17 de novembro de 2013

Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo - Parte 1 - Meditação 1

Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo

POR S. AFONSO MARIA DE LIGÓRIO

Doutor da Igreja e Fundador da Congregação Redentorista

Tradução do Pe. OSCAR DAS CHAGAS AZEREDO, C.Ss.R.

Edição Pdf - Aparecida – 2004 – Fl. Castro

PREFÁCIO

Com sumo prazer entregamos ao público a tradução deste livro escrito pelo Doutor da Igreja S. Afonso Maria de Ligório. Esse Serafim de amor era incansável em meditar os mistérios sacrossantos em que se patenteia com mais evidência o amor divino ao homem. As suas três grandes devoções foram: berço, cruz, sacramento, isto é, a santa Infância do Verbo Encarnado, a Sagrada Paixão do Redentor e a divina Eucaristia, que encerra Jesus vivo nos nossos tabernáculos. A sua linguagem é simples, produzida por um coração abrasado, pois o amor, quando verdadeiro e sincero, não conhece circunlóquios de estilo rebuscado; daí a repetição edificante do: “Amo-vos, meu Jesus”, que aparece freqüentes vezes e cada meditação ou consideração. Os atos de amor divino, tão aconselhados pelos autores da vida espiritual, são necessários para alimentar o fogo sagrado nos corações. As almas que amam a Deus não conhecem palavra mais doce do que esta: Amo; arrependo-me. Os corações abrasados de amor divino sentem alegria e consolação na repetição dessa palavra, a única que de fato brota espontânea dum Serafim.
Esta obra, composta por S. Afonso em 1750, faz parte das obras ascéticas do Santo Doutor, e contem primeiro a Novena de Natal, devoção essa que atraía particularmente o coração de S. Afonso, e que ele recomenda freqüentemente em seus numerosos escritos. São nove Considerações piedosas sobre os mistérios da Encarnação, do Nascimento e da Infância de Jesus Cristo, para servirem de leitura espiritual durante o Ad-vento ou nos nove dias que precedem à festa do Natal. O autor, com a piedade, a ciência e a unção inimitáveis, que lhe são próprias, mostra-nos, dum lado, o amor que o Filho de Deus nos testemunhou por suas humilhações e suas dores desde o primeiro instante de sua vida temporal, e do outro, o reconhecimento, a confiança, o amor, o devotamento, que lhe devemos em retorno, e a conduta que devemos ter, justos ou pecadores, para cumprir essa grande obrigação.
A seguir, vêm dois outros discursos, dos quais o primeiro descreve, até os menores detalhes, as circunstâncias tocantes do Nascimento do Salvador, e o segundo explica as virtudes celestes do Nome de Jesus. Essa é, por assim dizer, a primeira parte do volume. A segunda compõe-se de sessenta e seis Meditações para todos os dias do Advento e para as festas do Natal e da Epifania, sobre os mesmos mistérios, desde a Encarnação até a perda de Jesus no templo. Encerrando o volume encontram-se treze exemplos, ou aparições de Jesus Me-nino, destinados à edificação do leitor, como prova de que o Senhor aceita as homenagens prestadas à sua Infância.
Esta tradução aparece como modesta contribuição aos festejos do cinqüentenário da chegada dos primeiros Redentoristas ao Brasil. Aos filhos espirituais do grande Doutor, nos cinqüentas anos de missões e trabalhos apostólicos, não têm cessado de, a exemplo de seu Santo Fundador, espalhar por toda a parte a devoção à santa Infância de Jesus, onde, apalpamos, por assim dizer, a bondade e o amor do Verbo Encarnado às almas.
Oxalá possam estas meditações, compostas pelo Doutor da Oração, acender nos corações o braseiro do amor divino, e levar as almas à mais alta perfeição, contribuindo assim para o fim das missões populares, que não é outro senão ganhar almas para Deus e difundir sempre mais o reino de Nosso Se-nhor. O Deus Menino digne-se abençoar esta tradução, que não visa senão a maior glória de Deus e o bem das almas.

Aparecida, 6 de janeiro de 1942.

Pe. Oscar das Chagas Azeredo, C.Ss.R.

I PARTE
Considerações sobre a Infância de Jesus
CONSIDERAÇÃO I.
O VERBO ETERNO SE FEZ HOMEM.
Ignem veni mittere in terram; et quid voto, nisi ut accendatur?
Vim trazer o fogo à terra; e que desejo senão que ele se inflame? (Lc 12,49)
Os judeus celebravam uma festa chamada Dia do Fogo em memória do fogo com que Neemias consumou a vítima oferecida a Deus, quando ele voltou com seus compatriotas do cativeiro da Babilônia. A festa do Natal deveria também, e com muito mais razão, chamar-se Dia do Fogo, porque nesse dia um Deus veio ao mundo sob a forma duma criancinha para a-tear o fogo do amor no coração dos homens.
Vim trazer o fogo à terra, disse Jesus Cristo, e o trouxe de fato. Antes da vinda do Messias, quem amava a Deus sobre a terra? Ele era apenas conhecido numa pequena região do mundo, isto é, na Judéia; e mesmo lá, quão poucos eram os que o amavam no tempo da sua vinda! No resto da terra, uns adoravam o sol, outros os animais, s pedras ou criaturas mais vis ainda. Mas, depois da vinda de Jesus Cristo, o nome de Deus se espalhou por toda parte e foi amado por muitos. Desde então os corações abrasaram-se das almas do divino amor, e Deus foi mais amado em poucos anos do que nos quatro mil aos que decorreram depois da criação.
Muitos cristãos costumam preparar com bastante antecedência em suas casas um presépio para representar o nasci-mento de Jesus Cristo. Mas há poucos que pensam em preparar seus corações, a fim que o Menino Jesus possa neles nas-cer e repousar. Sejamos nós desse pequeno número: procuremos dispor-nos dignamente para arder desse fogo divino, que torna as almas contentes neste mundo e felizes no céu.
Consideremos neste primeiro dia que o Verbo Eterno justamente para esse fim, de Deus se fez homem, para inflamar-nos de seu divino amor. Peçamos a Nosso Senhor Jesus Cristo e a sua Santíssima Mãe nos iluminem sobre esse mistério, e comecemos.
I.
Peca nosso pai, Adão. Ingrato para com Deus, do qual recebera tantos benefícios, revolta-se contra Ele e transgride a sua lei comendo do fruto proibido. Em conseqüência Deus vê-se obrigado a expulsar imediatamente o homem do paraíso terrestre e a privá-lo e a seus descendentes, no futuro, do paraíso celeste e eterno, que lhes havia preparado para depois desta vida temporal.
Ei-los pois condenados a uma vida de sofrimentos e de misérias, e excluídos para sempre do céu. Mas também, para falarmos a nosso modo como Isaías, eis que Deus parece afligir-se e queixar-se. E agora, diz ele, que me resta no paraíso, agora que perdi os homens, nos quais achava as minhas delícias? Mas, meu Deus, vós que possuis no céu tão grande multidão de serafins e outros anjos, como podeis sentir tão viva-mente a perda dos homens? A vossa felicidade não é perfeita sem eles? Sempre fostes e sempre sois feliz em vós mesmo. Que pode pois faltar à vossa felicidade, que é infinita?
Tudo isso é verdade, responde o Senhor, como o faz dizer o Cardeal Hugo, explicando o texto citado de Isaías; tudo isso é verdade, mas, perdendo o homem, penso que perdi tudo, que nada mais me resta; as minhas delícias eram estar com os homens, e eu os perdi; ei-los condenados a viverem longe de mim para sempre!...
Mas como pode Deus dizer que os homens são as suas delícias? — Ah! responde S. Tomás, é que Deus ama o homem, como se o homem fosse seu Deus, e como se não pu-desse ser feliz sem o homem. S. Dionísio ajunta que, devido ao amor que tem aos homens, Deus parece fora de si mesmo. Há um provérbio que diz que o amor põe fora de si aquele que ama: Amor extra se rapit.
Não, disse Deus, não quero perder os homens; haja um Redentor que satisfaça por eles à minha justiça, e os resgate das mãos de seus inimigos e da morte eterna que mereceram...
Aqui S. Bernardo, contemplando esse mistério, julga ver uma contenda entre a Justiça e a Misericórdia de Deus. — Estou perdida, diz a Justiça, se Adão não for punido. — Estou perdida, diz por sua vez a Misericórdia, se o homem não obtiver perdão. O Senhor põe fim a essa contenda: “Morra um inocente, diz ele, e salve-se o homem da pena de morte, em que incorreu.”
Na terra não havia esse inocente. Então, disse o Padre E-terno, já que entre os homens não há quem possa satisfazer a minha justiça, qual dos habitantes do céu descerá para resgatar a humanidade? Os anjos, os querubins, os serafins, todos calam-se, ninguém responde. Só responde o Verbo Eterno e diz: Eis-me aqui, mandai-me. Meu Pai, uma pura criatura, um anjo, não poderia oferecer a vós, Majestade infinita, uma digna satisfação pela ofensa recebida do homem. E mesmo que vos quisésseis contentar com uma tal reparação, pensai que até esta hora nem os nossos benefícios, nem as nossas promessas e ameaças puderam decidir o homem a amar-nos. É que ele não sabe ainda a que ponto o amamos; se quisermos obri-gá-lo a amar-vos infalivelmente, eis a mais bela ocasião que possamos ter: eu, vosso unigênito Filho, encarregar-me-ei de resgatar o homem perdido, descerei à terra, tomarei um corpo humano, morrerei para pagar a pena que ele deve à vossa jus-tiça; esta será assim plenamente satisfeita e o homem se per-suadirá do nosso amor para com ele.
Mas, pensa, meu Filho, responde o Padre Eterno; pensa que, se te encarregares de satisfazer pelo homem, terás de levar uma vida cheia de trabalhos e dores. — Não importa, eis-me, mandai-me... Pensa que terás de nascer numa gruta, que será estábulo de animais; que depois terás de fugir para o Egito a fim de escapar das mãos desses mesmos homens que pro-curarão, desde a infância, tirar-te a vida. — Não importa, mandai-me... Pensa que, voltando do Egito, terás de levar vida extremamente penosa e abjeta como auxiliar dum pobre artífice. — Não importa, mandai-me... Pensa enfim que, quando apare-ceres em público para pregar tua doutrina e te manifestar ao mundo, terás sim discípulos, mas serão pouquíssimos; a maior parte dos homens te desprezará, te tratará de impostor, de mago, insensato, samaritano e não deixará de perseguir-te, enquanto não e fizer nos mais ignominiosos tormentos e sus-penso num patíbulo infame. — Não importa, mandai-me...
Lavrado o decreto de que o Filho de Deus se faria homem para ser o Redentor do gênero humano, o Arcanjo Gabriel foi enviado a Maria. A humilde Virgem consente em tornar-se a Mãe de Deus e o Verbo Eterno se faz carne. Eis pois Jesus no seio de Maria; e entrando no mundo, ele diz com a mais pro-funda humildade e inteira obediência: Meu Pai, já que os homens não podem aplacar vossa justiça por suas obras nem por seus sacrifícios, eis-me aqui, o vosso Filho unigênito, revestido da carne humana, e pronto a expiar as faltas humanas por meus sofrimentos e por minha morte. Assim o faz falar S. Paulo: Entrando no mundo, diz: Não quiseste hóstia, nem oblação, mas me formaste um corpo... E eu disse: Eis-me que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade (Hb 10,5).
Assim, pois, por nós míseros vermes e para ganhar o nosso amor, é que Deus quis fazer-se homem. Sim, isso é de fé, como a Santa Igreja o proclama: “Por nossa causa e para nos salvar, ele desceu do céu..., diz ela, e se fez homem”. Sim, um Deus fez isso para nos obrigar a amá-lo.
Quando Alexandre Magno venceu o Dario e se apoderou da Pérsia, para cativar o afeto daqueles povos, se vestiu à mo-da deles. O nosso Deus empregou, de certo modo, o mesmo meio para cativar os corações dos homens: tomou a sua semelhança e mostrou-se ao mundo feito homem. Quis assim mostrar até aonde ia o seu amor a nós: O amor de Deus nosso Salvador apareceu a todos os homens (Tt 2,11).
O homem não me ama, parece dizer o Senhor, porque não me vê; vou mostrar-me a ele e conversar com ele, e assim me fazer amar. Ele foi visto sobre a terra, disse o profeta, e viveu familiarmente com os homens (Br 3,38).
O amor de Deus pelo homem é imenso, e o foi desde a eternidade: Eu te amei com amor eterno, diz-nos ele, e por misericórdia te tirei do nada (Jr 31,3). Mas esse amor não se mani-festara em toda a sua incompreensível grandeza. Apareceu realmente quando o Filho de Deus se fez ver sob a forma duma criança reclinada sobre palha num estábulo. Foi então que, como diz o Apóstolo, se manifestou a bondade, a ternura, ou, segundo o texto grego, o amor singular do nosso Deus Salva-dor aos homens (Tt 3,4). Deus já havia mostrado o seu poder criando o mundo, observa S. Bernardo, e sua sabedoria governando-o. Na encarnação do Verbo, porém, manifestou a grandeza de sua misericórdia. Antes que Deus aparecesse sobre a terra revestido da natureza humana, continua o mesmo Santo, os homens não podiam fazer-se uma justa idéia da bondade divina. Por isso ele se encarnou a fim de descobrir aos homens toda a extensão de sua bondade.
E de que outro modo poderia o Senhor provar ao homem ingrato a sua bondade e amor? Desprezando a Deus, diz S. Fulgêncio, o homem separara-se dele para sempre. Mas não podendo mais o homem voltar-se para Deus, o Senhor veio procurá-lo sobre a terra. S. Agostinho havia já expressado o mesmo pensamento: “Como não podíamos ir ao nosso celeste médico, ele dignou-se vir a nós”.
Quero atraí-los, disse o Senhor, e uni-los a mim pelos laços do amor (Os 11,4). Os homens cativam-se pelo amor; os sinais de afeto que recebem são como cadeias que os prendem e os forçam por assim dizer a amar a quem os ama. Fazendo-se homem, o Verbo Eterno nos deu a maior prova possível de amor com o fim de ganhar os nossos corações e de ser por eles amado com ternura, disse Hugo de S. Vítor.
Foi justamente isso que quis dar a entender nosso Salva-dor a um devoto religioso franciscano, o Pe. Francisco de S. Tiago, coo se narra no Diário franciscano de 15 de dezembro. Jesus mostrou-se-lhe várias vezes sob forma dum belo Infante. Como o servo de Deus procurasse retê-lo perto de si, o Menino sempre fugia, pelo que o piedoso sacerdote se queixava amorosamente. Um dia o divino Menino apareceu-lhe novamente, mas dessa vez empunhava cadeias de oiro, para lhe dar a entender que vinha com a intenção de prendê-lo e de ficar preso a ele para não mais se separarem. Encorajado com isso, o religioso tomou as cadeias, prendeu os pés do amável Menino e estreitou-o contra o coração. Desde então creu ver sempre em seu coração o Menino Jesus feito seu prisioneiro de amor. O que Nosso Senhor fez nessa circunstância com seu piedoso servo, ele o fez cm todos os homens, quando se encarnou. Por esse prodígio de caridade quis de certo modo fazer-se nosso cativo e prender ao mesmo tempo os nossos corações pelos laços do amor, conforme já havia predito por Oséias: “Atraí-os para mim com vínculos próprios de homens, com os vínculos da caridade”.
De diversos modos, diz S. Leão, havia Deus beneficiado o homem. Jamais, porém, manifestou melhor o excesso de sua bondade para conosco do que enviando seu unigênito Filho para nos resgatar, ensinar o caminho da salvação e proporcionar a vida da graça. Então, assim se expressa o Santo, “ele saiu dos limites ordinários de sua ternura, quando, na pessoa de Jesus Cristo, a Misericórdia desceu aos pecadores, a Verdade se apresentou aos desviados, e a Vida veio em socorro dos que estavam mortos”.
S. Tomás pergunta porque a Encarnação do Verbo se diz obra do Espírito Santo: Et incarnatus est de Spiritu Sancto. É certo que todas as obras de Deus chamadas pelos teólogos Opera ad extra, isto é, que têm por objeto as criaturas, pertencem às três pessoas divinas. Por que então a Encarnação é atribuída só ao Espírito Santo? A principal razão, alegada pelo Doutor Angélico, é que todas as obras do amor divino são atribuídas ao Espírito Santo, que é o amor substancial do Pai e do Filho; ora, a obra da Encarnação foi o puro efeito do amor i-menso que Deus tem ao homem. Isso quis significar o profeta dizendo que Deus viria ao lado do meio-dia, expressão que designa, segundo o Abade Ruperto, o grande amor de Deus para conosco. Também S. Agostinho afirma que o Verbo Eter-no veio ao mundo, principalmente a fim que o homem soubesse quanto Deus o ama. E segundo S. Lourenço Justiniano, “ja-mais Deus fez resplandecer aos olhos dos homens a sua ado-rável caridade, como quando se fez homem”.
Porém o que mais faz conhecer o amor divino para com o gênero humano, é que o Filho de Deus veio buscá-lo, quando este dele fugia. É a isso que alude o Apóstolo quando diz falando do Verbo divino: Não tomou a natureza dos anjos, e sim a carne dos filhos de Abraão. A palavra apprehendit emprega-da aqui, observa S. João Crisóstomo, significa que ele se apoderou do homem à maneira de quem persegue um fugitivo a quem quer prender. Sim, Deus desceu do céu como para pren-der o homem ingrato que dele fugia, como se lhe dissesse: “Homem, vê quanto te amo; desci do céu à terra expressamen-te para te buscar. Porque foges de mim? Pára, ama-me; não fujas mais de mim que tanto te amo”.
Deus veio pois procurar o homem perdido; e a fim de melhor lhe testemunhar o seu amor e movê-lo a amar enfim Aquele que tanto o tinha amado, o Senhor quis, ao manifestar-se-lhe pela primeira vez, aparecer sob a forma duma tenra criancinha reclinada sobre a palha. “Felizes palhas, mais belas do que as rosas e os lírios! exclama S. Pedro Crisólogo; que terra afortunada vos produziu? e que felicidade é a vossa por haverdes servido de leito ao Rei dos céus! Ah! continua o Santo, sois bem frias para Jesus, porque não podeis acalentá-lo na gruta úmida, onde ele tirita de frio; mas sois para nós fogo e chama, pois que acendeis em nossos corações um incêndio de amor que todas as águas dos rios não poderiam apagar”.
Não bastou ao amor divino, diz S. Agostinho, ter feito o homem à sua imagem, quando criou nosso primeiro pai Adão; quis fazer-se à nossa imagem para resgatar-nos. Adão comeu do fruto proibido por instigação da serpente, que dissera a Eva que lhe bastaria provar desse fruto para se tornar semelhante a Deus, quanto à ciência do bem e do mal. Eis porque o Senhor disse então: “Adão se fez como um de nós” (Gn 3,22). Deus falava assim por ironia, e para censurar a Adão a sua temeridade; “mas nós, observa Ricardo de S. Vítor, depois da Encarnação do Verbo, podemos dizer com verdade: Eis que Deus se fez como um de nós”. “Considera esse prodígio, ó homem”, exclama S. Agostinho: “O teu Deus se fez teu irmão”, tornou-se semelhante a ti; fez-se filho de Adão como tu, revestiu-se a mesma carne, tornou-se passível e mortal como tu. Podia to-mar a natureza angélica. Mas não, preferiu unir-se à tua própria carne, a fim de satisfazer à justiça divina com uma carne vinda de Adão pecador, embora isenta de seu pecado. E disso se gloriava chamando-se repetidas vezes o Filho do homem, e autorizando-nos assim a chamá-lo nosso verdadeiro irmão.
Um Deus fazer-se homem é um abaixamento incomparavelmente maior do que se todos os príncipes da terra e todos os anjos e todos os santos do céu, sem excetuar a Mãe de Deus, se abaixassem ao ponto de não serem mais do que um fio de erva ou um pouco de fumo. Pois que a erva, o fumo, bem como os príncipes, os anjos e os santos são criaturas, enquanto que da criatura a Deus a distância é infinita. — Mas, observa S. Bernardo, quanto mais esse Deus se humilhou fazendo-se homem por nós, tanto mais fez conhecer a grandeza de sua bondade. Também o Apóstolo exclama que o amor de Jesus Cristo para conosco é tal, que nos constrange e força extremamente a amá-lo.
Ah! se a fé não nos desse a certeza, quem poderia jamais imaginar que por amor dum verme da terra como é o homem, um Deus se fez verme da terra como o homem! Se aconteces-se, diz um piedoso autor, que passando pela estrada pisásseis casualmente um verme e o matásseis, e que alguém, vendo-vos ter dele compaixão, vos dissesse: Se quereis restituir a vi-da a esse pobre verme, deveis primeiro tornar-vos como ele, e depois abrindo-vos as veias, banhá-lo em vosso sangue; — que responderíeis? — Que me importa, diríeis certamente, que o verme ressuscite ou fique morto, que eu tenha de procurar a sua vida com a minha morte? Essa seria com mais razão a vossa resposta, se se tratasse não dum verme inocente, mas dum áspide ingrato que, depois de beneficiado por vós, vos tentasse tirar a vida. Mas se, não obstante isso, levásseis o amor ao ponto de sofrer a morte para restituir a vida a essa malvado reptil, que diriam os homens? E se esse animal salvo assim pela vossa morte tivesse raciocínio, que não faria por vós? Mas Jesus Cristo fez isso por ti, mísero verme da terra; e tu ingrato tentaste muitas vezes tirar-lhe a vida, e os teus pecados o teriam matado realmente, se ele ainda estivesse sujei-to à morte. Tens sido mais vil a respeito de Deus do que o verme a teu respeito! Que importava a Deus que ficasses ou não no pecado, presa da morte e da condenação segundo o teu mérito? E esse Deus teve tanto amor por ti que, para livrar-te da morte eterna, primeiro se fez verme como tu, e depois para salvar-te quis derramar todo o seu sangue e sofrer a mor-te que merecias.
Sim, tudo isso é de fé: O Verbo se fez carne, diz S. João, e amou-nos ao ponto de nos lavar em seu próprio sangue (Ap 1,5). A Santa Igreja ao considerar a obra da Redenção declara-se aterrada. E ela não faz senão repetir as palavras do profeta a exclamar: Senhor, eu ouvi a tua palavra, e temi; tu saíste para a salvação do teu povo, para o salvar com o teu Cristo (Ha 3,2-13).
S. Tomás tem pois razão de chamar o mistério da Encarnação o milagre dos milagres; milagre incompreensível, em que Deus mostra o poder de seu amor pelos homens; pois que, de Deus que é, esse amor o faz homem, de Criador, criatura nascida duma criatura, diz S. Pedro Damião; de soberano Senhor, simples servo, de impassível, sujeito às penas e à morte. É as-sim que, segundo a palavra da SS. Virgem, ele fez brilhar o poder de seu braço. S. Pedro de Alcântara ao ouvir uma vez cantar o Evangelho que se reza na terceira missa de Natal: In principio erat Verbum etc., contemplando esse mistério ficou de tal modo inflamado de amor para com Deus que em êxtase se elevou nos ares e, embora distante, foi levado para diante do SS. Sacramento. E S. Agostinho dizia que se não saciava nunca de considerar a grandeza da bondade divina na obra da redenção dos homens. É sem dúvida por causa da grande devoção que ele tinha a esse sublime mistério, que o Senhor lhe mandou escrever sobre o coração de S. Maria Madalena de Pazzi estas palavras: E o Verbo se fez carne.
II.
Quem ama, não ama senão para ser amado; assim, diz S. Bernardo, Deus que tanto nos amou, só quer de nós o nosso amor. Dirigindo-se depois a cada um de nós, ajunta: “Homem, qualquer que seja, viste o amor que Deus te mostrou fazendo-se homem, sofrendo, morrendo por ti; quando é que Deus verá por experiência em tuas ações o teu amor a ele?”
Ah! ao ver que um Deus se quis revestir da nossa carne, levar vida tão penosa, e padecer morte tão cruel por nós, cada homem deveria arder de amor para com esse Deus tão amoroso. Oxalá romperas tu os céus, e desceras de lá! Os montes se derreteriam diante da tua face; as águas arderiam em fogo (Is 64,1). Meu Deus, exclamava o profeta antes da vinda do Messias, dignai-vos descer do céu, tomar a natureza humana e ha-bitar entre nós! Vendo-vos os homens feito como um deles, as montanhas se derreterão, aplanar-se-ão para eles todos os obstáculos, todas as dificuldades, que os impedem de observar os vossos preceitos e os vossos conselhos; e as águas arderão em fogo: a chama que acendereis nos corações penetrará nas almas mais glaciais e as abrasará de amor por vós!
E de fato, depois da encarnação do Verbo, que belo incêndio de amor divino se viu resplandecer em tantas almas gene-rosas! Desde que Jesus Cristo veio habitar entre nós, Deus foi certamente mais amado pelos homens num só século, do que o fora durante os quarenta séculos que precederam a sua vinda. Quantos jovens, nobres e até monarcas renunciaram às riquezas, às honras e à dignidade régia, retiraram-se ao deserto ou ao claustro, e abraçaram uma vida pobre e desprezada a fim de melhor mostrar a Deus o seu amor! Quantos mártires caminharam jubilosos e sorridentes aos tormentos e à morte! Quantas tenras virgens recusaram a mão dos grandes do mundo e derramaram seu sangue por Jesus Cristo a fim de retribuir de alguma maneira a um Deus que quis encarnar-se e morrer por seu amor!
Sim, tudo isso é verdade; mas consideremos agora o que nos deve fazer chorar. Tem-se visto igual maneira de agir em todos os homens? Têm todos procurado corresponder a esse grande amor de Jesus Cristo? Ah! a maior parte lhe pagou e ainda paga com ingratidão. E tu, meu irmão, dize-me: qual tem sido o teu reconhecimento para com um Deus, que tanto te amou? Tens-lhe sempre agradecido? tens considerado o que significam as palavras: um Deus feito homem e morto por ti?
Um homem que assistia uma vez a missa sem devoção, como fazem tantos, não fez nenhum sinal de reverência ao ou-vir dizer no fim: “E o Verbo se fez carne”. O demônio deu-lhe uma rude bofetada dizendo: “Ingrato, lembram-te que Deus se fez homem por ti, e tu nem te dignas inclinar-te? Ah! se Deus tivesse feito outro tanto por mim, eu lhe ficaria grato eterna-mente”.
Dize-me, cristão, que mais poderia Jesus Cristo fazer para merecer o teu amor? Se o Filho de Deus tivesse de salvar da morte a seu próprio Pai, que mais poderia fazer do que abaixar-se ao ponto de tomar carne humana e sacrificar sua vida para resgatá-lo? Digo mais: Se Jesus Cristo fosse um simples homem e não uma pessoa divina, e quisesse por qualquer prova de afeição obter o amor de seu Pai, poderia ele fazer mais do que fez por ti? E se um dos teus servos tivesse dado o seu sangue e sua vida por amor de ti, não te prenderia o coração e te obrigaria a amá-lo ao menos por gratidão? E porque é que Jesus Cristo, mesmo dando por ti a sua vida, não conseguiu ganhar o teu amor?
Ah! se os homens desprezam o amor divino, é porque não compreendem, digamos melhor, não querem compreender que felicidade é possuir a graça de Deus, a qual, segundo a ex-pressão do Sábio, é um tesouro infinito, e faz amigos de Deus aos que dela gozam (Eclo 7,14). Os homens estimam e procuram o favor dum príncipe, dum prelado, dum rico, dum sábio, até dum desclassificado na sociedade; e há infelizes que não fazem caso da graça de Deus: renunciam-na por uma fumaça, um prazer brutal, um pouco de terra, um capricho, um nada.
E tu, caro irmão, que dizes? queres ser também do número desses ingratos? Se Deus não te satisfaz, diz S. Agostinho, vê se podes encontrar algo que valha mais. Vai, pois, procura um príncipe mais benfazejo, um protetor, um irmão, um amigo mais amável, e quem te tenha amado mais do que Deus; pro-cura alguém que, mais do que Deus, te possa fazer feliz nesta vida e na outra.
Quem ama a Deus nenhum mal tem a temer; pois Deus assegura que não pode deixar de amar a quem o ama; e quando alguém é amado por Deus, que temor poderá ter? É assim que falava Davi: O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem pois temerei? E as irmãs de Lázaro contentaram-se em dizer ao Senhor que seu irmão estava enfermo, pensando: Je-sus o ama e isso basta; Ele não podia deixar de ir em seu auxí-lio e curá-lo.
De outro lado como pode amar a Deus quem despreza o seu amor? Ah! resolvamo-nos uma vez a pagar com amor a um Deus que tanto nos tem amado. Peçamos-lhe sem cessar nos conceda o grande dom de seu amor. Segundo S. Francisco de Sales, é essa a graça que devemos desejar e pedir mais que toda outra graça, porque com o amor divino obtemos todos os outros bens como no-lo assegura o Sábio. Eis por que S. Agostinho dizia: “Amai e fazei o que quiserdes”. Quem ama a alguém foge de tudo que o possa desgostar e procura agradar-lhe sempre mais. Assim quem ama verdadeiramente a Deus nada faz que o possa desagradar, mas aplica-se a fazer o possível para lhe causar prazer.
Para obtermos mais depressa e mais seguramente esse precioso dom do divino amor, recorramos Àquela que mais amou a Deus, digo, à SS. Virgem Maria sua Mãe: o seu coração era tão inflamado de amor por Deus, que os demônios, no dizer de S. Bernardino de Sena, não ousavam aproximar-se dela para tentá-la. Ricardo ajunta que os próprios Serafins podiam descer do céu para aprender de Maria o modo de amar a Deus. E já que o coração de Maria era sempre todo abrasado do divino amor, continua S. Boaventura, ela comunica o mesmo fogo a todos os que a amam e dela se aproximam, tornando-os semelhantes a ela.
(Quem deseja ajuntar a estas considerações algum exemplo atinente à devoção do Menino Deus, pode escolher-se um dos que damos no fim das Meditações.)
Afetos e Súplicas.
“Ó fogo que sempre ardes, abrasa-me”. Ó Verbo encarna-do, fizestes-vos homem para acender em nós o fogo do amor divino; como pudestes pois encontrar tanta ingratidão nos corações dos homens? Nada poupastes para vos fazer amar por eles; sacrificastes o vosso sangue e a vossa vida. Como pois resistem eles a tanta bondade? Ignoram o que fizestes por eles? Ah! eles sabem e crêem que por amor deles descestes do céu para vos revestir da carne humana, vos sobrecarregar de suas misérias, viver entre dores e padecer uma morte ignominiosa. Como pois passam sua vida sem sequer pensar em vós? Amam os parentes, amam os amigos, amam até os animais. Se deles recebem qualquer sinal de afeto, procuram remunerá-los; só a vós não testemunham nem amor nem reconhecimento. Mas ai de mim, gemendo sobre a ingratidão dos homens, acuso-me a mim mesmo de haver sido mais do que os outros culpado para convosco. Mas a vossa bondade me encoraja. Com tanta paciência me tendes suportado, a fim de me perdoar e abrasar no vosso amor, contanto que me arre-penda e vos ame. Sim, meu Deus, quero arrepender-me e me arrependo de toda a minha alma de vos ter ofendido; quero amar-vos de todo o meu coração. Confesso, meu Redentor, que meu coração já não merece ser aceito por Vós, porque vos abandonou para se apegar às criaturas; mas vejo que o quereis ainda apesar de sua indignidade: eu vo-lo consagro e vo-lo dou com toda a minha vontade. Inflamai-o pois todo inteiro de vosso santo amor e fazei que doravante não ame outra coisa fora de vós, bondade infinita, digna dum infinito amor. Amo-vos, meu Jesus, amo-vos, soberano Bem, amo-vos, único amor de mi-nha alma. Ó Maria, minha Mãe, que sois a Mãe do belo Amor, obtende-me a graça de amar o meu Deus; é de Vós que o espero.

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