CAPÍTULO VII
Do amor que Jesus Cristo nos demonstrou na sua paixão
Assim amou Deus o mundo.1. S. Francisco de Sales chama o monte Calvário o monte dos amantes e diz que o amor que nasce
da paixão é fraco, dando com isso a entender que a paixão de
Jesus Cristo é o incentivo mais forte para nos mover e inflamar a
amar o nosso Salvador. Para que possamos compreender em parte (pois
totalmente é impossível) o grande amor que Deus nos demonstrou na paixão de Jesus Cristo, basta lançar um olhar ao que dizem
as Sagradas Escrituras. Escolherei só alguns textos mais importantes que
falam deste amor. E que ninguém ache fastidioso repetir eu
esses textos que falam da paixão, tendo-os já citado muitas vezes
em outras obras minhas. Também certos escritores de obras perniciosas, que tratam de obscenidades, repetem sempre suas pilhérias
impudicas para despertar mais fortemente a concupiscência de seus
incautos leitores. E a mim não me será então permitido repetir
aqueles trechos das Sagradas Escrituras, que são mais aptos para
inflamar os ânimos no amor divino?
Falando deste amor, diz o próprio Jesus: “Assim Deus amou o mundo que lhe deu seu Filho unigênito” (Jo 3,61). A palavra
assim significa muito: ela nos faz compreender que, tendo-nos dado
o seu Filho unigênito, nos demonstrou um tal amor que nós nem
sequer podemos compreendê-lo. Por causa do pecado todos nós
estávamos mortos, tendo perdido a vida da graça. O Padre eterno,
porém, para dar a conhecer ao mundo a sua bondade e nos fazer
compreender quanto nos amava, quis enviar à terra seu Filho, para que
ele com sua morte nos restituísse a vida. “Nisto é que se manifestou
a caridade de Deus para conosco, que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo para que nós vivamos por ele” (1Jo 4,9). Para nos
perdoar a nós, Deus não quis perdoar a seu próprio Filho, desejando
que ele assumisse o peso de satisfazer a justiça divina por todas as
nossas culpas. “O qual não poupou seu próprio Filho, mas entregou-o
por todos nós” (Rm 8,32). Diz-se entregou-o, como se o
depositasse nas mãos dos algozes, que o encheram de ignomínias e dores, até
fazê-lo morrer de dor em um patíbulo ignominioso. Primeiramente o
sobrecarregou com todos os nossos pecados: “E o Senhor pôs sobre ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53,6), e depois quis vê-lo
consumido de
opróbrios e das mais acerbas aflições tanto internas como
externas: “Eu o feri por causa dos crimes de meu povo. E o Senhor quis quebrantá-lo na sua fraqueza” (Is 53,8-10).
2. S. Paulo, considerando este amor de Deus, chega a dizer:
“Por causa de excessiva caridade com que nos amou, quando
estávamos mortos pelos pecados, ele nos deu a vida em Cristo” (Ef
2,4-5). Ele diz por causa da excessiva caridade com que nos amou. Como?
Em Deus poderá haver excesso? Sim, fala dessa maneira para que
compreendamos que Deus fez pelo homem tais coisas, que, se a fé não o atestasse, não se poderia crê-lo. Por isso exclama a S.
Igreja, cheia de admiração: “Ó admirável condescendência de vossa
compaixão para conosco! Ó inestimável predileção de vossa caridade!
Para remirdes o servo, entregastes o Filho”. Note-se esta
expressão da Igreja: predileção da caridade, esse amor é mais caro a Deus
que todos os amores que consagra às outras criaturas. Sendo Deus
a caridade mesma, o amor mesmo, como escreve S. João: “Deus é
a caridade” (1Jo 4,8), ama todas as criaturas: “Pois tu amas
todas as coisas que existem e não odeias alguma das que fizeste” (Sb
11,25). O amor que ele dedica ao homem parece, porém, ser-lhe caro e
avantajado, pois chega a preferir o homem aos mesmos anjos, querendo morrer pelos homens e não pelos anjos que se haviam
extraviado.
Ele se entregou a si mesmo.
1. Falando do amor que o Filho de Deus consagra ao homem, notemos que, vendo ele, de um lado, o homem perdido pelo
pecado e de outro, a justiça de Deus que exigia inteira satisfação
pela ofensa recebida do homem que não estava em condições de a dar,
ofereceu-se espontaneamente a satisfazer pelo homem. “Foi oferecido porque ele mesmo o quis” (Is 53,7).Como um humilde cordeiro
se submete aos carnífices, permitindo-lhes que lhe dilacerem as
carnes, o conduzam à morte, sem se lamentar nem abrir a boca, como
já estava predito: “Será levado como uma ovelha ao matadouro,
e, como um cordeiro diante do que o tosquia, emudecerá e não abrirá
a boca” (Is 53,7). S. Paulo escreve que Jesus, para obedecer a seu
Pai, aceitou a morte da cruz: “Fez-se obediente até à morte e morte de
cruz” (Fl 2,8). Não se julgue, porém, que o Redentor de sua parte
não o queria e só para obedecer ao Pai morreu crucificado: ele se
ofereceu espontaneamente a essa morte e quis morrer por própria
vontade pelo homem, levado pelo amor que lhe consagrava, como ele
mesmo o declarou em S. João: “Eu mesmo entrego a minha alma,
ninguém a tira de mim, mas eu mesmo a dou de mim mesmo” (Jo 10,18). E ajuntou que era esse o ofício de um bom pastor, dar a sua
vida por suas ovelhas: “Eu sou o bom pastor, o bom pastor dá sua alma
por suas ovelhas” (Jo 11,14). Por que quis morrer por suas
ovelhas? Que obrigação tinha como pastor de dar sua vida por suas
ovelhas? Quis morrer por causa do amor que lhes tinha e assim livrá-las do
poder de Lúcifer: “Ele nos amou e se entregou por nós” (Ef 5,2).
2. Claramente afirmou nosso amante Redentor quando disse: “E eu, quando for exaltado da terra, atrairei tudo para mim”
(Jo 12,32). Com essas palavras quis designar a morte que teria de sofrer
sobre a cruz, como esclarece o mesmo evangelista: “Dizia isso,
significando de que morte havia de morrer” (Jo 12,33). Comentando as
palavras — tudo atrairei para mim — diz S. João Crisóstomo: como se
tudo estivesse retido pelo tirano. Com a palavra — atrairei— quer
o Senhor significar que ele, com sua morte, nos arrancou a força das
mãos de Lúcifer, o qual como tirano nos conserva encadeados como
escravos para nos atormentar eternamente no inferno depois da morte. Infelizes de nós, se Jesus Cristo não houvesse morrido por
nós! Todos deveríamos ser condenados ao inferno. Que grande motivo para nós de amar Jesus Cristo, digo para nós, porque merecemos o
inferno e ele, com sua morte e efusão de seu sangue, nos livrou
dessa desgraça.
Lancemos de passagem um olhar para as penas do inferno, onde já se acham infelizes a suportá-las. Esses infelizes estão
imersos num mar de fogo, no qual sofrem uma agonia ininterrupta, pois
nesse fogo experimentam toda sorte de tormentos. Estão entregues às
mãos dos demônios, que, cheios de furor, não fazem outra coisa que
atormentá-los incessantemente. Mais do que pelo fogo e por todos os outros horrores, são atormentadas pelo remorso da consciência pelos
pecados cometidos durante a vida, por cuja causa foram condenados.
Vêem fechado para sempre todo caminho que possa conduzi-los para
fora desse abismo de tormentos. Vêem-se banidos para sempre da
companhia dos santos e da pátria celeste, para a qual foram criados. O que, porém, mais os aflige e constitui o seu inferno é
verem-se abandonados de Deus e condenados a não poderem mais amá-lo nem dele recordar-se senão com ódio e rancor. Desse inferno nos
livrou Jesus Cristo, remindo-nos não com ouro ou outros bens
terrenos, como diz S. Lourenço Justiniano (De contempt. mundi. c. 7),
mas dando-nos seu sangue e sua vida sobre a cruz. Os reis da terra
enviam seus vassalos à morte, na guerra, para conservar a sua
própria vida. Jesus, pelo contrário, quis morrer por nós, criaturas suas,
para nos obter a salvação.
Amor sem medida.
1. Ei-lo então apresentado a Pilatos como um malfeitor pelos escribas e sacerdotes, para que ele o julgasse e condenasse
à morte da cruz, como de fato o conseguiram. Oh! maravilha, exclama
S. Agostinho, ver o juiz julgado, a justiça condenada e a vida morrer
(Serm. 191). E qual foi a causa de todos esses prodígios senão o
amor que Jesus Cristo tinha aos homens? “Amou-os e entregou-se assim
mesmo por nós” (Ef 5,2). Oh! se tivéssemos sempre diante dos olhos esse trecho de S. Paulo, certamente arrancaríamos do coração
todo o afeto aos bens da terra e não pensaríamos em outra coisa
senão em amar o nosso Redentor, recordando-nos que o amor o levou
a derramar todo o seu sangue para preparar-nos um banho de
salvação. “O qual nos amou e lavou-nos de nossos peados no seu sangue” (Ap 1,5). Diz S. Bernardino de Sena que Jesus Cristo do alto
de sua cruz viu em particular cada um de nossos pecados e ofereceu
seu sangue em remissão de cada um em especial (Serm. 56 a. 1 c.
1). Em suma, o amor obrigou-o a aparecer nesta terra como o mais
vil e humilde de todos, apesar de ser o senhor soberano. “Quem faz
isto?” pergunta S. Bernardo; “O amor, que, forte, no seu afeto, não
conhece dignidade” (In Cant. s. 64). O amor, que, para fazer-se
notório ao objeto amado, faz que o amante ponha de parte sua dignidade e
procure unicamente o que agrada e contenta ao amado, e assim Deus,
que por ninguém pode ser vencido, deixou-se vencer pelo amor,
que consagrava aos homens.
É, além disso, necessário refletir que tudo o que padeceu
Jesus Cristo em sua paixão, padeceu-o por causa de um de nós em
particular e por isso diz S. Paulo: “Vivo na fé do Filho de Deus, que
amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). O que diz o
Apóstolo deve dizer também cada um de nós. Assim, escreve S.
Agostinho que o homem foi remido por um preço tão grande, que parece valer
tanto quanto o próprio Deus (De dil. Deo c. 6). E o santo
acrescenta em outro lugar: Senhor, vós me amastes, não como a vós mesmo,
mas ainda mais do que a vós, pois, para livrar-me da morte,
quisestes morrer por mim (Soliloq. c. 13).
2. Mas, podendo Jesus Cristo salvar-nos com uma só gota de sangue, por que quis derramá-lo todo a força de tormentos
até expirar de pura dor no madeiro da cruz? Responde S. Bernardo que ele quis derramá-lo todo para nos demonstrar o amor excessivo
que nos tinha. Digo excessivo, pois também os santos Moisés e Elias
chamaram a paixão do Redentor um excesso de misericórdia e de amor:
“E falavam de seu excesso, que havia de realizar em Jerusalém”
(Lc 9,31). Falando S. Anselmo da paixão do Senhor, diz que a
misericórdia superou o delito de nossos pecados (Cur Deus homo 1. 2, c.
21) e isso porque o valor da morte de Jesus Cristo, sendo
infinito, superou infinitamente a satisfação devida à justiça divina por
nossas culpas. O Apóstolo tinha, pois, razão de dizer: “Longe esteja de mim
o gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl
6,14). E o que dizia S. Paulo pode dizer qualquer um de nós. E por isso
digamos: E que o maior glória poderia eu ter ou esperar no mundo, do
que ver um Deus morto por amor de mim? Ó Deus eterno, eu vos desonrei com os meus pecados, mas
Jesus Cr isto com sua mor te satisfez por mim e restituiu-vos superabundantemente a honra que vos era devida; por amor,
pois, de Jesus morto por mim, tende compaixão de mim. E vós, meu
Redentor, que quisestes morrer por mim a fim de obrigar-me a amar-vos, fazei que eu vos ame. Por ter desprezado a vossa graça e o
vosso amor, merecia ser condenado a não poder mais amar-vos;
dai-me, porém, qualquer castigo, mas não esse. Suplico-vos que não
me envieis ao inferno, já que no inferno não posso amar-vos.
Fazei que eu vos ame e depois castigai-me como quiserdes. Privai-me de
tudo, somente não de vós. Aceito todas as enfermidades, todas as
ignomínias, todas as dores que me enviardes, contanto que eu vos ame. Conheço agora, pela luz que me dais, que sois soberanamente
amável e muito me amastes; não ouso mais viver sem vos amar. No
passado, amei as criaturas e voltei-vos as costas a vós, bem
infinito; mas agora vos afirmo que quero amar exclusivamente a vós e nada
mais.
Ah, meu amado Salvador, se virdes que no futuro deixarei de
vos amar, peço-vos que me façais morrer agora; prefiro ser
aniquilado a ver-me separado de vós. Ó Virgem santa, Mãe de Deus, Maria,
ajudai me com vossas súplicas e obtende-me que não deixe mais de
amar a Jesus morto por mim, e a vós, minha Rainha, que levastes
Deus a usar de misericórdia comigo até agora.
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