30 de novembro de 2013

O Diabo, Lutero e o Protestantismo - Pe. Júlio Maria - Capítulo 3

CAPÍTULO III

A QUEDA DE LUTERO
A fisionomia da mocidade de Lutero já nos é conhecida. Esse período de sua existência não foi, de certo, a preparação condigna para a missão tão sublime de quem se dizia chamado por Deus para mudar por completo as idéias de um século e reformar a Igreja de Cristo.
Bom é que o leitor saiba logo nada estar eu adiantando por minha conta e risco. A minha apreciação vai apoiada sobre os documentos contemporâneos, pois recorri aos melhores autores modernos que relataram os fatos (*).
Anteriormente vimos as tendências de sua meninice; estas já se apresentam como sinais certos na mocidade; afinal, na idade madura, serão fatos consumados. Temos assim, realizada a palavra da sabedoria: “O homem não se afastará, na velhice, do caminho seguido em sua mocidade. O que não juntaste em tua juventude, como o poderás encontrar em tua velhice?” (Eclesiástico 25,5).
Entremos agora nos meandros da segunda fase desta existência, tristemente célebre e cinicamente corrupta.

1. O ESTADO DE ALMA E A CONVERSÃO DE LUTERO
Vimos Lutero exercendo o professorado na universidade de Wittemberg: aí insensivelmente se precipitou no maiores absurdos e erros que, por cúmulo de obcecação mental, tomou como “A DESCOBERTA DA VERDADE”, sepultada pelos antigos.
Pode-se acreditar na sinceridade de sua conversão? Optamos pela afirmativa, muito embora se possa admitir que o principal móvel desta mudança de vida tenha sido o temor dos castigos que o desejo de servir a Deus.
Por que este medo?...
Devido aos dois motivos já expostos: o seu gênio arrebatado que nos primeiros anos lhe atraíra tantos castigos, e sua vida livre e desregrada da mocidade. Examinando-se tudo atentamente, nota-se que a conversão de Lutero, conquanto se tenha como sincera de sua parte, não possuía fundamentos suficientemente sobrenaturais, para agüentar o peso de seu estado de sacrifícios preparativos à santidade.
Ingressando no convento, o seu ânimo irrequieto achou nesta ambiente, quanto nos múltiplos afazeres que o envolviam, uma preocupação para mantê-lo, relativamente à parte externa, na linha reta do dever.
Mas o conhecido axioma – OMNE VIOLENTUM NON DURAT – achou em Lutero a aplicação cabal. Quis sair do mal e praticar o bem; faltando, porém, o apoio sobrenatural à sua resolução, este seu voluntarismo, redundando num esforço contínuo, se transformou, para ele, num jugo e num tormento. Esta oposição formal entre as idéias, ou tendências de Lutero, e o seu teor de vida, gerou nele um terrível escrúpulo, pelos modernos psicólogos denominado OBSESSÃO: estado de alma em mais comum do que geralmente se cogita, sobretudo entre estudantes e intelectuais.
Para disfarçar a sua realidade, empresta-se-lhe o nome benigno de neurastenia, nervosismo, mania; no entanto, fundamentalmente, não passa de uma verdadeira moléstia: a OBSESSÃO ou o ESCRÚPULO.
Ao começar manifestar-se, esta importuna impressão é mal e mal perceptível, não indo além de um abatimento que inquieta, de qualquer coisa obscura e AMEAÇADORA. Logo, porém, esta disposição se altera: o pavor se determina, a IDÉIA fixa aparece como fator principal e pesa sobre todas as deliberações da pessoa, influindo em sua vida afetiva, sobre tudo o que faz; numa palavra, tal idéia IMPORTUNA E PACIENTE.
Muitas vezes não ultrapassa os limites de um simples “talvez”, mas é uma dúvida inquietante a martirizar o doente; tal estado, afinal, assume, assim, pouco a pouco, aspecto de verdadeira loucura. Como efeito do fenômeno, o obsesso se vê assaltado de vacilações da mente, condenado a nunca encontrar certeza, exatamente nas questões que mais de perto lhe dizem respeito. Basta pretender ele uma coisa, para logo se lhe apresentarem as mais fantásticas indecisões, aborrecendo-o e impelindo-o a odiar o que mais amava e apetecia.
Foi em conseqüência desta disposição, que Lutero viu nas moléstias que o atingiram, até em simples acidentes sem importância, tremendas ameaças e castigos de Deus. Isto nos revela a sua decisão repentina de se fazer monge. Desde então já ele era vítima de uma obsessão de cuja tirania inutilmente procurou safar-se.
Estas ligeiras observações psicológicas acham confirmação plena nas palavras e nos gestos subseqüentes de Lutero, após a entrada no convento. Ouçamos algo de seus escrito de 1535, em Wittemberg, já ex-frade, no seu comentário à epístola aos Gálatas: “Quando ainda monge, julgava-me perdido, sem salvação possível, sentindo, com tamanha violência, impulsos e atrativos pecaminosos e uma tendência acentuada à cólera, ao ódio e à inveja, contra um dos meus irmãos
de hábito. Este mal se renovava continuamente, não podendo eu encontrar descanso. E prossegue: “Ah! Se tivesse então compreendido a palavra de Paulo: a carne luta contra o espírito e ambos se hostilizam mutuamente” (Erl. Com. In Gall. III).
Tudo isso acentua sempre mais a grande desgraça do escrúpulo ou da obsessão a persegui-lo desde a Infância.
(*) Além do livro de Grisar e das obras de Lutero, recolhidas por Weimar, estou seguindo particularmente um autor holandês: H. J. Achters: “Luther, leven, persoon, leer”, resumo de tudo o que se tem dito de mais fundado sobre Lutero.

2. OS ESCRÚPULOS DE LUTERO
Segundo vimos, nosso homem era nada menos que um escrupuloso e um obsesso pela idéia fixa do rigor de Deus.
Desconhecendo a influência deste estado psicológico numa pessoa, os protestantes não o admitem em Lutero, e chegam a atribuir erradamente ao Catolicismo as mazelas todas do "reformador". É que, para eles, CHEFE tem de ser sempre o HERÓI, cuja sede da verdade e cujos anseios de paz com Deus não encontraram na Igreja Católica possibilidade de serem satisfeitos.
Aí estão, para atestar o estado anormal do espírito de Lutero, hsitoriadores de renome, homens de primeiro valor, como Grisar, Denifle, Paquier, Duinster, etc. Otto Scheel, escritor protestante, atesta ter sido Lutero frequentemente repreendido durante o seu noviciado, porque, perturbando-se continuadamente, enxergava todas as coisas através do prisma dos seus escrúpulos, segundo os quais tudo era pecado.
Qual a causa de tão aflitivo estado d‟alma?
Simplesmente a falsa concepção de Lutero sobre a graça divina. Por certo ele aspirava gozar aquela paz e alegria infundida pela graça no espírito; não lhe era suficiente a certeza moral de estar bem com Deus; desejava obter uma prova sensível, esta consolação que, às vezes, Deus concede a algumas almas generosas e frequentamente recusa a outras.
Superiores e mestres espirituais apontaram-lhe o erro. Tempo perdido. Lutero seguiu a sua própria idéia, a ninguém querendo submeter-se.
Foram impotentes para remediar o mal as violentas práticas de mortificação a que de contínuo recorria. O defeito era de outra natureza, pois não passava de uma espécie de "ultimatum" lançado à face de Nosso Senhor.
Já Santo Agostinho se expressava admiravelmente a respeito: VIS FUGERE A DEO, FUGE IN DEUM - quem quiser fugir de Deus, nele se refugie. O pobre Lutero muito ao invés, parecia nunca haver sentido a doce e consoladora intimidade com Deus, lançando-se cegamente nas garras do demônio, quando era o seu lugar o regaço carinhoso do Pai.
Em vista de tão lastimável estado, foi ele aos poucos abandonando as orações prescritas aos sacerdotes, e se absorvia, de corpo e alma, na atividade exterior, envolvente, materializante, e tanto que, em 1516, escrevia assim a Lange: "Raramente me sobra tempo para rezar o breviário e celebrar a missa; acrescentem-se a isto as tentações que padeço". (Wette I, 41).
Eis aí iminente a desgraça de Lutero. Era um vencido, a entregar as armas, capitulando vergonhosamente. O pobre monge começou, desde aquela hora, a indagar de si para si: por que não encontro eu a paz e a satisfação no convento? Por que me sinto hoje mais desanimado do que nos primeiros dias
de noviciado? Após tantos esforços nada consegui. E se não me salvar no papismo, haverá possibilidade de algum outro o conseguir?... (Wachters; Luther, 46).
Perante seu espírito turbulento e povoado de revolta surgiu então o fantasma do erro. Veio em seguida a indagação: Não haverá na natureza humana um foco de inclinações perversas, mais pujante do que a nossa vontade, o qual nos consome, sendo-nos impossível apagar-lhe as chamas? E, dando ouvidos ao seu caráter voluntarioso e às idéias pessoais, concluiu afinal: "A natureza humana está corrompida pelo pecado original, até às últimas fibras, e o desejo do mal é invencível". (Jaques Maurtain: Trois Refomateurs 1925).
Era a queda irremediável, a heresia formal. Destarte se estabeleceu a fonte de todos os seus erros e culpas. O desastre teve como ponto de partido o escrúpulo, a obsessão, o medo de Deus, a rebelião contra tudo e contra todos. E tal espírito doentio jogou-o no abismo. Sabe-se aliás, que um escrupulosos, de um dia para outro, pode cair no excesso oposto ao de seu escrúpulo.
Para muitos tal disposição conduz a um laxismo corruptor. Para Lutero, porém, levou-o à fundação de uma nova seita religiosa.

3. CONCLUSÃO
Lutero se pervertera, pois, de corpo e alma. Desde então era um decaído, entregue ao vício, perdido em deboches. E, com pouco tempo mais, um revoltoso em franca rebelião contra a sociedade, contra a Igreja e contra Deus.
Narrando este seu estado de ânimo, disse certa vez: "Todos aqueles aos quais eu comunicara o meu estado, me diziam logo: Não compreendo a sua dificuldade. E refletia: será que sou o único a debater-me em situação tão triste, somente eu é que sou tão tentado?... De fato, em toda parte eu via visões horríveis e aparências de fantasmas". (Hausrath: Luther leben, p. 30).
Mesmo a confissão, que a todos os cristãos traz alívio e paz, veio a ser, para ele, uma fonte de tormentos. Desanimado, procurava recurso de salvação, sem lograr encontrá-lo. Lutero olvidara o doce Cristo que dissera: "Vinde a mim todos vós que sofreis a vos achais carregados, e eu vos aliviarei" (Mat XI, 28).
“O Jesus do tabernáculo, prisioneiro do amor, não era para ele mais do que um juiz encolerizado, sentando-se ameaçador sobre um arco-íris" (Wachters, p.44). “Confesso-te, dizia a um amigo, ainda no mesmo ano de 1516, que a minha vida mais e mais se aproxima do inferno; torno-me sempre pior e mais execrável”. (Enders I, 16).
Pouco tempo antes, (1515), comunicando seu estado d‟alma ao superior, Pe. Staupitz, revelou-lhe dolorosamente: "Sou um homem exposto e implicado na má sociedade, na crápula, nos movimentos carnais, em negligências e noutros incômodos a que se vêm juntar os do meu próprio ofício" (Wette I, 232).
Tais palavras deixam entrever com clareza o que era no íntimo a alma de Lutero. Excessivamente orgulhoso a ninguém queria sujeitar-se. Em certos momentos, porém, por mais humilhante que tal se lhe afigurasse, escapava-lhe a confissão da verdade, quais as abafadas labaredas de um incêndio interior, forcejando evadir-se.
Depois, qualquer ocasião favorável mudar-lhe-ia a obsessão em revolta externa a entregá-lo, acorrentado, ao domínio das paixões mais abjetas que não conseguira vencer, por desprezar os meios adequados, não renunciar às idéias fixas e esquivar-se à obediência. Convertera-se POR MEDO. E ainda o medo fá-lo-á depois cair no lamaçal do vício.
O amor para com Deus e as almas não lograra apossar-se de seu coração. E foi preenchido este vácuo pela rebelião, pelo rancor odiento e pelas baixezas carnais.
Não o impressionou em absoluto a bondade divina. Isolado, porém, na sua miséria, envolto na soberba, quis ditar leis ao próprio Deus e a ele se impor. Então Deus se afastou do miserável que o repelira, deixando-o entregue aos instintos da própria perversidade.
Deus dá a sua graça aos humildes, mas resiste aos soberbos (Pr 3,34).

Nenhum comentário:

Postar um comentário