30 de novembro de 2013

O Diabo, Lutero e o Protestantismo - Pe. Júlio Maria - Capítulo 3

CAPÍTULO III

A QUEDA DE LUTERO
A fisionomia da mocidade de Lutero já nos é conhecida. Esse período de sua existência não foi, de certo, a preparação condigna para a missão tão sublime de quem se dizia chamado por Deus para mudar por completo as idéias de um século e reformar a Igreja de Cristo.
Bom é que o leitor saiba logo nada estar eu adiantando por minha conta e risco. A minha apreciação vai apoiada sobre os documentos contemporâneos, pois recorri aos melhores autores modernos que relataram os fatos (*).
Anteriormente vimos as tendências de sua meninice; estas já se apresentam como sinais certos na mocidade; afinal, na idade madura, serão fatos consumados. Temos assim, realizada a palavra da sabedoria: “O homem não se afastará, na velhice, do caminho seguido em sua mocidade. O que não juntaste em tua juventude, como o poderás encontrar em tua velhice?” (Eclesiástico 25,5).
Entremos agora nos meandros da segunda fase desta existência, tristemente célebre e cinicamente corrupta.

1. O ESTADO DE ALMA E A CONVERSÃO DE LUTERO
Vimos Lutero exercendo o professorado na universidade de Wittemberg: aí insensivelmente se precipitou no maiores absurdos e erros que, por cúmulo de obcecação mental, tomou como “A DESCOBERTA DA VERDADE”, sepultada pelos antigos.
Pode-se acreditar na sinceridade de sua conversão? Optamos pela afirmativa, muito embora se possa admitir que o principal móvel desta mudança de vida tenha sido o temor dos castigos que o desejo de servir a Deus.
Por que este medo?...
Devido aos dois motivos já expostos: o seu gênio arrebatado que nos primeiros anos lhe atraíra tantos castigos, e sua vida livre e desregrada da mocidade. Examinando-se tudo atentamente, nota-se que a conversão de Lutero, conquanto se tenha como sincera de sua parte, não possuía fundamentos suficientemente sobrenaturais, para agüentar o peso de seu estado de sacrifícios preparativos à santidade.
Ingressando no convento, o seu ânimo irrequieto achou nesta ambiente, quanto nos múltiplos afazeres que o envolviam, uma preocupação para mantê-lo, relativamente à parte externa, na linha reta do dever.
Mas o conhecido axioma – OMNE VIOLENTUM NON DURAT – achou em Lutero a aplicação cabal. Quis sair do mal e praticar o bem; faltando, porém, o apoio sobrenatural à sua resolução, este seu voluntarismo, redundando num esforço contínuo, se transformou, para ele, num jugo e num tormento. Esta oposição formal entre as idéias, ou tendências de Lutero, e o seu teor de vida, gerou nele um terrível escrúpulo, pelos modernos psicólogos denominado OBSESSÃO: estado de alma em mais comum do que geralmente se cogita, sobretudo entre estudantes e intelectuais.
Para disfarçar a sua realidade, empresta-se-lhe o nome benigno de neurastenia, nervosismo, mania; no entanto, fundamentalmente, não passa de uma verdadeira moléstia: a OBSESSÃO ou o ESCRÚPULO.
Ao começar manifestar-se, esta importuna impressão é mal e mal perceptível, não indo além de um abatimento que inquieta, de qualquer coisa obscura e AMEAÇADORA. Logo, porém, esta disposição se altera: o pavor se determina, a IDÉIA fixa aparece como fator principal e pesa sobre todas as deliberações da pessoa, influindo em sua vida afetiva, sobre tudo o que faz; numa palavra, tal idéia IMPORTUNA E PACIENTE.
Muitas vezes não ultrapassa os limites de um simples “talvez”, mas é uma dúvida inquietante a martirizar o doente; tal estado, afinal, assume, assim, pouco a pouco, aspecto de verdadeira loucura. Como efeito do fenômeno, o obsesso se vê assaltado de vacilações da mente, condenado a nunca encontrar certeza, exatamente nas questões que mais de perto lhe dizem respeito. Basta pretender ele uma coisa, para logo se lhe apresentarem as mais fantásticas indecisões, aborrecendo-o e impelindo-o a odiar o que mais amava e apetecia.
Foi em conseqüência desta disposição, que Lutero viu nas moléstias que o atingiram, até em simples acidentes sem importância, tremendas ameaças e castigos de Deus. Isto nos revela a sua decisão repentina de se fazer monge. Desde então já ele era vítima de uma obsessão de cuja tirania inutilmente procurou safar-se.
Estas ligeiras observações psicológicas acham confirmação plena nas palavras e nos gestos subseqüentes de Lutero, após a entrada no convento. Ouçamos algo de seus escrito de 1535, em Wittemberg, já ex-frade, no seu comentário à epístola aos Gálatas: “Quando ainda monge, julgava-me perdido, sem salvação possível, sentindo, com tamanha violência, impulsos e atrativos pecaminosos e uma tendência acentuada à cólera, ao ódio e à inveja, contra um dos meus irmãos
de hábito. Este mal se renovava continuamente, não podendo eu encontrar descanso. E prossegue: “Ah! Se tivesse então compreendido a palavra de Paulo: a carne luta contra o espírito e ambos se hostilizam mutuamente” (Erl. Com. In Gall. III).
Tudo isso acentua sempre mais a grande desgraça do escrúpulo ou da obsessão a persegui-lo desde a Infância.
(*) Além do livro de Grisar e das obras de Lutero, recolhidas por Weimar, estou seguindo particularmente um autor holandês: H. J. Achters: “Luther, leven, persoon, leer”, resumo de tudo o que se tem dito de mais fundado sobre Lutero.

2. OS ESCRÚPULOS DE LUTERO
Segundo vimos, nosso homem era nada menos que um escrupuloso e um obsesso pela idéia fixa do rigor de Deus.
Desconhecendo a influência deste estado psicológico numa pessoa, os protestantes não o admitem em Lutero, e chegam a atribuir erradamente ao Catolicismo as mazelas todas do "reformador". É que, para eles, CHEFE tem de ser sempre o HERÓI, cuja sede da verdade e cujos anseios de paz com Deus não encontraram na Igreja Católica possibilidade de serem satisfeitos.
Aí estão, para atestar o estado anormal do espírito de Lutero, hsitoriadores de renome, homens de primeiro valor, como Grisar, Denifle, Paquier, Duinster, etc. Otto Scheel, escritor protestante, atesta ter sido Lutero frequentemente repreendido durante o seu noviciado, porque, perturbando-se continuadamente, enxergava todas as coisas através do prisma dos seus escrúpulos, segundo os quais tudo era pecado.
Qual a causa de tão aflitivo estado d‟alma?
Simplesmente a falsa concepção de Lutero sobre a graça divina. Por certo ele aspirava gozar aquela paz e alegria infundida pela graça no espírito; não lhe era suficiente a certeza moral de estar bem com Deus; desejava obter uma prova sensível, esta consolação que, às vezes, Deus concede a algumas almas generosas e frequentamente recusa a outras.
Superiores e mestres espirituais apontaram-lhe o erro. Tempo perdido. Lutero seguiu a sua própria idéia, a ninguém querendo submeter-se.
Foram impotentes para remediar o mal as violentas práticas de mortificação a que de contínuo recorria. O defeito era de outra natureza, pois não passava de uma espécie de "ultimatum" lançado à face de Nosso Senhor.
Já Santo Agostinho se expressava admiravelmente a respeito: VIS FUGERE A DEO, FUGE IN DEUM - quem quiser fugir de Deus, nele se refugie. O pobre Lutero muito ao invés, parecia nunca haver sentido a doce e consoladora intimidade com Deus, lançando-se cegamente nas garras do demônio, quando era o seu lugar o regaço carinhoso do Pai.
Em vista de tão lastimável estado, foi ele aos poucos abandonando as orações prescritas aos sacerdotes, e se absorvia, de corpo e alma, na atividade exterior, envolvente, materializante, e tanto que, em 1516, escrevia assim a Lange: "Raramente me sobra tempo para rezar o breviário e celebrar a missa; acrescentem-se a isto as tentações que padeço". (Wette I, 41).
Eis aí iminente a desgraça de Lutero. Era um vencido, a entregar as armas, capitulando vergonhosamente. O pobre monge começou, desde aquela hora, a indagar de si para si: por que não encontro eu a paz e a satisfação no convento? Por que me sinto hoje mais desanimado do que nos primeiros dias
de noviciado? Após tantos esforços nada consegui. E se não me salvar no papismo, haverá possibilidade de algum outro o conseguir?... (Wachters; Luther, 46).
Perante seu espírito turbulento e povoado de revolta surgiu então o fantasma do erro. Veio em seguida a indagação: Não haverá na natureza humana um foco de inclinações perversas, mais pujante do que a nossa vontade, o qual nos consome, sendo-nos impossível apagar-lhe as chamas? E, dando ouvidos ao seu caráter voluntarioso e às idéias pessoais, concluiu afinal: "A natureza humana está corrompida pelo pecado original, até às últimas fibras, e o desejo do mal é invencível". (Jaques Maurtain: Trois Refomateurs 1925).
Era a queda irremediável, a heresia formal. Destarte se estabeleceu a fonte de todos os seus erros e culpas. O desastre teve como ponto de partido o escrúpulo, a obsessão, o medo de Deus, a rebelião contra tudo e contra todos. E tal espírito doentio jogou-o no abismo. Sabe-se aliás, que um escrupulosos, de um dia para outro, pode cair no excesso oposto ao de seu escrúpulo.
Para muitos tal disposição conduz a um laxismo corruptor. Para Lutero, porém, levou-o à fundação de uma nova seita religiosa.

3. CONCLUSÃO
Lutero se pervertera, pois, de corpo e alma. Desde então era um decaído, entregue ao vício, perdido em deboches. E, com pouco tempo mais, um revoltoso em franca rebelião contra a sociedade, contra a Igreja e contra Deus.
Narrando este seu estado de ânimo, disse certa vez: "Todos aqueles aos quais eu comunicara o meu estado, me diziam logo: Não compreendo a sua dificuldade. E refletia: será que sou o único a debater-me em situação tão triste, somente eu é que sou tão tentado?... De fato, em toda parte eu via visões horríveis e aparências de fantasmas". (Hausrath: Luther leben, p. 30).
Mesmo a confissão, que a todos os cristãos traz alívio e paz, veio a ser, para ele, uma fonte de tormentos. Desanimado, procurava recurso de salvação, sem lograr encontrá-lo. Lutero olvidara o doce Cristo que dissera: "Vinde a mim todos vós que sofreis a vos achais carregados, e eu vos aliviarei" (Mat XI, 28).
“O Jesus do tabernáculo, prisioneiro do amor, não era para ele mais do que um juiz encolerizado, sentando-se ameaçador sobre um arco-íris" (Wachters, p.44). “Confesso-te, dizia a um amigo, ainda no mesmo ano de 1516, que a minha vida mais e mais se aproxima do inferno; torno-me sempre pior e mais execrável”. (Enders I, 16).
Pouco tempo antes, (1515), comunicando seu estado d‟alma ao superior, Pe. Staupitz, revelou-lhe dolorosamente: "Sou um homem exposto e implicado na má sociedade, na crápula, nos movimentos carnais, em negligências e noutros incômodos a que se vêm juntar os do meu próprio ofício" (Wette I, 232).
Tais palavras deixam entrever com clareza o que era no íntimo a alma de Lutero. Excessivamente orgulhoso a ninguém queria sujeitar-se. Em certos momentos, porém, por mais humilhante que tal se lhe afigurasse, escapava-lhe a confissão da verdade, quais as abafadas labaredas de um incêndio interior, forcejando evadir-se.
Depois, qualquer ocasião favorável mudar-lhe-ia a obsessão em revolta externa a entregá-lo, acorrentado, ao domínio das paixões mais abjetas que não conseguira vencer, por desprezar os meios adequados, não renunciar às idéias fixas e esquivar-se à obediência. Convertera-se POR MEDO. E ainda o medo fá-lo-á depois cair no lamaçal do vício.
O amor para com Deus e as almas não lograra apossar-se de seu coração. E foi preenchido este vácuo pela rebelião, pelo rancor odiento e pelas baixezas carnais.
Não o impressionou em absoluto a bondade divina. Isolado, porém, na sua miséria, envolto na soberba, quis ditar leis ao próprio Deus e a ele se impor. Então Deus se afastou do miserável que o repelira, deixando-o entregue aos instintos da própria perversidade.
Deus dá a sua graça aos humildes, mas resiste aos soberbos (Pr 3,34).

Maria Santíssima conduz os seus servos ao paraíso.

Qui me invenerit, inveniet vitam, et hauriet salutem a Domino — “Aquele que me achar, achará a vida, e haverá do Senhor a salvação” (Prov. 8, 35).

Sumário. De que seve inquietarmo-nos com as sentenças das escolas sobre a predestinação para a glória? Quem é verdadeiramente servo de Maria está certo de que está escrito no livro da vida e se salvará; porque de todos aqueles que perseveram na sua devoção a esta bem-aventurada Mãe, ninguém se perdeu. Só se condena aquele que não recorre a ela ou deixa de ser seu servo. Procuremos, portanto, entrar sempre mais e permanecer nesta arca da salvação; e cada vez que nos for possível, procuremos, por palavras e exemplos, fazer que outros também ali entrem.

I. Oh! Que belo sinal de predestinação têm os servos de Maria! A santa Igreja aplica a esta bem-aventurada Mãe as palavras da Sabedoria divina e lhe faz dizer: In omnibus requiem quaesivi et in haereditate Domini morabor (1) — “Em toda parte busquei repouso e morarei na herança do Senhor”. A Santíssima Virgem, pelo amor que tem para com os homens, procura fazer que em todos reine a sua devoção. Muitos ou não a recebem, ou não a conservam; porém, bem-aventurado aquele que a recebe e a conserva, porque nesta devoção habita em todos aqueles que são a herança do Senhor, isto é, que irão ao céu louvá-Lo eternamente.

Qui audit me, non confundetur (2) — “Aquele que me ouve, não será confundido”. De todos aqueles que recorreram a esta Rainha de misericórdia, nenhum ficou confundido. A experiência de todos os dias demonstra que aqueles que operam por ela, que a honram, e especialmente aqueles que com palavras e exemplos procuram que outros também a amem, nunca cairão em pecado e viverão eternamente. Numa palavra, diz Maria Santíssima: Aquele que me achar, achará a vida, e haverá do Senhor a salvação. Ao contrário, aquele que de mim se afastar, achará infalivelmente a morte; porque ficará privado daqueles socorros que não se dispensam aos homens senão pelo meu intermédio. — É assim que a santa Igreja, de acordo com todos os Doutores, faz a divina Mãe falar, para conforto dos seus servos. — De que serve, pois, inquietarmo-nos com as sentenças das Escolas, sobre se a predestinação para a glória é anterior ou posterior à previsão dos merecimentos? Se estamos ou não escritos no livro da vida? Se formos verdadeiros servos de Maria, e alcançarmos a sua proteção, seguramente nele havemos de ser inscritos e nos salvaremos.

II. Santa Maria Madalena de Pazzi viu no meio do mar uma pequena nau, em que estavam embarcados todos os devotos de Maria, e ela, fazendo ofício de piloto, seguramente os conduzia ao porto do céu. Procuremos, pois, entrar nesta nau bem aventurada da proteção de Maria, sejamos devotos verdadeiros da Virgem, pois assim estaremos seguros de alcançar o reino do céu.

Não nos contentemos com amar, só por nós, esta Senhora amabilíssima; mas sempre que nos for possível, em público ou em particular, esforcemo-nos para que ela seja também amada dos outros. Fazendo isso, exerceremos um apostolado muito frutuoso, pois que todos aqueles que por nosso intermédio abraçarem a devoção para com Maria Santíssima, serão depois os nossos eternos companheiros no céu.

Ó Rainha do paraíso, que assenta acima de todos os coros angélicos, ocupais o primeiro lugar junto do trono de Deus! Do fundo deste vale de lágrimas, eu, miserável pecador, vos saúdo, e peço vos digneis volver para mim vossos olhos cheios de misericórdia. Vêde, ó Maria, em que perigos me acho e acharei enquanto viver nesta terra, de perder minha alma, o paraíso e meu Deus. Em vós, ó minha Rainha, hei posto todas as minhas esperanças. Amo-vos, e suspiro pelo momento de vos ir ver e louvar no paraíso. Ah, Maria! Quando chegará o dia em que me verei já salvo aos vossos pés? Quando beijarei essas mãos que me dispensaram tantas graças?

É verdade, ó minha Mãe, que muito ingrato vos tenho sido durante a minha vida; mas se chego ao paraíso, lá vos amarei a cada instante durante toda a eternidade, e repararei a minha ingratidão passada por bênçãos e ações de graças sem fim. A Deus agradeço por me dar esta confiança no sangue de Jesus Cristo e na vossa poderosa intercessão. Assim esperam os vossos verdadeiros servos e nenhum foi frustrado na sua esperança. Também eu não o serei. — Ó Maria, suplicai a Jesus, vosso divino Filho, — assim como eu também o faço pelos merecimentos da sua Paixão, — que confirme e aumente sempre mais em mim estas esperanças. Amém. (*I 123.)

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1. Ecclus. 24, 11.
2. Ecclus. 24, 30.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 331- 334.)

Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo - Parte 2 - Meditação 3

MEDITAÇÃO III.

Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret.
Deus amou de tal o modo o mundo, que lhe deu seu Filho unigênito (Jo 3,16).

Considera como o Padre eterno, dando-nos o Filho por Redentor, por vítima e preço do nosso resgate, não podia dar-nos motivos mais fortes de esperança e amor, para inspirar-nos confiança e obrigar-nos a amá-lo. Dando-nos o seu Filho, diz S. Agostinho, não sabe e não tem mais que dar-nos. Quer que nos aproveitemos desse dom de valor infinito, para obtermos a salvação eterna de todas as graças de que precisamos; pois achamos em Jesus Cristo tudo o que podemos desejar: achamos a luz, a força, a paz, a confiança, o amor e a glória eterna, sendo Jesus Cristo um dom que encerra todos os dons que possamos pedir e desejar.
De fato diz-nos o apóstolo: Como não nos dará também com ele todas as coisas? Tendo-nos Deus dado seu Filho dileto, seu unigênito Filho, a fonte e o tesouro de todos os bens, podemos ainda temer uma recusa de sua parte, seja qual for a graça que lhe pedirmos? Pela vontade de Deus, ele foi feito sabedoria para nós, e justiça, e santificação, e redenção. Deus no-lo deu, a nós ignorantes e cegos, para ser nossa sabedoria e nossa luz, e nos dirigir na via da salvação; a nós, dignos do inferno, para ser nossa justiça, e nos permitir aspirar ao paraíso; a nós, pecadores, para ser nossa santificação, e nos conduzir à santidade; a nós, enfim, escravos do demônio, para ser nossa redenção, e nos restituir a liberdade dos filhos de Deus. Numa palavra, em Jesus Cristo fomos enriquecidos de todos os bens e de todas as graças; basta que as peçamos por seus méritos. Em todas as coisas fostes enriquecidos nele... de maneira que nada falta em graça alguma a vós.
E esse dom que Deus nos fez de seu Filho, é um dom feito a cada um de nós, pois que ele o deu todo inteiro a cada um, como se tivesse dado a ele só; de sorte que cada um de nós pode dizer: Jesus Cristo é todo meu; o seu corpo e o seu sangue são meus; a sua vida, as suas dores, a sua morte, todos os seus méritos são meus. Eis por que S. Paulo dizia: Ele me amou e entregou-se por mim; e cada um de nós pode dizer o mesmo: O meu Redentor me amou e levou esse seu amor até se dar todo a mim.
Afetos e Súplicas.
Ó Deus eterno, quem nos poderia jamais ter feito esse dom de valor infinito, senão vós que sois um Deus de amor in-finito? E que mais podereis fazer, ó meu Criador, para inspirar-nos confiança em vossa misericórdia, e obrigar-nos a amar-vos? Senhor, tenho-vos pago com ingratidão; mas dissestes, pelo Apóstolo, “que tudo contribui em benefício dos que vos amam”. Sejam pois quais forem o número e a enormidade de meus pecados, não quero que destruam a minha confiança em vossa bondade, mas quero que me sirvam para mais me humilhar quando receber alguma afronta ; ah! bem merece outras afrontas e outros desprezos quem teve o atrevimento de ofender-vos, Majestade infinita! Quero que me sirvam para suportar com mais paciência as cruzes que me enviardes, para vos ser-vir e honrar com mais zelo, a fim de reparar as injúrias que vos tenho feito. Sim, meu Deus, quero lembrar-me sempre dos desgostos que vos dei, a fim de louvar tanto mais a vossa misericórdia, e de me abrasar sempre mais de amor por vós, que me procurastes quando vos fugia, e me tendes feito tanto bem depois de haver recebido de mim tantos ultrajes. Senhor, espero que já me tenhais perdoado; arrependo-me e quero arrepender-me sempre de minhas ofensas. Quero ser-vos grato, com-pensando com meu amor a ingratidão que tenho tido para convosco; mas vós haveis de ajudar-me; a vós peço a graça de executar essa resolução. Fazei-vos amar, ó meu Deus, para a vossa glória, fazei-vos amar muito por um pecador que muito vos ofendeu. Meu Deus, meu Deus, como poderia eu cessar ainda de amar-vos, e renunciar novamente ao vosso amor?
Ó Maria, minha Rainha, socorrei-me; conheceis minha fraqueza: fazei que a vós me recomende sempre que o demônio pretender separar-me de Deus. Minha mãe, minha esperança, socorrei-me.

Pensamentos escolhidos do Cura d'Ars.

XXXI - Avisos e máximas sobre diversos assuntos.

13/20 - A comunhão espiritual.
             Depois da recepção dos sacramentos, quando sentirmos o amor de Deus esmorecer, depressa façamos a comunhão espiritual!... Quando não pudermos ir á igreja, volvamo-nos para o lado do tabernáculo. O bom Deus não tem parede que o impeça. Não podemos receber o bom Deus mais que uma vez ao dia; uma alma abrasada de amor indeniza-se disto pelo desejo de recebê-lo incessantemente.

29 de novembro de 2013

A Paixão de Jesus Cristo, nossa consolação.

Recogitate eum qui talem sustinuit a peccatoribus adversum semetipsum contradictionem, ut ne fatigemini, animis vestris deficientes — “Não deixeis de pensar naquele que dos pecadores suportou contra si uma tal contradição; para que não vos fatigueis, desfalecendo em vossos ânimos” (Hebr. 12, 3).

Sumário. O Senhor chama com razão a si todos aqueles que sofrem e gemem sob o peso das tribulações; porque neste vale de lágrimas ninguém nos pode consolar tanto como Jesus crucificado. Em todas as perseguições, calúnias, desprezos, enfermidades, misérias, especialmente em vendo-nos opressos pelos sofrimentos e abandonados por todos, lancemos um olhar sobre a cruz de Jesus, lembremo-nos do muito que Ele sofreu por nós, unamos os nossos sofrimentos aos de Jesus e teremos achado o remédio mais eficaz para todos os nossos males.

I. Neste vale de lágrimas, quem nos pode consolar melhor do que Jesus crucificado? Nos remorsos de consciência, suscitados pela lembrança de nossos pecados que poderá melhor suavizar as nossas angústias, do que a certeza de que Jesus Cristo se quis entregar à morte a fim de satisfazer pelas nossas culpas? Dedit semetipsum pro peccatis nostris (1) — “(Jesus) se deu a si mesmo pelos nossos pecados”. Em todas as perseguições, calúnias, desprezos, privações de bens e dignidades que nos sobrevêm na nossa vida, quem nos poderá melhor fortalecer, para sofrermos com paciência e resignação, do que Jesus Cristo desprezado, caluniado e pobre, que morre numa cruz nu e abandonado por todos?

Quando estamos doentes, deitamo-nos numa cama bem arranjada; quando, porém, Jesus estava enfermo na cruz na qual morreu, não teve outro leito senão um rude lenho, em que foi pregado com três cravos; nem teve outro travesseiro senão a coroa de espinhos, que continuou a atormentá-lo até ao último suspiro. Quando estamos doentes, vemos o leito rodeado de parentes e amigos, que se compadecem de nós, e nos procuram distrair; Jesus morreu cercado de inimigos, que ainda na hora da sua agonia e da morte já próxima o injuriavam e escarneciam como a um malfeitor e sedutor.

Nada consola tanto um enfermo nas dores que sofre, especialmente quando na sua enfermidade se vê abandonado por todos os mais, como a vista de Jesus crucificado. Ah! O alívio maior que então pode experimentar um pobre enfermo, é unir os próprios sofrimentos aos de Jesus Cristo. — Ainda nas angústias mais acerbas da morte, tais como os assaltos do inferno, a vista dos pecados cometidos e as contas que em breve se terá que dar ao Juiz divino, a única consolação que pode haver um moribundo, já nas vascas da morte, é abraçar o Crucifixo e dizer: Meu Jesus e meu Redentor, Vós sois o meu amor e a minha esperança.

II. Toda a verdadeira consolação que podemos desejar, todas as graças que Deus nos concede, todas as luzes, inspirações, santos desejos, bons afetos, dor dos pecados, bons propósitos, amor de Deus, esperança do céu: todos estes bens são frutos e dons que nos vêem da Paixão de Jesus Cristo. Pelo que São Boaventura nos anima dizendo que “aquele que se aplica a meditar com devoção na vida e paixão santíssima do Senhor, acha ali tudo de que precisa; e nada terá que buscar fora de Jesus”. E Santo Agostinho acrescenta que para obtermos graças celestes especiais vale mais uma só lágrima derramada em memória da Paixão do Senhor, do que uma peregrinação a Jerusalém e um ano de jejum a pão e água.

Mas quem mais ânimo nos inspira, é nosso divino Redentor: Venite ad me omnes, qui laboratis et onerati estis; et ego reficiam vos (2) — “Vinde a mim todos os que vos achais em sofrimentos e sobrecarregados; e eu vos aliviarei”. Meus queridos filhos, diz Jesus, vós que gemeis sob o peso das culpas próprias e sois combatidos pela concupiscência e corrupção do homem velho, ah! Não percais o ânimo. Chegai-vos à minha cruz, recorrei a mim e eu vos livrarei de todo o mal; persuadi-vos de que em nenhuma parte achareis remédio tão eficaz, como na meditação de minhas chagas.

Ó meu Jesus, que esperança me poderia restar, a mim, que tantas vezes Vos voltei as costas e mereci o inferno? Que esperança poderia ainda nutrir, de um dia, entre tantas virgens inocentes, entre tantos santos mártires, entre os apóstolos e serafins, ir gozar no céu de vossa bela face, se Vós, meu Salvador, não tivésseis morrido por mim? É a vossa Paixão que, apesar dos meus pecados, me faz esperar de um dia ir na companhia dos Santos e de vossa santíssima Mãe, cantar as vossas misericórdias, agradecer-Vos e amar-Vos para sempre no paraíso. Meu Jesus, assim espero. Misericordias Domini in aeternum cantabo (3) — “Eu cantarei eternamente as misericórdias do Senhor”. — Ó Maria, Mãe de Deus, rogai a Jesus por mim. (*I 722.)

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1. Gal. 1, 4.
2. Matth. 11, 28.
3. Ps. 88, 2.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 329- 331.)

Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo - Parte 2 - Meditação 2

MEDITAÇÃO II.

Et Verbum caro factum est.
E o Verbo se fez carne (Jo 1,14).

O Senhor mandou S. Agostinho escrever no coração de S. Maria Madalena de Pazzi estas palavras: O Verbo se fez carne. Ah! peçamos também ao Senhor ilumine o nosso espírito e nos faça compreender por que excesso e prodígio de amor o Verbo eterno, o Filho de Deus, se fez homem por amor de nós!
A Santa Igreja fica como que atônita ao contemplar esse grande mistério: Considerai as vossas obras, exclama ela com o profeta, e fiquei estupefata. Se Deus houvesse criado mil outros mundos, mil vezes maiores e mais belos que este, essa obra seria certamente infinitamente menor do que a Encarna-ção do Verbo. Ele manifestou o poder de seu braço. Na obra da Encarnação foi necessária a onipotência e a sabedoria infinita dum Deus, para fazer que a natureza humana se unisse a uma pessoa divina, e que uma pessoa divina se humilhasse até to-mar a natureza humana. Assim, Deus fez-se homem, e o ho-mem tornou-se Deus; e estando a divindade do Verbo unida à alma e ao corpo de Jesus Cristo, todas as ações desse Ho-mem-Deus foram divinas; divinas foram suas preces, divinos os seus sofrimentos, divinos seus vagidos, divinas as suas lágri-mas, divinos os seus passos, divinos os seus membros, divino o seu sangue, esse sangue do qual queria fazer um banho de salvação para nos purificar de todos os nossos pecados, e um sacrifício de valor infinito para aplacar a justiça do Pai irritado com os homens.
E que são esses homens? Criaturas miseráveis, ingratas, rebeldes. E para salvar esses indignos, um Deus se faz homem, sujeita-se às misérias humanas! Ele sofre, morre! Humilhou-se, fazendo-se obediente até à morte, até a morte da cruz. Ó santa fé! Se a fé não no-lo garantisse, quem poderia jamais acreditar que um Deus de infinita majestade se humilhou ao ponto de tornar-se um verme da terra como nós, para nos sal-var a custo de tantas penas e ignomínias, a custo duma morte tão cruel e vergonhosa?
Ó graça! ó poder do amor! exclama S. Bernardo. Ó graça que homem algum jamais poderia imaginar, se Deus mesmo não pensasse em no-la fazer! Ó amor divino, que ninguém ja-mais poderia compreender! Ó misericórdia! ó caridade infinita, que só podem nascer duma bondade infinita!
Afetos e Súplicas.
Ó alma, corpo e sangue de meu Jesus, eu vos adoro e a-gradeço; vós sois a minha esperança, vós sois o preço pago para resgatar-me do inferno que tantas vezes mereci. — Ah! e que vida infeliz e desesperada me esperaria na eternidade, se não tivésseis pensando em salvar-me com vossos sofrimentos e a vossa morte! Como pois almas remidas por vós com tanto amor, sabendo isso, podem viver sem amar-vos, e desprezar essa graça que lhes alcançastes a custo de tantas penas? E eu não sabia tudo isso? e pude ofender-vos, e ofender-vos tantas vezes? Mas, repito, o vosso sangue é a minha esperança. Re-conheço, meu Salvador, a grandeza do mal que vos fiz. Oh! oxalá tivesse morrido antes mil vezes! Oxalá vos tivesse sem-pre amado! Agradeço o tempo que me dais ainda para o fazer . Espero empregar o resto da minha vida e toda a eternidade em louvar sem cessar as vossas misericórdias a meu respeito. A-pós os meus pecados, eu merecia mais trevas, e me destes mais luzes; merecia ser abandonado por vós, e correstes atrás de mim chamando-me com voz mais terna; merecia que meu coração ficasse mais endurecido, e vós o enternecestes e tocastes de compunção. Sim, por vossa graça sinto uma grande dor das ofensas que vos fiz, sinto em mim um vivo desejo de vos amar, e estou firmemente resolvido a antes perder tudo do que a vossa amizade, sinto por vós um amor que me faz detestar tudo o que vos desgosta; e essa dor, esse desejo, essa re-solução, esse amor, quem mos dá? sois vós que mos dais por vossa misericórdia; é isso por um sinal, ó Jesus, de que me tendes perdoado, um sinal de que me amais e quereis a todo o custo a minha salvação. Quereis que me salve, e eu quero sal-var-me, quero-o sobretudo para vos agradar. Vós me amais e eu também vos amo. Mas amo-vos pouco, dai-me mais amor: estou obrigado a amar-vos mais do que os outros, porque tenho recebido de vós graças mais especiais; aumentai pois em mim as chamas do vosso santo amor.
SS. Virgem Maria, fazei por vossa intercessão que o amor de Jesus consuma e destrua em mim todos os afetos estranhos a Deus. Atendeis a todos, atendei também a mim: obtende-me o amor e a perseverança.

Pensamentos escolhidos do Cura d'Ars.

XXXI - Avisos e máximas sobre diversos assuntos.

12/20 - Como se deve fazer esmola.
             Muitos há que só fazem esmola para serem vistos, louvados e admirados... Outros há que acham que se lhes não agradecem bastante. Se é para o mundo que fazeis esmola, tendes razão de vos queixardes. Mas, se é para o bom Deus, quer vos agradeçam, quer não, que importa! Devemos fazer o bem que pudermos a toda a gente, mas só esperarmos a nossa recompensa de Deus, unicamente...  Quando fizermos esmola, devemos pensar que é a Nosso Senhor e não aos pobres que damos.
  
           

28 de novembro de 2013

Sermão para o último domingo depois de Pentecostes – Padre Daniel Pinheiro IBP.

[Sermão] Considerações sobre o juízo universal e a utilidade dele



Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…

Agradeço a todos pelas orações em prol do apostolado, orações cujos frutos vocês podem constatar. Está à disposição um folheto para nos ajudar a construir coisas maiores para nosso apostolado. As imagens no folheto não são meramente ilustrativas. Com a autorização de Dom José Aparecido, Bispo Auxiliar de Brasília, e responsável pela liturgia tradicional na Arquidiocese, me dirijo aos senhores, para que o apostolado possa avançar na boa direção, no bom sentido.
No domingo daqui a duas semanas será a Festa da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, dia 8 de Dezembro. Gostaria, então, de fazer uma confraternização após a Missa. Aqueles que puderem ajudar, trazendo alimento ou bebida, por favor, entrem em contato comigo, para nos organizarmos. É bom marcar as festas importantes com comemorações também desse tipo. Elas nos ajudam a reconhecer a importância da data.
“E então aparecerá o sinal do Filho do Homem no céu e todos os povos da terra chorarão e verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens do céu com grande poder e majestade.”
Caros católicos, estamos hoje no último domingo do ano litúrgico, estamos no último domingo depois de Pentecostes. O ano litúrgico nos apresenta toda a história da salvação. Não poderia, portanto, se concluir de outro modo, a não ser pelo relato do fim dos tempos, do juízo final, quando NS virá com glória julgar os vivos e os mortos como cantamos no Credo.   NS no Evangelho de hoje nos fala de duas coisas. Ele nos fala primeiramente da destruição de Jerusalém e, em seguida, do fim do mundo. Pouco antes no Evangelho, ao constatar mais uma vez a recusa de Jerusalém em se converter, NS havia anunciado a sua destruição, com a destruição do Templo também. Os discípulos, diante dessa profecia de Cristo e diante da maravilha que era o Templo de Jerusalém, tentam comover NS, para que ao menos o Templo seja poupado. Ao que NS responde: não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada.
NS fala da destruição de Jerusalém primeiramente para que reconheçamos o castigo devido quando nos negamos a receber o Salvador pela conversão de nossas almas. Jerusalém ficou desolada e destruída porque não recebeu Deus feito homem. NS fala da destruição de Jerusalém para que reconheçamos sua Missão divina depois de realizada a profecia da destruição da cidade santa. NS fala da destruição de Jerusalém para que saibamos que mesmo as coisas mais sublimes desse mundo passam: “céus e terras passarão, mas as minhas palavras não passarão”, nos diz NS. A única coisa que não passa e que tem consequência eterna é a amizade com Deus, pela fidelidade aos seus ensinamentos ou a inimizade com Ele, pela infidelidade à sua palavra. NS fala da destruição de Jerusalém para que aceitemos mais facilmente aquilo que Ele fala sobre o fim do mundo. Já sabemos que Jerusalém e o Templo foram completamente destruídos no ano 70, tendo acontecido tudo exatamente como NS disse. Portanto, acontecerá também exatamente como NS disse quanto ao final dos tempos.
Como acabamos de dizer, NS virá julgar os vivos e os mortos. Trata-se do juízo universal ou juízo final, que será realizado após a ressurreição. O juízo universal não é uma revisão, mas uma confirmação pública do juízo particular, feito no instante de nossa morte. A primeira pergunta que pode surgir com relação ao juízo universal diz respeito à sua utilidade justamente. Se ele não vai mudar nada, por que fazê-lo?  A primeira razão é a natureza social do homem. O homem pode ser considerado como indivíduo ou como membro de uma sociedade e a esses dois aspectos correspondem os dois juízos. As nossas ações têm sempre, em maior ou menor escala, uma repercussão na sociedade, pois uma ação prejudica ou aperfeiçoa ao menos a própria pessoa e ao afetar para o bem ou para o mal um membro da sociedade, toda a sociedade é afetada. No juízo universal, que diz respeito ao aspecto social do homem, terá importância particular o juízo daqueles que por seu ofício tiveram maior responsabilidade sobre os outros: o papa, os bispos, os padres, os governantes, os pais, os professores, por exemplo. O juízo universal é útil pela natureza social do homem.
Ele é útil também porque manifestará perfeitamente a sabedoria infinita de Deus e sua admirável providência. Pelo juízo universal, os segredos mais íntimos dos corações, a conduta dos povos e das nações, os mistérios mais profundos serão revelados por Deus diante do mundo inteiro. No dia do juízo compreenderemos o porquê de Deus ter permitido os males, compreenderemos perfeitamente porque Deus muitas vezes permite a perseguição dos justos e o triunfo dos maus. Compreenderemos os bens enormes que Deus tirou desses males permitidos. No dia do juízo universal, a justiça divina será também plenamente e publicamente manifestada, com o prêmio pleno da virtude perseguida e o castigo completo do pecado triunfante.
O juízo universal ocorrerá também para que fique claro diante de todos os homens reunidos que NSJC é o Filho de Deus, que Ele é o redentor dos homens e que Ele é o rei do céu e da terra. É Ele quem vai nos jugar. E esse juízo Ele o faz porque é Deus, mas também enquanto homem, porque nos redimiu, sendo, assim, verdadeiramente nosso Rei e exercendo sobre nós o poder judiciário. Jesus virá nos julgar com sua humanidade gloriosa, pois é preciso que o juiz se sobressaia aos julgados, manifestando a sua autoridade. Os justos já estarão com seu corpo glorioso, mas com glória infinitamente inferior à de Cristo.
O juízo universal servirá igualmente para a exaltação do inocente, para a confusão do pecador. Quantas vezes o inocente e justo aparece diante dos homens como pecador e culpado. Quantas vezes ele é caluniado, quantas vezes há virtudes heroicas que são desconhecidas dos outros homens. No juízo particular, o justo será recompensado, mas é preciso esse juízo público e universal para que a justiça seja plena. Por outro lado, quantos pecadores parecem aos olhos dos outros virtuosos e justos, mas cometem pecados ocultos, como se pudessem se esconder de Deus, achando, talvez, que Deus que criou os olhos e os ouvidos não pode ver e ouvir (Salmo 93,9). No dia do juízo universal, serão confundidos e todos compreenderão porque não se salvaram.
No juízo universal, comparecerão todos os homens diante do tribunal do justo juiz e cada um dos julgados verá em sua consciência todas as obras que realizou durante a sua vida terrena, sejam elas boas ou más, mesmo as esquecidas. E cada um verá claramente a consciência de todos os outros com todas as sua obras boas ou más. “Nada há de escondido que não venha a ser revelado”, nos diz NSJC. Serão conhecidas, portanto, integralmente as obras boas e más, tanto dos justos como dos pecadores. Essa é a opinião de São Tomás e da maioria dos teólogos. Isso ocorrerá porque em um julgamento justo deve aparecer o bem e o mal operado por cada um e se fosse omitido o pecado dos justos, seria omitido também o bem do arrependimento, da penitência que fizeram pelo pecado cometido e, com a omissão desse arrependimento e penitência, os justos teriam uma menor glória no céu. Com a omissão dos pecados dos justos, seria também menos perfeitamente manifestada a misericórdia divina. Portanto, todas as obras boas e más de todos os homens serão conhecidas por todos. É mais um motivo para evitarmos um pecado, um motivo menor diante da bondade divina que ofendemos pelo pecado, mas um motivo válido para evitarmos o pecado. Essa revelação dos pecados não causará aos justos vergonha, da mesma forma que Maria Madalena não se envergonha que sejam publicados seus pecados quanso se lê o Evangelho, por exemplo. A vergonha é o temor de perder a consideração e estima dos outros. Isso não pode ocorrer para os justos, eles já não podem perder o céu, a honra. Essa publicação aumentará a glória deles e a estima diante dos outros, pelo arrependimento, pela conversão, pela penitência que fizeram. Da mesma forma, o confessor se alegra quando alguém confessa pecados graves com profundo arrependimento e humildade.
Todo o processo do juízo final deverá ocorrer de modo puramente intelectual, mental, e de maneira que a visão mútua dos méritos e deméritos de cada um se realizará em um tempo brevíssimo, por virtude divina. Um juízo oral de todos os homens de Adão até o último levaria um tempo fabuloso, como diz Santo Agostinho (De Civitate Dei, XX, 14). A execução da sentença será instantânea.
No dia do juízo estará presente o sinal do Filho do Homem, que é a cruz. E diz São João Crisóstomo que ela aparecerá mais radiante que o sol, ao ponto de obscurecê-lo. A cruz será grande consolo para os justos e grande confusão para os ímpios. Principalmente serão confundidos os judeus e os pagãos, que, nas palavras de São Paulo, consideram a cruz um escândalo e uma loucura. A simples presença da cruz mostrará a justiça da condenação dos maus, por terem rechaçado tanta e tamanha misericórdia.
Segundo muitos Santos Padres e teólogos, o juízo universal ocorrerá no vale de Josafá, que quer dizer Deus julga. Quanto ao tempo, não sabemos absolutamente nada. Apesar de todos os sinais que Nosso Senhor dá, Ele diz: “vigiai, pois, porque não sabeis a que hora virá o Senhor… Por isso, estai vós preparados, porque não sabeis a que horas virá o Filho do homem.”
Eis, então, prezados católicos, algumas considerações sobre o juízo universal, nesse fim de ano litúrgico, e que devem nos levar a nos preparar para a nossa morte, para que tenhamos uma boa morte. Devemos nos preparar para o juízo universal vivendo bem nesse mundo, tendo uma fé viva, praticando os mandamentos, carregando as nossas cruzes, evitando os pecados, buscando a confissão. Vale mais se envergonhar um pouco agora diante do sacerdote que é obrigado ao segredo do que se envergonhar diante de todos os homens no dia do juízo. Vale mais ser desprezado agora pelo mundo por praticar a religião verdadeira do que se envergonhar no dia do juízo. Se queremos alcançar o céu e amar verdadeiramente a Deus, infinitamente bom e amável, é preciso que voltemos a meditar sobre os novíssimos, sobre a morte, sobre o juízo particular e o universal, sobre o paraíso e o inferno. Os céus e a terra passarão, mas as palavras de NSJC não passarão.

O justo morre numa paz dulcíssima.

Visi sunt oculis insipientium mori... illi autem sunt in pace — “Aos olhos dos insensatos parece que morreram... eles, porém, estão em paz” (Sap. 3, 2 et 3).

Sumário. Parece aos olhos dos insensatos que os sevos de Deus morrem na aflição; mas enganam-se, porque o Senhor sabe como consolar os seus filhos no derradeiro momento. Assim como os que morrem em pecado, sentem antecipadamente no leito da morte certos tormentos do inferno, os remorsos e o desespero, assim os santos, pelos atos do amor de Deus, pelo desejo e esperança de brevemente O possuírem, já antes de morrer têm um antegozo daquela paz de que plenamente gozarão no céu. Felizes de nós, se por uma vida boa soubermos merecer uma morte tão suave!

I. Parece aos olhos dos insensatos que os servos de Deus morrem na aflição e contra a vontade, assim como morrem os mundanos. Mas não; Deus bem sabe consolar os seus filhos nos derradeiros momentos, e nas próprias dores da morte lhes faz sentir grandes doçuras, como um antegozo do paraíso que brevemente lhes quer dar. Assim como os que morrem em pecado, começam a sentir, ainda no leito, certos tormentos do inferno, os remorsos, os temores, o desespero; assim, ao contrário, os santos, pelos atos de amor de Deus, que então repetem com mais freqüência, pelo desejo e esperança que têm de em breve O possuir, começam já antes da morte a prelibar aquela paz de que plenamente gozarão no céu. Para os santos a morte não é castigo, mas sim recompensa: Cum dederit dilectis suis somnum, ecce haereditas Domini (1) — “Quando der sono aos seus amados, eis aqui a herança do Senhor”. A morte do que ama a Deus, não é chamada morte, mas sono; de modo que bem poderá dizer: In pace in idipsum dormiam et requiescam (2) — “Dormirei e repousarei na paz do Senhor”.

O Padre Soares morreu em tamanha paz, que disse ao expirar: Nunquam putabam tam dulce esse mori — “Nunca pude pensar que fosse tão doce a morte.” O cardeal Baronio, a quem o médico recomendava que não pensasse tanto na morte, respondeu: “Porque não? Talvez por ter eu medo da morte? Não a receio, amo-a.” O cardeal Fisher, bispo de Rochester, quando ia morrer pela fé, vestiu os melhores vestidos que possuía, dizendo que ia para umas bodas. Quando avistou o instrumento do suplício, atirou para o lado o cajado e exclamou: Ite, pedes, parum a paradiso distamos — “Eia, meus pés, caminhai depressa, que não estamos longe do paraíso.” Antes de morrer entoou o Te-Deum em ação de graças a Deus, que lhe concedeu a ventura de morrer mártir pela santa fé e cheio de alegria ofereceu a cabeça ao machado do algoz.

São Francisco de Assis cantava ao morrer, e convidou os outros a cantarem com ele. “Meu pai”, disse-lhe frei Elias, “na morte se deve chorar e não cantar.” — “Pois eu”, respondeu o Santo, “não posso senão cantar, porque vejo que em breve vou gozar a Deus.” Uma religiosa Teresiana, morrendo ainda muito nova, disse às outras irmãs que estavam chorando em derredor dela: “Porque chorais? Vou encontrar-me com o meu Jesus; se me tendes amor, regozijai-vos comigo.”

II. Conta o Padre Granada que um caçador encontrou um dia um solitário todo coberto de lepra, o qual estava morrendo, mas cantando. Disse-lhe o caçador: “Como é que podes cantar nesse estado?” Ao que o solitário respondeu: “Meu irmão, entre mim e Deus há apenas o muro do meu corpo: vejo-o cair em ruínas, vai-se demolindo a minha prisão e vou gozar da vista de Deus. Isto me consola e me faz cantar.”

Semelhante desejo de ver a Deus levou Santo Inácio, mártir, a dizer que, se as feras não viessem tirar-lhe a vida, ele mesmo as provocaria para o devorarem. Santa Catarina de Gênova não podia consentir que se considerasse a morte como desgraça, e dizia: “Ó morte querida, quanto és mal apreciada! Porque não vens ter comigo, que te chamo dia e noite?” Santa Teresa desejava também tanto a morte, que para ela era morrer o não morrer, e neste sentimento compôs a sua célebre poesia: Morro, porque não morro.

Tal é a morte para os santos.

Ah meu soberano Bem, meu Deus, se no passado não Vos amei, agora me converto inteiramente a Vós. Renuncio a todas as criaturas e determino-me a amar unicamente a Vós, meu amabilíssimo Senhor. Dizei o que desejais de mim, que tudo quero fazer. Bastante Vos ofendi, quero empregar todo o resto da minha vida em Vos agradar. Fortalecei-me, a fim de que o meu amor compense a ingratidão de que até agora usei para convosco. Há muitos anos que merecia arder nos fogos do inferno, mas Vós tanto tendes corrido atrás de mim, que afinal me atraístes a Vós. Fazei que agora arda no fogo do vosso amor.

Amo-Vos, bondade infinita! Quereis ser o único objeto do meu amor, e com justiça, porque mais do que os outros me tendes amado e só Vós mereceis ser amado. Só a Vós quero amar, e quero fazer o que puder para Vos agradar. Fazei de mim o que quiserdes. Basta que Vos ame e que me ameis. — Maria, minha Mãe, assisti-me, rogai a Jesus por mim. (II 43.)

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1. Ps. 126, 2 et 3.
2. Ps. 4, 9.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 438-440.)

Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo - Parte 2 - Meditação 1

II PARTE

Meditações para o tempo do Advento e Natal.

MEDITAÇÕES PARA OS DIAS DO ADVENTO ATÉ A NOVENA DO NATAL

MEDITAÇÃO I.

Et incarnatus est de Spiritu Sancto... Et homo factus est.
Ele se encarnou pela virtude do Espírito Santo, e se fez homem (Simb.)

Considera que Deus criou o primeiro homem para ser por ele servido e amado sobre a terra e para esse fim o enriqueceu de luzes e graças. Mas o homem ingrato revoltou-se contra Deus, recusou-lhe a obediência que lhe devia por justiça e re-conhecimento; e em castigo da sua rebelião, esse infeliz se viu com toda a sua posteridade privado da graça de Deus e excluí-do para sempre do paraíso. Em conseqüência desse pecado perderam-se todos os homens. Envoltos nas mais espessas trevas, viviam todos na sombra da morte. O demônio os dominava, e o inferno devorava continuamente multidão inumerável da vítimas.
À vista do estado miserável a que estavam reduzidos, Deus se compadeceu e resolveu salvá-los. Mas como? Não enviará um anjo, um serafim; mas para manifestar ao mundo o amor imenso que tem a esses ingratos vermes, enviará seu próprio Filho para se fazer homem e revestir-se da carne dos pecadores. Com seus sofrimentos em com sua morte, o Verbo encarnado satisfará à divina justiça pelos pecados dos homens e libertá-los-á assim da morte eterna; e reconciliando-os com seu Pai, lhes obterá a graça divina e os tornará dignos de en-trar no reino celeste.
Considera aqui, dum lado, os males extremos em que o pecado precipita a alma privando-a da amizade de Deus e do paraíso, e condenando-a a uma eternidade de penas. Doutro lado considera o amor infinito que Deus nos mostrou na grande obra da encarnação do Verbo: o unigênito Filho de Deus virá pois sacrificar sua vida pela mão dos carrascos; morrerá numa cruz, num abismo de dores e ignomínias, para nos obter o per-dão dos nossos pecados e a salvação eterna. Ao contemplar esse grande mistério e esse excesso de amor de Deus, cada um deveria exclamar: Ó bondade infinita! ó misericórdia infinita! ó amor infinito! um Deus fez-se homem para morrer por mim!
Afetos e Súplicas.
Mas como é possível, ó meu Jesus, que eu tenha tantas vezes renovado voluntariamente com os ultrajes que cometi contra vós, essa horrível ruína causada pelo pecado e reparada com a vossa morte? Custou-vos tanto o salvar-me; e eu tantas vezes quis perder-me, perdendo a vós, o Bem infinito! Uma coisa reanima a minha confiança: vós dissestes que, quando o pecador, que vos voltou as costas, se converte, não deixais de abraçá-lo: Convertei-vos a mim... e eu me voltarei a vós. Dissestes ainda: Se alguém me abrir a porta, entrarei nele. Eis-me, Senhor, sou um desses rebeldes, um ingrato e traidor, que vos voltou muitas vezes as costas e vos expulsou de sua alma; mas hoje arrependo-me do fundo do coração de vos haver as-sim ultrajado e desprezado a vossa graça. Arrependo-me, e amo-vos sobre todas as coisas. Está aberta a porta do meu coração; entrai, pois, ó Jesus, mas entrai para não mais sair. Sei que vós não vos afastareis jamais, se eu vos não tonar a expulsar; mas é isso que temo; e é essa a graça que vos peço e espero pedir-vos sempre, de antes morrer do que tornar-me culpado dessa nova e extrema ingratidão. Meu caro Redentor, as ofensas que vos fiz, tornaram-me indigno de vos amar; mas peço-vos pelos vossos méritos me concedais o dom do vosso santo amor. Para isso fazei-me conhecer o grande bem que sois, o amor que me tendes, e tudo quanto fizestes para me obrigar a amar-vos. Ah! meu Deus e meu Salvador, não me deixeis viver mais na ingratidão para com tão grande bondade. Não quero mais abandonar-vos, meu Jesus. Muito vos tenho ofendido; é justo que empregue o resto da minha vida em a-mar-vos e agradar-vos. Meu Jesus! meu Jesus! ajudai-me; aju-dai um pecador que deseja amar-vos.
Ó Maria, minha Mãe, podeis tudo junto de Jesus, porque sois sua Mãe; dizei-lhe que me perdoe; dizei-lhe que me prenda com seu santo amor. Vós sois a minha esperança, em vós confio.

Pensamentos escolhidos de Cura d'Ars.

XXXI - Avisos e máximas sobre diversos assuntos.

11/20 - Ocupar-se de si e  não dos outros.

Que dirias de um homem que trabalhasse o campo do vizinho e deixasse o seu sem cultura? Pois bem, eis o que fazeis. Revolveis continuamente a consciência dos outros, e deixais a vossa sem cultivo. Oh! quando a morte chegar, que pesar teremos de havermos pensado tanto nos outros e tão pouco em nós. Porquanto, é de nós e não dos outros que teremos que dar conta... Pensemos em nós , na nossa consciência, que devemos sempre olhar, como olhamos as mãos para saber se estão limpas.

Da assistência à Santa Missa.

Immolabit (agnum) universa multitudo filiorum Israel — “Toda a multidão dos filhos de Israel imolará (um cordeiro)” (Ex. 12, 6).

Sumário. Para ouvir a missa com devoção, devemos ter bem presente que o sacrifício do altar é o mesmo que foi um dia oferecido no Calvário, posto que se ofereça sem derramamento de sangue. Avivemos, pois, a nossa fé, e, quando assistirmos aos augustos mistérios, afiguremo-nos que em companhia de Maria Santíssima e de São João estamos ao pé da árvore da Cruz, para oferecer ao Pai Eterno a vida de seu Filho adorável. E, quando tivermos a ventura de comungar, façamos que bebemos o Sangue preciosíssimo do Coração amável de Jesus Cristo.

I. Para ouvir a missa com devoção, devemos ter bem presente que o sacrifício do altar é o mesmo que foi oferecido um dia no Calvário; com esta diferença: que ali o sangue de Jesus se derramou realmente, e aqui só se derrama misticamente. Se então tivesses estado no Calvário, com que devoção e ternura terias assistido a tão sublime sacrifício! Aviva, pois, a tua fé e pensa que a mesma oferenda de então se renova sobre o altar pela mão do sacerdote. Por isso, cada vez que assistires à missa, afigura-te que em companhia de Maria Santíssima e de São João te achas ao pé da árvore da Cruz, para ofereceres a Deus Pai a vida de seu adorável Filho. Se tiveres ainda a ventura de comungar, faze que da chaga do sagrado Coração de Jesus estás bebendo o seu preciosíssimo Sangue.

Além disso deves lembrar-te que o assistir à missa é de algum modo oferecê-la; porque o sacerdote, sendo ministro público, obra, fala e ora em nome de todos os fiéis e em particular daqueles que assistem. De modo que, ouvindo devotamente a missa, também tu, posto que não sejas sacerdote, ofereces de algum modo a Deus um sacrifício de valor infinito, e pagas-Lhe, segundo a justiça, as quatro grandes dividas que Lhe deves: a de honrá-Lo tanto como merece a sua grandeza; a de satisfazer-Lhe, conforme exige a sua justiça; a de agradecer-Lhe à proporção da sua liberalidade; e finalmente a de pedir-Lhe tudo o que exige a nossa miséria.

É, pois, com razão que um autor célebre dizia: “Antes quisera eu perder o mundo inteiro, do que uma só missa, porque sei que o que na terra podemos fazer de mais sublime para a glória de Deus é exatamente a missa, na qual o próprio Jesus Cristo se oferece para dar a seu Pai uma glória infinita. — Que consolo sinto depois de assistir à missa! Então, posto que não seja sacerdote, eu também ofereci à Deus um sacrifício de valor infinito. Ó meu amado Jesus, que tesouro inestimável possuímos em Vós, se soubéssemos apreciá-lo.” (1)

II. Ainda que a missa tenha um valor infinito, Deus o aceita de um modo finito, segundo a disposição daquele que a ouve. Por isso, procura ouvir quantas missas puderes. — Visto que a Igreja católica tem seus ministros em todas as regiões que o sol ilumina sucessivamente, e assim, por consequência, não há hora do dia ou da noite em que não se celebre em alguma parte do mundo o divino sacrifício, forma de manhã a intenção de assistir a todos estos milhares de missas, e com este pensamento consolador santifica todas as ocupações do dia e todos os momentos de insônia durante a noite.

Convence-te de que o dia começado devotamente ao pé do altar será um dia acompanhado da benção de Jesus Cristo; será, portanto, um dia cristão e cheio de merecimentos para a vida e para a eternidade. Oh! Quão abundante provisão de paciência, de força, de resignação para durante o dia tiram as almas desta fonte inesgotável do divino sacrifício!

Meu Deus, adoro a vossa Majestade infinita e quisera honrar-Vos tanto como mereceis. Mas que honra Vos pode dar um pecador miserável? Ofereço-Vos a honra que continuamente Vos tributa Jesus Cristo sobre o altar em todas as missas que agora estão sendo celebradas e serão celebradas no futuro, até à consumação dos séculos. — Detesto, ó Senhor, e abomino mais que todos os males, os desgostos que Vos hei causado, e em satisfação ofereço-Vos o vosso Filho, que por nosso amor se sacrifica novamente sobre o altar. Eu Vô-lo ofereço também em ação de graças por todos os favores que me tendes dispensado desde o princípio da minha vida até ao presente. Rogo-Vos, pelos merecimentos desse preciosíssimo Sangue, que me perdoeis as ingratidões para convosco, e me concedais um amor ardente a Jesus sacramentado, e a santa perseverança até à morte. — Ó grande Mãe de Deus e minha Mãe, Maria, peço-vos a mesma graça. (*IV 366.)

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1. M. de Bernières.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 326- 329.)

27 de novembro de 2013

Quem ama a Deus, não deve temer a morte.

Moriatur anima mea morte iustorum, et fiant novíssima mea horum similia — “Morra a minha alma de morte nos justos, e sejam os meus novíssimos semelhantes aos deles” (Num. 23, 10).

Sumário. É certo que, sem uma revelação especial, ninguém pode ter a certeza infalível acerca da sua salvação; mas pode ter dela uma certeza moral aquele que se deu deveras a Deus, detesta os pecados cometidos, persevera na vida devota, e está disposto a antes morrer do que perder a graça divina; e, sobretudo, aquele que tem um desejo ardente de amar a Jesus Cristo, deseja vê-Lo amado dos outros, e sente tristeza de O ver ofendido. Longe de aborrecer a morte, deve amá-la, porque o porá em estado de ver Deus face a face, e de gozá-lo por toda a eternidade.

I. Quem ama a Deus, tem a certeza de estar na graça divina, e, morrendo assim, tem a certeza de ir gozá-lo para sempre no reino bem-aventurado; deverá então temer a morte? Davi, é verdade, disse: “Senhor, não entres em juízo com o teu servo, porque não será justificado na tua presença todo o vivente.” (1) Mas isto quer dizer que ninguém deve presumir salvar-se pelos seus próprios merecimentos, e não que deva temer a morte aquele que detesta as suas faltas e confia nos merecimentos de Jesus Cristo, que veio à terra para salvar os pecadores e por estes derramou todo o seu sangue. O sangue de Jesus Cristo, diz o Apóstolo, fala melhor em favor dos pecadores, do que o sangue de Abel falava contra Cain, que o matou (2).

Verdade é que, sem uma revelação divina, ninguém pode ter a certeza infalível da sua salvação; mas pode ter uma certeza moral aquele que se deu deveras a Deus, e detesta os pecados cometidos; aquele que, depois do pecado, persevera muito tempo na vida de virtude, e está disposto a antes morrer, do que perder a amizade divina: e sobretudo aquele que deseja ardentemente amar a Jesus Cristo, e vê-Lo amado também pelos outros, e sente tristeza de O ver ofendido. E esta certeza baseia-se nas promessas divinas.

Em vários pontos da Escritura Sagrada Deus protesta que não quer a morte do pecador, senão que se converta e viva (3); afirma-o com juramento, e queixa-se daqueles pecadores obstinados que, para não deixarem o pecado, querem perder-se: Et quare moriemini, domus Israel (4) — “Porque morrereis, ó casa de Israel?” Àqueles, porém, que se arrependem do mal que fizeram, o Senhor promete esquecer todos os seus pecados (5). — Numa palavra, estejamos seguros, porque ninguém pôs em Deus a sua confiança e ficou confundido: Nullus speravit in Domino, et confusus est (6). Sendo assim, como poderemos aborrecer a morte?

II. Mas como é que alguns santos, depois de se terem dado inteiramente a Deus, e levado uma vida mortificada e desprendida de todo o afeto aos bens terrenos, se assustaram em presença da morte, ao pensarem que tinham de comparecer perante o Juiz Jesus Cristo? Respondo que são poucos os santos que na hora da morte experimentaram tais temores; Deus assim os quis purificar de qualquer resto do pecado, antes de entrarem na eternidade bem-aventurada. Em regra geral, todos os santos morreram em paz profunda, e com grande desejo de morrer a fim de irem ver a Deus. — Pelo mais, falando do temor acerca da salvação, eis aqui a diferença entre os pecadores e os santos: os pecadores passam do temor ao desespero; os santos passam do temor à confiança e assim morrem em paz.

Portanto, todo aquele que possui indícios de estar na graça de Deus, deve desejar a morte, repetindo a oração que nos foi ensinada por Jesus Cristo: Venha a nós o vosso reino. Quando vier a morte, deve abraçá-la com alegria, tanto para se livrar do pecado, deixando a terra na qual se não vive sem defeitos; como para ir ver a Deus face a face e amá-Lo com todas as forças no reino do amor. — Saibamos que o que oferece a sua morte a Deus, faz o ato mais perfeito de amor de Deus; porquanto, aceitando de boa vontade a morte que agradar a Deus, e no tempo e do modo que Deus quer, torna-se semelhante aos santos mártires.

Ó meu amado Jesus, quando vierdes para me julgar, não me condeneis ao inferno. No inferno não Vos poderia amar, e teria de Vos odiar sempre; e como poderia odiar-Vos se sois tão amável e me haveis amado tanto? Pelos meus pecados sou indigno desta graça; mas se eu a não mereço, Vós a merecestes para mim, pelo sangue que no meio de tantas dores por mim derramastes sobre a cruz. Ó meu Juiz, envia-me todo e qualquer castigo, mas não me priveis do poder de Vos amar. Ó Mãe de Deus, vêde o risco que corro de ser condenado a não mais poder amar o vosso Filho, digno de um amor infinito; socorrei-me, tende piedade de mim. (II 263.)

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1. Ps. 142, 2.
2. Hebr. 12, 24.
3. Ez. 18, 23; ibid. 33, II; 2 Petr. 3, 9.
4. Ez. 33, 11.
5. Ez. 18, 21.
6. Ecclus. 2, 11.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 435-438.)

Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo - Parte 1 - Meditação 11

CONSIDERAÇÃO X.

DO NOME DE JESUS.

Vocatum est nomen ejus Jesus.
Deram-lhe o nome de Jesus.

O grande nome de Jesus não é de invenção humana; foi o Padre eterno que o deu a seu divino Filho, diz S. Bernardino de Sena. É um nome novo e saído dos lábios do Senhor, segundo o profeta, um nome que só Deus podia dar Àquele que destinara para Salvador do mundo. É um nome a um tempo novo e eterno porque, como a redenção foi decretada desde a eternidade, assim o nome do Redentor lhe foi assinalado desde a eternidade. Entretanto na terra o nome de Jesus só foi imposto a Nosso Senhor no dia da circuncisão: Depois que se completaram os oito dias para ser circuncidado o Menino, foi-lhe dado o nome de JESUS, diz Lucas. Deus quis então recompensar a humildade de seu Filho, dando-lhe esse nome glorioso. Sim, enquanto Jesus se humilha sujeitando-se com a circuncisão a receber a marca dos pecadores, é justo que seu Pai o glorifique dando-lhe um nome que, como se exprime S. Paulo, sobrepuja em dignidade e grandeza todos os outros nomes. E manda que esse nome seja adorado pelos anjos, pelos homens e pelos demônios, ou, para nos servirmos das expressões do mesmo Apóstolo, Deus quer que ao nome de Jesus se curve todo o joelho no céu, na terra e no inferno.
Se todas as criaturas adoram esse grande nome, nós, pecadores, muito mais do que os outros, somos obrigados a ado-rá-lo, porque por nosso amor é que o Filho de Deus leva esse nome de Jesus, que significa Salvador; é para salvar os peca-dores, como canta a Igreja, que Ele desceu do céu e se fez homem. Devemos adorá-lo, e ao mesmo tempo render graças a Deus por haver dado a Nosso Senhor, para o nosso bem, esse nome que nos consola, nos defende, e nos inflama; três pontos que vamos tratar neste discurso, depois de pedir a Jesus e Maria as luzes de que temos necessidade.
I.
Em primeiro lugar, o nome de Jesus nos consola; em to-das as penas basta-nos dizer: Jesus! para nos sentirmos aliviados. Quando recorremos a Jesus, Ele não pode deixar de consolar-nos: Ele quer consolar-nos porque nos ama, e Ele o pode, porque não é só homem mas também Deus todo-poderoso; do contrário, esse grande nome de SALVADOR não lhe convidaria em toda verdade. O nome de Jesus supõe um poder infinito e ao mesmo tempo uma sabedoria e um amor infinitos; se essas perfeições não se achassem reunidos em Jesus Cristo, Ele não poderia salvar-nos, como o disse S. Ber-nardo. Esse Santo diz ainda, falando da circuncisão: “Ele foi circuncidado como filho de Abraão; foi chamado Jesus como Filho de Deus”. Nosso Senhor está marcado, como homem, com o sinal dos pecadores, porque Ele se encarregou de satis-fazer pelos pecadores, e desde o seu nascimento quer começar a expiar os pecados deles por seus sofrimentos e pela efusão de seu sangue; mas Ele é chamado Jesus, é chamado Salvador, como Filho de Deus, porque só a Deus compete sal-var.
O nome de Jesus é chamado pelo Espírito Santo óleo der-ramado. E não sem razão, observa S. Bernardo: o óleo aclara, nutre e cura; assim o nome de Jesus. Em primeiro lugar é luz: aclara quando anunciado. Com efeito, pergunta o Santo, donde veio essa luz que a fé difundiu com tanta rapidez sobre a terra ao ponto de levar em pouco tempo grande número de gentios ao conhecimento e ao serviço do verdadeiro Deus? foi da pregação do nome de Jesus. É a esse nome que devemos a felicidade de sermos feitos filhos da verdadeira luz, isto é, filhos da Santa Igreja, tendo nascido no grêmio da Igreja Romana, em países cristãos e católicos: graça e sorte não concedidas à maior parte dos homens, que nascem entre os idólatras, maometanos ou hereges. — Além disso o nome de Jesus é um nutrimento que fortifica nossas almas, cada vez que nele pensamos. Enche de paz e consolação os fiéis, mesmo no meio das misérias e das perseguições que têm de sofrer sobre a terra. Sustentados pela virtude do nome de Jesus, os apóstolos exultavam de alegria no meio dos maus tratos e dos opróbrios: Eles saiam da presença do conselho, contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus. — É, pois, uma luz e um nutrimento, e é também um remédio para os que o invocam. Demos a palavra a S. Bernardo: “Se uma alma está aflita ou atribulada, pronuncie o nome de Jesus; e logo a tempestade fugirá e voltará a paz”. Se alguém tem a desgraça de cair no pecado e desespera do perdão, invoque esse nome de vida que logo sentirá a confiança do perdão; es-se nome de Jesus o Pai eterno lho deu como Salvador precisamente para obter o perdão aos pecadores.
Se Judas, tentado de desespero, tivesse invocado o nome de Jesus, não teria sucumbido, afirma Eutímio. Ele acrescenta que um pecador, seja ele qual for, não cairá jamais no abismo do desespero, contanto que invoque esse santo nome que é nome de esperança e salvação.
Infelizmente os pecadores deixam de recorrer a esse re-médio salutar, porque não querem sarar de suas enfermidades. Jesus Cristo está pronto a curar todas as nossas chagas; mas se alguém gosta de suas chagas e não deseja a cura, como poderá Jesus curá-lo? — A venerável Irmã Maria Crucifixa viu um dia Nosso Senhor como num hospital; as mãos cheias de remédios, ia dum doente a outro; mas em vez de lhe testemunharem reconhecimento e de chamarem-no, esses infelizes o repeliam. Assim fazem muitos pecadores: depois de se envenenarem voluntariamente pelo pecado, recusam a saúde, isto é, a graça que Jesus lhe oferece; ficam pois na sua miséria e se perdem.
Ao contrário, que temor pode ter um pecador que recorre a Jesus, pois que Jesus mesmo se oferece para obter de seu Pai o perdão aos culpados havendo já com a sua morte pago a pena que eles mereceram? “O ofendido fez-se nosso intercessor, diz S. Lourenço Justiniano; e Ele mesmo pagou o que lhe devíamos”. Alhures ele acrescenta: “Quando pois vos sentirdes acabrunhados pela enfermidade, atormentados pela dor, agita-dos pelo temor, chamai Jesus em vosso auxílio, e Ele vos consolará”. Aliás basta que peçamos a seu Pai em seu nome, para obtermos tudo quanto lhe pedirmos: essa promessa, repetida muitas vezes pelo próprio Jesus Cristo, não pode deixar de ser cumprida: Tudo o que pedirdes a meu Pai em meu nome, Ele vo-lo dará. — Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei.
II.
Dissemos, em segundo lugar, que o nome de Jesus nos defende. Sim, nos protege contra as emboscadas e ataques de nossos inimigos. O Messias foi por Isaías chamado o Forte: Fortis; e o Sábio disse que o seu nome é uma torre fortíssima. Com isso nos dá a entender que quem se põe sob a proteção desse nome poderoso nada tem a temer dos assaltos do infer-no.
Jesus Cristo, diz S. Paulo, humilhou-se por obediência a seu Pai, ao ponto de morrer na cruz; eis por que Deus o exaltou. “Com outras palavras, observa S. Anselmo, Nosso Senhor humilhou-se de tal forma, que não podia humilhar-se mais; e por isso o seu divino Pai, pelo mérito dessa humildade e obediência do Filho, o exaltou o mais que pôde”. E de fato, diz o apóstolo, o Padre eterno deu a seu Filho divino um nome acima de todo outro nome, um nome tão glorioso e poderoso, que é venerado pelo céu, porque nos pode obter todas as graças; nome poderoso na terra, porque pode salvar a todos os que o invocam devotamente; nome poderoso no inferno, porque es-panta todos os demônios. Esse nome sagrado faz tremer os anjos rebeldes, porque, ao ouvi-lo, se lembram do Forte por excelência, que destruiu o império que exerciam violentamente sobre os homens. “Eles tremem, diz S. Pedro Crisólogo, porque são forçados a adorar esse nome toda a majestade de Deus”. Aliás nosso Salvador declarou que seus discípulos expulsariam os demônios em virtude de seu nome. E de fato, a Santa Igreja, em seus exorcismos, sempre se serve desse nome para expelir esses espíritos infernais dos possessos. E os sacerdotes que assistem aos moribundos, se servem do nome de Jesus para libertar os enfermos dos mais terríveis assaltos que o inferno faz naqueles momentos da morte.
Leia-se a vida de S. Bernardino de Sena, e lá se verá quantos pecadores ele converteu, quantos abusos fez desaparecer, quantas cidades santificou, pregando aos povos a devoção ao nome de Jesus. Segundo a palavra de S. Pedro, o santo nome de Jesus é o único do qual, pela vontade divina, podemos esperar a salvação. Jesus Cristo não nos salvou apenas uma vez; Ele nos salva continuamente por seus méritos, livrando-nos do perigo de pecar todas as vezes que o invocamos com confiança; assim cumpre a promessa: Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei. Daí a animadora palavra de S. Paulo que quem invocar o nome do Senhor, será salvo.
Repito, pois, com S. Lourenço Justiniano: Em todas as vossas tentações, venham elas dos demônios ou dos homens que vos excitam ao pecado, chamai a Jesus em vosso auxílio, e triunfareis; e se as tentações continuarem a perseguir-vos, continuai a invocar Jesus, e não sucumbireis jamais. É um fato de experiência: as almas fiéis a essa santa prática permanecem firmes no combate e conquistam infalivelmente a vitória.
Ao nome de Jesus usamos sempre o de MARIA, que é igualmente terrível no inferno, e nada teremos a temer. “Jesus! Maria!” haverá oração mais curta, mais fácil de reter? ela não é menos poderosa para repelir todos os ataques dos inimigos da nossa salvação. Assim fala Tomás a Kempis.
III.
O nome de Jesus nos consola, pois, nas penas e nos pre-serva de todo o mal; além disso inflama de santo amor a todos os que pronunciam com devoção. O nome de Jesus, ou de Salvador, é um nome que por si mesmo exprime o amor, por-que nos lembra, observa S. Bernardino de Sena, tudo o que o Filho de Deus fez e sofreu para operar a nossa salvação. Daí a tocante exclamação dum piedoso autor: “Ó meu Jesus, quanto vos custou o serdes Jesus, isto é, meu Salvador!”
S. Mateus narra, falando da crucifixão de Nosso Senhor, que lhe puseram sobre a cabeça a inscrição: Aqui está Jesus, o Rei dos Judeus. O Padre eterno, pois, quis que na cruz em que morreu nosso Redentor, se lesse o nome de Jesus, isto é, de Salvador do mundo. Por essa inscrição Pilatos não pretendia declarar Jesus Cristo culpado por se arrogar o título de rei, co-mo o acusavam os judeus, pois não se incomodou com a acu-sação, reconheceu a inocência dele e protestou não querer ter a parte na sua morte: Eu sou inocente do sangue deste justo. Por que então lhe dá o título de rei? Porque essa foi a vontade de Deus que nos quis com isso dizer: Ó homens, sabeis porque morre este inocente que é o meu Filho? morre porque é o vos-so Salvador; morre, esse divino Pastor, e morre no madeiro infame para salvar a vós suas ovelhas.
Eis uma razão a mais por que nos Cânticos o nome do Senhor é chamado óleo derramado; esse nome, diz S. Bernar-do, significa “a efusão da divindade”. Na obra da nossa redenção Deus levou o seu amor por nós até dar-se e comunicar-se a nós sem reserva: Ele nos amou e entregou-se por nós. Para poder comunicar-se a nós, tomou sobre si, diz Isaías, as penas que tínhamos de sofrer. Pelo quirógrafo que foi afixado à cruz quis Ele, diz S. Cirilo de Alexandria, apagar a sentença de mor-te lavrada contra nós pecadores. É precisamente isso que nos ensina o apóstolo com as palavras: Cancelou o quirógrafo do decreto que nos era desfavorável, que era contra nós, e o aboliu inteiramente encravando-o na cruz. Em fim nosso amoroso Redentor quis subtrair-nos à maldição que mereceramos, e por isso atirou sobre sua cabeça as maldições divinas, carregando-se de todos os nossos pecados: Cristo remiu-nos da maldição da lei, feito ele mesmo maldição por nós.
Assim, quando uma alma fiel pronuncia o nome de Jesus e se recorda do que o Senhor fez para salvá-la, é impossível que não sinta o seu coração inflamar-se por Aquele que a amou tanto. “Quando dizemos ‘Jesus’, afirma S. Bernardo, devemos figurar-nos um homem manso, afável, compassivo, cheio de todas as virtudes; devemos ainda pensar que Ele é o nosso Deus e que, para curar-nos de nossas chagas, quis ser desprezado e maltratado até morrer de pura dor na cruz”. — “Seja-nos caro, ó cristão, exorta S. Anselmo, o belo nome de Jesus; Jesus esteja sempre em vosso coração; seja o único alimento de vossa alma e a vossa única consolação”. Ah! replica S. Ber-nardo, só quem experimentou pode compreender a doçura, as celestes delícias que se sentem, mesmo neste vale de lágrimas, quando se ama ternamente a Jesus.

Expertus potest credere
Quid sit Jesum diligere.

Isso souberam por experiência tantas almas piedosas: uma S. Rosa de Lima, que ao comungar tinha o coração de tal forma abrasado do amor divino, que seu hálito queimava a mão que lhe dava água a beber, segundo o costume, após a comunhão; uma S. Maria Madalena de Pazzi que, empenhando o crucifixo, andava toda inflamada gritando: “Ó Deus de amor! ó Deus de amor! direi mesmo, louco de amor!” — um S. Filipe Néri, cujo peito teve de ser alargado para dar espaço às palpitações de seu coração abrasado; — um S. Estanislau Kostka, ao qual era às vezes preciso banhar o peito em água fria para temperar o ardor de que se consumia por Jesus; — um S. Francisco Xavier que, pelo mesmo motivo, se descobria o peito dizendo: “Basta, Senhor, basta”; declarando com isso que já não podia suportar a chama que ardia em seu coração.
Procuramos pois também nós ter, quanto possível, o amor de Jesus em nosso coração e o seu santo nome nos nossos lábios. O Apóstolo ensina que não podemos pronunciar com devoção o nome de Jesus a não ser pela graça do Espírito Santo. Assim o Espírito Santo comunica-se a todos os que pro-nunciam devotamente o nome de Jesus.
Para alguns o nome de Jesus é um nome estranho; por que? porque não amam a Jesus Cristo. Os Santos tiveram sempre nos lábios esse nome de salvação e de amor. Nas e-pístolas de S. Paulo quase não se encontra uma página em que não se leia mais vezes o nome de Jesus. S. João também o repete freqüentemente. Um dia, o bem-aventurado Henrique Suso, querendo imprimir-se mais fortemente no coração o a-mor de seu divino Mestre, tomou um ferro afiado e gravou-se no peito o nome de Jesus; depois exclamou banhado em sangue: “Senhor, quisera gravar-vos no fundo do meu coração, mas não posso; vós que tudo podeis, gravai vosso nome adorável no meu coração, de maneira que dele não possa desaparecer nem o vosso nome nem o vosso amor”. S. Joana de Chantal chegou a imprimir o nome de Jesus em seu coração por meio dum ferro em brasa.
De nós Jesus não pede tanto; contenta-se que o conservemos em nosso coração com um afeto sincero e que o invoquemos muitas vezes com amor. E já que tudo quanto Ele fez e disse durante sua vida, Ele fez e disse por nosso amor, é jus-to que façamos todas as nossas ações em nome e por amor de Jesus Cristo; S. Paulo a isso nos exorta: Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obra, fazei tudo em nome do Senhor Jesus Cristo. E já que Jesus Cristo morreu por nós, devemos estar prontos a morrer pelo nome de Jesus, como o apóstolo que dizia: Estou pronto a sofrer não só as cadeias, mas também a morte pelo nome do Senhor Jesus.
Concluamos este discurso. Se, pois, estivermos aflitos, invoquemos a Jesus, e Ele nos dará a força de resistir a todos os nossos inimigos; se enfim estamos áridos e frios no amor divino, invoquemos a Jesus, e Ele nos inflamará. Felizes as almas que tiverem sempre nos lábios esse nome tão santo e amável, nome de paz, nome de esperança, nome de salvação, nome de amor! Mas que felicidade, sobretudo a de morrer, pronunciando o nome de Jesus! Se desejamos exalar o derradeiro suspiro com esse doce nome nos lábios, devemos habituar-nos a repeti-lo muitas vezes durante a vida, e sempre com amor e confiança.
Ao nome de Jesus unamos sempre o belo nome de Maria, que é também um nome vindo do céu, um nome poderoso, que faz tremer o inferno, e ao mesmo tempo um nome cheio de doçura, pois que nos recorda essa augusta Rainha que é a um tempo a Mãe de Deus e a nossa, Mãe de misericórdia, Mãe de amor.
Afetos e Súplicas.
Ó Jesus, já que sois o meu Salvador, que destes o vosso sangue e a vossa via para resgatar-me, gravai, peço-vos, o vosso nome adorável em meu pobre coração, a fim que, tendo-o sempre impresso no coração pelo amor, eu o tenha também sempre nos lábios invocando-o em todas as minhas necessidades. Se o demônio me tentar, o vosso nome me dará força de resistir-lhe. Se a confiança me abandonar, o vosso nome me reanimará a esperança. Se estiver aflito, o vosso nome me fortalecerá, recordando-me o muito que sofrestes por mim. Se estiver frio no vosso amor, o vosso nome me inflamará, recordando-me o muito que sofrestes por mim. Se estiver frio no vosso amor, o vosso nome me inflamará, recordando-me o amor que me testemunhastes. No passado caí muitas vezes no pecado, porque vos não invoquei; para o futuro o vosso nome será a minha defesa, o meu refúgio, a minha esperança, o meu único consolo e o meu único amor. Assim espero viver, assim espero morrer, tendo sempre nos lábios o vosso santo nome.
Virgem Santíssima, obtende-me a graça de invocar sem-pre em minhas necessidades o nome de vosso divino Filho, Jesus, e o vosso, minha Mãe Maria; mas fazei que os invoque sempre com confiança e amor, dizendo-vos com o devoto Afonso Rodrigues: “Ó meu dileto Jesus, ó minha querida Rainha, Maria, concedei-me a graça de sofrer e de morrer por vosso amor: já não quero ser meu, mas vosso e todo vosso, vosso na vida e vosso na morte, em que, com o vosso socorro, espero entregar a minha alma repetindo: Jesus e Maria, ajudai-me; Jesus e Maria, recomendo-me a vós; Jesus e Maria, eu vos amo, confio em vós, eu vos dou toda a minha alma.

O Diabo, Lutero e o Protestantismo - Pe. Júlio Maria - Capítulo 2

CAPÍTULO II

UM RETRATO AUTÊNTICO

Dizem os amigos protestantes que Lutero foi o enviado especial de Deus para reformar a Igreja Católica decaída, ou melhor: levantá-la da morte e sepultamento no lamaçal dos maiores vícios e torpezas.
Faz-se mister descomedida audácia para lavrar a certidão de óbito da Igreja fundada por Jesus Cristos, à qual prometeu ele a sua perpétua assistência e a preservação de todo erro.
Ademais, é preciso uma superabundante dos de ignorância da história para desmentir fatos conhecidos e zombar de todos os historiadores antigos.
Como é que, antes de Lutero, autor algum jamais nota tal ausência da Igreja verdadeira, aspirando surgisse qualquer taumaturgo para ressuscitá-la, tirá-la do sepulcro ou que o próprio Cristo viesse reabilitá-la, clamando, bem alto, com o mesmo poder com que levantara Lázaro: Igreja, sai para fora deste túmulo?!
Nada de tudo isso; somente, após transcorridos quinze séculos, os protestantes descobriram este total desaparecimento da Igreja. Segundo eles, Deus suscitou enfim o homem desejado possuindo missão superior ao maior dos profetas e mensageiros divinos, instrumento do Altíssimo, capaz de reconstruir a obra de Jesus Cristo e restituir-lhe a primitiva beleza evangélica. Tal indivíduo foi Lutero.
Examinemos num instante a história de sua vida, as suas qualidades e obras; estudemo-la sem exageros, com toda imparcialidade, visando apenas os fatos provados historicamente, para vermos se, de fato, o pai do protestantismo ostenta credenciais de sua missão divina, pois duma árvore boa, conforme a sentença do Divino Mestre, há de sair uma produto bom, e de uma arvora má virão frutos maus.

1. PRIMEIROS ANOS DE LUTERO
Nasceu Lutero em Eilesben, aos 10 de novembro de 1483.
Seus pais eram pobres camponeses, católicos sinceros, segundo Melanchton; a mãe de Lutero era mulher virtuosa e dedicada à piedade. Quanto ao pai, se dermos crédito ao próprio Lutero e contemporâneos, era um homem rude, violento, quase cruel. E é à violência do pai do pai que a princípio o educara sem carinho e desvelo, que o “reformador” atribuía o ódio por ele votado à humanidade inteira.
Aos 6 anos de idade iniciou os estudos em Mansfeld, na escola pública, onde constas ter sido castigado constantemente, o que vem demonstrar seu gênio irrequieto, turbulento, sempre levado aos extremos.
Sobre seu tempo de escola, deixou ele mesmo esta nota¨”A nossa escola era um inferno e um purgatório onde nos atormentavam com declinações e verbos.
O professor era um algoz. Numa só manhã chegou e espancar-me quinze vezes”. Aos quatorze anos dirigiu-se nosso herói para Magdeburgo, onde estudou por algum tempo sob a direção de religiosos; depois, vamos encontrá-lo em Eisenach, mendigando pelas ruas, cantando e pedido esmolas para sustentar a vida. Foi nessa ocasião que uma piedosa viúva, comovida pelo estado lastimável do pequeno mendigo e por sua bela voz, acolheu-o, adotando-o como filho (Luther, por H. Wachters).
Devido aos cuidados de sua benfeitora, que lhe pagou os estudos, o menino freqüentou a escola latina dos Franciscanos. Em 1501 o estudante saiu de Eisenach, para ir terminar os estudos em Erfurt, onde, durante três anos e meio, cursou a universidade, aí colando grau de bacharel e mestre em ciências; no primeiro título conseguiu o 13º. Lugar entre 57 alunos, e no segundo, o 3º. Lugar, o que indica que, como mestre, se revelou ele de uma inteligência bastante viva, embora não genial.
Findos os estudos, pretendia Lutero começar os cursos de Direito Canônico e civil, o que fez apenas durante um mês. De repente, sem mais nem menos, abandonou a universidade, voltando para Mansfeld, lugar onde começara a sua instrução primária. Logo depois seguiu para o convento. Aqui nos deparamos com o mistério da vocação de Lutero.

2. A VOCAÇÃO DE LUTERO
Até essa data nada apresentava o menino como sinal provável de chamado divino para a vida sacerdotal ou religiosa.
De estudante católico que era, sem traço algum capaz de distingui-lo, com temperamento colérico e irrequieto, repentinamente se resolveu a deixar o mundo e retirou-se ao Claustro.
A respeito de tão súbita resolução, correram diversas lendas que as modernas pesquisas históricas põem em dúvida ou desmente. Numa carta ao pai disse Lutero, certa vez, que o medo das “ameaças de morte” lhe arrancara uma “promessa involuntária”.
Houve quem procurasse saber a que ameaças ele se referia.
Cogitam alguns de assassinato; outros pensam em duelo; certos, de um raio que caíra ao seu lado, impressionando-o consideravelmente.
Tudo isso poder ser verídico, mas não convence.
Em certa ocasião, em palestras com amigos, o “reformador” se referiu a um desastre que com ele dera, quando acompanhado de um amigo, nas cercanias de Erfurt. Fazendo exercícios com armas, ele feriu, sem o querer, a própria perna; tão abundante foi a perda de sangue que pensou chegado a hora da morte. Temendo o perigo, invocara a proteção da Santíssima Virgem, prece que repetiu depois.
Noutra feita Lutero disse que, ao regressar de uma viagem a Mansfeld, surpreendeu-o violenta tempestade; uma faísca elétrica lhe caiu aos pés, enchendo-o de pavor; nesta ocasião teria
exclamado: Valei-me Sant‟Ana; quero ser monge. Teriam sido tais acontecimentos a causa da vocação de Lutero?
Se ele nunca tivesse pensado antes em seguir a vida monacal, por certo teria feito qualquer outra promessa; mas o fato de voltar o seu pensamento para a vida religiosa parece demonstrar que desde algum tempo nutria tal idéia, não correspondendo ao chamado do Alto por deficiência de coragem. Vendo-se em perigo de vida, julgou ser isto um castigo de Deus e prometeu realizar o que já considerava como vocação. Parece ser esta a opinião mais admissível.
Certamente Lutero fez logo o que prometera. Pela última vez reunião os amigos em festa íntima e, no fim, convidou-os a acompanhá-lo. Relutaram. Afinal o seguiram, conforme lhes pedira. Deste modo, a 16 de julho de 1505 Lutero ingressava no Convento dos Agostinianos em Erfurt.
“Entrei para o Claustro, explica ele, porque estava desesperado de minha salvação”.
Ali a vida de nosso pretendente foi dividida entre a oração, o estudo da Sagrada Escritura e dos escritos dos santos padres.
As constituições dos Agostinianos prescrevem aos aspirantes: ler atentamente, escutar com devoção e decorar as passagens principais da Escritura Sagrada; e, para este fim, no dia da profissão, cada monge recebe um exemplar completo da Bíblia.
É a refutação radical aos historiadores protestantes que divulgam ter sido a Bíblia escondida cuidadosamente e até ligada por meio de correntes de ferro, para Lutero não a poder ler.
Felizmente os próprios protestantes já refutaram tal absurdo. Ouçamos Otto Scheel: “Não passara um dia sem que a leitura da Bíblia não houvesse enriquecido a alma de Lutero: nela encontrara consolação, luz e felicidade” (Scheel-II:2). Sua vida como religioso nada oferece digno de nota; pequenos fatos, no entanto, manifestam, vez por outra, o seu caráter inquieto, propenso sempre a excessos, parecendo considerar a Deus não como pai cheio de bondade, mas como juiz rigoroso.
A crônica dos monges do convento do Lutero refere que um dia, ao recitarem o ofício, ao ser lida no Evangelho a história do surdo-mudo possesso pelo demônio, de repente o nosso herói caiu no chão, e, em contorções horríveis, exclamou: Não sou eu! Não sou (o possesso) (Grisar 44).
Falando de sua vida monacal, disse ele certa vez: “Atormentei-me, rezei, jejuei, vigiei e tanto frio sofri que seria bastante para matar-me” (Grisar, p.57). Estes fatos todos revelam uma moléstia nervosa, histérica, ou grande desequilíbrio de consciência; no entanto, em tudo isso não viram os superiores impedimento sério para a vocação do jovem monge, e em 3 de abril de 1507 Lutero foi ordenado sacerdote na catedral de Erfurt, celebrando sua primeira missa aos 2 de maio do mesmo ano. Nesta ocasião, quando recitava a oração: Te igitur, no começo do Cânon, o neo-padre foi tomado de um tal medo de Deus, que teria fugido do altar, se o sacerdote assistente não o houvesse acalmado.
Em 1515, quando ao lado de seu superior assistia à procissão do Santíssimo Sacramento, tamanho pavor da proximidade de Deus o invadiu, que ele se pôs a tremer da cabeça aos pés (Tischreden W.;I. n. 137).
Lutero era sacerdote para a eternidade... e nada neste mundo ou no outro, seria capaz de apagar o caráter sacerdotal que em suas mãos devia ser um meio de salvação para muitos e não, como se tornaria em breve, um instrumento de perdição.

3. ESTUDOS INCOMPLETOS DE LUTERO
Temos agora diante de nós o monge recém ordenado, no limiar de sua vida nova. Logo uma primeira observação se apresenta: em 1505 entrara Lutero para o convento; em 1507, dois anos após, foi ordenado sacerdote. Tão curto intervalo foi apenas o tempo necessário para fazer o seu
noviciado ou aprendizagem, donde se depreende ter ele feito curso irregular de Teologia, que só veio a estudar depois da ordenação.
Que dizer deste novo período de sua vida?
O próprio Lutero explica: "... eu sou da escola de Occam, autor e propagandista-mor do nominalismo", sistema que negava o valor objetivo das idéias, de maneira que o homem não pode ter nenhuma certeza da metafísica, caindo, necessariamente, no ceticismo.
Verdades, por exemplo, como a imortalidade da alma, a existência, a unidade, bondade e misericórdia de Deus, não caem sob a competência da razão, só podendo os homens conhecê-las através da revelação.
Destarte o papel da inteligência se torna muito restrito, e mais limitado ainda o da fé e o da revelação.
A simplificação visada por Occam objetivava a supressão do ensino escolástico, cuja doutrina admite tornarem-se as verdades de fé mais acreditáveis pelo auxílio da razão.
Tão perversora a doutrina havia penetrado em muitas escolas, e até consta que os monges Agostinianos de Erfurt a professavam.
Embora o nominalismo não atacasse diretamente as doutrinas da Igreja, não deixava, contando, de colocar os estudantes num perigoso declive que facilmente poderia conduzi-los ao erro.
Aqui temos, pois, o início e, quiçá a base dos erros do patriarca protestante; duplo é este fundamento: a deficiência de estudos teológicos e as doutrinas falsas de Occam, que envenenaram os primeiros passos teológicos do pretenso reformador.
Pouco depois da sua ordenação, foi Lutero transferido para Wittemberg; ali encontrou o vigário geral da ordem, Pe. Staupitz, que desempenhava, além do cargo d3e superior, o de professor de exegese na universidade local.
Devendo, Staupitz, visitar, de vez em quando, as residências da província, mal podia dar cumprimento ao seu ofício, pelo que cogitava desistir e passar a cátedra de mestre a um sucessor da mesma ordem. Para substituí-lo, pensou em Lutero e aconselhou-o a se preparar, para tirar o bacharelato em Sagrada Escritura, afim de se habilitar a exercer o cargo de professor desta disciplina.
Efetivamente Lutero seguiu-lhe o conselho. E em 9 de março de 1509 colou grau de mestre na referida matéria.
Estudos assim precipitados e acumulados permitiram-lhe conquistar o ambicionado posto, mas não lhe deram o tempo de assimilar as doutrinas vistas, motivando isso, no espírito dele, uma verdadeira balbúrdia de idéias, sem fundamentos, sem provas e sem nexos.
Grisar observa que, mesmo em Elbstad, foram falhos os estudos do “reformador”.(Grisar, 43). - De Wittemberg transferiram-no para Erfurt, novamente, para que desempenhasse ali o professorado como leitor de teologia, que estudara com pressa, incompleta e erradamente.

4. VIAGEM A ROMA
Em Erfurt o novo leitor de teologia foi encontrar dupla guerra: - na cidade onde encontrara uma insurreição popular, e no convento dos frades Agostinianos no qual a discórdia era de espécie diferente.
A Congregação abrangia nesse tempo duas províncias: a parte alemã, mais rigorosa na observância das regras, e a saxônica, um pouco mais mitigado no rigor primitivo.
Tendo sido o Pe. Staupitz nomeado Vigário Geral provincial, para a Alemanha, procurou reunir as duas províncias sob sua alçada, nelas introduzindo a observância rigorosa.
A Santa Sé favoreceu esta medida de união, permitindo também que as duas partes se reunissem e escolhessem um só Vigário Geral.
A escolha recaiu em Staupitz. Isto agradou a quase todas as casas.
Sete entre as da província alemã resolveram protestante e entre elas estava o convento de Erfurt. Foi enviada uma deputação a Roma para defender os interesses dos insubmissos, perante a Cúria Romana; Lutero integrava esta comissão.
Que impressão trouxe ele da Cidade Eterna?
Uma visão toda materialista, como se descobre pelo seu modo de descrever o que vira ali.
Não tinha o “reformador” alma de artista, para admirar grandezas, panoramas, antiguidades; nem possuía um espírito perspicaz capaz de penetrar e ler a história nos monumentos. Pouco empenho lhe ofereceu a estadia na grande metrópole do Cristianismo. Desejava ver o Papa e não o conseguiu, pois o Santo Padre estava então em viagem pelo norte da Itália. E a reclamação contra a união das duas províncias agostinianas não foi aceita por Roma, o que contrariou bastante o frade descontente.
Somente dez anos após este fato é que entrará ele a bradar contra os pretensos abusos da Igreja Romana.
Parece que Lutero não retornou mais a Erfurt, mas foi logo se fixar em Wittemberg, onde continuou a estudar teologia. Em outrubro de 1512 aí recebeu o barrete e anel doutoral na matéria; no mesmo mês começou a lecionar Sagrada Escritura, substituindo Staupitz. Neste ponto é que Lutero começou a manifestar os e=seus erros de princípios, e a sua ignorância em assuntos teológicos.
Em 1515 iniciou ele a explicar a Epístola de São Paulo aos Romanos, e foi da má compreensão e interpretação desta carta paulina que o professor extraiu os erros sobre a graça e a salvação.

5. OS DOIS GRANDES ERROS DE LUTERO
Dois foram os erros fundamentais do novo catedrático – primeiro: só a Bíblia é a regra suprema de fé; segundo: o homem é justificado só pela fé e as boas obras de nada valem para a justificação.
Desde esse tempo apareceram como pontos básicos de todas as suas doutrinas esses dois erros.
A primeira destas regras de crença substitui a autoridade da Igreja, supremo juiz em questões de fé, pelo livre arbítrio, infligindo, assim um golpe infernal na unidade visível da cristandade. A outra perverte toda a doutrina das relações entre a criatura e o Criador.
Combinados, estes dois princípios subversivos produzem a mais tremenda desordem moral nas almas e na sociedade.
Teria Lutero aprofundado a extensão destes seus postulados de crença? Impõe-se-nos imperiosa a questão e a resposta é de longo alcance.
Julgamos que não.
Não há dúvida de que Lutero tinha inteligência; era, porém péssimo psicólogo; segundo vimos atrás haviam sido feitos com precipitação os seus estudos teológicos, mal assimilados e muito superficiais; era mais filósofo do que teólogo, revelando-se sutil no raciocínio, mas fraco em doutrina revelada. Esta asserção encontra prova a cada passo em seus escritos.
Demais, ele era de caráter altivo, orgulhosos, com uma inclinação natural demais acentuada, para a revolta. Um homem desse quilate é geralmente teimoso.
Durante quinze séculos a Igreja interpretara e expusera a Bíblia à luz de sua tradição, de sua própria história e, infalível no seu ensino e nas suas decisões a respeito, fora a regra viva de fé no passado.
O monge rebelde não atinou com o valor e a segurança desta autoridade suprema, e o seu orgulho supremo levou-o a crer que o homem é a sua própria regra de fé. Para ele não havia outra fonte de verdade revelada senão um livro mudo (embora inspirado) de que cada indivíduo é constituído juiz. Este livro, portanto, tem de ser o guia e a norma de fé para todos indistintamente, tornando-se todos infalíveis, excluídos, naturalmente, os sacerdotes, os bispos e o Papa.
Lutero não tolerava a existência de um homem infalível na Igreja; mas, por cúmulo de contradição, admitia serem os indivíduos todos infalíveis, exceto o Pontífice de Roma, que na verdade é o único infalível por divina instituição.
Em teoria tal era a doutrina de Lutero, embora na prática não aceitasse que ninguém contradissesse às suas opiniões.
O princípio: - “a justificação só pela fé” – era igualmente deletério e perverso, pois deveria produzir os mais desastrosos resultados numa sociedade decaída.
Conforme o ensino católico, a fé que justifica é uma fé viva, isto é, fundada na revelação e informada pela caridade.
Lutero não que saber de caridade; para ele basta possuir confiança em Deus e ele, por amor a Cristo, não mais nos imputará os nossos delitos, mas nos tratará como inocentes e santos. Para salvaguardar uma idéia tal, não trepidou Lutero em falsificar o texto de São Paulo (Romanos 3,28). O apóstolo escrevera: “julgamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei (mosaica)”. O “reformador” transcreve o texto assim: “O homem ‘justificado só pela fé”.
Vê-se logo a perversidade do falso intérprete. São Paulo pretende mostrar que lque, para alguém se salvar, não basta executar apenas as obras prescritas pela lei de Moisés, mas que, além disso, é mister possuir fé em Deus; Lutero, porém, depois de liquidar as obras da lei mosaica, suprimiu, ainda as da nova lei, contentando-se unicamente com a fé.
E, como na Epístola de São Tiago se lêem estas palavras textuais: “O homem ‘justificado pelas obras pela fé, e não pela fé somente” (Tiago 2,14-28), o inovador taxou esta epístola de “Epístola de palha”.
Tal é a “grande” descoberto de Lutero, que constituía para ele a suprema novidade, mas que, para o mundo, não era mais que a grande heresia.
Neste seu peculiar modo de entender a Bíblia apalpa-se a sua falta de conhecimento seguro.
Está aí o princípio da decadência do “reformador”, cujos fundamentos remotos o vimos beber na errônea filosofia nominalista que seguira desde os bancos de escola superior.

6. CONCLUSÃO
Aí fica a primeira fase da vida de Lutero. Visto através dum olhar superficial, nada ainda se apresenta de muito importante; no entanto, no âmago desta alma irrequieta, graves problemas se agitavam.
É que as grandes quedas não se realizam de repente, como as grandes virtudes não se adquirem num dia.
Querer julgar Lutero pelos acontecimentos em que passou a exercer influência preponderante na época é recolher efeitos como se fossem causas, e atribuir a um destino cego aquilo que na verdade é uma conclusão final.
A primeira educação na casa paterna, os primeiros estudos, o ambiente em que se encontrava, a conversão – tudo isso constitui necessariamente a trama que devia moldar o caráter e orientar as tendências de Lutero.
Pelas notícias que nos ficaram dos seus tempos escolares nota-se que ele fora um menino traquinas, insubordinado, colérico, e dado à independência e insubmissão. Não se castiga continuamente um aluno bem comportado e exemplar. E Lutero foi punido a toda hora.
Não concorde e sempre reclamando contra penas e ordens, de contínuo avesso a quem não lhe seguisse às idéias, assim cresceu o futuro “reformador”.
Pertencendo a uma época bastante viciada, privado de carinho e vigilância, a estrada de corrupção precoce estava largamente aberta em sua frente, prometendo saciar-lhe os instintos...
Ao orgulho juntou-se a imoralidade. A acusação é grave. Exige provas. Ei-las:
Referindo-se à sua vida anterior à conversão, deixou ele um dia escapar estas palavras: “Sim, fui um grande, triste e vergonhoso pecador; tive uma juventude culpada” (Weimar, 26, 508).
Relacionados também com este período da vida de Lutero há dois documentos contemporâneos, bem desfavoráveis à integridade de seus costumes.
O primeiro é de Jerônimo Dumgersheim, que, num escrito contra o herege, assacou-lhe publicamente os maus hábitos de sua vida de estudante, continuados depois, e causadores de sua apostasia.
Noutra parte o mesmo autor falou de faltas graves, e apelou para o testemunho de um daqueles camaradas que depois o acompanharam até à porta do convento.
O segundo depoimento de Jerônimo Emser que conhecera Lutero quando estudante em Erfurt.
Em 1520, numa polêmica, o monge revoltoso lembrou alguns deslizes do seu adversário. Emser, que não era irrepreensível, retrucou-lhe no mesmo tom: “Ignoras talvez que a teu respeito eu saiba de faltas bem graves?...” E Lutero não prolongou o ataque, ele que nunca deixava o contendor sem resposta!... Aí ele emudeceu e nem a Dumgersheim, nem a Emser respondeu palavra.
Tudo o que foi dito neste capítulo faz sobre-sair em cores bastante vivas a primeira fase da vida que estamos expondo.