CAPÍTULO IX
Lembrança salutar do inferno
O pensamento do inferno é fecundo de magnânimas resoluções. Quantos se santificaram meditando naquele terrível sempre e naquele terrível nunca! Quantos deixaram o pecado e se entregaram à virtude ouvindo um sermão sobre o inferno! A lembrança daquelas chamas eternas dava fôrça aos mártires para suportarem os mais cruéis tormentos e caminharem alegres para a morte. Quem pensa no inferno suportará com paciência os males deste mundo, reputando-os insignificantes em comparação com os da eternidade.
O Padre João Eusébio Nierenberg, glória da Igreja de Espanha pela doutrina, pela santidade, pela direção esclarecida de muitas almas, teve dez anos antes de morrer tantos sofrimentos e tão excessivos que passava por certo envenenado da Babilônia! Ele trilha a passos agigantados a caminho da perdição; e como é difícil deter-se e voltar atrás!
E este pecado traz muita vez consigo o sacrilégio, mormente nos jovens. Confessam-se sem dificuldade das culpas cometidas contra a obediência, a caridade as outras virtudes; mas têm vergonha de revelar ao confessor as faltas cometidas contra a bela virtude. O demônio tira-lhes a vergonha no ato de cometer o pecado e depois lhes restitui no momento da confissão. E então comentem um sacrilégio, depois outro e mais outro, até que a justiça divina cansada, abre para esses infelizes a porta do inferno.
Sirvam os seguintes exemplos para causar salutar temor e preservar-nos de impureza e de sacrilégio.
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Santo Antônio de Florença refere nos seus escritos um fato terrível, que pela metade do século XV encheu de pavor todo o norte da Itália.
Um rapaz de boa família, que na idade de 16 para 17 anos tivera a desgraça de calar na confissão um pecado mortal e de comungar nesse estado, ia adiando, de semana em semana, de um mês para outro, a confissão para ele tão penosa dos seus sacrilégios. O santo arcebispo não menciona qual fosse o pecado oculto, mas parece que tenha sido uma culpa grave contra a bela virtude. Atormentado pelos remorsos, em vez de descobrir com sinceridade a sua miserável condição, procurava a paz fazendo grandes penitências; mas inutilmente.
Não aguentando mais os contínuos assaltos da consciência entrou num convento, pensando: – Lá, ao menos, confessar-me-ei bem e farei penitência dos meus pecados: Por sua desgraça foi recebido como um moço de vida exemplar, pois os superiores sabiam da boa reputação de que gozava; e por isso, também aqui a voz da consciência para outra ocasião, e dois, três anos passou-se em tal deplorável estado, sem ter a coragem de se confessar.
Afinal uma doença parecia-lhe trouxesse oportunidade: – Desta vez, dizia consigo o infeliz, manifesto tudo e faço uma confissão geral antes de morrer.
Mas, também desta vez não foi sincero na acusação; fez tantos rodeios que o confessor não compreendeu nada; esperava confessar-se melhor no dia seguinte, mas surpreendido por uma crise, expirou miseravelmente nesse estado.
Na comunidade, ignorando todos o seu triste fim, cercaram de veneração o defunto; o corpo foi transportado para a igreja do convento, onde ficou exposto no coro até as matinas do dia seguinte, quando se fariam as exéquias.
Uns minutos antes da hora marcada para a cerimônia, a um dos frades que fora tocar o sino aparece o morto amarrado de correntes afogueadas com não sei que de incandescente que lhe transparecia em toda a pessoa. O frade caiu de medo, mas cravou o olhar naquela terrível aparição; então o réprobo lhe falou: – “Não rezeis por mim, que estou no inferno para sempre.” E contou-lhe a lamentável história de sua maldita vergonha e dos seus sacrilégios. Depois desapareceu, deixando na igreja um odor pestífero que se espalhou por todo o convento, como para atestar a verdade do que o frade tinha visto e ouvido.
Advertidos os superiores fizeram remover de aí o cadáver, julgando-o indigno de sepultura eclesiástica.
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Narram as crônicas de S. Bento de um solitário de nome Pelágio, que encarregado pelo pai da guarda do rebanho, levava vida exemplar, tanto assim que todos lhe chamavam santo. Assim viveu muitos anos. Mortos os pais, vendeu as poucas coisas que lhe deixaram, e se retirou para o ermo.
Uma ocasião teve a desgraça de consentir num pensamento desonesto. Cometido o pecado, caiu em profunda melancolia porque não queria confessá-lo, para não perder a fama em que era tido. Resolveu fazer penitência, sem confessar o pecado, iludindo-se a si mesmo que Deus talvez
lhe perdoasse sem confissão. Entrou num convento, onde foi recebido pela sua boa fama, e aí viveu vida austera. Chegou a hora da morte e ele se confessou pela última vez; mas como por vergonha ocultara o pecado durante a vida, assim deixou de o contar na hora da morte. Depois de receber o viático morreu e foi sepultado como o mesmo conceito de santo.
Na noite seguinte o sacristão encontrou o corpo de Pelágio em cima da sepultura e o enterrou outra vez; como, porém, o encontrasse desenterrado três noites consecutivas, avisou o abade, o qual foi ao sepulcro com outros frades, e:
– Pelágio, disse, tu foste sempre obediente durante a vida, obedece-me também agora depois de morto; dize-me: é talvez vontade divina que o teu corpo tenha lugar reservado?
O infeliz defunto dando um formidável grito respondeu:
– Ai! eu estou condenado por um pecado que não confessei; olhe, sr. abade, para meu corpo.
E o seu corpo, nesse instante, apareceu como um ferro em brasa, que mandava chispas. Todos fugiam espavoridos; mas Pelágio chamou o abade para que lhe tirasse da boca a partícula consagrada que ainda se achava aí. Depois disto, Pelágio disse que o tirassem da igreja e o lançassem no monturo, e a ordem foi executada.
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Conta o Padre João Batista Manni, jesuíta, que houve uma pessoa que por muitos anos calou na confissão um pecado de desonestidade.
Passaram por aquele lugar dois frades dominicanos; ela, que sempre esperava um confessor estranho, pediu a um deles que a ouvisse em confissão. Saindo da igreja, o companheiro contou ao confessor, que observara que, enquanto aquela senhora se confessava, saiam de sua boca muitas serpentes; mas, que uma enorme serpente apenas pôs para fora a cabeça e entrou de novo; e então voltaram todas as outras.
O confessor, suspeitando o que isso pudesse ser, correu à casa daquela senhora; na porta lhe disseram que ela ao chegar à sala caíra morta.
Depois disto, apareceu-lhe, durante a oração, a pobre mulher vestida de fogo e disse: – Eu sou aquela mulher que me confessei contigo, cometendo um sacrilégio; eu tinha um pecado que não queria confessar aos sacerdotes da cidade; Deus mandou um confessor de fora, e foste tu, mas também nessa ocasião deixei-me vencer pela vergonha e logo a justiça divina me castigou, tirando-me a vida apenas cheguei à casa, e justamente me condenou ao inferno.
Tendo assim falado, abriu-se a terra onde se precipitou e desapareceu para sempre.
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O Padre Martinengo, no seu livro da Primeira Comunhão, conta também um fato que aqui reproduzo com as próprias palavras.
Numa paróquia de França celebrava-se a festa de Primeira Comunhão das crianças. Estava já o celebrante distribuindo a comunhão, quando, de repente, um menino, apenas recebeu a sagrada Partícula, caiu no chão. O socorro não se fez esperar. O menino estava frio como cadáver, sem conhecimento e sem fala. Levado nos braços para uma casa próxima e deitado numa cama, procuram reanimá-lo. Vem o médico, que tudo faz para que o menino volta a si. Debalde!
Entretanto, terminada a função, chega o padre que tanto o amava, senta-se à cabeceira, chama-o pelo nome, sacode-o até. Nenhum sinal de vida.
– Ah! coitadinho! Que teria acontecido? Estará mesmo morto? eram as perguntas que então se faziam.
Não; não tinha morrido, mas era moribundo. Depois de convenientemente medicado, o menino se mexeu, abriu os olhos e olhou estonteado os circunstantes. Momentânea alegria se difundiu no semblante de todos. O bom padre deu um grande suspiro de esperança e consolação, e começou a acariciar o menino e a confortá-lo com santas e afetuosas palavras.
– Filho, te sentes mal, não é? Coragem! sofre com paciência. Jesus a quem recebeste te ajudará com certeza.
Ouvindo esse nome, o menino torna-se lívido, olha assustado para o padre e prorrompe nestas palavras de desespero: – Ai de mim! cometi um sacrilégio!
Assim dizendo, vira sinistramente os olhos, cerra os dentes, range-os, e fazendo esgares volta-se para o lado da parede e expira.
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Conta o Padre Francisco Rodrigues, e o traz também Santo Afonso, um fato acontecido na Inglaterra, quando aí dominava a religião católica.
O rei Anguberto tinha uma filha que por sua airosidade fora pedida em casamento por muitos príncipes. Mas a princesa recusou terminantemente, pois fizera voto de castidade. O pai pediu para ela dispensa de Roma, mas a filha ficou firme no propósito de não se casar dizendo que não queria outro esposo senão Jesus Cristo; e ao mesmo tempo pedia ao pai permissão de viver afastada do mundo; o pai, que a estimava muito, condescendeu dando-lhe uma casa e côrte convenientes. Começou então uma vida santa de oração, jejum e penitências; frequentava os sacramentos e muitas vezes ia prestar serviços aos doentes dum hospital vizinho. Nesse teor de vida morreu, apesar dos seus verdes anos.
Certa vez uma senhora, que tinha sido sua criada, ouviu, durante a oração da noite, um rumor estranho e depois viu aparecer subitamente uma alma em figura de mulher, no meio do fogo e acorrentada entre muitos demônios, que se apresentou assim:
– Eu sou a infeliz filha de Anguberto.
– Como? perguntou assustada a aia; vós, condenada após uma vida tão santa?
Replicou a alma; – Fui justamente condenada por minha culpa.
– Sendo ainda criança tive a desgraça de cair num pecado desonesto. Fui confessar-me, mas a vergonha fechou-me a boca e em vez de revelar candidamente o meu pecado, eu o cobri de jeito que o confessor nada compreendeu, e cometi um sacrilégio. Depois comecei a fazer penitências, a das esmolas, para que Deus me perdoasse, mas sem confissão. Em artigo de morte disse ao confessor que tu tinha sido uma grande pecadora. O padre ignorando o meu estado respondeu-me que devia repelir esse pensamento como uma tentação; logo depois expirei e fui condenada para sempre, às chamas do inferno.
E, dizendo isto, desapareceu, mas com tanto estrépito que parecia derrubar a casa, deixando no quarto um mau cheiro insuportável, que durou por muitos dias.
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O terceiro pecado que arruína tantos cristãos é a blasfêmia. E como se tornou comum no dia de hoje!
Se um carroceiro não consegue fazer o seu animal andar vomita blasfêmia contra Deus e contra os santos. Se um comerciante vai mal nos seus negócios dirige imprecações contra os céus. Um jogador perde e então se ira fortemente contra Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima. Não se pode sair de casa, sem que os ouvidos e o coração se firam por blasfêmias. Mas, que mal nos fez Nosso Senhor para o maldizermos? Não é Ele o nosso Criador, o nosso Redentor que morreu na cruz para nos salvar, e que está pronto a derramar sobre nós as suas bênçãos celestes, se o amamos?
Por que usamos mal dessa língua que nos foi dada para cantar os seus louvores, profanando o seu santo nome?
A blasfêmia é a linguagem do inferno. Os santos padres justamente indignados pelos gravíssimos excessos que ela encerra chamam os blasfemos demônios em carne. Ai de quem se habitua a blasfemar! Ele se encaminha a largos passos para o inferno, pois multiplica pecados sobre pecados, escândalos sobre escândalos.
Em alguns países católicos fundaram-se pias uniões que têm por escopo impedir as blasfêmias, ou, pelo menos, fazer a reparação, bendizendo o santo nome de Deus. Quando encontram algum infeliz que não sabe observar o segundo mandamento da lei de Deus, o advertem caridosamente por si ou por meio de seus conhecidos, mostram o mal que faz à própria alma, o escândalo que dá ao próximo e o castigo que o espera, se não se corrige. São admiráveis os resultados que conseguem tais pias uniões ou ligas e muito fora para desejar que florescessem em todos os países, em todas as cidades.
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Reuniram-se alguns soldados numa taberna de Voviano, na Lorena, e depois de terem bebido demais, começaram a jogar. Um deles tendo perdido muito levantou-se raivoso da mesa e vendo por acaso uma imagem de Maria SS., pôs-se a desabafar a sua raiva vomitando as mais nefandas blasfêmias contra a Mãe de Deus.
Mas no mesmo instante, caiu no chão, com um horrível tremor em todos os membros e com tão violentos espasmos nas vísceras que se contorcia e bramia como um leão ferido. Três dias ele passou nesse estado, sem poder engolir nem alimentos, nem remédio para acalmar um tanto aquelas dores horríveis, até que no quarto dia, espumando de raiva e mordendo nervosamente a poeira morreu na presença de seus companheiros, estarrecidos por esse lutuoso espetáculo.
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Sabendo S. Leonardo de Porto Maurício que em Suzze, onde pregava as santas missões, estava enraizado o vício da blasfêmia começou a falar com veemência contra esse enorme pecado.
Um jovem devasso e grande blasfemo, riu-se das ameaças que Deus fazia por meio de seu ministro; aconteceu que no dia seguinte, precisamente na hora do sermão, ele passeava a cavalo pelas ruas da cidade; num dado momento levou uma forte queda e teve morte instantânea, ficando com a língua fora da boca.
Todos conheceram o fato como castigo manifesto de Deus, o que serviu para incutir no povo um grande horror à blasfêmia.
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Lê-se na Sagrada Escritura, que o soberbo e perverso Nicanor foi ferido de morte numa batalha. Judas Macabeu, vendo-o tombar, mandou que o degolassem e arrancassem a língua sacrílega que tantas blasfêmias proferira, atirou-a às aves, para incutir temor nos blasfemos.