Da paciência que devemos praticar em união com Jesus Cristo, para alcançar a vida eterna
1. Falar de paciência e de sofrer é tratar de uma coisa que
os amantes do mundo não praticam e nem sequer entendem. Só as
almas que amam a Deus e compreendem e põem em prática. S. João da Cruz dizia a Jesus Cristo: “Senhor, eu nada mais vos
preço que padecer e ser desprezado por vós”. E S. Teresa exclamava freqüentemente: “Ó meu Jesus, ou sofrer ou morrer”. S. Maria Madalena de Pazzi: “Senhor, sofrer e não sofrer”. Eis como
falam os santos extasiados por Deus, e assim falam porque sabem muito
bem que uma alma não pode dar uma prova mais segura de seu amor para com Deus do que padecendo voluntariamente para dar-lhe
gosto. Esta foi a maior prova que Jesus Cristo nos deu do amor que
nos tinha. Ele como Deus nos amou ao criar-nos, enriquecendo-nos
com tantos bens, chamando-nos a gozar da mesma glória que ele
goza, mas em nenhum outro ponto nos mostrou melhor quanto nos ama
do que fazendo-se homem e abraçando uma vida penosa e uma morte cheia de dores e ignomínias por nosso amor. E nós, como
demonstraremos nosso amor por Jesus Cristo? Talvez levando uma vida cheia de prazeres e delícias terrenas? Não pensemos que Deus se
compraz em nosso sofrimento: ele não é um senhor de índole cruel que
se satisfaz vendo gemer e sofrer suas criaturas; pelo
contrário, é um Deus de bondade infinita, todo inclinado a ver-nos
plenamente contentes e felizes, todo repleto de doçura, afabilidade e compaixão
para com os que a ele recorrem. “Porque vós, Senhor, sois suave e
brando e cheio de misericórdia para todos os que vos invocam” (Sl
85,5). A condição, porém, de nosso infeliz estado atual de pecadores
e a gratidão que devemos ao amor de Jesus Cristo, exigem que nós, por seu amor, renunciemos aos deleites deste mundo e abracemos com
ternura a cruz que ele nos destina a levar após si nesta vida, indo
ele à frente com uma cruz mais pesada que a nossa e isso para nos
levar a gozar, depois da nossa morte, de uma vida feliz que não
terá fim. Deus, pois, não se apraz e ver-nos sofrer; sendo, porém, a
justiça infinita, não pode deixar impunes as nossas culpas. Por isso,
para que essas culpas sejam punidas e não percamos um dia a
felicidade eterna, ele quer que, pela paciência, expiemos as culpas e
assim mereçamos a felicidade eterna. Não poderia ser mais bela e
suave essa determinação da divina Providência, que satisfaz ao
mesmo tempo à justiça e nos faz salvos e felizes.
2. Devemos, por conseguinte, pôr toda a nossa esperança nos merecimentos de Jesus Cristo e dele esperar todos os
auxílios para viver santamente e nos salvar e não podemos duvidar de seu
desejo de nos ver santos: “Esta é a vontade de Deus: a vossa
santificação” (1Ts 4,3). Isso é verdade, mas não devemos nos descuidar de
satisfazer de nossa parte pelas injúrias que fizemos a Deus e de
conseguir pelas boas obras a vida eterna. É o que o Apóstolo queria
significar quando escrevia: “Completo em minha carne o que falta dos sofrimentos de Cristo” (Cl 1,3). Mas então a paixão de
Cristo não foi completa e não bastou ela só para nos salvar? Ela foi
pleníssima quanto ao seu valor e suficientíssima para salvar todos os
homens: entretanto, para que os merecimentos da paixão sejam
aplicados a nós, diz S. Tomás, devemos entrar com a nossa parte e sofrer
com paciência as cruzes que Deus nos envia para nos assemelhar a
Jesus Cristo, nossa cabeça, segundo o que escreve o mesmo Apóstolo aos Romanos: “Pois os que conheceu na sua presciência,
também os predestinou para se fazerem conformes à imagem de seu
Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm
8,2 29). Nuca, porém, devemos esquecer, como nota o mesmo Doutor Angélico, que toda virtude que possuem as nossas boas obras,
satisfações e penitências, lhes provêm da satisfação de Jesus Cristo. “A satisfação do homem tira sua eficácia da satisfação de Jesus
Cristo”. E assim se responde aos protestantes, que dizem serem nossas
penitências uma injúria à paixão de Cristo, como se ela não fosse
suficiente para satisfazer por nossos culpas. O reino dos céus sofre violência.
1. Dissemos que, para poder participar dos merecimentos de
Jesus Cristo, é preciso que nos esforcemos para cumprir os
preceitos de Deus e nos façamos violência para não ceder às tentações
do inferno. É o que o Senhor nos dá a entender, quando diz: “O
reino dos céus sofre violência e só os violentos o arrebatarão” (Mt
11,12). É preciso que nos violentemos quando se trata da continência,
da renúncia aos maus desejos, da mortificação dos sentidos, a fim de não sermos vencidos pelos inimigos. E se nos sentimos réus pelas
culpas cometidas, diz S. Ambrósio, devemos então forçar o Senhor
pelas lágrimas a nos conceder o perdão (Serm. 5).E o santo ajunta
para nosso consolo: Ó feliz violência, que não é punida pela ira
de Deus, mas recompensada por sua misericórdia. E todo aquele que
nesse sentido fizer mais violência a Jesus Cristo, lhe será mais
caro. E conclui: Primeiro devemos reinar em nós mesmos, dominando as nossas paixões para podermos depois arrebatar o reino do Salvador.
É, pois, necessário fazer-nos violência, sofrendo as adversidades e
perseguições, vencendo as tentações e as paixões, que sem isso nunca serão abatidas.
O Senhor nos declara que, para não perdermos nossa alma,
devemos estar preparados a sofrer agonias de morte e a mesma morte: ao mesmo tempo, porém, nos diz que ele mesmo combaterá os
inimigos daquele que estiver assim preparado: “Toma a defesa da
justiça para salvares a tua alma, e peleja até à morte pela justiça,
e Deus, pondo-se de tua parte, derrotará os teus inimigos” (Eclo
4,33). S. João viu ante o trono de Deus uma grande multidão de santos,
vestidos de branco (pois no céu não entra nenhuma mácula), tendo cada um
na sua mão uma palma, distintivo do martírio (Ap 7,9). Mas
então todos os santos são mártires? Sim; todos os adultos que se salvam
ou hão de ser mártires de sangue ou mártires de paciência, vencendo
os assaltos do inferno e os apetites desordenados da carne. Os
prazeres carnais enviam inumeráveis almas para o inferno, e por isso
é preciso que nos resolvamos a desprezá-los com toda a
energia. Persuadamo-nos de que ou a alma calcará aos pés o corpo ou o corpo subjugará a alma.
2. Repito: é preciso fazer esforço para se salvar a alma.
Mas esse esforço é justamente o que eu não posso fazer, dirá alguém,
se Deus não me auxiliar com sua graça. A este, responde S. Ambrósio:
“Se olhares para ti, nada poderás; se confiares no Senhor, ele
te dará forças”. Mas para se conseguir isso é necessário sofrer, não
há outro remédio. Se quisermos entrar na glória dos bem-aventurados,
diz a Escritura, é preciso sofrer primeiro com paciência muitas
tribulações (At 14,21). S. João, contemplando a glória dos santos no
céu, diz
justamente: “Estes são os que vieram de grandes tribulações
e levaram suas vestes e as branquearam no sangue do cordeiro” (Ap
7,14). É verdade que esses estava no céu por se haverem lavado no
sangue do cordeiro, mas todos aí chegaram depois de terem sofrido
grandes tribulações. Ficai certos, escrevia S. Paulo a seus discípulos, de que
Deus não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças
(1Cor 10,13). Deus é fiel e ele prometeu dar-vos o seu apoio, suficiente
para vencer todas as tentações, contanto que nós lho peçamos: “Pedi e
dar-se-vos-á; buscai e achareis” (Mt 7,7). Logo, não pode faltar à sua
promessa. É um erro crasso dos hereges afirmar que Deus manda coisas impossíveis. O concílio de Trento diz: “Deus não impõe
coisas impossíveis, mas, quando manda, te admoesta que faças o que
podes e peças o que não podes e te auxilia par que possas”. (Sess.
6 c. 11). Escreve S. Efrém que, se os homens não são tão cruéis
com seus jumentos, impondo-lhes cargas superiores às suas
forças, tanto menos Deus, que muito ama os homens, permitirá que eles
sofram tentações às quais não possam resistir (Tract. de
patientia).
1. Escreve Tomás de Kempis: “A cruz te espera por toda parte
e por isso é preciso que tenhas paciência em toda parte, se
quiseres viver em paz. Se carregares a cruz com boa vontade, ela te
levará a ti ao fim desejado”. Cada qual neste mundo procura a paz e
desejaria encontrá-la sem sofrimento; isso, porém, é impossível no
estado presente, pois as cruzes nos esperam em todo lugar em que nos
acharmos. Como, pois, encontrar a paz no meio dessas cruzes? Pela
paciência, abraçando a cruz que se nos apresenta. Diz S. Teresa que todo aquele que arrasta sua cruz com má vontade sente-lhe o
peso, por menor que seja; quem, porém, a abraça com boa vontade,
não a sente, ainda que seja muito pesada. E Tomás de Kempis ajunta
que todo aquele que leva a cruz com resignação, a mesma cruz o
conduzirá ao fim desejado, que neste mundo é agradar a Deus e no outro amá-lo eternamente. O mesmo autor continua: “Qual dos santos viveu sem a cruz? Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio, e tu buscas o
gozo?” Que santo foi admitido no céu sem a insígnia da cruz? Como
poderão entrar os santos no céu sem a cruz, se a vida de Jesus
Cristo, nossa cabeça e redentor, foi uma cruz contínua e um martírio?
Jesus, inocente, santo, filho de Deus, quis padecer durante sua vida inteira
e nós andamos atrás de prazeres e consolações? Para dar-nos um exemplo de paciência, quis eleger uma vida cheia de
ignomínias e dores internas e externas e nós queremos nos salvar sem
sofrer ou sofrendo sem paciência, o que é padecimento duplo, mas sem
fruto e com o acréscimo do castigo. Como poderemos pensar em amar a Jesus Cristo, se não queremos padecer por amor dele, que
tanto padeceu por nós? Como poderá gloriar-se de ser discípulo do
crucificado quem recusa ou recebe de má vontade os frutos da cruz, que são os sofrimentos, os desprezos, a pobreza, as dores, as
enfermidades e todas as coisas contrárias ao nosso amor próprio?
2. Não nos esqueçamos, antes sempre nos recordemos, das
chagas do crucifixo, porque delas hauriremos a força de sofrer os
males desta vida, não só com a paciência, mas até com alegria e
satisfação, como o fizeram os santos: “Tirareis águas com alegria das
fontes do Salvador” (Is 12,3). S. Boaventura comenta: “Das fontes
do Salvador significa das chagas de Jesus Cristo” e exorta-nos a ter os
olhos sempre fixos em Jesus moribundo, se quisermos viver sempre
unidos com Deus. A devoção consiste, segundo S. Tomás, em estarmos prontos a executar tudo o que Deus exige de nós.
1. Eis a bela instrução a que nos dá S. Paulo para vivermos
sempre unidos a Deus e suportarmos com paciência as tribulações
desta vida: “Recordai-vos daquele que dos pecadores suportou
contra si uma tal contradição, para que não vos fatigueis desfalecendo
em vossos ânimos” (Hb 12,3). Ele diz: Recordai-vos. Para sofrer com
resignação e paz as penas da vida, não basta pensar de passagem, poucas vezes no ano, a paixão de Jesus Cristo; é preciso pensar a
miúdo e mesmo todos os dias recordar-se das penas que Jesus suportou por nosso amor. E que penas foram essas? O Apóstolo diz:
sofreu tal contradição. Tal foi a contradição que Jesus sofreu de seus
inimigos que dele fizeram o homem mais vil, o homem das dores,
segundo a predição do profeta: O último dos homens, o homem das dores,
deixando-o morrer de pura dor e saciado de opróbrios em um patíbulo destinado aos mais celerados. E por que quis Jesus abraçar
esse acervo de dores e vitupérios? Para que não vos fatigueis
desfalecendo em vossos ânimos, isto é, para que nós, vendo quanto um Deus quis padecer para dar o exemplo da paciência, não
esmoreçamos, mas tudo soframos para nos libertarmos dos pecados.
2. O Apóstolo continua a nos animar, dizendo: “Ainda não resististes até ao sangue, combatendo contra o pecado” (Hb
12,4). Reflete que Cristo derramou por vós todo o seu sangue na sua
paixão, à força dos tormentos, e que os santos mártires, a exemplo
de seu rei, sofreram com intrepidez as lâminas de fogo, as
unhas de ferro que lhes despedaçavam até as vísceras. Nós, porém,
ainda não derramamos nem sequer uma gota de sangue por Jesus Cristo,
quando deveríamos estar prontos a sacrificar a própria vida para
não ofendermos a Deus, como afirma S. Raimundo: Prefiro precipitar-me numa fogueira a cometer um pecado contra o meu Deus, ou, como
dizia S. Anselmo, Arcebispo de Cantuária: Se eu tivesse de suportar
todas as
dores corporais do inferno ou cometer um pecado, escolheria
antes o inferno que cometer o tal pecado.
1. O leão infernal não deixa de andar em redor de nós
durante toda a nossa vida, para nos devorar, e por isso S. Pedro diz
que devemos nos armar contra os seus assaltos com o pensamento da paixão de Cristo: “Havendo Cristo padecido na carne, armai-vos
também do mesmo pensamento” (1Pd 4,1). S. Tomás afirma que só a
lembrança da paixão é um forte anteparo contra as tentações do
inferno. E S. Ambrósio, ou outro santo, escreve: Se o Senhor conhecesse
uma outra via para a salvação, melhor que a do sofrimento, ele
no-la teria feito conhecer: indo, porém, à frente com a cruz às costas,
nos demonstrou que não há meio mais próprio para nos procurar a salvação que o sofrer com paciência e resignação e por isso quis ele
mesmo dar-nos o exemplo na sua pessoa. Diz S. Bernardo que nós, contemplando as grandes aflições do Crucificado, acharemos mais suportáveis as nossas (Serm. 43
in Cant.).E em outro lugar: Que coisa te parecerá dura, se te
recordares dos sofrimentos de teu Senhor? (Serm. de quadrupl. deb.).
Tendo S. Delfina perguntado um dia ao seu marido S. Elzeário como
podia suportar tantas injúrias com tão grande tranqüilidade,
respondeu-lhe este: Quando me vejo injuriado, penso nas injúrias que meu
Salvador crucificado e não ponho de lado tal pensamento enquanto não
me sinto apaziguado. A ignomínia da cruz é agradável àquele que
não é ingrato ao Crucificado, diz S. Bernardo (Serm. 25 in
Cant.).Todas as almas que querem ser gratas a Jesus Cristo não detestam, mas
se aprazem nos desprezos que recebem. Quem não receberá com
prazer os opróbrios e os maus tratos, considerando somente os maus tratos que sofreu Jesus no começo de sua paixão, quando na
casa de Caifás foi esbofeteado e pisado, e lhe escarraram no
rosto, zombando dele como de um falso profeta, vendando-lhe os olhos com um pano, segundo o testemunho de S. Mateus? (Mt 26,27).
2. E como era possível os mártires sofrerem com tanta
paciência os tormentos dos carnífices? Eram dilacerados com ferros,
eram queima os nas grelhas: talvez não eram de carne ou perdiam os
sentidos? não, mas eles não se punham a contemplar as suas feridas, mas as chagas do Redentor e assim pouco sentiam as próprias
dores. Os tormentos não deixavam de os martirizar, mas eles os
desprezavam por amor a Jesus Cristo. Não há dor tão atroz que não seja suportável à vista de Jesus morto na cruz. O Apóstolo
escreve que nós pelos méritos de Jesus Cristo fomos enriquecidos com
todos os bens (1Cor 1,5). Jesus, contudo, quer que, para obtermos as
graças que desejamos, recorramos sempre a Deus por meio da oração e
lhe supliquemos que nos ouça pelos méritos de seu Filho. E o
próprio Jesus nos promete que, se assim procedermos, o Pai nos dará
tudo o que pedirmos: “Em verdade, em verdade eu vos digo, se
pedirdes alguma coisa ao Pai em meu nome, ele vo-la dará” (Jo 16,23).
Dessa forma procediam os mártires, quando era excessiva a dor dos
tormentos: recorriam a Deus e Deus subministrava-lhes a paciência para suportá-los. O mártir S. Teodato sentiu uma vez, no meio das
crueldades a que o sujeitaram, uma dor tão acerba visto o tirano ter
mandado intrometer-lhe nas chagas carvões ardentes, que ele suplicou
a Jesus que lhe desse força para suportá-los e assim saiu
vitorioso, terminando a vida no meio dos tormentos.
Nossa consolação na morte.
1. Não nos atemorizem, pois, todos os combates que temos de travar contra o mundo e contra o inferno; se formos prontos
em recorrer a Jesus Cristo, ele nos concederá todos os bens, a paciência
em todos os trabalhos, a perseverança e finalmente uma boa
morte. Grandes são as amarguras que se sofrem na hora da morte e só Jesus Cristo pode dar-nos a constância e merecimento. Grandes são
então especialmente as tentações do inferno, que se esforça de
modo particular em arrastar-nos à perdição, vendo-nos próximos de nosso fim. Narra Rinaldo que S. Elzeário suportou as mais horríveis
batalhas da parte dos demônios na hora da morte, apesar de ter levado
uma vida tão santa. Ele afirma que grandes são as tentações do
inferno nessa hora, mas que Jesus Cristo, com os merecimentos de sua
paixão, abate as suas forças. Por isso quis S. Francisco que lhe
recitassem a história da paixão na hora da morte. S. Carlos Borromeu,
vendo-se próximo da morte, mandou colocar ao redor de si várias
representações da paixão para entregar sua alma a Deus na contemplação
dessas imagens. S. Paulo escreve que Jesus quis padecer a morte “a fim de
destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o
diabo, e para livrar os que pelo temor da morte se achavam por toda a
vida sujeitos à servidão” (Hb 2,14-15). Assim quis Jesus morrer
para destruir com sua morte as forças do demônio que tinha até então o
império a morte e por esse meio livrar-nos da escravidão de Lúcifer
e por conseguinte do temor a morte eterna. Quis submeter-se a
todas as condições e paixões da natureza humana (exceto a ignorância,
a concupiscência e o pecado) e para que fim? para se tornar misericordioso, isto é, tomando sobre si mesmo as nossas misérias, tivesse
mais compaixão conosco, já que muito melhor se conheceu as
misérias experimentando-as do que considerando-as, e dessa maneira se
sentisse mais pronto a socorrer-nos, quando tentados na vida e
especialmente na hora da morte. A isso se refere aquela palavra de S.
Agostinho: “Se te perturbares pela iminência da morte, não te julgues
um réprobo, nem te entregues ao desespero, pois foi para
impedir isso que Cristo ficou perturbado em presença de sua morte” (Lib.
Pronost.).
2. O inferno na hora de nossa morte empregará todos os
esforços para nos fazer desesperar da misericórdia divina, pondo-nos
diante dos olhos todos os pecados da nossa vida. A recordação,
porém, da morte de Jesus Cristo nos dará coragem e confiança nos seus merecimentos, para que não temamos a morte. S. Tomás
comenta o aludido texto de S. Paulo da seguinte forma: “Cristo por
sua morte destruiu o temor da morte: quando o homem considera
que o Filho de Deus quis morrer, perde o medo da morte”. Quando
consideramos que o Filho de Deus quis sofrer a morte para nos obter o
perdão dos pecados, desaparece o temor e vem o desejo de morrer. A morte para os pagãos é motivo de grande pavor, pois para
eles, com a morte, acabam-se todos os bens. A morte de Jesus Cristo,
porém, nos dá uma firme confiança de que, morrendo na graça de
Deus, passaremos da morte à vida eterna. Desta esperança S. Paulo
nos dá um argumento seguro, dizendo que o Padre eterno entregou
à morte seu próprio Filho por nós todos, a fim de nos
enriquecer com todos os bens, porque, dando-nos Jesus Cristo, nos deu o
perdão, a perseverança final, o seu amor, a boa morte, a vida eterna e
todos os bens.
1. Quando o demônio nos turbar durante a vida ou na hora da morte, apresentando-nos os pecados de nossa mocidade,
respondamos-lhes com S. Bernardo: : “O que me falta de minha parte eu me usurpo da misericórdia de meu Senhor” (Serm. 61 in Cant.).
Os méritos que me faltam para entrar no paraíso, eu os adquiro dos
merecimentos de Jesus Cristo, que quis padecer e morrer justamente para obter-me aquela glória eterna que eu não merecia. S. Paulo
escreve: “Deus é que justifica. E quem é que condenará? Jesus Cristo,
que morreu, e mesmo ressuscitou, que está à direita de Deus e
que também intercede por nós (Rm 8,33-34). Estas palavras são sumamente consoladoras para nós pecadores. Deus é quem perdoa a nós
pecadores e nos justifica com sua graça. Ora, se Deus nos faz justos, como poderá nos condenar como réus? Talvez nos condenará
Jesus Cristo, “o qual para não nos condenar se entregou a si mesmo
por nossos pecados para nos arrumar do presente século
perverso?” (Gl 1,4).
2. Ele se sobrecarregou com nossos pecados e entregou-se à morte para nos livrar desse mundo perverso e conduzir-nos
com segurança ao seu reino e chega até a fazer o papel de advogado e intercede por nós junto de seu Pai. “O qual também intercede
por nós”. S. Tomás, explicando estas palavras, diz que no céu
intercede por nós, apresentando a seu Pai as suas chagas suportadas
por nosso amor. E S. Gregório não encontra dificuldade em afirmar (o
que afinal alguns não concedem) que o Redentor como homem, mesmo
depois de sua morte, continua a orar pela Igreja militante
que somos nós (In Ps. poen. 5). A mesma coisa declarou já antes dele
S. Gregório Nazianzeno: “Intercede, i. é, suplica por nós, interpondo a
sua mediação” (Or. 4 de theol.). E S. Agostinho no salmo 29 diz que Jesus
ora por nós no céu, para aí nos impetrar alguma nova graça, pois
que na sua vida nos obteve o que podia nos impenetrar, mas ora para
exigir de seu Pai, por seus merecimentos, a nossa salvação, já
alcançada e prometida. E ainda que o Pai tenha conferido ao Filho todo o
poder, contudo esse poder ele, como homem, não possui senão em
dependência de Deus. A Igreja afinal não costuma pedir a Jesus que
interceda por nós, considerando nele o que há de mais sublime, isto é,
a sua divindade e por isso suplica-lhe que nos conceda, como
Deus, o que nós lhe pedimos.
O consumidor da nossa fé.
1. Mas voltemos à confiança que devemos pôr em Cristo,
quando se trata de nossa salvação. S. Agostinho nos anima, dizendo
que o Senhor, que nos livrou da morte com derramamento de todo o
seu sangue, não quer a nossa perdição e que, se as nossas culpas
nos separam de Deus e nos merecem desprezo, nosso Salvador, por
seu lado, não pode desprezar o preço de seu sangue, derramado
por nós (Serm. 30 de temp.). Sigamos, pois, com confiança o conselho
de S. Paulo: “Corramos pela paciência para o combate que nos é
proposto, olhando para o autor e consumador da fé, Jesus, que, tendo
diante de si o gozo, sustentou a cruz, desprezando a ignomínia” (Hb
12,1-2). Ele diz: Corramos pela paciência para o combate que nos é
proposto: pouco nos adiantará o começar se não continuarmos a combater
até ao fim. Por isso diz: corramos pela paciência: a paciência
no sofrer o trabalho do combate nos obterá vitória e a coroa prometida
ao que vencer. Esta paciência será igualmente a couraça que nos defenderá
dos golpes do inimigo. Como, porém, obtermos essa paciência?
“Olhando para o autor e consumador da fé, Jesus”. S. Agostinho diz
que Jesus desprezou todos os bens da terra, para nos ensinar a
desprezá-los e não buscar neles a nossa felicidade, e doutro lado quis
suportar todos os males terrenos para nos ensinar a não temer as
calamidades deste mundo, sujeitando-se ele mesmo às nossas misérias, à pobreza, à fome, à sede, às fraquezas, às ignomínias, às
dores e à morte da cruz.(De catec. rud.). Mesmo com sua ressurreição
gloriosa quis nos animar a não temermos a morte, pois, se lhe
permanecermos fiéis até à morte, depois desta obteremos a vida eterna, que
é isenta de todo o mal e cheia de todo o bem. É o que
significam as palavras do apóstolo: “O autor e consumador da fé, Jesus”,
pois assim como Jesus é para nós o autor da fé, ensinando-nos o que
devemos crer e dando-nos ao mesmo tempo a graça de crê-lo,é também o
consumador da fé, prometendo-nos que haveremos um dia de
gozar daquela vida na qual nos ensina a crer. E a fim de nos
certificar do amor que vos dedica esse nosso Salvador e da vontade que tem
de nos salvar, S. Paulo acrescenta: “Que tendo diante de si o
gozo, sofreu a cruz”. Explicando S. João Crisóstomo esta palavra, diz que
Jesus podia salvar-nos levando uma vida de regalo neste mundo,
mas ele, para nos certificar melhor do afeto que nos
consagra, escolheu uma vida de sofrimentos e uma morte ignominiosa , morrendo pregado a uma cruz como um malfeitor.
2. Apliquemo-nos, pois, ó almas amantes do Crucifixo, no
restante de nossa vida, a amar quanto possível esse nosso amável
Redentor e a sofrer por ele, já que tanto quis sofrer por nosso amor.
E não cessemos de suplicar-lhe que nos conceda o dom de seu santo
amor. Bem-aventurados seremos se chegarmos a ter um grande amor
por Jesus Cristo. O Ven. Pe. Vicente Caraffa, grande servo de
Deus, diz o seguinte em uma carta que mandou a alguns jovens estudiosos
e devotos: “Para reformarmos nossa vida inteira, é preciso pôr
todo o empenho no exercício do amor de Deus. É só a caridade divina,
quando entra em um coração e dele se apodera, que o purifica de
todo o amor desordenado e o torna logo obediente e santo. S.
Agostinho diz: “Coração puro é o que está vazio de todo o afeto”, e S.
Bernardo escreve: “Quem ama, só ama e não deseja mais nada”, querendo dizer que quem ama a Deus, não deseja senão amá-lo e expulsa
do coração tudo o que não é Deus. E é assim que o coração vazio
se torna cheio, i. é, cheio com Deus, que consigo traz todos os
bens e então os bens terrenos não encontram lugar nesse coração e
nem o seduzem. Que atrativo poderão ter para nós os prazeres da
terra, quando experimentamos as consolações divinas? Qual a força
da ambição das honras vãs, o desejo das riquezas terrenas,
quando temos a honra de ser amados por Deus e começamos a possuir
em parte as riquezas do paraíso? Para conhecer o adiantamento
que fizemos no caminho de Deus, basta observarmos o progresso
que fizemos no seu amor, se fazemos a miúdo durante o dia atos
de amor de Deus, se falamos freqüentemente de seu amor, se
procuramos insinuá-lo aos outros, se fazemos nossas devoções só para
agradar a Deus, se sofremos com perfeita resignação, por amor de
Deus, todas as adversidades, as enfermidades, as dores, a pobreza,
os desprezos e as perseguições. Dizem os santos que uma alma
que ama verdadeiramente a Deus, deverá amar tanto quanto
respira, pois a vida da alma tanto no tempo como na eternidade deve
consistir em amar o nosso sumo bem, que é Deus”.
1. Persuadamo-nos, porém, de que nunca chegaremos a adquirir
um grande amor para com Deus, a não ser por meio de Jesus
Cristo, e se não tivermos uma devoção particular para com sua
paixão, por meio da qual ele nos alcançou a graça divina. Escreve o
Apóstolo: “Porque por meio dele temos acesso junto ao Pai” (Ez 2,18).
Se não fosse Jesus Cristo, o caminho das graças estaria fechado
para nós pecadores: ele nos abriu a porta, nos introduziu perante o
Pai e pelos merecimentos de sua paixão nos obtém dele o perdão de nossos
pecados e todas as graças que precisamos. Infelizes de nós,
se não tivéssemos Jesus Cristo! E quem poderá louvar e agradecer
suficientemente o amor e a bondade que este bom Redentor nos demonstrou, querendo morrer por nós, pobres pecadores, para nos livrar
da morte eterna? “É difícil haver quem morra por um justo,
ainda que talvez alguém se anime a morrer por um bom” (Rm 5,7). Apenas
se encontra quem queira morrer por um homem justo; mas Jesus
Cristo quis dar a vida por nós, quando éramos pecadores: “Porque ainda
quando éramos pecadores, em seu tempo, Cristo morreu por
nós” (Rm 5,8-9). Por isso nos assegura o Apóstolo que, se estivermos
resolvidos a amar Jesus Cristo a todo o custo, podemos esperar todo o
auxílio e apoio do céu: “Se, quando éramos inimigos de Deus, fomos com
ele reconciliados pela morte de seu Filho, muito mais agora, já
reconciliados, seremos salvos pela vida deste” (Rm 5,10). Notem os que amam
a Jesus que fazem injúria ao amor que nos consagra esse bom
Salvador, quando temem que ele lhes negue as graças necessárias para se salvarem e fazerem-se santos. E para que nossos pecados
não nos façam perder a confiança, continua S. Paulo: “Não
acontece, porém, com o dom o mesmo que com o pecado, porque se pelo pecado de um morreram muitos, ainda mais abundantemente a graça de
Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, se derramou
sobre muitos” (Rm 5,15). Com isso quer significar que o dom
da graça, alcançado pelo Redentor por sua paixão nos trouxe maiores
bens do que foram os males ocasionados pelo pecado de Adão, já
que têm maior valor os merecimentos de Jesus Cristo para obrigar a
Deus a nos amar que o pecado de Adão para nos atrair o ódio do
mesmo. “Pela graça de Jesus Cristo adquirimos maiores bens do que
os que havíamos perdido pela inveja do demônio” (S. Leão Serm. 1 de
ascens.).
2. Terminemos. Almas devotas, amemos Jesus Cristo, amemos esse Redentor que muito merece ser amado e muito nos amou,
não deixando de fazer coisa alguma para ganhar o nosso amor.
Basta saber que, por nosso amor, quis morrer consumido de dores
numa cruz e, não contente com isso, deixou-se ficar no Sacramento
da Eucaristia, onde em alimento nos dá o mesmo corpo que
sacrificou por nós e em bebida o mesmo sangue que por nós derramou em
sua paixão. Seríamos muito ingratos, não só ofendendo-o, mas
também amando-o pouco e não lhe dedicando todo o nosso amor. Ó meu Jesus, pudesse eu me consumir inteiramente por vós, como o fizestes por mim. Mas, visto tanto me haverdes amado
e me obrigado a amar-vos, ajudai-me então a não vos ser ingrato e
muito ingrato eu seria se amasse alguma coisa fora de Vós. Vós me
amastes sem reserva, também eu quero amar-vos sem reserva. Tudo
abandono, renuncio a tudo para dar-me todo a vós e para não ter em meu coração outro amor senão o vosso. Aceitai-me, meu amor, por
piedade, sem considerar os desgostos que vos causei no passado. Vede que eu sou uma daquelas ovelhas pelas quais derramastes
vosso sangue: “Nós, pois, vos suplicamos que socorrais a vossos
servos que remistes com vosso sangue precioso”. Esquecei-vos, meu
caro Salvador, das ofensas que vos fiz. Castigai-me como
quiserdes, livrai-me unicamente do castigo de não poder vos amar e depois fazei
de mim o que vos aprouver. Tirai-me tudo, meu Jesus, mas não me
priveis de vós, meu único bem. Fazei-me conhecer o que quereis de
mim, que eu com vossa graça quero executar tudo. Fazei que eu me
esqueça de tudo, para me recordar só de vós e das penas que
sofrestes por mim. Fazei que eu em nada mais pense senão em dar-vos
gosto e amar-vos. Por favor, olhai-me com aquele afeto com que me contemplastes no Calvário, ao morrer por mim na cruz, e
ouvi-me. Em vós eu ponho todas as minhas esperanças. Meu Jesus, meu
Deus, meu tudo. Ó Virgem santa, minha mãe e minha esperança,
Maria, recordai-me ao vosso Filho e obtende-me a fidelidade no seu
amor até à morte.