23 de novembro de 2013

Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo - Parte 1 - Meditação 7

CONSIDERAÇÃO VII.

O VERBO ETERNO DE FELIZ SE FEZ PADECENTE.

Et erunt oculi tui videntes Praeceptorem tuum.
Os teus olhos estarão sempre vendo o teu Mestre (Is 30,20).

Tudo o que há no mundo, diz S. João, é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e orgulho da vida. Eis as três más paixões que se apoderaram do homem e o dominaram depois do pecado de Adão: o amor dos prazeres, o amor das riquezas e o amor das honras, do qual nasce o orgulho. O Verbo divino veio à terra ensinar-nos por seu exemplo a vencer esses três inimigos de nossa alma: para ensinar-nos a mortificação dos sentidos, oposta ao amor dos prazeres, de feliz Ele se fez padecente; para ensinar-nos o desapego dos bens ter-renos, oposto ao amor das riquezas, de rico Ele se fez pobre; e enfim, para ensinar-nos a humildade, oposta ao amor das honras, Ele, o Altíssimo, se rebaixou.
Trataremos esses três pontos nos três últimos dias da Novena; hoje falaremos do primeiro.
Nosso Redentor, pois, veio ensinar-nos, mais pelo exemplo de sua vida do que por sua doutrina, a amar a mortificação dos sentidos; e é por isso que de feliz que Ele é e sempre foi, se fez padecente. Consideremos bem essa verdade, e peçamos a Jesus e Maria nos iluminem.
I.
O Apóstolo, falando da divina beatitude, chama a Deus o único feliz e poderoso. E com razão, porque toda a felicidade que nós, suas criaturas, podemos gozar, não é senão uma mínima participação da felicidade infinita de Deus; os bem-aventurados do céu encontram nela a sua beatitude, isto é, no entrar no oceano imenso da beatitude de Deus: Entra no gaudio de teu Senhor. Esse é o paraíso que o Senhor dá à alma quando entra na posse do reino eterno.
Quando Deus no princípio criou o homem e o colocou na terra, a sua intenção não era que ele padecesse, pois segundo a Escritura: Ele o pôs num jardim de delícias, para de lá passar ao céu, onde devia gozar eternamente a glória dos bem-aventurados. Mas o homem infeliz com o pecado se tornou in-digno do paraíso terrestre, e se fechou as portas do paraíso celeste condenando-se voluntariamente à morte e aos sofrimentos eternos. Ora, o Filho de Deus resolveu livrar o homem de ruína tão funesta, e que fez? Ele que era feliz e cuja felicidade era infinita, quis submeter-se às dores, a penas de toda a sorte.
Nosso divino Redentor poderia arrancar-nos das mãos dos nossos inimigos sem sofrer. Mesmo vindo à terra, poderia gozar, como no céu, a felicidade e passar sua vida em delícias e nas honras que são devidas ao Rei e Senhor do universo. Uma só gota de sangue, uma lágrima que Ele oferecesse a Deus em nosso favor, teria bastado para resgatar o mundo e uma infinidade de mundos: “O menor sofrimento de Jesus Cristo, diz S. Tomás, teria realizado uma redenção suficiente devido à dignidade infinita de sua pessoa”. Mas não: Sendo-lhe oferecido o prazer, escolheu a cruz, renunciou a todas as honras e a todos os prazeres e abraçou na terra uma vida cheia de sofrimentos e ignomínias.
Sem dúvida, diz S. João Crisóstomo, o homem poderia ser resgatado por um ato qualquer do Verbo encarnado; “mas o que bastava à nossa redenção não bastava ao seu amor por nós”. E como quem ama quer ser amado, Jesus Cristo para ver-se amado do homem, quis padecer muito e escolher uma vida de sofrimentos a fim de obrigar o homem a amá-lo muito. O Senhor revelou a S. Margarida de Cortona que jamais teve em sua vida a menor consolação sensível. Segundo a predição de Jeremias, a vida de Nosso Senhor foi semelhante ao mar, que é todo amargo e salgado, sem uma só gota de água doce. Isaías tinha pois razão de chamá-lo Homem de dores, como se no mundo só tivesse de sofrer. Segundo S. Tomás, Jesus Cris-to tomou sobre si não simples dores mas o cúmulo da dor; isto é, quis ser o homem mais aflito que jamais viveu ou apareceu neste mundo.
E, com efeito, o Homem-Deus veio à terra expressamente para sofrer; é para isso que tomou um corpo afeito à dor. Encerrando-se no seio de Maria, como no-lo ensina o apóstolo, Ele fala assim a seu Pai celeste: Não quisestes hóstia nem oblação, mas me formastes um corpo. Isto é: Meu Pai, rejeitastes os sacrifícios dos homens como incapazes de aplacar vossa justiça ofendida por seus pecados; destes-me um corpo, como já vo-lo havia pedido, delicado, sensível, e todo afeito ao sofrimento; esse corpo eu aceito e com gosto vo-lo ofereço, a fim que sofrendo por ele todas as penas que devem encher a minha vida e dar-me finalmente a morte na cruz, eu possa a-placar a vossa cólera contra o gênero humano, e atrair-me as-sim o amor dos homens.
E eis que apenas entrado no mundo começa o seu sacrifício; começa logo a sofrer, porém bem mais do que os outros homens. As crianças, quando ainda no seio materno, não sofrem porque se acham em uma situação natural; ou pelos me-nos, se padecem algum pouco, não têm disso consciência por-que estão privadas de entendimento; mas o divino Infante suporta durante noves meses a obscuridade daquele cárcere, suporta a pena de não poder mover-se, e sabe perfeitamente o que sofre. Também Jeremias havia predito que uma mulher, que foi Maria, deveria ter envolto em suas entranhas, não uma criança, mas um homem. É certo que Jesus Cristo era então uma criança quanto à idade, mas era homem perfeito quanto ao uso da razão, porque, desde o primeiro instante de sua exis-tência, era cheio, como diz o apóstolo, de todos os tesouros da sabedoria e ciência. “Jesus Cristo era homem perfeito desde o seu nascimento, escreve S. Bernardo; digo, quanto à sabedori-a, não quanto à idade”. E S. Agostinho: “Era sábio e maneira inexplicável, duma sabedoria unida à infância”.
Sai por fim do cárcere do seio materno; talvez para gozar a vida? sai para sofrer ainda mais. Nasce no coração do inverno, numa caverna que serve de abrigo aos animais, e nasce no meio da noite e em tal estado de pobreza que não tem nem fogo para se aquecer, nem bastantes paninhos para se proteger do frio. Falando do presépio de Belém exclama S. Tomás de Vilanova: “Oh! que belos ensinamentos vem-nos dessa cátedra”. Lá Jesus Cristo nos ensina o amor dos sofrimentos. Na gruta, observa Salmeron, tudo aflige os sentidos. Tudo aflige a vista: só se vêm pedras brutas e negras. Tudo aflige o ouvido: só se ouve a voz dos animais. Tudo aflige o olfato: só se sente o cheio repelente do lugar. Tudo aflige o tato: o divino Infante tem por berço uma manjedoura, e o seu leito é feito dum pouco de palha. — Ei-lo, esse Deus Menino, tão apertado entre as faixas que não se pode mover, Ele que veio, diz S. Zenão, para libertar o mundo. “Oh! quão abençoados, diz S. Agostinho, são esses felizes paninhos que serviram para purificar-nos das sujidades dos nossos pecados”. Ei-lo, esse divino Infante, que treme de frio, que chora para dar-nos a entender que padece, e que oferece a seu Pai suas primeiras lágrimas para nos poupar os prantos eternos que temos merecido. “Lágrimas de Jesus, como sois preciosas, exclama S. Tomás de Vilanova, vós la-vastes as nossas almas criminosas”.
E assim sempre aflita e atribulada foi a vida de Jesus Cris-to. Poucos dias depois de seu nascimento, é constrangido a fugir e exilar-se no Egito para escapar às mãos de Herodes; nesse país bárbaro teve de passar vários anos de sua infância pobre e desconhecido. Pouco diferente foi depois sua vida em Nazaré, onde residiu após a volta do Egito. Por fim foi pregado num patíbulo pelos carrascos e terminou sua vida num oceano de dores e opróbrios.
Ademais, notemo-lo bem, as dores que nosso Salvador padeceu na sua Paixão, a flagelação, a coroação de espinhos, a crucifixão, a agonia, a morte e todas as outras penas e injúrias de que foi cumulado no fim de sua vida, Ele as sofreu desde o princípio dela, porque desde a sua conceição teve constantemente diante dos olhos o horrível quadro de todos os tormentos que deveriam assaltá-lo no momento de deixar a terra. Ele predissera pela boca de Davi: A minha dor está sempre diante de mim. Aos pobres enfermos esconde-se o ferro ou o fogo com que precisam ser atormentados para recuperarem a saúde; mas Jesus não quis que lhe escondessem os instrumentos de sua Paixão, com os quais devia terminar a vida para nos dar a vida eterna; quis ter continuamente diante dos olhos os flagelos, os espinhos, os cravos, a cruz, que fariam um dia correr todo o sangue de suas veias, e lhe causariam uma morte dolorosíssima e privada de todo o alívio.
A irmã Madalena Orsini que há muito tempo sofria grave tribulação mereceu ver um dia Jesus que lhe apareceu como Crucificado para assim confortá-la com a memória de sua Paixão e animá-la a sofrer com paciência. A serva de Deus respondeu-lhe: “Mas, Senhor, vós ficastes só três horas sobre a cruz, enquanto que eu suporto esta dor a vários anos. — Ignorante, replicou Jesus, desde o primeiro momento que estive no seio de Maria, minha Mãe, padeci no meu coração, tudo quanto sofri mais tarde sobre a cruz”. — “Sim, diz Novarino, a cruz es-tava desde então impressa na alma do Senhor, e eis por que Isaías predisse que Ele nasceria com a marca de seu principado sobre os ombros”. Por isso, ó meu Redentor, exclama Drogon de Ostia, em toda a vossa vida só vos posso encontrar na cruz. A cruz em que Jesus morreu esteve sempre presente a seu espírito para atormentá-lo. Nem o sono, diz Belarmino, li-vrava o seu coração dessa terrível visão.
Porém o que encheu de amarguras a vida de nosso Redentor, bem mais do que as dores de sua Paixão, foi a vista dos pecados que os homens cometeriam mesmo depois de sua morte. Os nossos pecados foram outros tantos carrascos que o fizeram viver em contínua agonia e sob o peso de terrível tristeza que seria suficiente por si só a fazê-lo morrer a cada instante. Esse é também o pensamento de Léssio: a vista da in-gratidão dos homens, diz ele, causava de per si a Jesus uma dor capaz de fazê-lo morrer mil vezes.
Os flagelos, a cruz, a morte, não eram, aos olhos de nosso Salvador, objetos odiosos; ao contrário, eram-lhe caros e Ele os queria e desejava. Ele mesmo espontaneamente se ofereceu a sofrê-los, dizia Isaías; Ele não deu a vida contra a vontade, mas por própria escolha, como no-lo dá a entender com as palavras: Eu dou a minha vida por minhas ovelhas. Que digo? o seu mais ardente desejo no e curso de sua vida, foi de ver chegar o tempo de sua Paixão, em que devia cumprir-se a redenção dos homens; daí o que Ele disse na véspera de sua morte: Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco. Daí ainda aquele suspiro com que procurava, ao que parece, aliviar seu coração da espera demasiado longa: “Devo ser batizado com um batismo; e quão grande é a minha ansiedade, até que ele se conclua!” É preciso que eu seja mergulhado no batismo de meu próprio sangue, não para lavar a minha alma, mas para purificar minhas ovelhas das manchas de seus pecados; e quanto me sinto tomado do desejo de ver chegada a hora de ver-me exangue e morto sobre a cruz! — O que afligia Jesus não era o temor da morte, diz S. Ambrósio; era a demora do nosso resgate.
O Filho de Deus quis exercer sobre a terra o ofício de car-pinteiro, e era conhecido como tal: Não é este o carpinteiro, o filho do carpinteiro? Num sermão sobre a Paixão, S. Zenão dá a razão dessa preferência dizendo que os carpinteiros têm sempre em mãos peças de madeira e de pregos, e que Jesus gostava de ver esses objetos que lhe representavam os cravos e a cruz, futuros instrumentos de sua morte.
Assim, repetimos, o que afligia o coração de nosso Redentor era menos o pensamento de sua Paixão, do que a ingratidão com que os homens iam pagar o seu amor. Essa ingratidão o fez chorar no estábulo de Belém. Essa ingratidão o fez suar sangue vivo com agonia de morte no horto de Getsêmani; ela o encheu de tristeza tal que bastaria para tirar-lhe a vida; Ele mesmo no-lo declarou dizendo: Minha alma está triste até a morte. É essa ingratidão em fim que o fez morrer em abandono absoluto e sem nenhum consolo sobre a cruz. O homem incorrera em duas penas: a do dano ou da perda de Deus, e a do sentido ou do corpo; ora, segundo Suarez, Jesus Cristo quis satisfazer principalmente pela primeira; por isso foram muito maiores as penas interiores da alma do Senhor do que toas as outras do corpo.
II.
Também nós, pois, temos contribuído com nossos peca-dos a tornar tão amarga e dolorosa toda a vida de nosso salva-dor. Mas agradeçamos a sua bondade que nos dá tempo para repararmos o mal que fizemos.
Como poderemos repará-lo? Sofrendo com paciência as penas e as cruzes que o Senhor nos envia para o nosso bem. E o meio de praticarmos essa paciência Ele mesmo nos ensina quando nos diz: Ponde-me como um selo sobre o vosso coração, imprimi nele a imagem de vosso Salvador crucificado; — isto é: Considerai meu exemplo, as dores que padeci por vós; e assim sofrereis em paz todas as tribulações. “Coisa admirável, exclama S. Agostinho; esse Médico celeste quis tornar-se do-ente para nos curar de nossa doença com a sua”. Isaías havia predito: Nós fomos sarados com as suas pisaduras. Os sofri-mentos eram o remédio necessário para as nossas almas en-fermas pelo pecado; não havia outro; e nosso divino Médico quis primeiro tomá-lo, ajunta o Santo Doutor, a fim que não ti-véssemos repugnância de tomá-lo depois dele, nós que dele precisamos.
Daí se segue que, segundo S. Epifânio, para nos fazermos conhecer como verdadeiros seguidores de Jesus Cristo, devemos agradecer-lhe quando nos envia cruzes. E com razão, porque, tratando-nos assim, Jesus faz-nos semelhantes a Ele. — S. João Crisóstomo acrescenta uma reflexão de grande consolação: “Agradecendo a Deus os seus benefícios, diz ele, pagamos-lhe o que lhe devemos, mas, suportando as penas com paciência e por seu amor, Deus torna-se em certo sentido nosso devedor”.
E se quereis pagar a Jesus Cristo amor com amor, diz S. Bernardo, aprendei dele com o que deveis amar. Sabei sofrer qualquer coisa por esse Deus que tanto sofreu por vós. O de-sejo de dar gosto a Jesus Cristo e de lhe testemunhar seu a-mor fez os Santos tão ávidos e sedentos não de honras e pra-zeres, mas de sofrimentos e humilhações. Isso fazia dizer ao apóstolo: Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Feliz de estar unido a seu Deus crucifica-do, o apóstolo não ambicionava outra glória que de se ver com Ele na cruz. Isso também arrancava a S. Teresa o grito tão conhecido: “Ou padecer ou morrer!” como se dissesse: Meu divino Esposo, se quereis chamar-me a vós, eis-me pronta a seguir-vos com ações de graças; mas se vos aprouver deixar-me mais tempo na terra, não posso resignar-me a ficar sem sofrer: ou padecer ou morrer! — S. Maria Madalena de Pazzi ia ainda mais longe: “Sofrer, dizia ela, e não morrer!” isto é: Meu Jesus, desejo o paraíso para vos amar com mais perfeição; porém desejo ainda mais sofrer para compensar em parte o amor que me demonstrastes padecendo tanto por mim! — A venerável irmã Maria Crucificada da Sicília amava igualmente os sofri-mentos a tal ponto que costumava dizer: “É belo o paraíso; mas lá falta uma coisa: a dor”. O exemplo de S. João da Cruz não é menos admirável: Quando Jesus lhe pareceu com a cruz às costas e lhe disse: “João, pede-me o que quiseres”; o Santo só pediu sofrimentos e desprezos: “Senhor, respondeu ele, pa-decer e ser vilipendiado por vós!” Domine, pati et contemni pro te.
Se não temos coragem de desejar e pedir sofrimentos, procuremos ao menos aceitar com resignação os que Deus nos envia para o nosso bem: “Onde está Deus, diz Tertuliano, está também a paciência”. Dai-me uma alma que sofre com resignação, que eu lá encontrarei certamente Deus. O Salmista declarou que o Senhor se apraz em estar perto das almas aflitas; mas isso entende-se somente daquelas que suportam suas penas com paciência e sabem resignar-se à vontade divina. E a essas almas que Deus faz gozar a verdadeira paz, que consiste unicamente, como ensina S. Leão, em unir a nossa von-tade à de Deus. A conformidade à vontade divina, observa S. Boaventura, é como o mel que torna doces e amáveis também as coisas amargas. A razão disso é que, quem obtém tudo o que quer, nada mais tem a desejar, e por isso, diz S. Agostinho, deve ser feliz. Assim, quem não quer senão o que Deus quer, está sempre contente, porque então obtém tudo o que deseja, pois que nada acontece que não seja querido por Deus.
E quando Deus nos envia cruzes devemos não só resignar-nos à vontade divina, mas também agradecer-lhe; pois é isso um sinal de que Ele nos quer perdoar os nossos pecados e salvar-nos do inferno que temos merecido. Quem ofendeu a Deus deve ser castigado mais cedo ou mais tarde; peçamos-
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lhe pois nos castigue nesta vida e não na eternidade. Ai do pecador que no mundo prospera em vez de ser punido! Que Deus nos preserve da misericórdia de que fala Isaías quando disse: Façamos misericórdia ao ímpio. Senhor, exclamava S. Bernardo, não quero essa misericórdia; é o mais terrível de todos os castigos. Quando Deus não pune um pecador nesta vida, é sinal que deixa para puni-lo na outra, onde os castigos são e-ternos.
Vendo Jesus Cristo morto na cruz, diz S. Lourenço Justiniano, devemos considerar o grande dom que Ele nos fez derramando seu sangue para nos resgatar do inferno, e reconhecer ao mesmo tempo a malícia do pecado, que levou um Deus a morrer assim para obter o nosso perdão. — “Ó Deus eterno, exclama Drogon, nada me apavora tanto como ver vosso divino Filho golpeado de morte tão cruel por causa do pecado”.
Quando, pois, após o pecado recebemos de Deus algum castigo temporal, consolemo-nos vendo nele o penhor de sua disposição para nos fazer misericórdia na vida futura. O só pensamento de havermos desgostado a um Deus tão bom não nos deve porventura, se o amamos, tornar-nos mais contentes por ver-nos punidos justamente do que gozássemos todas as prosperidades e todos os bens do mundo? Essa reflexão é de S. João Crisóstomo. Quem ama verdadeiramente, ajunta ele, aflige-se mais com ter contristado a pessoa amada do que com ver-se castigado.
Ainda uma vez, consolemo-nos nos sofrimentos; e se to-das essas considerações não bastarem para nos restituir a paz, dirijamo-nos a Jesus Cristo; Ele mesmo nos consolará segundo a sua promessa: Vinde a mim todos os que sofreis e estais acabrunhados, e eu vos aliviarei. Se recorrermos ao Senhor, ou Ele nos livrará das nossas penas, ou nos dará a força de supor-tá-las com paciência. Ora, esta última graça é preferível à primeira, porque pela paciência na tribulação, além de expiarmos as nossas faltas nesta vida, merecemos ainda um novo grau de glória eterna no paraíso.
Nas nossas aflições e desolações, dirijamo-nos também a Maria, que é chamada a Mãe de misericórdia, a causa da nossa alegria e a consoladora dos aflitos. Lancemo-nos aos pés dessa boa Rainha que, como diz Lanspérgio, abre a todos o seio de sua maternal ternura, e não permite se retire alguém de seus pés triste e sem consolo. Segundo S. Boaventura, o seu ofício é compadecer-se de nossos males. Quem a invoca, diz Ricardo de S. Lourenço, acha-a sempre pronta a socorrê-lo. E com efeito quem implorou a sua assistência, pergunta Eutíquio, e foi jamais por Ela abandonado?
Afetos e Súplicas.
S. Maria Madalena de Pazzi prescreveu a duas de suas religiosas se conservasse, durante as festas de Natal, aos pés do divino Infante, para fazerem junto dele o ofício dos animais que o acalentaram com seu hálito, quando Ele tiritava de frio no estábulo: elas deviam acalentá-lo com louvores de amor, com ações de graças e suspiros de amor saídos de seus corações inflamados. — Meu caro Redentor, oxalá pudesse também eu exercer esse ofício. Sim, louvo-vos meu Jesus, louvo vossa misericórdia infinita, louvo vossa caridade infinita, que vos honra no céu e na terra, e uno minha voz à dos anjos para cantar com eles: Glória a Deus no mais alto dos céus. Rendo-vos graças por todos os homens, e especialmente por mim mesmo, mísero pecador. Que seria de mim, que esperança de perdão e de salvação poderia eu ter, ó meu Redentor, se não descêsseis do céu para salvar-me? Eu vos louvo, pois, eu vos agradeço e vos amo. Amo-vos mais do que todas as coisas, amo-vos mais do que a mim mesmo, amo-vos de toda a minha alma e dou-me todo a vós. Recebei, divino Infante, e aceitai esses atos de amor; e se eles são frios por saírem dum coração gelado, acalentai este pobre coração, este coração que vos ofendeu, mas que se arrepende. Sim, Senhor, arrependo-me sobre todas as coisas de vos haver ofendido, a vós que me haveis amado tan-to. Agora não desejo senão amar-vos; eis a única coisa que vos peço: dai-me o vosso amor, e fazei de mim o que vos a-prouver. Fui um tempo mísero escravo do inferno; mas hoje que estou livre dessas funestas cadeias, consagro-me inteira-mente a vós: consagro-vos o meu corpo, os meus bens, a mi-nha vida, a minha alma, a minha vontade, e toda a minha liber-dade. Já não quero ser meu, mas só vosso, meu único bem. Dignai-vos prender a vossos pés meu pobre coração, a fim que não se separe jamais de vós.
Ó Maria, minha Santíssima Mãe, impetrai-me a graça de viver sempre nas felizes cadeias do amor do vosso adorável Filho. Dizei-lhe que me aceite por escravo de seu amor; Ele faz tudo o que lhe pedis. Rogai, rogai por mim. Assim o espero.

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