14. O CRISTIANISMO NA ROMA PAGÃ
Destruição de Jerusalém foi um golpe decisivo para os judeus cristãos que sonhavam uma igreja nacional judia, com exagerado culto à tradição legal de Moisés. Triunfara, por fim, o conceito exato de "Ecclesia”, a sociedade de todos os crentes em Cristo, sem distinção alguma de nacionalidade ou de condição, conforme os ensinamentos de S. Paulo: "Já não há gentio, nem judeu, circuncidado ou incircuncidado, Bárbaro ou Seita, de servo e livre, mas Cristo é tudo em todos" (Colos. III, 11). Portanto, "um só Senhor, uma só fé, um só batismo" (Ef. IV, 5) na Igreja que deve ser santa, porque Cristo morreu para purificá-la de toda mancha.
O cristianismo que viera do Oriente, passadas as perseguições sangrentas, haveria de encontrar na capital do Império ambiente favorável para a afirmação de sua doutrina e o centro donde se irradia para o mundo todo. Roma nos primeiros tempos do cristianismo dominava todos os países do Mediterrâneo, e seu domínio se estendia por vastas regiões, numa população superior a 120 milhões de súditos. Neste imenso Império havia de ser pregada a religião de Cristo e estabelecida a sua Igreja.
Ao lado de gigantescos progressos na vida material que levava prosperidade ao mundo romano, via-se uma decadência acentuada na vida intelectual e nos costumes A filosofia em crise, quando poucos se interessavam pelos conceitos de existência e liberdade; a religião antiga em decadência; as classes altas haviam perdido a noção da "verdadeira" divindade, e já os deuses não eram cultuados; prevalecia a superstição, e o povo chegou a tributar honras divinas a homens vivos, como os imperadores. A grande missão do cristianismo era precisamente libertar aqueles espíritos oprimidos pelo paganismo e abrir-lhes o caminho para a nova luz. As condições romanas eram em parte favoráveis à expansão do cristianismo, como a paz romana, a língua única, as comunicações, a superficialidade das religiões orientais até então, o paganismo desacreditado pelos filósofos. De outra parte, os novos valores espirituais trazidos pelo cristianismo, em oposição aos humanos e morais em que se apoiava o férreo poderio imperial, eram a certeza de tremenda luta sangrenta que pouco depois se desencadearia.
O cristianismo pregava uma renovação dos costumes que nenhuma religião pagã jamais havia exigido com tanta energia. O Reino de Deus deveria se conquistar com violência. A progressiva afirmação do pensamento cristão preocupou não só os filósofos pelas suas novas idéias, como também o governo obrigado a defender a religião oficial do Império romano. Tragicamente célebres as sangrentas repressões, fruto da luta do Estado romano que pretendeu destruir com violência e tirania a nova religião, o que jamais conseguiu, pois Cristo protegeria sempre os seus: "eis que estarei convosco todos os dias até à consumação dos séculos".
Apesar da liberdade concedida aos cidadãos romanos de praticar livremente os cultos de nações estrangeiras, a participação do culto público oficial, especialmente quando dirigido aos imperadores e a Roma, era considerada como manifestação expressa de fidelidade ao Império, e negar-se a isto, era crime contra a divindade e o Estado.
O cristianismo não admitia equívocos; cuco culto que não fosse o seu constituía uma impiedade. Os cristãos jamais cultuariam os deuses e começaram a ser acusados e em conseqüência perseguidos como inimigos do Império.
Desde o martírio de S. Pedro e S. Paulo, no reinado de Nero, até o advento de Constantino a Igreja foi perseguida. Houve anos de relativa tranqüilidade, mas as lutas eram recrudescidas a cada passo. O número de perseguições gerais varia segundo os autores, uns apontando as maiores e que se estenderam a todo Império, outros apenas as menores e que atingiram algumas partes somente do vasto reino.
Das Atas dos Mártires, dos escritos dos Santos Padres e testemunhos de escritores pagãos, se deduz que o número dos que sofreram o martírio foi muito elevado. Nero inaugurou as perseguições contra os cristãos, tomando por base o grande incêndio que em 64 destruiu boa parte de Roma, e do qual os cristãos foram injustamente culpados. Provavelmente esta perseguição não se, estendeu por todo o Império.
Domiciano foi o segundo perseguidor. Apesar de suas eminentes qualidades, sua inteligência e amor ao trabalho, era de índole antipática, orgulhoso, querendo tudo para si, suspeitando de tudo e de todos. O furor com que se lançou contra a aristocracia romana que teve alguns elementos sacrificados, por crime de conspiração, estendeu-se aos filósofos que se permitiam defender os direitos de liberdade, e chegou até os cristão. A nova fé já se alargara, subira às altas camadas sociais, e membros de aristocracia, convertidos ao cristianismo, como Atílio Glabrião, Flávio Clemente e sua esposa Flávia Domitila, foram martirizados. A vítima mais ilustre de Domiciano foi o apóstolo São João, mergulhado, por ordem do tirano, numa caldeira de óleo a ferver. O discípulo predileto, saindo
daí incólume, foi desterrado para a ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse.
Com alguns intervalos que garantiram paz aos cristãos, continuaram a ser perseguidos no reinado de Trajano, Marco Aurélio, Séptimo Severo, Maximiano, Décio, Valeriano, Aureliano e finalmente Diocleciano. Todos estes passaram a história manchados pela perfídia e desprezados pela posteridade. A mais feroz das perseguições foi a ordenada por Diocleciano, a última do Império. Havia trinta anos que os cristãos estavam em paz; suas reuniões eram públicas. Por toda parte, nos altos postos, muitos magistrados e funcionários do Império eram conhecidos como cristãos. Já eram numerosos os que viviam na côrte. Prisca, mulher de Diocleciano, e Valéria, sua filha, mantinham com os cristãos estreitas relações. O paganismo se desmoronava e começava a dominar a nova doutrina do cristianismo. Durante dez anos, Diocleciano via tudo isto e nada modificou. Razões obscuras não conseguiram ainda explicar as causas da perseguição, a mais terrível de todas. Para o historiador cristão Lactâncio, que frequentava a casa imperial, e deveria ser bem informado, Galério, a quem Diocleciano confiou a Ilíria, na divisão do Império, fora o grande responsável pela perseguição. Homem bárbaro, decidiu ele que os militares cristãos fossem intimados a sacrificar aos deuses, se quisessem continuar em seus postos.
Diocleciano, que a princípio hesitava em desencadear a perseguição, impressionado pela astúcia-de Galério, pelos arúspices e oráculos que afirmavam que 'a presença de cristãos na escolta entravava os poderes divinos, prepara o edito e ordena que se fechem as assembleias cristãs, sejam demolidas as Igrejas, destruídos os livros sagrados, e os cristãos para desempenharem funções públicas obrigados a abjurar a fé cristã. Outros editos se seguiram e desencadeou-se através de todo o império a perseguição sanguinária.
O Ocidente sofreu menos, porque Constâncio Cloro, que tinha por esposa uma cristã, Helena, era simpatizante dos cristãos, e senhor de grande parte dos territórios, reduziu ao mínimo a opressão na
Gália e Bretanha. Dolorosa a enumeração de todas as crueldades, e narrativas impressionantes de martírios nos deixou esta perseguição, com as mais horríveis torturas, especialmente no Oriente, onde Galério feria sem piedade.
Em Roma, o nobre soldado Sebastião teve seu peito abrasado mais ainda no amor de Deus pelas setas sangrentas dos carrascos imperiais. Soldado da Pátria, disposto a defendê-la na paz e na guerra, ele o era também de Cristo, cuja fé jamais trairia. Diocleciano afastou-se do governo e teve ainda alguns anos para presenciar o triunfo do cristianismo que ele combatera tão cruelmente. Passaram as perseguições! O cristianismo transpôs a todos os obstáculos, semeando pelo Império romano o sangue dos mártires. "Semen est sanguinis christianorum", dirá Tertuliano. Semente que germinou, cresceu e desenvolveu-se por todo o mundo. A cristandade nascente nos faz pensar na comparação evangélica do pequeno grão de mostarda que é a mais pequena das sementes, mas que se desenvolve, torna-se árvore, onde as aves do céu fazem o seu ninho. Tornava-se presente em toda a parte, irradiando-se e lançando pelo mundo as suas sólidas raízes que jamais poderiam ser arrancadas.
Pela história do cristianismo conhecem-se as florescentes comunidades da Gália, África e Ásia com suas ilhas; outras em Alexandria do Egito, que se celebrizariam pelos estudos teológicos mais tarde, na Grécia e pelo Império .todo, onde se encontram as mais belas ruínas cristãs, monumentos históricos que comprovam a florescência dos primeiros tempos.
A sementeira cristã que se fizera no espaço, espalhara-se no coração da gente, e aos poucos a palavra evangélica, antes acolhida pelo povo humilde somente, atingiu as classes ricas, as esferas sociais superiores. E Tertuliano, com razão, chegou a afirmar: "Os pagãos se imitam ao verem entre os fiéis de Cristo gente de todas as categorias". Não obstante o seu entusiasmo literário ao dizer: "Somos de ontem e enchemos já as nossas cidades, as nossas praças, os municípios, os conselhos, os campos, as tribos, as decúrias, o Palácio, o Sevado", anos mais tarde, Orígenes dirá que os cristãos são ainda "muito pouco numerosos", entre os milhões de habitantes do Império, uma minoria no primeiro século, mas ativa e que crescerá sempre, tornando-se dois séculos depois uma maioria. Sepultados na própria monstruosidade de seus crimes, desapareceram os tiranos perseguidores dos cristãos. E chegou o momento do triunfo para o cristianismo. A cruz se gravou luminosa no céu, como aurora refulgente de uma nova era: "Com este sinal vencerás!"
E brilhou fulgurante no coração do Imperador Constantino. Era a vitória final! A Igreja vencera os déspotas com a fôrça e heroísmo de seus membros.
E a cruz se fincará para sempre na terra remida pelo sangue de Cristo!