CAPÍTULO V
Reflexões sobre as sete palavras de Jesus na cruz
Primeira palavra.
“Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”(Lc 23,34).
1. Ó ternura do amor de Jesus Cristo para com os homens! Diz
S. Agostinho que o Salvador, na mesma hora em que recebia
injúrias de seus inimigos, procurava-lhes o perdão: não atendia tanto às
injúrias que deles recebia e à morte a que o condenavam, como ao amor
que o obrigava a morrer por eles. Mas, dirá alguém, por que foi
que Jesus pediu ao Pai que lhes perdoasse, quando ele mesmo poderia
perdoar-lhes as injúrias? Responde S. Bernardo que ele rogou ao Pai,
“não porque não pudesse pessoalmente perdoar-lhes, mas para nos
ensinar a orar pelos que nos perseguem”. Em outro lugar diz o santo abade: “Coisa admirável! Ele exclama: Perdoai-lhes, e os
judeus: Crucifica-o” (Serm. de pass. fer. IV). Arnoldo Carnotense
ajunta: “Enquanto Jesus se esforçava por salvar os judeus, estes trabalhavam
em se condenar, mas junto de Deus podia mais a caridade do Filho,
que a cegueira daquele povo ingrato” (Serm. de 7 verb.). E S.
Cipriano escreve: “Pelo sangue de Jesus Cristo foram vivificados até aqueles que derramaram o sangue de Cristo (Lib. de bono pt.). Jesus
Cristo, ao morrer, teve um desejo tão grande de salvar a todos, que
não deixou de fazer participantes de seu sangue mesmo seus
próprios inimigos, que lhe extraíam o sangue à força de tormentos.
Olha para teu Deus pregado na cruz, diz S. Agostinho, escuta como ele
ora por seus inimigos, e depois nega o perdão ao irmão que te
ofende.
2. Escreve S. Leão que foi em virtude dessa oração de Jesus
que ao depois de se converterem tantos milhares de judeus com a
prédica de S. Pedro, como se lê nos Atos dos apóstolos (Serm. 11).
Mesmo então, escreve S. Jerônimo, não quis Deus que ficasse sem
efeito a súplica de Jesus Cristo e por isso operou naquela mesma hora
que muitos judeus abraçassem a fé (Ep. ad Elv. q. 8). Mas por
que não se converteram todos? Responde-se que a súplica de Jesus foi
condicional, isto é, que aqueles, pelos quais pedia, não fossem do número dos tais aos quais foi dito: Vós resistis ao Espírito Santo. Também nós pecadores fomos então incluídos naquela palavra de Jesus Cristo e por isso nós todos podemos dizer a Deus: ó
Padre eterno, ouvi a voz desse amado Filho que vos pede perdão por
nós. É verdade que não mereceremos tal perdão, mas Jesus o mereceu, satisfazendo com sua morte superabundantemente por nossos
pecados. Não, meu Deus, eu não quero ficar obstinado como os judeus; arrependo-me, ó meu Pai, de todo o meu coração, de vos haver
desprezado e, pelos merecimentos de Jesus Cristo vos peço perdão. E vós, meu Jesus, já sabeis que sou um pobre doente, quase
desenganado por meus pecados, mas descestes de propósito do céu à terra para curar os enfermos e salvar os perdidos, que se
arrependem de vos ter ofendido. De vós disse Isaías: “Veio para salvar o
que havia perecido” (Is 61,1) e S. Mateus afirma a mesma coisa: “O
Filho do homem veio para salvar o que estava perdido” (18,11).
Segunda palavra.
“Em verdade eu te digo: Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).
1. Escreve o mesmo S. Lucas que dos ladrões crucificados com Jesus Cristo um permaneceu obstinado e o outro se converteu.
Este, vendo que seu pérfido companheiro blasfemava contra o
Senhor, dizendo: “Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós” (Lc 23,39), volta-se contra ele e repreende-o: “Nós somos justamente
punidos, pois recebemos o que merecemos: esse, porém, não fez nenhum mal” (Lc 23,41). E voltando-se para Jesus disse-lhe:
“Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino”. Com estas palavras
reconhecia-o por seu verdadeiro Senhor e como rei do céu. Jesus
promete-lhe então o paraíso para o mesmo dia: “Em verdade eu te digo
que hoje estarás comigo no paraíso”. Escreve um douto autor que
com essa palavra o Senhor nesse mesmo dia, imediatamente depois
de sua morte, se lhe mostrou sem véu, fazendo-o imensamente
feliz, embora não lhe conferisse todas as delícias do céu antes de
entrar nele.
Arnoldo Carnotense, no seu Tratado das 7 palavras, considera todas as virtudes que o bom ladrão S. Dimas praticou na sua
morte: “Ele crê, se arrepende, confessa, prega, ama, confia e ora”.
Praticou a fé, dizendo: “Quando chegares no teu reino”, crendo que
Jesus Cristo depois de sua morte havia de entrar vitorioso no
reino de sua glória. “Teve por perto que havia de reinar quem ele via
morrer”, diz S. Gregório. Exerceu a penitência, confessando seus pecados:
“Nós padecemos justamente, pois recebemos o que merecemos”. Diz
S. Agostinho: Não ousou dizer: lembra-te de mim, senão depois
da confissão de sua iniqüidade e de depor o fardo de suas iniqüidades
(Serm. 130 de templ.). E S. Atanásio: “Ó bem-aventurado ladrão, que
roubaste o céu com essa confissão”. Outras belas virtudes praticou
então esse santo penitente: a pregação, anunciando a inocência de
Jesus: “Este, porém, nenhum mal praticou”. Exerceu o amor para com
Deus, aceitando a morte com resignação em castigo de seus pecados:
“Recebemos o que merecemos”. S. Cipriano, S. Jerônimo, S. Agostinho não duvidam por isso de chamá-lo mártir, porque os algozes,
ao quebrarem-lhe as pernas, o fizeram com maior atrocidade, por
ter louvado a inocência de Jesus, aceitando esse sofrimento por amor de
seu Senhor.
2. Notemos neste passo a bondade de Deus, que concede sempre mais do que se lhe pede, como diz S. Ambrósio: “O Senhor
sempre concede mais do que se lhe pede; o ladrão pedia que se
recordasse dele e Jesus lhe respondeu: Hoje estarás comigo no Paraíso”. E S. João Crisóstomo escreve: “Não encontrarás nenhum homem
que tenha merecido tal promessa antes do bom ladrão” (Hom. de
cruc. et latr.). Realizou-se o que Deus disse por Ezequiel que,
quando o pecador se arrepende deveras de suas culpas, ele o perda de tal
modo, como se esquecesse todas as ofensas que lhe foram feitas (Ez
21,22). E Isaías nos faz saber que Deus é tão inclinado ao nosso bem
que, quando o imploramos, ele nos atende imediatamente (Is
30,19). E S. Agostinho diz que Deus está sempre pronto para abraçar os
pecadores penitentes (Mn c. 23). A cruz do mau ladrão, suportada com
impaciência, aumentou sua desgraça no inferno; pelo contrário, a cruz do bom ladrão, levada com paciência, tornou-se uma escada para
o céu. Ó feliz ladrão, que tiveste a sorte de unir a tua morte com
a morte de teu Salvador. Ó meu Jesus, eu vos sacrifico doravante a
minha vida e vos suplico a graça de poder unir na hora de minha morte o
sacrifício de minha vida com aquele que oferecestes a Deus na cruz. Por
ele espero morrer na vossa graça e amando-vos com puro amor
despojado de todo o afeto terreno para continuar a amar-vos com todas
as minhas forças por toda a eternidade.
Terceira palavra.
“Mulher, eis aí teu filho. Eis aí tua mãe”(Jo 19,26 e 27).
1. Lê-se em S. Marcos que no Calvário estavam muitas
mulheres fazendo companhia a Jesus crucificado, mas de longe:
“Estavam presentes, porém, muitas mulheres que olhavam de longe, entre as quais se achava Maria Madalena” (Mc 15,40). Assim, julgava-se que
entre essas mulheres se encontrava também a divina Mãe. S. João,
porém, afirma que a Santíssima Virgem não estava longe, mas perto
da cruz, juntamente com Maria Cléofas e Maria Madalena (Jo 19,25).
Eutímio procura resolver esta dificuldade, dizendo que a Santíssima
Virgem, vendo que seu Filho estava prestes a expirar, aproximou-se
mais que as outras mulheres da cruz, vencendo o temor dos soldados
que a circundavam e sofrendo com paciência todos os insultos e
injúrias que lhe dirigiam os mesmos soldados que guardavam os
condenados. O mesmo afirma um douto autor que escreveu a vida de Jesus Cristo: Ali estavam os amigos que o observavam de longe. Mas
a Santíssima Virgem, Madalena e uma outra Maria estavam junto
da cruz com João. Vendo então Jesus sua Mãe e S. João,
disse-lhes: “Mulher, eis aí teu filho”. Escreve Guerrico, abade:
“Realmente mãe que não abandonava o filho nem no terror da morte”. Fogem as
mães à vista de seus filhos agonizantes: o amor não lhes permite
assistir a tal espetáculo, tendo de vê-los morrer sem os poder
socorrer. A Santíssima Virgem, porém, quanto mais o Filho se avizinhava
da morte, mais se aproximava da cruz.
2. Estava, pois, a aflita Mãe junto à cruz, e, assim como o
Filho sacrificava a vida, sacrificava ela a sua dor pela salvação
dos homens, participando com suma resignação de todas as penas e
opróbrios que o Filho sofria ao expirar. Diz um autor que desabonam a constância de Maria os que a representam desfalecida aos pés
da cruz: ela foi a mulher forte que não desmaia, não chora,
como escreve S. Ambrósio: “Leio que estava em pé e não leio que chorava”
(In cap. 23 Lc). A dor, que a Santíssima Virgem suportou na
paixão do Filho, superou a todas as dores que pode padecer um coração
humano. A dor, porém, de Maria não foi uma dor estéril, como a das
outras mães vendo os sofrimentos de seus filhos; foi, pelo
contrário, uma dor frutuosa: pelos merecimentos dessa dor e por sua
caridade, diz S. Agostinho, assim como é ela mãe natural de nosso chefe
Jesus Cristo, tornou-se então mãe espiritual dos fiéis membros de
Jesus, cooperando com sua caridade para nosso nascimento e para
fazer-nos filhos da Igreja (Lib. de sanc. virgin. c. 6). Escreve S. Bernardo que no monte Calvário estes dois grandes mártires, Jesus e Maria, se calavam: a grande dor que os
oprimia tirava-lhes a faculdade de falar. (De Mar.). A Mãe
contemplava o Filho agonizante na cruz, e o Filho, a Mãe agonizante ao pé da
cruz, toda extenuada pela compaixão que sentir apor suas penas.
Eis aí teu filho.
1. Estavam, pois, Maria e João mais próximos da cruz do que
as outras mulheres, de maneira que no meio daquele grande
tumulto podiam ouvir mais facilmente a voz e distinguir os olhares
de Jesus Cristo. Escreve S. João: “Tendo, pois, Jesus Visto sua mãe e
o discípulo que amava, disse à sua mãe: “Mulher, eis aí teu filho” (Jo
19,26). Mas se Maria e João estavam em companhia das outras
mulheres, por que se diz que Jesus viu a Mãe e o discípulo, como se
não enxergasse as outras mulheres? Responde S. Crisóstomo (Serm. 78) que o amor faz que se veja com mais clareza os objetos que mais
estimam. E S. Ambrósio escreve igualmente: “É natural que vejamos
antes dos outros os que mais amamos” (De Jo. patr. c. 10). Revelou
a mesma Virgem santíssima a S. Brígida que Jesus para ver sua
Mãe que estava junto à cruz teve de comprimir as pálpebras para
afastar de seus olhos o sangue que lhe impedia a vista (Rev. 1. 4,
c. 70).
2. Então disse Jesus: “Mulher, eis aí teu filho”, acenando
com os olhos a S. João, que estava ao lado. Por que, porém, a chama
mulher e não mãe? Chamou-a mulher, porque, estando já próximo da
morte, falou-lhe despedindo-se dela como se lhe dissesse: Mulher,
dentro em pouco estarei morto, e não terás mais outro filho na
terra: deixo-te João, que te servirá e amará como filho. Com isto deu a
entender que José já era morto, porque se ele ainda vivesse não o teria
separado de sua esposa. Toda a antigüidade atesta que S. João foi
sempre virgem e foi justamente por essa prerrogativa que ele foi
dado a Maria por filho e distinguido com a honra de ocupar o lugar de
Jesus Cristo. Por isso canta a santa Igreja: “Ele entregou a este que era
virgem sua virgem-mãe”. E desde o momento em que morreu o Senhor, como está escrito, S. João acolheu Maria em sua casa e a assistiu
e serviu durante toda a sua vida como a sua própria mãe (Jo 19,27).
Quis Jesus Cristo que este seu discípulo predileto fosse
testemunha ocular de sua morte, para poder depois atestar mais decididamente
em seu Evangelho e dizer: “Quem o viu é que dá o testemunho”
(Jo 19,35),e em sua epístola: “O que vimos com os nossos
olhos... e testificamos e anunciamos a vós (1Jo 1,2).Foi por isso que o
Senhor, enquanto os outros discípulos o abandonaram, deu a S. João a
força de o acompanhar até à morte no meio de tantos inimigos.
Eis aí tua mãe.
1. Mas voltemos à Santíssima Virgem e examinemos a razão
mais intrínseca por que Jesus chamou Maria mulher e não de mãe.
Queria com isso significar que ela era a grande mulher predita no
Gênesis, que deveria esmagar a cabeça da serpente. “Porei inimizade
entre ti e a mulher e a tua descendência e a sua: ela te esmagará a
cabeça e debalde tentarás contra o seu calcanhar” (Gn 3,15). Ninguém
duvida que essa mulher fosse a Santíssima Virgem Maria, a qual por
meio de seu Filho, ou então o Filho por meio dela, que o deu à
luz, devia esmagar a cabeça de Lúcifer. Maria devia realmente ser
inimiga da serpente, já que Lúcifer foi soberbo, ingrato e
desobediente, enquanto que ela foi humilde, grata e obediente. Diz-se: “Ela
esmagará a tua cabeça” porque Maria por meio do Filho abateu a soberba de
Lúcifer, o qual insidiou o calcanhar de Jesus Cristo (entende-se por
calcanhar sua santa humildade, que era a parte mais vizinha da terra); este, porém, com sua morte teve a glória de vencê-lo e
privá-lo do império que tinha obtido sobre o gênero humano por causa do
pecado. Disse Deus à serpente: “Porei inimizade entre a tua
descendência e a dela”. Isto significa que, depois da ruína do homem,
ocasionada pelo pecado, apesar da obra da redenção, haveria de existir
no mundo duas descendências: pela descendência de Satanás se
entende a família dos pecadores, seus filhos, por ele corrompidos;
pela descendência de Maria, compreende-se a família santa que é
composta de todos os justos com seu chefe Jesus Cristo. Maria é
designada mãe tanto da cabeça como de seus membros, que são os fiéis. Escreve o Apóstolo: “Todos vós sois um em Jesus Cristo; se,
porém, sois de Cristo, então sois filhos de Abraão” (Gl 3,28 e 29).
Jesus e os fiéis formam um só corpo, já que a cabeça não se separa de
seus membros e estes são todos filhos espirituais de Maria, caso
tenhamos o mesmo espírito de seu filho natural que foi Jesus. Assim
também S. João não foi chamado João, mas o discípulo a quem amava o Senhor. — “Em seguida disse ao discípulo: Eis aí a tua mãe”,
para que entendêssemos que Maria Santíssima é a mãe de todo bom cristão, que é amado por Jesus Cristo e em que vive Jesus
com seu espírito. É o que quer dizer Orígenes, quando escreve: “E
Jesus disse à sua Mãe: Eis aí teu filho. Isso é o mesmo como se
dissesse: Eis aqui o teu Jesus, que deste à luz: mas quem é perfeito não
vive mais propriamente, porém Cristo vive nele (Orig. In Jo c. 6). Escreve o Cartusiano que na paixão de Jesus Cristo os peitos
de Maria se encheram de sangue que corria das chagas de Jesus,
para que ela depois nos alimentasse a nós seus filhos. E ajunta
que esta divina Mãe, com suas preces e merecimentos, adquiridos
particularmente na morte de Jesus Cristo, nos obteve a participação nos
méritos da paixão do Redentor (L. 2 de laud. mar. c. 23).
Ó Mãe dolorosa, vós já sabeis que eu mereci o inferno: não
há outra esperança de salvação para mim senão a comunicação dos merecimentos da morte de Jesus Cristo. Esta graça vós haveis
de me impetrar e espero obtê-la pelo amor daquele Filho que vós
vistes diante de vossos olhos inclinar a cabeça e expirar no monte
Calvário. Ó rainha dos mártires, ó advogada dos pecadores, socorrei-me
sempre e especialmente no momento da minha morte. Ah, parece-me ver os demônios que se esforçarão na minha na minha agonia por
fazer-me desesperar à vista de meus pecados. Ah, não me abandoneis então quando virdes minha alma tão combatida: ajudai-me com
vossas súplicas, obtende-me a confiança e a santa perseverança. E
como então, sem poder falar e talvez perdidos os sentidos, não
poderei invocar o vosso nome e o de vosso Filho, eu os invoco agora
e digo: Jesus e Maria, recomendo-vos a minha alma.
Quarta palavra.
“Eli, Eli, lamma sabacthani?”, isto é, Deus meu, Deus meu,
por que me abandonastes?(Mt 27,46).
1. Antes destas palavras escreve S. Mateus: “E pela hora
nona clamou Jesus com grande voz, dizendo: Eli...” Por que Jesus
pronunciou estas palavras com voz tão forte? Eutímio diz que ele assim procedeu para demonstrar o seu poder divino, pois, estando
próximo a expirar, ainda podia dar um brado tão grande, coisa que os
agonizantes não podem fazer devido à grande fraqueza em que então se acham. Além disso, ele deu um tão forte brado para nos fazer
compreender o grande sofrimento com que morria. Alguém poderia crer que, sendo Jesus homem e Deus, tivesse com o poder de sua
divindade impedido os tormentos de causar-lhe dor. Por isso, para
tirar-nos tal suspeita, quis manifestar com aquelas palavras que a
sua morte foi a mais amarga jamais suportada por homem algum. Os mártires nos seus tormentos eram consolados pelas divinas
doçuras: ele, o rei dos mártires, queria morrer privado de todo o
conforto, satisfazendo a todo o rigor da justiça divina por todos os pecados dos homens. Foi esse o motivo, segundo Silveira, por que Jesus
chamou a seu Pai Deus, e não Pai, pois que então, réu que era,
devia tratá-lo como juiz e não como filho a pai.
Escreve S. Leão que esse brado de Jesus não foi queixa, mas ensino (Serm. 17 de pas. c. 13). Ensino, porque com aquele
brado queria dar-nos a entender quão grande é a malícia do pecado,
que quase obrigava Deus a abandonar às penas, sem alívio, seu
dileto Filho, somente por ter ele tomado sobre si a obrigação de
satisfazer por nossos delitos. Jesus não foi então abandonado pela
divindade, nem privado da glória que fora comunicada à sua bendita alma
desde o primeiro instante de sua criação; foi, porém, privado de
todo consolo sensível, com o qual costuma Deus confortar seus fiéis
servos nos seus padecimentos e foi deixado em trevas, temores e
amarguras, penas essas por nós merecidas. Esse abandono da presença sensível de Deus experimentou Jesus também no horto de Getsêmani: mas o que sofreu pregado na cruz foi maior e mais amargo.
2. Eterno Pai, mas que desgosto vos deu esse inocente e obedientíssimo Filho, para o punirdes com uma morte tão
amarga? Contemplai-o como nesse madeiro está com a cabeça
atormentada pelos espinhos, suspenso em três ganchos de ferro e
apoiando-se sobre suas próprias chagas; todos o abandonaram, até os seus
discípulos; todos o encarnecem nesse patíbulo e contra ele blasfemam; por que vós, que tanto o amais, também o abandonastes?
Cumpre saber que Jesus estava sobrecarregado de todos os pecados do mundo inteiro e por isso, ainda que pessoalmente fosse o
mais santo de todos os homens, tendo de satisfazer por todos os pecados
deles, era tido pelo pior pecador do mundo e como tal fez-se réu de
todos e ofereceu-se para pagar por todos. E porque nós merecíamos
ser abandonados eternamente no inferno, no desespero eterno, quis ele ser abandonado ou entregue a uma morte privada de todo o alívio,
para assim livrar-nos da morte eterna.
Por que me abandonastes?
1. Calvino, no seu comentário sobre S. João, disse uma
blasfêmia, afirmando que Jesus Cristo, para reconciliar o Pai com os
homens, devia experimentar todo o ódio que Deus tem contra o pecado e sentir todas as penas dos condenados e em especial a do
desespero. Blasfêmia! Como poderia satisfazer pelos nossos pecados com um pecado ainda maior, qual o do desespero? E como
conciliar-se esse desespero de que sonha Calvino, com estas palavras que
Jesus pronunciou depois: “Pai, em vossas mãos entrego o meu
espírito”? (Lc 23,46). A verdade é, segundo a explicação de S. Jerônimo
e S. Crisóstomo e outros, que nossos Salvador lança essa
exclamação de dor para nos patentear, não o seu desespero, mas o
tormento que sofria tendo uma morte privada de todo o alívio. Em Jesus,
se houvesse desespero, só poderia originar-se de ver-se ele odiado por
Deus. Como, porém, Deus haveria de odiar um tal filho, que, para
obedecer à sua vontade, se oferecera a satisfazer pelas culpas dos
homens? Essa obediência foi que levou o Pai a olhar para ele e
conceder-lhe a salvação do gênero humano, segundo o testemunho do apóstolo:
“O qual nos dias de sua mortalidade, oferecendo, com um grande
brado e com lágrimas, preces e rogos ao que o podia salvar da
morte, foi atendido pela sua reverência” (Hb 5,7). Este abandono de Jesus Cristo foi a pena mais dolorosa de
toda a sua paixão, pois sabemos que ele sofreu dores acerbíssimas
sem se lamentar, só se queixando desta e até com um grande
brado, com muitas lágrimas e preces, como diz S. Paulo. Mas todos esses
seus gritos e lágrimas tiveram por fim nos fazer compreender que
pena horrenda é uma alma culpada ser abandonada por Deus e
privada para sempre do seu amor conforme a ameaça divina: “Eu os
expulsarei de minha casa, e não os tornarei a amar” (Os 9,15), e também quanto devia ele padecer para nos obter a divina
misericórdia. Diz, além disso, S. Agostinho que, se Jesus Cristo se perturbou à
vista de sua morte, ele o fez para consolação de seus servos, para
que se estes, à vista da sua, se perturbarem, não se tenham em
conta de réprobos e não se entreguem ao desespero (Lb. Pronost.).
2. Agradeçamos, entretanto, a bondade de nosso Salvador por ter querido tomar sobre si as penas por nós merecidas e
assim livrar-nos da morte eterna, e procuremos de hoje em diante ser
gratos a este nosso libertador, arrancando do coração todo afeto que
não for para ele. E quando nos virmos desolados e privados da
presença sensível da divindade, unamos a nossa desolação àquela que
sofreu Jesus na sua morte. Ele de quando em vez se esconde aos
olhos das almas que lhe são mais caras, mas não se afasta do coração e
as assiste com sua graça interior. Não se dá por ofendido se em
tal abandono lhe dizemos o que ele disse no horto a seu eterno Pai:
“Meu Pai, se for possível, afastai de mim este cálice” (Mt 26,39). É
preciso ajuntar, porém, como ele: “Contudo, não se faça como eu quero, mas como vós”. E se a desolação contínua, é preciso continuar a
repetir o mesmo ato de conformidade, como ele o fez durante aquelas
três horas que passou no horto: “E orou pela terceira vez,
repetindo as mesmas palavras”. Diz S. Francisco de Sales que Jesus é tão
amável quando se deixa ver como quando se esconde. De resto, a quem mereceu o inferno e vê-se fora dele, não resta outra coisa
que dizer: “Bendirei ao Senhor em todo o tempo”. Senhor, eu não mereço
consolação, fazei por vossa graça que eu vos ame e fico satisfeito com viver assim desolado, porque isso vos agrada. Ah, se os
condenados pudessem no meio de seus tormentos se conformar assim com o vosso querer, o inferno não lhes seria mais inferno. “Mas vós, Senhor, não afasteis de mim o vosso socorro:
aplicai-vos a me defender” (Sl 21,20). Ah, meu Jesus, pelos merecimentos de vossa morte desolada, não me priveis do vosso auxílio
nesse grande combate que terei de travar com o inferno na hora de minha
morte. Nesse tempo todas as pessoas da terra já terão me abandonado
e não me poderão auxiliar; não me abandoneis vós que por mim morrestes e sois o único que então me podeis socorrer.
Fazei-o pelo merecimento daquele tormento que sofrestes no vosso abandono
e pelo qual nos merecestes não ser abandonados por vossa graça, como merecíamos por nossas culpas.
Quinta palavra.
“Sabendo, porém, Jesus que tudo estava consumado, disse,
para que se cumprisse a escritura: ‘Tenho sede’” (Jo 19,28).
1. A escritura que aí se designa era o dito de Davi: “E
deram-me na minha comida fel e na minha sede me propinaram
vinagre”(Sl 68,22). Grande foi a sede corporal que Jesus sofreu na cruz,
já pelo sangue derramado no horto, já no pretório pela flagelação e
coroação de espinhos, e mais ainda na mesma cruz onde de suas mãos e pés cravados escorriam rios de sangue como quatro fontes
naturais. Sua sede espiritual foi, porém, muito maior, isto é, o
desejo ardente que tinha de salvar todos os homens e de sofrer ainda mais
por nós, como diz Blósio, em prova de seu amor (Mar. sp. p. 3 c. 18).
S. Lourenço Justianiano escreve: “Esta sede nasce da fonte do amor” (De
agon. c. 19).
2. Ah, meu Jesus, vós tanto desejastes padecer por mim e a
mim tanto custa padecer, que me torno impaciente comigo mesmo a
cada padecimento e me torno insuportável aos outros. Ó meu Jesus,
pelos merecimentos de vossa paciência, tornai-me paciente e
resignado nas enfermidades e adversidades que me sobrevierem e
fazei-me, antes de morrer, semelhante a vós.
Sexta palavra.
“Está consumado”. S. João escreve: “Tenho Jesus tomado o
vinagre, disse: “Tudo está consumado” (Jo 19,30).
1. Nesse momento, Jesus, antes de expirar, pôs diante dos
olhos todos os sacrifícios da antiga lei (todos eles figuras do
sacrifício da cruz), todas as súplicas dos antigos padres, todas as
profecias realizadas na sua vida e na sua morte, todos os opróbrios e ludíbrios preditos que ele devia suportar, e vendo que tudo se havia
realizado, disse: “Tudo está consumado”. S. Paulo se anima a correr generosa e pacientemente ao
combate que temos de travar nesta vida com os nossos inimigos para
obter a salvação: “Corramos pela paciência ao combate que nos está
proposto, pondo os olhos no autor e consumador da fé, Jesus, o qual, havendo-lhe sido proposto o gozo, sofreu a cruz” (Hb 12,1 e
2). O Apóstolo exorta-nos a resistir com paciência às tentações
até ao fim, a exemplo de Jesus Cristo, que não quis descer da cruz antes
de morrer. S. Agostinho escreve: “O que te ensinou pendente da
cruz, não querendo dela descer, senão que fosses forte em teu
Deus?” (In ps. 70). Jesus quis consumar o seu sacrifício com a morte,
para nos persuadir de que Deus não recompensa com a glória senão
aqueles que perseveram no bem até ao fim, coo o faz sentir por S.
Mateus: “Quem perseverar até ao fim será salvo” (Mt 10,22). Quando,
pois, ou seja por motivo de nossas paixões ou das tentações do
demônio ou das perseguições dos homens nos sentirmos molestados e
levados a perder a paciência e a ofender a Deus, olhemos para Jesus
crucificado que derrama todo o seu sangue por nossa salvação e pensemos que nós ainda não derramamos uma só gota por seu amor. É o que diz S. Paulo: “Pois ainda não tendes resistido até ao
sangue combatendo contra o pecado” (Hb 12,4). Quando, pois, se oferecer a ocasião de ter de ceder em
qualquer ponto de honra, de se abster de qualquer ressentimento, de
se privar de qualquer satisfação, de qualquer curiosidade ou coisa
semelhante, envergonhemo-nos de o negar a Jesus Cristo. Ele não teve
reservas para conosco, deu-nos sua vida, todo o seu sangue e por
isso envergonhemo-nos de ter reservas para com ele. Resistamos
com todas as veras aos nossos inimigos, mas esperemos a vitória
sempre e unicamente dos merecimentos de Jesus: por meio deles e
deles somente os santos e em especial os mártires superaram os
tormentos e a morte. “Mas em todas essas coisas saímos vencedores por aquele que nos amou” (Rm 8,37). Quando o demônio nos trouxer
à mente qualquer obstáculo que nos pareça dificílimo à nossa
fraqueza superar, volvamos os olhos a Jesus crucificado e, confiados
no seu auxílio e merecimentos, digamos com o Apóstolo: “Tudo posso
naquele que me conforta” (Fl 4,13). Eu por mim nada posso, mas com o auxílio de Jesus eu posso tudo.
2. Animemo-nos, entretanto, a sofrer as tribulações da vida
presente pela vista das penas de Jesus crucificado. Considera, diz o Senhor do alto daquela cruz, considera a multidão das dores
e dos desprezos que eu padeço por ti sobre este patíbulo: meu
corpo está suspenso por três cravos, e não descanso senão sobre minhas
próprias chagas: o povo que me circunda não faz outra coisa senão
blasfemar contra mim e afligir-me, e o meu espírito está ainda mais
atormentado que meu corpo. Tudo padeço por teu amor: vê o afeto que te consagro e ama-me e não te recuses a padecer alguma coisa
por mim, que por ti levei uma vida tão aflita e agora a termino
com uma morte tão amarga.
Ah, meu Jesus, vós me pusestes no mundo para servir-vos e amar-vos, concedestes-me tantas luzes e graças para vos ser
fiel, mas eu, ingrato, quantas vezes, para não me privar de minhas
satisfações, preferi perder a vossa graça, voltando-vos as costas. Ah,
por aquela morte tão desolada que quisestes sofrer por mim,
dai-me força para vos permanecer grato no resto de minha vida,
propondo-me de ora em diante expulsar do meu coração todo o afeto que
não for por vós, meu Deus, meu amor e meu tudo. Minha Mãe Maria,
socorrei-me para que eu seja fiel a vosso Filho que tanto me amou.
Sétima palavra.
“Dando um grande brado, disse Jesus: Pai, em vossas mãos eu vos encomendo o meu espírito”. (Lc 23,46).
1. Escreve Eutíquio que Jesus proferiu estas palavras com
grande voz, para dar a entender que ele era verdadeiramente o Filho
de Deus, chamando a Deus seu Pai. S. Jerônimo escreve que ele
deu este grande brado para demonstrar que não morria por
necessidade, mas por própria vontade, emitindo um brado tão forte no
momento mesmo em que estava para expirar. Isso combina com o que
disse Jesus em vida, que ele de livre vontade sacrificava sua vida
por nós, suas ovelhas, e não pela vontade ou malícia de seus
inimigos. “Eu ponho minha alma por minhas ovelhas... ninguém ma pode
tirar, eu mesmo a entrego de livre querer” (Jo 10,15). S. Atanásio ajunta que Jesus, recomendando-se ao Pai,
recomendou-lhe justamente todos os fiéis que por seu intermédio
deveriam receber a salvação, já que a cabeça com seus membros
constituem um só corpo. E o santo conclui que Jesus então tinha em
mente repetir o pedido feito antes: “Pai santo, conserva-os em teu
nome, para que sejam um como nós” (Jo 17,11), e termina: “Pai, os
que me destes quero que onde eu estiver estejam comigo” (Jo 17,24). Isto leva S. Paulo a dizer: “Sei em quem eu pus minha fé e
estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito para
aquele dia” (2Tm 1,12). Assim escrevia o Apóstolo quando se achava
no cárcere padecendo por Jesus Cristo, e cujas mãos confiava o
depósito de seus sofrimentos e de toas as suas esperanças, sabendo
quanto ele é grato e fiel àqueles que padecem por seu amor. Davi
punha toda a sua esperança no futuro Redentor, dizendo: “Em vossas
mãos, Senhor, entrego o meu espírito; pois vós me remistes, Senhor
Deus da verdade” (Sl 39,6). Quanto mais nós devemos confiar em
Jesus Cristo, que já realizou a nossa redenção? Digamos-lhe, pois,
com grande confiança: “Vós me remistes, Senhor, por isso em
vossas mãos encomendo o meu espírito.
2. “Pai, em vossas mãos eu entrego o meu espírito”. Grande
esforço trazem estas palavras aos moribundos contra as tentações do inferno e temores os pecados cometidos. Não quero, ó Jesus,
meu Redentor, esperar a hora da morte para recomendar-vos a
minha alma; a vós a entrego agora; não permitais que ela se separe outra
vez de vós. Vejo que minha vida passada não me serviu senão para
vos desonrar; não permitais que eu continue a desgostar-vos nos
dias que me restam de vida. Ó Cordeiro de Deus, sacrificado na
cruz e morto por mim como vítima de amor e consumido de dores,
fazei pelos méritos de vossa morte que eu vos ame com todo o
coração e seja todo vosso no resto de minha vida. E quando chegar o
fim de meus dias, fazei que eu morra abrasado em vosso amor. Vós
morrestes por amor de mim; eu quero morrer por amor de vós. “Nas
vossas mãos, Senhor, eu entrego o meu espírito. Vós me remistes,
Senhor Deus da verdade”. Vós derramastes todo o vosso sangue,
destes a vida para me salvar, não permitais que por minha culpa tudo
isso fique perdido para mim. Meu Jesus, eu vos amo e espero
amar-vos eternamente por vossos merecimentos. “Em vós, Senhor, eu
esperei, não serei confundido eternamente”. Ó Maria, Mãe de Deus,
confio nas vossas súplicas: pedi que eu viva e morra fiel ao vosso
Filho. Digo-vos com S. Boaventura: “Em vós, senhora, eu esperei, não
serei confundido eternamente”.
Reflexões sobre a morte de Jesus Cristo e a nossa
A morte de Jesus é nossa vida.
1. Escreve S. João que nosso Redentor, antes de expirar,
inclinou a cabeça: “E tendo inclinado a cabeça, entregou seu
espírito” (Jo 19,30). Inclinou a cabeça para significar que aceitava a
morte, com plena submissão, das mãos de seu Pai, a quem prestava
humilde obediência. “Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente
até à morte, e morte de cruz” (Fl 2,8). Jesus, estando na cruz com
os pés e as mãos nela cravados, não tinha liberdade de mover outra
parte do corpo além da cabeça. Diz S. Atanásio que a morte não ousava
tirar a vida ao autor da vida e por isso foi preciso que ele mesmo,
inclinando a cabeça (única parte que podia mover), chamasse a morte
para que viesse tirar-lhe a vida (Qu 6 Antioc.). Referindo-se a isso,
diz S. Ambrósio que S. Mateus, falando da morte de Jesus, escreve:
“Jesus, porém, clamando outra vez com grande voz, entregou o
espírito” (Mt 27,50), para significar que Jesus não morreu por
necessidade ou por violência dos carrascos, mas porque o quis
espontaneamente, para salvar o homem da morte eterna a que ele estava
condenado.
2. Isso já tinha sido predito pelo profeta Oséias: “Eu os
livrarei das mãos da morte, eu os resgatarei da morte. Ó morte, eu serei
a tua morte; ó inferno, eu serei a tua mordedura” (Os 13,14). Os
santos padres S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Gregório e o próprio S.
Paulo, como veremos brevemente, aplicam este texto literalmente a
Jesus Cristo, que com sua morte nos livrou das mãos da morte, isto
é, o inferno, onde se sofre uma morte eterna. No texto hebraico,
como notam os intérpretes, e vez da palavra morte, está a palavra
“sceol”, que significa inferno. Como se explica que Jesus Cristo foi
a morte da morte? “Serei tua morte, ó morte!” Porque nosso Salvador com
sua morte veio destruir a morte a nós devida pelo pecado. Por
isso escreve o Apóstolo: “Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó
morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? O aguilhão
da morte é o pecado” (1Cor 15,54). O Cordeiro divino Jesus, com sua
morte, destruiu o pecado, que era a causa da nossa morte, e esta
foi a vitória de Jesus, pois que ele, morrendo, tirou do mundo o pecado e, conseqüentemente, nos livrou da morte eterna a que estava
sujeito até então todo o gênero humano. A isso corresponde aquele
outro texto do Apóstolo: “Para que pela morte destruísse aquele
que tinha o império da morte, isto é, o demônio” (Hb 2,14). Jesus destruiu
o demônio, isto é, destruiu o poder do demônio, o qual em
razão do pecado tinha o império da morte, a saber, tinha o poder de
dar a morte temporal e eterna a todos os filhos de Adão,
contaminados pelo pecado. E esta foi a vitória da cruz, na qual morrendo
Jesus, que é o autor da vida, com a sua morte recuperou-nos a vida. Por
isso canta a Igreja: “A vida suportou a morte e pela morte
produziu a vida”.
Isso tudo foi obra do amor divino, que como sacerdote
sacrificou ao Eterno Pai a vida de seu Filho unigênito pela salvação dos
homens. E assim canta igualmente a Igreja: “O amor, qual sacerdote,
imola os membros do corpo sacrossanto”. S. Francisco de Sales
exclamou: “Consideremos este divino Salvador estendido sobre a cruz,
como sobre seu altar de amor, onde vai morrer por amor de nós.
Ah, por que não nos lançamos também em espírito sobre a cruz, para
morrer com ele, que quis morrer por amor de nós?” Sim, meu doce
Redentor, eu abraço a vossa cruz e a ela abraçado quero viver e
morrer, beijando sempre com amor vossos pés chagados e transpassados por mim.
Olhai para a face de vosso Cristo.
Olhai para a face de vosso Cristo.
1. Mas, antes passar adiante, detenhamo-nos a contemplar o nosso Redentor já morto sobre a cruz. Digamos primeiro a seu
divino Pai: “Padre eterno, olhai para a face do vosso Cristo”, vede
que é o vosso único Filho, que, para cumprir com o vosso desejo de
salvar o homem perdido, veio à terra, tomou a natureza humana e com
ela todas as nossas misérias, exceto o pecado. Ele, enfim, se
fez homem e quis passar toda a sua vida entre os homens como o mais
pobre, o mais desprezado, o mais atribulado de todos, e chegou a
morrer, como vedes, depois de os homens lhe haverem rasgado as carnes,
ferido a cabeça com os espinhos e atravessado seus pés e mãos com os cravos na cruz. Nesse madeiro ele expira cheio de dores,
desprezado como o homem mais vil do mundo, escarnecido como falso
profeta, blasfemado como impostor sacrílego, por haver dito que era
vosso filho; tratado e condenado a morrer como criminoso e dos
mais celerados. Vós mesmo lhe tornastes a morte tão dura e
desolada, privando-o de todo o alívio. Dizei-nos que delito cometeu
contra vós esse vosso Filho tão querido, para merecer um castigo tão
horrendo? Vós conheceis a sua inocência, a sua santidade; por que o
tratais assim? Escuto a vossa resposta: “Por causa dos crimes de meu
povo eu o feri”. Sim, ele não o merecia, nem podia merecer
castigo algum sendo a inocência e santidade mesma. O castigo vos era
devido por vossas culpas, pelas quais merecestes a morte eterna, e eu,
para não vos ver a vós, minhas amadas criaturas, condenadas
eternamente, para nos livrar de tão grande desgraça, entreguei este meu Filho a uma vida tão atribulada e a uma sorte tão acerba.
Pensai, ó homens, até que ponto eu vos amei. “Assim Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho unigênito” (1Jo 4,9).
2. Permiti que eu agora me volte para vós, Jesus, meu
Redentor. Eu vos vejo sobre essa cruz, pálido e abandonado, sem fala e
sem respiração, porque já não tendes mais vida; sem sangue,
porque já o derramastes todo, como havíeis predito antes de vossa morte:
“Este é o sangue do Novo Testamento, que será derramado por vós”
(Mc 14,24). Não tendes mais vida, porque a destes para que minha
alma vivesse, porque o derramastes para lavar os meus pecados.
Mas por que perdeis a vida e dais todo o vosso sangue por nós,
míseros pecadores? S. Paulo dá-nos o porquê: “Ele nos amou e entregou-se a si mesmo por nós” (Ef 5,2). Assim este divino sacerdote, que foi ao mesmo tempo
sacerdote e vítima, sacrificando a sua vida pela salvação dos homens
que amava, completou o grande sacrifício da cruz e concluiu a obra da
redenção do gênero humano. Jesus Cristo, com sua morte tirou o horror
à nossa morte: até então ela era unicamente o suplício dos
rebeldes, mas, pela graça e méritos de nosso Salvador, tornou-se um
sacrifício tão caro a Deus, que, se o unimos como o da morte de Jesus,
nos fazemos dignos de gozar da mesma glória que goza Deus e de
ouvir um dia como esperamos: “Entra no gozo de teu Senhor”.
Ó morte, onde está o teu aguilhão?
Ó morte, onde está o teu aguilhão?
1. Se até então era a morte um objeto de dor e de terror,
Jesus, morrendo, transformou-a em um trânsito do perigo de uma
ruína eterna para a segurança de uma felicidade eterna e das misérias
desta vida às delícias imensas do paraíso. Diz S. Agostinho que os
amantes do crucifixo vivem com paciência e morrem com alegria. E,
como a experiência nos mostra, as pessoas, que durante a vida
foram mais atribuladas pelas perseguições, pelas tentações, pelos
escrúpulos ou outros acontecimentos desagradáveis, são na morte as mais
consoladas pelo crucifixo, vencendo com grande paz todos os temores e angústias da morte. E se algumas vezes aconteceu que alguns
santos, como se lê em suas vidas, morreram com grande pavor da
morte, o Senhor o permitiu para maior merecimento deles, pois o
sacrifício, quanto mais penoso e duro, tanto mais grato a Deus e mais
proveitoso para a vida eterna.
Oh! como era acerba a morte dos antigos fiéis antes da morte
de Jesus Cristo! Não havendo o Salvador ainda aparecido,
suspirava-se por sua vinda e esperava-se por ele segundo a sua promessa,
mas ignorava-se o quando, e o demônio tinha um grande poder
sobre a terra, estando o céu fechado para os homens. Depois da morte
do Redentor, porém, o inferno foi vencido, a graça divina foi
conferida às almas, Deus se reconciliou com os homens inocentes ou
expiaram suas culpas pela penitência. E se alguns, conquanto mortos
em graça, não entram imediatamente no céu, isso é devido a seus
defeitos ainda não inteiramente expiados: de resto, a morte nada mais
faz que romper com seus laços para que livres possam unir-se
perfeitamente com Deus, do qual vivem como que separados nesta terra de
exílio.
Procuremos, pois, almas cristãs, enquanto neste exílio,
olhar a morte, não como uma desgraça, mas como o fim de nossa
peregrinação tão cheia de angústias e perigos e como princípio de nossa
felicidade eterna, a qual esperamos alcançar um dia pelos merecimentos de Jesus Cristo. E como este pensamento do céu
desprendamo-nos quanto possível dos objetos terrenos, que podem fazer-nos
perder o céu e condenar-nos às penas eternas. Ofereçamo-nos a Deus,
protestando querer morrer quando lhe aprouver, aceitando a morte da maneira e no tempo que para nós destinou, suplicando-lhe
continuamente que, pelos merecimentos da morte de Jesus Cristo nos faça sair desta vida na sua graça.
2. Meu Jesus e meu Salvador, que para me obterdes uma boa morte escolhestes para vós uma tão penosa e desolada, eu me
abandono inteiramente nos braços de vossa misericórdia. Há mais anos que deveria estar no inferno, pelas ofensas que vos fiz,
separado para sempre de vós; vós, em vez de castigar-me, como eu
merecia, me chamastes à penitência, e espero que a esta hora já me
tenhais perdoado, mas, se ainda não me perdoastes por minha culpa,
perdoai-me agora que, cheio de dor, me chego a vossos pés, pedindo
misericórdia: desejaria meu Jesus, morrer de dores pensando nas injúrias que vos fiz. “O sangue do inocente lava as culpas do
penitente”. Perdoai-me e dai-me a graça de amar-vos com todas as forças
até à morte e, quando chegar o fim de minha vida, fazei-me morrer
abrasado em amor por vós, para continuar a amar-vos eternamente.
Desde já uno a minha morte à vossa santa morte, pela qual espero
salvar-me. “Em vós, Senhor, eu esperei; não serei confundido
eternamente”. Ó grande Mãe de Deus, vós sereis, depois de Jesus, a minha
esperança. “Em vós, Senhora, eu esperei, não serei confundido eternamente”.
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