CAPÍTULO XLVIII
Milagre que fez Santo Antônio a certa dona de Portugal que trazia por moça camareira o demônio em figura de mulher
Houve em Portugal, na vila de Linhares, certa dona mui poderosa e senhora do castelo, a qual se chamava Lopa ou Loba. E a desgraçada trazia por camareira o próprio demônio em figura de mulher.
Por seu conselho, praticava muitas crueldades e caía em desvairados crimes e pecados. Conservava, todavia, especial devoção por São Francisco e Santo Antônio.
Ora, vindo ela à doença de que morreu, desesperada nem cuidava da salvação nem se queria confessar, por mais que lho requeriam e lembravam.
E assim jazia para ali, desconsolada e triste no seu leito, quando dois Frades Menores entraram por sua casa e dela se abeiraram.
Começaram, muito piedosos, de confortá-la e induzi-la ao arrependimento e confissão; mas a dona nem lhes dava ouvidos.
Eram tantos seus pecados — dizia — que, por mais penitência que fizesse, nunca Deus se poderia dela amercear.
E vai daí o frade que parecia mais velho:
— Pois, senhora, podeis estar certa: a Divina Clemência é muito maior que vossos pecados. Se, arrependida, os confessardes, sobre mim os tomo, convosco partilharei meus méritos, e por virtude da Paixão de Cristo vos prometo a salvação.
Com tão consoladoras palavras, a dona começou de entrar em melhores sentimentos e animou-se à penitência. De Loba desumana que havia sido, converteu-se em cordeira mansa; e, arrependida dos pecados, com muitas lágrimas os confessou. E depois ela mesma, por devoção, pediu para mortalha o saial dos Frades Menores; e, recebendo-o das mãos daqueles frades, bem-aventuradamente no Senhor adormeceu. E os dois frades logo desapareceram.
E todos os que ali eram presentes, se persuadiram que deviam ser nem mais nem menos que São Francisco e Santo Antônio, aos quais a dona continuamente chamava em sua ajuda, tanta a devoção que por eles tinha.
E o seu corpo depois que ela morreu, foi ao convento da Guarda a enterrar.
Passado pouco tempo, vinha certo armeiro, noite velha, de caminho para a vila de Linhares onde a dita dona se finara, quando do escuro rompeu voz de mulher a carpir-se em choro e lágrimas:
— “Ó mofina de mim, que tão mau serviço fiz! Quatorze anos me cansei em vão!”
E o armeiro todo se espantou. Mas cobrando ânimo, fez o sinal da Cruz, e, confortado no Senhor, bradou:
— Eu te conjuro por Cristo Jesus que me digas quem és, e porque choras assim?
E a voz que respondeu:
— Eu sou o demônio que em forma de mulher quatorze anos em muitos pecados servi a Dona Loba que no outro dia se finou.
Contava, depois da sua morte, segundo suas culpas, arrastá-la comigo aos infernos; mas, quando foi do seu passamento, vieram dois capeludos Frades Menores aos quais ela sempre em vida venerou, e, inclinando-a à penitência, tiraram-ma das unhas e levaram-lhe a alma ao paraíso. Em sinal de que falo certo, quando fores em Linhares onde ela morreu, hás-de ouvir clamor no povo porque um ferreiro matou sua mulher e por isso foi preso e enforcado. E eu que tramei aquela morte, aos infernos levarei as almas deles ambos, tanto a da mulher como a do ferreiro. Desta forma me compensarei da perda de uma alma, ganhando a duas.
Ouvidas que foram tais palavras, continuou o armeiro em seu caminho, e quando entrou na vila de Linhares, achou, de facto, enforcado um ferreiro que matara sua mulher, e a todos contou o que lhe havia acontecido.