9 de fevereiro de 2021

Milagres que Fez Santo Antônio depois da sua morte - Segunda Parte - Capítulo LI

CAPÍTULO LI

Como Santo Antônio em dia de sua festa apareceu, glorioso, a uma mulher de Torres Novas

Numa aldeia de Portugal chamada Alvorão, que é cerca de Torres Novas, vivia certa mulher casada com quem se deu este milagre.

Em companhia de outra moça da dita aldeia, dirigia-se ela para a vila com sua taleiga de trigo à cabeça, em dia de Santo Antônio. E, indo ambas seu caminho, eis que se levantou rijo vendaval a bater de frente. E, de tão forte, o vento derribou por terra a mulherzinha, e deixou-a estendida de costas no chão.

Logo neste ponto apareceu diante dela um mancebo, formoso de rosto, arrebatou-lhe a alma, e, levando-lha consigo, meteu por caminho largo que foi parar a um poço horrível, tenebroso, de cuja boca saíam medonhas e denegridas fumações à mistura com labaredas de fogo que subiam até o céu. Isto era o que se via de fora; lá dentro ouviam-se clamores e rugidos.

A mulher, toda a tremer, espreitou para o fundo, e viu muito desvairadas figuras de homens, de várias maneiras atormentados pelos demônios. Todos pareciam brasas vivas ou pastas de fogo que sempre hão-de arder. Sobre isto, a cada um atormentavam penas várias, conforme ao ofício em que haviam pecado: os mercadores onzeneiros traziam, por ignomínia, bolsas de fogo lançadas ao pescoço; aos avarentos e usurários recheavam-nos os demônios com moedas incandescentes que à força lhes metiam pela boca abaixo; os ladrões, adúlteros, homicidas, perjuros e mais pecadores sofriam todos eles tormentos especiais.

E perguntou a mulher ao mancebo como se chamava aquele tal lugar. E o mancebo respondeu que era ali o poço do inferno.

E — que é coisa mais de espantar! a mulher viu lá dentro a muitos que ao presente viviam neste mundo, mas que haviam de cair no inferno pois andavam na má companhia dos demônios. E eram de Lisboa e Santarém. E posto que, segundo a mulher afirmava, nunca visitara tais cidades, nomeava a cada um pelo seu
nome. E não pode ser motivo para descrer da visão o aparecerem nela as coisas por vir como se foram presentes.

E, depois, a mulher foi levada a um lugar ameno e deleitoso, todo matizado de ervas variegadas e de formosas árvores, e enfeitado com todo o gênero de flores. No meio erguia-se a modos de uma tenda muito branca e de maravilhosa estrutura, donde saíam dois a dois, como em procissão, muitos homens envoltos em resplendores, com coroas na cabeça e vestidos de branco mais claro que o sol. E atrás deles, todo adornado como se fora esposo em dia de noivado e aformosentado com maravilhoso trajar, vinha outro homem cercado de maior glória, em honra de quem — era de dizer — se fazia a procissão. 

Perguntou a mulher que lugar era aquele e quem eram tais personagens de tão nobres vestimentas e em tão boa ordem. E respondeu o mancebo que era ali o lugar onde repousam os Santos, e que todos aqueles que via, eram os eleitos do Senhor Deus, e o último de todos, assim vestido com tantas galas, era Santo Antônio a quem os outros Santos festejavam, pois como os homens lá na terra solenizam os Santos no seu dia, do mesmo modo ali no céu os Bem-aventurados uns aos outros celebram o dia de sua festa. E neste ponto acrescentou:

— E agora hás-de saber o motivo por que foste aqui trazida e se te mostraram tantas maravilhas: foi para que aprendas a guardar os dias de festa, abstendo-te de trabalhos servis, e para que neles prestes aos Santos a reverência que lhes é devida, sobretudo guardando-te de cometer algum pecado.

E enquanto a alma da mulher andou assim em tais andanças, o povo levou seu corpo à vila de Torres Novas a fim de ser enterrado, pois de todo o ponto parecia morto. E já desciam à cova a mulher, quando, com grande espanto, ela se levantou e começou de contar a quantos ali eram presentes, tudo o que vira e ouvira. E o mesmo tornou depois a contar a muita gente, e também a mim que escrevo esta narrativa e a vera história desta visão. Á glória de Santo Antônio.

Amém.

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