais conhecido, amado e melhor servido. O Espírito Santo, que infunde em nossa alma a graça e a caridade, faz que observemos as palavras de Cristo, seus mandamentos.
No dia de Pentecostes, o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos e Nossa Senhora na forma de línguas de fogo. Vejamos o que significa isso. O fogo tem luz, tem calor, e tinha, nesse caso, forma de língua (a explicação que segue é baseada em São Roberto Belarmino).
A luz dessas línguas é a sabedoria. Como Nosso Senhor havia dito antes aos apóstolos – ouvimos no Evangelho de hoje – o Espírito Santo veio, em Pentecostes, ensinar toda a verdade aos Apóstolos e recordar tudo aquilo que o Salvador havia dito. Nosso Senhor deu aos Apóstolos o mandamento de ensinar o Evangelho a todos os homens. Para fazê-lo sem erro e de maneira eficaz, eles precisavam da assistência do Espírito Santo. Depois de Pentecostes, os Apóstolos gozam de uma infalibilidade pessoal. Isso significa que os Apóstolos não podiam errar quando ensinavam em matéria de fé e moral. Os Apóstolos, auxiliados pelos dons do Espírito santo, tinham também um conhecimento profundo das verdades de fé, necessário para que fossem lançados os fundamentos sólidos da Igreja. A luz das línguas de fogo significa, então, a fé profunda dos apóstolos, a infalibilidade de que gozavam e o conhecimento profundo da doutrina de Nosso Senhor.
O calor dessas línguas de fogo é a caridade e o zelo. Com a Ascensão de Cristo e a descida do Espírito Santo, os Apóstolos são inflamados com a caridade divina, com o amor pelas coisas do alto. Eles buscam com afinco a glória de Deus, que consiste em que Deus seja mais amado, conhecido e amado pelos homens. Eles buscam com afinco transmitir o Evangelho para salvar o próximo. Essa caridade intensa para com Deus e para com o próximo dá origem ao zelo, que consiste em repelir tudo o que possa prejudicar o bem amado. Os Apóstolos combaterão com ardor tudo o que ofende Deus, tudo o que prejudica as almas. Eles combaterão os erros, os falsos profetas, o pecado.
O formato de língua de fogo significa a eloquência, que foi dada aos Apóstolos, para exercerem a missão de pregar o Evangelho a todos os povos. Por isso, então, a forma de língua do fogo. Os apóstolos deviam transmitir e bem aquilo que conheciam profundamente e aquilo que amavam intensamente.
Peçamos, portanto, caros católicos, ao Espírito Santo, nesse dia de Pentecostes e durante a oitava de Pentecostes, que nos sejam dadas as graças simbolizadas pelas línguas de fogo. Não peçamos carismas ou dons carismáticos, que não nos unem necessariamente a Deus e que têm pouca utilidade hoje. Peçamos ao Divino Espírito Santo a graça de uma fé viva e profunda, peçamos a graça de um zelo ardente pela glória de Deus e pela salvação das almas, a começar pela nossa. Peçamos a graça de fazer um apostolado eficaz, segundo nossas forças e capacidades, sobretudo pelo exemplo. Peçamos a ele a graça do verdadeiro amor a Deus, que é guardar os mandamentos de Nosso Senhor, pois somente assim fazemos realmente o bem para nós mesmos, para o próximo, para a sociedade e damos maior glória a Deus. Façamos isso imitando os apóstolos: perseverando na oração e em união com Maria Santíssima. Nosso Senhor veio trazer o fogo do amor divino à terra. Ele quer que esse fogo se acenda… ele quer que esse fogo se acenda em nossas almas.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

Respeito devido à dignidade sacerdotal.

Ego dixi: Dii estis, et filii Excelsi omnes – “Eu disse: Sois deuses, e todos filhos do Excelso” (Ps. 81, 6).

Sumário. É com muita razão que os santos tinham os sacerdotes na mais alta estima. Quanto ao corpo místico de Jesus Cristo, que são todos os fiéis, os sacerdotes têm poder de livrar o pecador do inferno e fazê-lo herdeiro do paraíso. Quanto ao corpo real, é um ponto da fé que, quando o sacerdote consagra, o Verbo eterno desce do céu para esconder-se sob as espécies sacramentais. Oh dignidade sublime!... Procuremos sempre ter grande veneração para com os ministros de Deus, e, sendo sacerdotes, sejamos os primeiros a respeitar o nosso caráter sacerdotal, se desejamos ser respeitados pelos outros.

I. A dignidade do sacerdote e o respeito que lhe é devido dimanam do poder que ele possui sobre o corpo místico e sobre o corpo real de Jesus Cristo. Quanto ao corpo místico, que são todos os fiéis, o sacerdote tem o poder das chaves, isto é, o poder de livrar o pecador do inferno e fazê-lo herdeiro do paraíso. Deus mesmo quis obrigar-se a ratificar a sentença do sacerdote, a perdoar ou não perdoar, conforme o sacerdote absolve o penitente por estar disposto, ou não o absolve. Precede a sentença do sacerdote e Deus a subscreve.

Se o Redentor baixasse do céu a uma igreja e se sentasse num confessionário para administrar o sacramento da penitência e em outro se sentasse um sacerdote: se Jesus Cristo e o sacerdote ambos dissessem: Ego te absolvo – “Eu te absolvo”, os penitentes, tanto de um como de outro, ficariam igualmente absolvidos. – Que honra não seria para um súdito, se o rei lhe conferisse o poder de livrar da cadeia a quem quisesse! Mas muito maior é o poder que Jesus Cristo deu a seus ministros: o poder de livrar do inferno não só os corpos, mas também as almas.

Quanto ao corpo real de Jesus Cristo, é um ponto da fé que o Verbo incarnado se obrigou a descer às mãos do sacerdote que consagra, sob as espécies sacramentais. Causa pasmo o ouvir que Deus obedeceu a Josué, fazendo parar o sol ao mando dele: obediente Deo você hominis (1) – “obedecendo Deus à voz do homem”. Mais pasmo, porém, causa o ouvirmos que em virtude de poucas palavras do sacerdote Deus mesmo obedece e vem sobre o altar, ou aonde quer que o chamem, e se põe entre as mãos do sacerdote ainda quando este fosse seu inimigo.

Jesus, uma vez vindo, fica inteiramente ao dispor do sacerdote. Toca ao padre, conforme quiser, encerrá-lo no tabernáculo, ou expô-lo sobre o altar, ou levá-lo para fora da igreja, ou tomá-lo para seu próprio sustento, ou dá-lo em alimento aos outros. Ó poder sublime do sacerdote! Ó bondade inefável do Redentor!

II. Sendo tão grande a dignidade dos ministros de Deus, tiveram razão os santos em terem para com eles sentimentos da mais alta veneração. São Martinho, convidado à mesa do imperador Máximo, bebeu primeiro à saúde de seu capelão e depois à do imperador. No Concílio de Nicea, Constantino Magno quis sentar-se no último lugar, depois de todos os sacerdotes e numa cadeira mais baixa. Quando Santo Antão se encontrava no caminho com um sacerdote, dobrava logo o joelho e não se levantava, enquanto não lhe tivesse beijado a mão e fosse por ele abençoado. Santa Catarina de Sena chegou a Beijar devotamente a terra que o sacerdote tinha pisado na sua passagem.

Meu irmão, seja qual for o teu estado, faze por imitar os santos na sua veneração para com os ministros de Jesus Cristo. Se tu mesmo tens a sorte ditosa de pertencer ao número dos sacerdotes, afim de ser respeitado dos outros, sê o primeiro a respeitar na tua própria pessoa, bem como na dos próprios colegas, o teu caráter sagrado. Estejam as tuas ações sempre em harmonia com a tua dignidade e conforme o preceito do apóstolo: “Mostra-te a ti mesmo em tudo um exemplo de boas obras, na doutrina, na integridade, na gravidade. Tua palavra seja sã, irrepreensível, para que o adversário se confunda, não tendo nenhum mal que dizer de nós.” (2)

Considerando em seguida que é por meio dos sacerdotes que se opera a salvação ou a ruína dos povos, que sobre eles vem a benção ou a maldição, roga com ardor e insiste junto de Deus para que dê à sua Igreja ministros zelosos. É este um dos fins principais por que foram instituídas as Têmporas, nas quatros estações do ano.

Meu Deus, creio que entre todas as dignidades criadas a do sacerdócio é a mais alta. Creio-o, ó Senhor, e por isso prometo com o vosso auxílio estimar e venerar sempre todos os sacerdotes, por serem os vossos representantes na terra. Proponho também escutar àqueles que me queirais dar por Superiores, assim como escutaria a vossa própria voz, por terdes dito: Que vos audit, me audit, et qui vos spernit, me spernit (3) – “Quem vos ouve, a mim é que ouve, e quem vos despreza, a mim é que despreza”. Mas Vós, ó meu Deus, dai-me a graça de Vos ser fiel, e dai à vossa Igreja ministros zelosos, que sejam agradáveis a vosso Coração e convertam grande número de almas. – Peço-Vos esta graça pela intercessão de Maria Santíssima. (*III 8.)

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1. Ios. 10, 14.
2. Tit. 2, 7.
3. Luc. 10, 16.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 134-136.)

22 de maio de 2013

Necessidade da observância regular para um religioso.

Fili mi... custodi legem atque consilium, et erit vita animae tuae – “Filho meu... guarda a lei e o conselho e terá vida a tua alma” (Prov. 3, 21).

Sumário. Cumpre observar que a predestinação dos religiosos está ligada à observância da Regra. Quem a transgride habitualmente, muito embora em coisas pequenas, posto que faça muitas outras coisas boas, não progredirá nunca na perfeição e trabalhará sem fruto. Foi por estas transgressões que começou a ruína de tantos que agora vivem fora da Ordem e talvez estão ardendo no inferno. Façamos muito caso da Regra; imaginemos que somente nós a temos de guardar e se virmos outros faltar à observância, procuremos suprir os seus defeitos.

I. São Francisco de Sales escreveu a seguinte célebre sentença: A predestinação dos religiosos está ligada à observância das regras. Quer com isso dizer que o único caminho para a salvação e a santidade para os religiosos é a observância das regras; outro caminho qualquer não os poderia levar a este termo. Um religioso, pois, que habitualmente transgride algum ponto da Regra, nunca se adiantará um passo sequer na perfeição, posto que praticasse muitas penitências e orações, pregasse ao próximo ou fizesse outras obras espirituais. Trabalhará, mas sem fruto e verificar-se-á nele o que diz o Espírito Santo: “Os que não fazem caso da disciplina, são infelizes e esperam em vão; porque os seus esforços ficarão sem fruto e inúteis serão as suas obras.” (1)

Nem serve dizer que se trata de coisas pequenas; porque as prescrições da Regra são todas importantes e, quando guardadas, conduzem à alta perfeição. Costumava dizer o Bem-aventurado Egidio: “Um leve descuido nos pode fazer perder uma grande graça.” – Não se guardem numa Comunidade os pequenos pontos da Regra e não será mais um horto de delícias para Jesus Cristo, mas um antro de desordens, confusões e defeitos. Daí resultará afinal o relaxamento da Ordem inteira, porque a falta de observância passará de uma Comunidade para outra, e das transgressões de coisas leves se passará para a transgressão das grandes.

Oh! Que satisfação tem o demônio ao ver um religioso que começa a não fazer caso das coisas pequenas! O espírito maligno sabe por experiência que, quando alguém contraiu o hábito de não fazer caso das faltas leves, em breve deixará de fazer caso das faltas graves, relativas aos votos. Nemo repente fit turpissimus, diz São Bernardo. Ninguém se torna de uma vez, de bom que era, um grande celerado; mas os que finalmente caíram nos maiores pecados, começaram com faltas muito pequenas.  – Persuade-te de que foi por aí que começou a ruína de tantos confrades teus, que agora vivem fora da Ordem, e quiçá estão ardendo no inferno. O princípio foi o pouco caso das pequenas regras do Instituto: Ipse morietur, quia non habuit disciplinam (2) – “Ele morrerá, porque não guardou a disciplina”.

II. Santa Maria Magdalena de Pazzi dava os seguintes três belos conselhos acerca da observância das regras: “Estima as tuas regras tanto como estimas ao próprio Deus; faze como se fosses o único que as tem de observar e se outros cometem faltas, procura suprir os seus defeitos.” Imaginemos, meu irmão (minha irmã), que o nosso santo Fundador (a nossa santa Fundadora) nos repete cada dia estes mesmos conselhos, e cada noite, no exame da consciência, perguntemos a nós mesmos, se ele (ela) pode estar satisfeito do modo como naquele dia guardamos a observância exata. – É o que devem fazer especialmente os que tem cargo de Superior, ou estão há mais tempo na Ordem, porque o exemplo destes influi muito no espírito dos mais novos. É esta também a melhor pregação que um religioso possa fazer aos seus confrades, porquanto, como diz Santo Ambrósio, persuadem mais os exemplos que entram pela vista, do que as exortações que entram pelo ouvido: Citius persuadent oculi, quam aures.

Meu Deus, sou eu a árvore que já de há muito devia ter ouvido a sentença do Evangelho: Succide illam (3). – Cortai aquela árvore, que não produz fruto e atire-a ao fogo; para que deverá ocupar mais tempo e lugar? Ai de mim! Há tantos anos que abracei a vida religiosa, fui favorecido com tantos dons para ser santo, e até agora que frutos haveis Vós, meu Senhor, colhido de mim? – Vos, porém, não quereis que desespere, senão que confie em vossa misericórdia. Dissestes: Petite et accipietis; buscai e recebereis (4). Já que tanto desejais que peça graças, a primeira que Vos peço é o perdão de todos os desgostos que Vos dei. Deles arrependo-me de todo o coração, considerando que paguei os vossos benefícios com ofensas e amarguras. A segunda graça que Vos peço é o dom do vosso santo amor e a perseverança no mesmo até à morte. É de sobejo justo que eu ame muito a um Deus que por mim deu o sangue e a vida.

Finalmente, a terceira graça que Vos peço, ó meu Jesus, é que me deis força para guardar de hoje em diante cada regra de minha Ordem, por menor que seja e para este fim renovo os meus votos. Não quero, ó Senhor, que ainda viva em mim a minha própria vontade, mas unicamente a vossa. Fazei-me conhecer pelos meus Superiores o que desejais de mim e dai-me força para o executar. Protesto que Vos quero obedecer à custa de qualquer sacrifício. – Ó Maria, minha Mãe, falai por mim a vosso divino Filho e impetrai-me a santa perseverança. (*IV 84.)

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1. Sap. 3, 11.
2. Prov. 5, 23.
3. Luc. 13, 7.
4. Io. 16, 24.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 131-133.)

21 de maio de 2013

A pena dos sentidos no inferno.

Quantum glorificavit se et in deliciis fuit, tantum date illi tormentum et luctum - "Quanto se glorificou e esteve em delícias, tanto lhe dai de tormento e pranto" (Apoc. 18, 7).

Sumário. É com razão que o inferno é chamado um lugar de tormentos, porque ali todos os sentidos e todas as faculdades do condenado terão o seu tormento próprio; e quanto mais tiver ofendido a Deus com algum dos sentidos, tanto mais terá de sofrer nesse sentido. Meu irmão, vê se a vida que levas te inspira confiança de não caberes naquele abismo. Quantos cristãos meditaram no inferno como tu, mas, porque não quiseram romper com o pecado e abusaram da divina misericórdia, estão agora queimando ali para sempre!

I. É um ponto da fé que há um inferno, horrível prisão destinada a punir os que se revoltaram contra Deus. O que é o inferno? Um lugar de tormentos: locus tormentorum, como o chama o mau rico condenado (1). É um lugar de tormentos, onde todos os sentidos e todas as faculdades do condenado terão o seu tormento próprio e quanto mais alguém tiver ofendido a Deus com algum dos sentidos, tanto mais terá a sofrer neste mesmo sentido: Quantum in deliciis fuit, tantum date illi tormentum.

A vista será atormentada pelas trevas. Que compaixão não sentiríamos, se soubéssemos que um pobre homem está encerrado num cárcere escuro por toda a vida, por quarenta ou cinqüenta anos! O inferno é um abismo fechado de todos os lados, onde nunca penetrará um raio de sol ou de qualquer outra luz. O fogo mesmo que na terra ilumina, no inferno deixará de ser luminoso, tão somente arderá.

O olfato terá também o seu suplício. Quanto não sofreríamos se estivéssemos num quarto junto com um cadáver em putrefação? De cadaveribus eorum ascendet foetor (2) - "De seus cadáveres levantar-se-á grande fedor". O condenado deve ficar no meio de milhões e milhões de cadáveres, vivos com relação aos sofrimentos, mas verdadeiros cadáveres pelo mau cheiro que exalam. Diz São Boaventura que o corpo de um só condenado, se fosse atirado à terra, bastaria com a infecção para fazer morrer todos os homens.

E ainda há insensatos que dizem: "Se for para o inferno, não me hei de achar só". Infelizes, quantos mais lá encontrarem, tanto mais sofrerão, por causa da infecção, dos gritos e do aperto, porque os réprobos estarão no inferno tão juntos uns dos outros, como ovelhas encerradas no curral durante a tempestade: Sicut oves in inferno positi sunt (3) - Como ovelhas são postos no inferno". Para melhor dizer, serão como uvas esmagadas no lagar da cólera de Deus. - Daí nasce o suplício da imobilidade. Da maneira como o condenado cair no inferno no último dia, estará sempre, sem nunca poder mudar de situação, sem nunca poder mexer pés nem mãos, enquanto Deus for Deus.

II. No inferno será também atormentado o ouvido, pelos rugidos e queixas daqueles infelizes desesperados. Como não se sofre quando se quer dormir e se ouvem os gemidos contínuos de um enfermo, o ladrar de um cão ou o choro de uma criança? Qual não será então o tormento dos condenados obrigados a ouvir incessantemente durante toda a eternidade estes ruídos e clamores insuportáveis?

O gosto será atormentado pela fome. O condenado sentirá uma fome canina: Famem patientur ut canes (4), mas nunca terá nem uma só migalha de pão. Terá uma tal sede, que nem todas as águas do mar bastariam para lh'a apagar; mas nem terá uma só gota. O mau rico pediu-a, mas nunca a obteve e nunca a obterá, nunca.

Aqui, Senhor, tendes aos vossos pés aquele desgraçado que tão pouco caso fez das vossas graças e dos vossos castigos! Ai de mim, se não tivésseis tido piedade! Quantos anos teria passado já nessa fornalha infecta, onde ardem tantos dos meus semelhantes! Ó meu Redentor, quanto este pensamento me abrasa no vosso amor! Como poderei no futuro pensar em Vos ofender? Ah, não! Meu bom Jesus, nunca isso aconteça; fazei-me antes mil vezes morrer.

Já que haveis começado, acabai a vossa obra. Tirastes-me do lodaçal dos meus muitos pecados e convidastes-me a Vos amar. Fazei com que empregue o tempo, que ainda me dais, todo para Vós. Com que ardor não desejariam os condenados um dia, uma hora desse tempo, que me concedeis! E eu continuarei a consumi-lo em coisas que Vos desagradam? Não, meu Jesus, peço-Vos, pelos merecimentos de vosso Sangue, que não o permitais. - Amo-Vos, soberano Bem, e porque Vos amo, pesa-me de Vos haver ofendido. Não quero mais ofender-Vos, mas sim, amar-Vos sempre. - Minha Rainha e minha Mãe, Maria, rogai a Jesus por mim, e obtende-me o dom da perseverança e do seu santo amor. (II 118)

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1. Luc. 16, 28.
2. Is. 34, 3.
3. Ps. 48, 15.
4. Ps. 58, 15.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 128-130.)