31 de março de 2014

Meios para alcançar o amor de Deus e a santidade.

Desideria occidunt pigrum... qui autem iustus est tribuet, et non cessabit — “Os desejos matam o preguiçoso; porém, o que é justo dará e não cessará” (Prov. 21, 25 26).

Sumário. Quem quiser ser santo não se deve contentar com o desejo, mas deve resolver-se a por depressa mãos à obra, porque o demônio não teme as almas irresolutas. Os meios para chegar a um fim tão sublime, são particularmente dois: a oração, que faz o amor divino entrar no coração, e a mortificação, que dele remove a terra e o torna apto a receber o fogo divino. Ganhemos ânimo; comecemos desde já a empregar estes meios e nós também chegaremos a ser santos.

I. Quem mais ama a Deus é mais santo. Dizia São Francisco Borges que a oração faz entrar o amor divino no coração, ao passo que a mortificação dele remove a terra e fá-lo apto a receber aquele fogo sagrado. Quanto mais espaço a terra ocupa no coração, tanto menos lugar achará ali o santo amor: Sapientia... nec invenitur in terra suaviter viventium (1) — “A sabedoria... não se acha na terra dos que vivem em delícias”. — Por isso é que os Santos sempre procuraram mortificar, o mais possível, o seu amor próprio e os seus sentidos. “Os santos são poucos, mas devemos viver com os poucos, se nos quisermos salvar com os poucos”, escreve São João Clímaco: Vive cum paucis, si vis regnare cum paucis. E São Bernardo diz: “Quem quer levar vida perfeita, deve levar vida singular: Perfectum non potest esse nisi singulare.”

Para sermos santos, devemos, antes de mais nada, ter o desejo de nos tornarmos santos: desejo e resolução. Alguns sempre desejam, mas nunca começam a por mãos à obra. “De semelhantes almas irresolutas”, dizia Santa Teresa, “o demônio não tem medo. Ao contrário, Deus é amigo das almas generosas.”

É, pois, um engano do demônio, no dizer da mesma seráfica Santa, fazer-nos pensar que há orgulho em se querer tornar santo. Seria orgulho e presunção se metessemos a nossa confiança em nossas obras ou resoluções; mas não, se esperamos tudo de Deus, que então nos dará a força que nos falta. — Desejemos, portanto, e ardentemente, chegar a um grau sublime de amor divino e digamos com coragem: Omnia possum in eo qui me confortat (2) — “Eu posso tudo naquele que me fortalece”. Se não achamos em nós tão grande desejo, peçamo-lo instantemente a Jesus Cristo, que não deixará de no-lo dar.

II. Devemo-nos, portanto, alentar, tomar uma resolução e começar; lembrando-nos de que, na perfeição cristã, segundo a expressão de São Francisco de Sales, vale muito mais a prática do que a teoria. O que não podemos fazer com as nossas próprias forças, ser-nos-á possível com o auxílio de Deus, que prometeu dar-nos tudo o que Lhe pedíssemos: Quodcumque volueritis, petetis, et fiet vobis (3).

Ó meu amado Redentor, Vós desejais o meu amor e me mandais que Vos ame de todo o coração. Sim, Jesus meu, quero amar-Vos de todo o meu coração. Não, meu Deus — assim Vos direi, confiado em vossa misericórdia, — não me assustam os pecados que cometi, porque agora detesto-os e abomino-os mais do que qualquer outro mal, e sei que Vos esqueceis das ofensas da alma que se arrepende e Vos ama. Porque Vos ofendi mais do que os outros, quero, com o auxílio que de Vós espero, amar-Vos mais do que os outros.

Senhor meu, Vós me quereis santo, e eu quero tornar-me santo, não tanto para gozar no paraíso, como para Vos agradar. Amo-Vos, bondade infinita! Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas, e me consagro todo a Vós, vós sois o meu único bem, o meu único amor. Aceitai-me, ó meu amor, e fazei-me todo vosso, e não permitais que ainda Vos dê desgosto. Fazei com que eu me consuma todo por Vós, assim como Vós Vos consumistes todo por mim. — Ó Maria, ó Esposa mais amável do Espírito Santo, e a mais amada, obtende-me amor e fidelidade. Alcançai-me somente, ó minha Mãe, que eu seja sempre vosso devoto servo; porquanto quem se distingue na devoção para convosco, distingue-se também no amor a vosso divino Filho. (II 400.)

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1. Iob. 28, 13.
2. Phil. 4, 13.
3. Io. 15, 7.

(Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Primeiro: Desde o primeiro Domingo do Advento até Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 360-362.)

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XIX

Do bem inefável que é a graça divina e do grande mal que é a inimizade com Deus
Nescit homo pretium ejus. Não compreende o homem o seu preço (Jo 28,13).

PONTO I

Diz o Senhor que aquele que sabe distinguir o precioso do vil é semelhante a Deus, que reprova o mal e escolhe o bem (Jr 15,19).
Vejamos quão grande é a graça divina, e que mal mesmo é a inimizade com Deus. Os homens não conhecem o valor da graça divina (Jo 28,13).
Por isso é que trocam por ninharia, um fumo subtil, um punhado de terra, um deleite irracional. E, todavia, ela é um tesouro de valor infinito, que nos torna dignos da amizade de Deus (Sb 7,14); de modo que a alma no estado da graça é amiga do Senhor. Os pagãos, privados da luz da fé, julgavam impossível que a criatura pudesse manter relações de amizade com Deus; e, falando segundo o ditame de seu coração, não deixavam de ter razão, pois que a amizade — conforme diz São Jerônimo — torna os amigos iguais. Deus, contudo, declarou repetidas vezes que, por meio de sua graça, podemos tornar-nos seus amigos se observarmos e cumprirmos sua lei (Jo 15,14). Exclama São Gregório: “Ó bondade de Deus! Não merecemos sequer ser chamados servos seus, e ele se digna chamar-nos seus amigos”.
Quanto se julgaria feliz aquele que tivesse a dita de ser amigo de seu rei! Mas, se a um vassalo fora temeridade pretender a amizade de seu príncipe, não obsta que uma alma aspire à amizade de Deus. Refere Santo Agostinho que, achando-se dois cortesãos num mosteiro, um deles começou a ler a vida de Santo Antônio Abade e, à medida em que ia lendo, seu coração se desprendia de tal modo dos afetos mundanos, que falou a seu companheiro nestes termos: “Amigo, que é que procuramos?...
Servindo ao imperador, que mais poderemos pretender do que conseguir sua amizade? E, mesmo que a tanto chegássemos, exporíamos a grande perigo a salvação eterna. Com grande dificuldade lograríamos ser amigos de César, enquanto desde já, se o quiser, posso ser amigo de Deus”.
Aquele, portanto, que está na graça, é amigo do Senhor. E não é só isso, porque se torna filho de Deus (Sl 71,6). Tal é a dita inefável que nos alcançou o divino amor por meio de Jesus Cristo. “Considerai a caridade que nos fez o Pai Eterno, querendo que tenhamos o nome de filhos de Deus e o sejamos” (1Jo 3,1). Além disso, a alma que está na graça é esposa do Senhor (Lc 15,22). Por isso, o pai do filho pródigo, ao acolhê-lo e recebê-lo de novo, deu-lhe o anel, sinal de esponsais. Ainda mais: essa alma venturosa é templo do Espírito Santo. Soror Maria de Ognes viu sair o demônio do corpo de um menino, que estavam batizando, e notou que no neo-cristão ingressava o Espírito Santo, rodeado de anjos.

AFETOS E SÚPLICAS

Meu Deus, quando minha alma, por felicidade sua, possuía vossa graça, era vosso templo e vossa amiga, vossa filha e esposa. Mas pelo pecado perdeu tudo, e fez-se vossa inimiga e escrava do inferno. Com profundo agradecimento, meu Deus, vejo que me dais tempo de recuperar vossa graça. Arrependo-me de ter ofendido vossa bondade infinita, e vos amo sobre todas as coisas. Dignai-vos, pois, aceitar-me de novo em vossa amizade. Não me desprezeis, por piedade! Bem sei que merecia ser repelido, mas meu Senhor Jesus Cristo, pelo sacrifício que de si mesmo fez sobre o Calvário, merece que, ao ver-me arrependido, me aceiteis de novo. Adveniat regnum tuum. Meu Pai (assim me ensinou a chamar-vos vosso divino Filho), reinai em mim pela vossa graça, e fazei que somente a vós sirva, somente a vós ame e por vós viva. Et ne nos inducas in tentationem. Não permitais que me vençam os inimigos que me combatem. Sed libera nos a malo. Livrai-me do inferno, ou melhor: livrai-me do pecado, único mal que pode condenar-me.
Ó Maria, rogai por mim e livrai-me do mal horrível de me ver em pecado sem a graça de nosso Deus!

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

22/25  -  Como é bom entregar-se à Providência.

A Providência de Deus é admirável e infinita; intervem em tudo, reina em tudo e tudo faz reverter em glória sua. Oh! quem visse bem os efeitos da Providência e o comércio e tráfico geral que todas as criaturas fazem conjuntamente para o serviço do homem  com uma tão grande correspondência, de quantas paixões amorosas seria movido para com esta soberana sabedoria, para exclamar: A vossa Providência. Ó Pai eterno, governa maravilhosamente tudo! Em primeiro lugar Deus fornece aos homens todos os meios necessários para chegarem ao seu fim. O sol visível comunica a sua luz e virtude a todo universo; sem ele não haveria beleza nem bondade neste mundo corpóreo; o princípio universal da vida das coisas inferiores, pois a todas presta o vigor requerido para darem os seus produtos. Assim a Providência e Bondade divinas animam todas as almas para a sua salvação e convidam todos os corações para o seu amor e serviço, sem que ninguém se subtraia às suas celestes influências. Com esta intenção Deus fez-nos à sua imagem e semelhança pela encarnação, depois da qual sofreu a morte para remir e salvar toda a raça humana. É fora de dúvida que devíamos contemplar cem vezes por dia esta amorosa Providência de Deus, que tem sempre o seu coração voltado para nós por previdência, como devemos ter o nosso voltado para Ele por confiança e fundindo os nossos corações na sua divina vontade, devíamos exclamar devotamente: "Oh! bondade de doçura infinita, quanto é amável a vossa vontade e a vida eterna, e o vosso seio maternal, ardendo com um amor incomparável, é prolifico em licor de misericórdia, ou para perdoar aos penitentes, ou para aperfeiçoar os justos. Ah! porque não unimos nós pois as nossas vontades à vossa, como as criancinhas se unem ao seio das mães, para saborearem o leite das vossas eternas bençãos? Oh! como é verdade que Deus é mil e mil vezes mais amável do que amado e que nenhuma abundância de amor o poderia amar demais!" Deus meu, quanto prazer deviam ter as nossas inteligências, nos frequentes pensamentos da vossa divindade, pois que é tão boa, tão bela e tão doce para conosco e tão disposta a comunicar-se soberanamente! Não deveríamos amar necessariamente esta infinita beleza e incompreensível bondade, como fazem os espíritos bem aventurados, que são obrigados por uma doce, mas inevitável necessidade, a amá-lo eternamente? Ah! quanto Deus nos ama! como nos protege e conduz suavemente! Quer que sejamos seus; não procuremos pois outros braços para descansar senão os da sua divina Providência; não espalhemos ao longe a nossa vista e não descansemos o espírito senão nEle; contentemo-nos de governar por Ele; não pensemos tanto em nós e vivamos sempre ao sabor da sua divina Providência; tudo irá muito bem se a nossa alma não seguir outro caminho e os nossos negócios sairão bem quando Deus nos assistir. Pode morrer a criança quando estiver nos braços de um Pai poderosíssimo? Nada desejeis; deixai-vos, bem como todos os vossos negócios, ao cuidado da Providência divina; deixai-a fazer de vós o que quiser, como as criancinhas se deixam governar por suas amas. Leve-vos no seu braço direito ou esquerdo, como queira; uma criança não tem escolha; deite-vos ou levante-vos, deixai-a obrar, porque é uma boa Mãe que sabe melhor o que nos convém do que nós mesmos. Quero dizer que se a Providência divina permitir que vos sucedam aflições e mortificações, não as recuseis, mas aceitai-as de bom grado, amorosa e tranquilamente; e se as não envia, não as desejeis e preparai assim o vosso coração para receber os acidentes diversos da Providência divina. Não digo só na doçura e paz das prosperidades, o que cada um sabe fazer, mas nas tempestades e desventuras, o que é próprio dos filhos de Deus. Arme-se contra mim o céu, amotinem-se a terra e os elementos; declarem-me guerra todas as criaturas; nada temo; basta-me saber que estou com Deus e que Deus esta comigo. Volte-nos Nosso Senhor para a direita ou para a esquerda; aperte-nos e dê-nos cem voltas, como Jacó; volte-nos de um lado para outro, dê-nos mil males; não o deixaremos contudo sem nos dar a sua eterna benção. Nunca o nosso bom Deus nos abandona senão para melhor nos reter; nunca nos deixa senão para nos guardar melhor; nunca luta conosco, senão para se entregar a nós e nos abençoar. Oh Deus! Que felicidade é resignarmo-nos assim à vontade do nosso doce Salvador, por um abandono do nosso ser ao seu bom juízo e à sua santa Providência! Como seríamos felizes, se submetendo a nossa vontade à Deus, o adorássemos quando nos envia tribulações como no tempo das consolações, crendo que os diversos sucessos que nos envia a sua divina mão, são para utilidade nossa, para nos purificar na sua santa caridade! Embarquemo-nos pois no mar da Providência Divina, sem alimentos, sem remos, sem velas, e finalmente sem preparativo algum; mas deixemos a Nosso Senhor todo o cuidado dos nossos negócios, sem réplica nem temor algum; a sua bondade suprirá a tudo. Nosso Senhor ensinou-me a confiar na sua Providência  desde a minha juventude e se tornasse a nascer, quereria deixar-me governar até nas coisas mínimas, por ele, com uma simplicidade de criança e um desprezo profundo de toda a prudência humana.É para mim um grande gosto caminhar com os olhos fechados, conduzido pela Providência; os seus desígnios são impenetráveis, mas sempre doces e suaves para os que nEle confiam. Deixemos pois conduzir a nossa alma, que esta no seu barco, e ele nos levará a bom porto. Feliz os que confiam no que pode como Deus e quer como Pai dar-nos tudo o que é bom; desgraçados pelo contrário os que põem a sua confiança na criatura; esta promete tudo, dá pouco e faz pagar bem caro o que dá. Finalmente, já que a Providencia Divina é assim para conosco, sejamos por tal forma seus que a ninguém pertençamos senão a Ele; porque ninguém pode servir à dois senhores. A Providencia não difere o seu socorro senão para provocar a nossa confiança. Se nosso Pai Celeste não nos concede tudo o que pedimos, é para nos conservar perto de si e dar-nos lugar a impeli-la por uma doce violência, como o fez bem notar aos dois peregrinos de Emaús, com os quais não parou senão ao declinar do dia e quando eles o obrigaram. Nada nos separe pois do seu amor; esteja o nosso coração lânguido, moribundo ou vivo, nenhuma vida tenha senão nele e por Ele, e seja Ele sempre o Deus do nosso coração. Ruja embora a tempestade; não morrereis porque estais com Jesus. Se vos assaltar o temor, gritai: "Ó meu Salvador, salvai-me!" Dar-vos-á a mão, apertai e ide contentes sem filosofar sobre o vosso mal. Enquanto São Pedro confiou não o submergiu a tempestade: mas quando temeu afogou-se. O temor é um mal ainda maior do que o próprio mal. Quanto a mim, há ocasiões em que me parece não ter mais força para resistir, e que se se apresentasse a ocasião, sucumbiria; mas então mais confio em Deus, e por mais certo tenho que em presença da ocasião Deus me revestiria com a sua força e devoraria os meus inimigos como argueiros. Espero que Deus vos fortificará cada vez mais, e nos pensamentos ou ante tentações de tristeza, pelo receio de que o vosso furor e atenção não durem sempre, respondei uma vez por todas, que os que confiam em Deus não serão confundidos, e que tanto relativamente ao espírito como ao corpo, se entregais a Deus os vossos cuidados, ele vos sustentará. Sirvamos pois hoje a Deus e Ele amanhã providenciará. Cada dia terá o seu cuidado. Não vos lembreis de amanhã porque Deus, que reina hoje, reinará amanhã. Ou não vos enviará males, ou se vos enviar, dar-vos-á a coragem precisa para os suportar. Se sois tentados, não desejeis ser livres das tentações. É bom que as experimentemos para termos ocasião de as combater e colher vitórias. Isto serve para praticar as virtudes mais excelentes e estabelecê-las solidamente na alma. Por consequência, tende os olhos erguidos para Deus; engrandecei a coragem na santa humildade; fortificai a sua doçura; confirmai-a na igualdade, tornai o vosso espírito perfeitamente senhor das tendências e paixões, não permitais que as apreensões reinem em vossas almas. "Um dia Deus dará a ciência do que deveis fazer no dia seguinte". Tenho atravessado muitos caminhos com a divina graça; a mesma graça se vos apresentará nas ocasiões seguintes e vos livrará das dificuldades e maus caminhos, embora tivesse de mandar um anjo para vos conduzir aos sítios mais perigosos. Não volteis a vista para as enfermidades e fraquezas, senão para humilhardes e nunca para desanimardes. Vede muitas vezes Deus à vossa direita e os dois anjos que vos destinou, um para vossa pessoa e o outro para a direção da vossa família. Dizei muitas vezes a estes santos anjos:"Senhores, como faremos?" Pedi-lhes que vos forneçam ordinariamente o conhecimento da vontade divina, que contemplem as inspirações que Nossa Senhora quer que recebais de seu seio cheio de amor. Não contempleis esta variedade de imperfeições que vivem em nós e em todas as pessoas que Nosso Senhor e Nossa Senhora nos confiaram, senão para vos conservar no santo temor de ofender a Deus, mas nunca para vos espantar; porque não é necessário examinar se cada erva e cada flor requerem o seu particular cuidado no jardim.                     

30 de março de 2014

QUARTO DOMINGO DA QUARESMA.

Caracteres da religião

O Evangelho de hoje narra o grande milagre da multiplicação dos pães no deserto, de modo a alimentar cinco mil pessoas com cinco pequenos pães, o que na ordem natural não dava nem sequer uma migalha para cada um; entretanto todos comem à saciedade.

Vendo este milagre assombroso o povo exclamou entusiasmado: Este é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo.

Esta cena inclui e manifesta os dois caracteres que devem distinguir a única religião verdadeira das falsas seitas religiosas: o milagre e a profecia.

Vamos meditar hoje estes dois caracteres que só a religião cristã possui.

1. O milagre, primeiro caracter.
2. A profecia, segundo caracter.

Estes caracteres formam como o selo que Deus imprime à sua palavra revelada, a carta credencial que acredita os seus enviados e o sinal divino por excelência.

I. O milagre

O milagre é um fato sensível e certo, que derroga completamente, ou é contrário às leis constantes e conhecidas da natureza.

Um sábio pode produzir fatos maravilhosos que excitam a admiração, porém tais fatos têm o seu princípio e a sua causa na natureza; não constituem uma derrogação a suas leis, mas apenas uma extensão; enquanto o milagre é um fato cuja a causa não existe na natureza, deve pois ter por origem o próprio autor da natureza: Deus.

É por isso que só Deus pode fazer milagres por si, ou por pessoas por Ele autorizadas.

Os fenômenos ultimamente descobertos da eletricidade, rádio, radiofotia, televisão, etc., por maravilhosos que sejam, não são milagres, pois sabe-se como são produzidos e qualquer um pode produzi-los.

Mas como reproduzir, por exemplo, o fenômeno do Evangelho de hoje: multiplicar cinco pequenos pães para alimentar até à saciedade 5000 pessoas e recolher depois doze cestos de pedacinhos que sobraram?

É inimitável porque é divino.

O milagre é possível, porque:

a) Não repugna a nossa natureza, que procura instintivamente o maravilhoso.

b) Não é contrário ao poder de Deus, pois Ele criou livremente e pode livremente modificar a sua obra, em certos casos particulares.

c) Não é contrário à sabedoria de Deus, pois a derrogação não é uma desordem, mas simplesmente uma ação fora da ordem estabelecida por Ele.

Negar o milagre, porque não o vimos, é tão ridículo como seria ridículo negar todos os fatos da história, porque não os vimos.

Acreditamos nas palavras dos historiadores, e para os milagres acreditamos nas palavras dos testemunhos oculares que viram os dois estados do milagre: antes e depois.

Ver os cinco pães antes da multiplicação — e ver a multidão farta e os 12 cestos de sobras, são estes dois estados: a mudança é inexplicável, o fato sendo certo, constitua o milagre.

II. A profecia

A profecia é uma predição certa e manifesta de um acontecimento futuro, cujo conhecimento não pode ser adquirido por causas naturais.

É um milagre de coisas futuras.

Um astrônomo predizendo, com cem anos de antecedência, um eclipse do sol; um médico, predizendo uma crise num enfermo; um político predizendo uma mudança social; não fazem profecias, porque a inteligência humana pode prever estes acontecimentos.

Mas como podia prever, por exemplo, o Profeta Zacarias, (IX. 9) quinhentos anos antes de Jesus Cristo, que este entraria solenemente em Jerusalém, montado num jumentinho, o que se cumpriu literalmente?

Que o Salvador havia de ser vendido por 30 moedas de prata, as quais seriam lançadas na casa de Deus, para serem entregues a um oleiro, (XI. 12) o que se realizou ao pé da letra? Como prever tais acontecimentos com uma antecedência de 500 anos? É absolutamente impossível! Só Deus conhece o futuro; e a realização de tais profecias é outro selo, um carimbo de Deus, que prova que o Profeta era inspirado por Ele mesmo.

A profecia prova que a verdade em prova da qual é feita vem de Deus, pois só Deus pode conhecer o porvir e anunciá-lo, porque só Ele conhece, num mesmo ato da sua onisciência, o passado, o presente e o futuro.

III. Conclusão

A religião que possui estes dois caracteres: o milagre e a profecia, é, pois, uma religião divina, pois ela nos apresenta credenciais absolutamente inimitáveis e absolutamente certas.

A religião cristã é um tecido destes milagres e destas profecias; ela é, pois, a religião divina, a única divina, pois, como foi dito: consistindo a religião nas relações que unem os filhos aos pais, tais relações são sagradas e imutáveis.

Leiam o Evangelho: cada página contém um fato milagroso, como cada ensinamento contém uma doutrina milagrosa.

As profecias formam como o tecido do Antigo Testamento; e Jesus Cristo cita a cada instante a realização destas profecias em sua pessoa.

A verdade é, pois, resplandecente... ela está sintetizada na religião cristã: e só esta religião possui estes dois caracteres que acabamos de meditar: com a exclusão de todas as seitas religiosas humanas.

EXEMPLOS

1. O caminho divino

No fim do século XVII uns pastores protestantes holandeses desembarcaram nas costas de Malabar convidando os índios a abraçarem nova seita.

Estes índios, católicos fervorosos, haviam sido evangelizados por São Francisco Xavier, a quem dedicavam a mais profunda devoção.

O chefe dos Paravas respondeu-lhes em nome da nação:

- Fazei milagres maiores do que os que nosso pai São Francisco Xavier fez, e acreditaremos que a vossa doutrina é melhor do que a dele. São Francisco ressuscitou aqui 6 mortos; ressuscitai 10 e ficaremos convencidos.

Diante deste raciocínio do bom senso e da fé, os pastores não tiveram outra resposta senão insultos e procuraram dissimular a sua derrota por meio de uma pronta saída do país.

É o que havia de melhor para os intrusos.

2. O milagre de Calvino

Calvino compreendeu o valor destes dois característicos: o milagre e a profecia, para espalhar os seus erros e quis recorrer a eles

Numa reunião, profetizou que, para provar a sua doutrina, ia fazer um milagre estrondoso, ressuscitando um homem morto.

Pagou a um protestante, chamado Brulé, para que se fingisse de morto e mandasse chamá-lo pela esposa desconsolada. Até aí, tudo se fez de acordo. Uma mulher em soluços, e como desesperada, penetrou na casa de Calvino, suplicando-lhe que ressuscitasse o seu marido que acabava de falecer

Calvino, levantando os olhos para o céu, num gesto hipócrita, disse aos amigos que o cercavam, que era a hora oportuna para ele provar a sua missão de reformador, restituindo à esposa inconsolável o marido falecido.

E lá se foi para a casa do morto.

Chegando ao lugar, num gesto de dominador, que parece impor a sua vontade ao próprio Deus, Calvino, em nome de Deus, ordenou ao falso defunto que se levantasse.

Um silêncio lúgubre foi a resposta.

Calvino achou a peça teatral bem executada, e num gesto mais decidido, ordenou pela segunda vez ao defunto, de levantar-se do leito em que jazia, para provar que ele, Calvino, era o ministro de Deus. Um silêncio mais lúgubre, mais inquietante foi a resposta.

- Calvino hesitou, empalideceu..., e como após uma terceira intimação, o pseudo-defunto ficasse estendido, pálido e sem movimento, a mulher desolada, suspeitando um castigo de Deus, aproximou-se da cama e encontrou o marido frio, sem pulso, sem respiração: estava morto!

Em seu desespero, a mulher revelou a sacrílega combinação, insultando o reformador, como sendo o assassino de seu marido.

Só Deus pode fazer milagres; e Ele não comunica este poder senão a seus amigos, que nós chamamos os Santos.

(MARIA, P. Júlio. Comentário Apologético do Evangelho Dominical. O Lutador, 1940, p. 142 - 147)

QUARTO DOMINGO DA QUARESMA (II).

Segunda Meditação
Terna compaixão de Jesus Cristo para com os pecadores.

Misereor super turbam — “Tenho pena deste povo” (Marc. 8, 2).

Sumário. O nosso amantíssimo Redentor, movido de compaixão para com os pecadores, baixou do céu para salvá-los da morte eterna, à custa do seu sangue. Jesus Cristo declarou que Ele era aquele bom Pastor que tinha vindo à terra para dar vida a suas ovelhas. Que maior sinal de amor podia dar aos homens o Filho de Deus? Voltemo-nos com confiança para Jesus Cristo, se porventura o temos abandonado.

I. Diz-nos o Evangelho de hoje que achando-se Jesus num monte com os seus discípulos e uma multidão de povo que O acompanhava, compadeceu-se daquele povo faminto. Sabendo que um moço tinha cinco pães de cevada e dois peixes, tomou-os em suas mãos, e tendo dado graças, mandou distribuí-los. Todos comeram e encheram-se doze cestos com os pedaços que sobejaram. Fez o Senhor este milagre, movido da grande compaixão que teve de tantos pobres; mas muito maior é a compaixão que tem dos pobres de alma, os pecadores.

Movido o nosso amantíssimo Redentor da sua grande compaixão para com os homens que tristemente viviam sob a escravidão do pecado, baixou do céu à terra para salvá-los da morte eterna à custa do seu sangue. Por isso cantou Zacarias, pai de São João Batista: Per viscera misericordiae Dei nostri... visitavit nos oriens ex alto (1) — “Pelas entranhas misericordiosas de nosso Deus, visitou-nos o Sol nascido do alto”.

Jesus Cristo mesmo declarou depois, que Ele era aquele bom Pastor que tinha vindo à terra dar a salvação às suas ovelhas, que somos nós: Ego veni, ut vitam habeant et abundantius habeant (2) — “Eu vim para que as ovelhas tenham vida e a tenham em abundância”. Isso quer dizer que Jesus Cristo veio não só para nos fazer recuperar a vida perdida da graça, mas também para nos dar outra mais abundante e melhor do que a que perdemos pelo pecado.

São Leão diz que Jesus Cristo nos proporcionou maiores bens com a sua morte do que o demônio nos tinha trazido males por meio do pecado. Também o Apóstolo o deu claramente a entender por estas palavras: Quanto mais abundou o pecado, tanto mais superabundou a graça (3). Jesus Cristo mesmo disse que, embora bastasse uma gota do seu sangue, uma simples súplica sua para remir o mundo, não bastava porém para manifestar seu amor pelos homens. Eu sou o bom Pastor, diz Ele, e o bom Pastor sacrifica a sua vida pelas suas ovelhas (4).

II. Que maior sinal de amor podia dar aos homens o Filho de Deus, do que dar a vida por nós, que somos suas ovelhas?

Ó amor imenso de nosso Deus! — exclama São Bernardo, para perdoar aos servos, nem o Pai perdoou ao Filho, nem o Filho perdoou a Si mesmo, mas satisfez com a sua morte à divina justiça, pelos pecados que nós tínhamos cometido.

Com efeito, Jesus Cristo não baixou à terra para condenar os pecadores, mas para livrá-los do inferno, sempre que queiram emendar-se. E quando os vê obstinados na sua perdição, compadecendo-se deles, diz-lhes pelo Profeta: Quare moriemini domus Israel? (5) — “Porque haveis de morrer, ó filhos de Israel?” Como se dissesse: Porque quereis morrer e ir para o inferno, se eu desci do céu para vos livrar da morte com o meu sangue? E depois acrescenta, pela boca do mesmo Profeta: Nolo mortem morientis:... revertimini et vivite (6) — “Não quero a morte do que morre; voltai e vivei”.

Quando os apóstolos São Tiago e São João, indignados pela afronta que os habitantes de Samaria fizeram a seu Mestre por não O quererem receber, disseram a Jesus: Senhor, quereis que mandemos que chova fogo do céu para punir a esses temerários? Jesus, que estava cheio de doçura para com aqueles que O desprezavam, respondeu-lhes: Não sabeis de que espírito deveis estar animados. O Filho do Homem não veio para perder os homens, mas para os salvar (6).

Meu doce Jesus, que reconhecimento Vos devo! Graças aos méritos do vosso sangue, nutro confiança de estar na vossa amizade. Se até hoje os perdi muitas vezes, não quero mais perder-Vos para o futuro. Vós mereceis todo o meu amor; não quero mais viver separado de Vós. Mas, meu Jesus, conheceis a minha fraqueza; dai-me a graça de Vos ser fiel até à morte e de recorrer a Vós na tentação. — Santíssima Virgem Maria, assisti-me, pois que sois a Mãe da santa perseverança; em vós ponho toda a minha esperança.

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1. Luc. 1, 78.
2. Io. 10, 10.
3. Rom. 5, 20.
4. Io. 10, 11.
5. Ez. 18, 31.
6. Ez. 18, 32.
7. Luc. 9, 56.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 357-359.)

QUARTO DOMINGO DA QUARESMA (I).

Primeira Meditação
A multidão faminta e as almas do purgatório.

Unde ememus panes ut manducent hi? — “Onde compraremos pães para que estes comam?” (Io. 6, 5).

Sumário. A tenra compaixão que moveu o Senhor a multiplicar os pães para dar de comer à multidão que o seguia, deve mover-nos a socorrer as almas do purgatório, que são muito mais numerosas e muito mais famintas de seu alimento espiritual, que é Deus. O meio principal de que devemos usar para lhes levar socorro é a santíssima Eucaristia. Em sufrágio dessas almas, visitemos freqüentemente a Jesus sacramentado; aproximemo-nos da mesa da comunhão, e, se não podemos mandar celebrar missas, ouçamos ao menos todas as que as nossas ocupações nos permitam ouvir.

I. Refere o Evangelho que, estando Jesus assentado sobre um monte, levantou os olhos, e viu ao redor de si uma multidão de quase cinco mil pessoas, que O seguiam, porque viam os milagres que fazia sobre os enfermos. Em seguida, sabendo que um moço tinha cinco pães de cevada e dois peixes, tomou-os em suas mãos, e, tendo dado graças, os mandou distribuir à multidão. Não somente houve o bastante para todos se fartarem, mas com os pedaços que sobejaram, os apóstolos encheram doze cestos. Eis aí o grande milagre que Jesus Cristo fez por compaixão de tantos pobres corporalmente.

Ora, é justo, ou para dizer melhor, é necessário que tenhamos compaixão das almas de outra multidão muito mais numerosa e incomparavelmente mais faminta do seu alimento espiritual: devemos compadecer-nos das almas benditas do purgatório. — Pobres almas! São muitas as penas que padecem naquele cárcere de tormentos; porém, acima de tudo aflige-as a privação da dulcíssima presença de Deus, cuja beleza infinita já conhecem. Não há na linguagem humana palavras apropriadas para exprimir qual seja esta pena; mas ainda que possuíssemos as palavras adequadas, faltar-nos-ia a capacidade de compreendê-las, preocupados como estamos com as coisas terrestres.

Mas a pena que a privação de Deus traz consigo é bem compreendida pelas pobres almas que a padecem. Por isso levantam a sua voz lamentosa e pedem-nos que lhes saciemos a fome inconcebível de contemplarem quanto antes o objeto de seu amor: Miseremini mei, saltem vos, amici mei, quia manus Domini tetigit me (1) — “Compadecei-vos de mim, ao menos vós, que sois meus amigos, porque a mão do Senhor me feriu”.

II. O milagre da multiplicação dos pães, assim como se conclui do Evangelho, foi feito para provar a presença verdadeira de Jesus na Eucaristia; e mesmo, segundo observavam os doutores, foi uma figura da Mesa eucarística. Eis, pois, o meio eficacíssimo de que, à imitação do Redentor, devemos lançar mão para saciarmos a fome das almas benditas do purgatório. — Visitemos muitas vezes o divino Sacramento, comunguemos com freqüência; sobretudo mandemos celebrar em alívio das almas o sacrifício incruento da missa, ou ao menos ouçamos para sufragá-las todas as missas que pudermos. “Cada missa que se celebra”, diz São Jerônimo, “faz sair várias almas do purgatório”. E São Gregório acrescenta: “Quem assiste devotamente à missa, alivia as almas dos fiéis defuntos e contribui para lhes serem perdoados completamente os pecados.

Pelo que uma pessoa muito devota às almas do purgatório, cada vez que ouvia tocar a entrada para uma missa, afigurava-se ver as almas no meio das chamas e ouvir os seus gritos lastimosos e angustiados. “Então”, assim dizia, “por urgentes que sejam as minhas ocupações, não posso deixar de assistir ao divino sacrifício, nem tenho coragem de lhes dizer: Esperai, porque hoje falta-me o tempo para vos ajudar”. — Façamos do mesmo modo, e fiquemos certos de que aquelas santas prisioneiras saberão mostrar-se agradecidas. Além disso, virá o tempo em que, estando nós também no purgatório, nos medirão a nós com a medida que nós tivermos medido aos outros (2).

Ó dulcíssimo Jesus, pela compaixão que mostrastes para com as multidões famintas que Vos acompanhavam, tende piedade das almas do purgatório. Volvei também para mim os vosso olhos piedosos, “e fazei, ó Deus todo-poderoso, que na aflição pelas minhas iniqüidades, respire com a consolação de vossa graça”(3). † Doce Coração de Maria, sêde minha salvação.

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1. Iob. 19, 21.
2. Matth. 7, 2.
3. Or. Dom. curr.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 355-357.)

Preparação para a Morte

PONTO III

“Filho, pecaste? Não tornes a pecar; mas roga pelas culpas antigas, a fim de que te sejam perdoa-das” (Ecl 21,1). Assim te adverte, ó cristão, Nosso Senhor, porque deseja salvar-te. “Não me ofendas, filho, novamente, mas pede perdão dos pecados cometidos”. Quanto mais tiveres ofendido a Deus, meu irmão, tanto mais deves temer a reincidência em o-fendê-lo; porque talvez mais um pecado que cometeres fará pender a balança da justiça divina, e serás condenado. Falando absolutamente, não quero dizer, porque não o sei, que não haja perdão se cometeres novo pecado; afirmo, porém, que isto pode acontecer. Por conseguinte, quando te assaltar a tentação, de-ves considerar: quem sabe se Deus me perdoará outra vez ou ficarei condenado? Dize-me, por favor: Provarias uma comida, que supusesses estar provavelmente envenenada? Se presumisses fundamente que em determinado caminho estavam teus inimigos à espreita para matar-te, passarias por ali, podendo tomar outra via mais segura? Do mesmo modo, que certeza ou que probabilidade podes ter de que, tornando a pecar, sentirás logo verdadeira contrição e não voltarás à culpa detestável? Ou ainda, se nova-mente pecares, não te fará Deus morrer no próprio ato do pecado, ou te abandonará depois da queda? Ao comprar uma casa, tomas prudentemente as necessárias precauções para não perderes teu dinheiro. Se vais usar algum remédio, procurarás certificar-te que não te possa fazer mal. Ao atravessar um rio, evitas o perigo de cair nele. E, por um vil prazer, por um deleito brutal arriscas tua salvação eterna, dizendo: Eu me confessarei. Mas, pergunto eu: Quando te confessarás? — No domingo. — E quem te assegura que no domingo estarás vivo? — Amanhã mesmo. — E quem te afiança esse dia de amanhã, quando não sabes sequer se tens ainda uma boa hora de vida?
“Tendes um dia — diz Santo Agostinho — quando não tendes certeza de uma hora?” Deus — prossegue o mesmo Santo — promete o perdão ao que se arrepende, não promete o dia de amanhã a quem o ofende: Se agora pecares, Deus, talvez, te dará tempo de fazer penitência, ou talvez não. E se não to der, que será de ti eternamente? E, não obstante, queres perder tua alma por um mísero prazer e a expões ao perigo da perdição eterna. Arriscarias mil ducados por essa vil satisfação? Digo mais: darias tudo, fazenda, casa, poder, liberdade e vida, por um breve gosto ilícito? Não, sem dúvida. E, contudo, por esse mesmo indigno prazer, queres perder tudo: Deus, a alma e o céu. Dize-me, pois: as coisas que ensina a fé são verdades altíssimas, ou não passam de puras fábulas que haja céu, inferno e eternidade? Crês que se a morte te surpreender em pecado estarás perdido para sempre?... Que temeridade, que loucura, condenares a ti mesmo às penas eternas com a vã esperança de remediá-lo mais tarde! “Ninguém quer enfermar com a esperança de curar-se” — diz Santo Agostinho.
Não teríamos por louco a quem bebesse veneno dizendo: depois, por meio de um remédio, me salva-rei? E tu queres a condenação à morte eterna, fiado em que talvez mais tarde possas livrar-te dela?... Loucura terrível, que tantas almas tem levado e leva ao inferno, segundo a ameaça do Senhor! “Pecaste confiando temerariamente na misericórdia divina; mas o castigo virá de improviso sobre ti, sem que saibas donde vem” (Is 47,10-11).

AFETOS E SÚPLICAS

Aqui tendes, Senhor, um desses insensatos, que tantas vezes perdeu a sua alma e a vossa graça, esperando recuperá-la depois. Ai de mim, se me tivésseis enviado a morte no instante em que pequei! Que seria de mim?... Agradeço de todo o coração à vossa clemência o ter-me esperado, dando-me a conhecer meu desvairamento. Reconheço que desejais salvar-me, e eu quero me salvar. Dói-me, Bondade infinita, de me ter afastado de vós tantas vezes. Amo-vos com todo o fervor de 59 meu coração, e espero, ó Jesus, que, pelos merecimentos de vosso precioso sangue, não recairei em tal demência. Perdoai-me, Senhor, e acolhei-me em vossa graça, que jamais quero separar-me de vós. In te, Domine, speravi non confundar in aeternum. Espero, ó meu Redentor, não ter de sofrer a desdita e confusão de ver-me privado outra vez de vosso amor e de vossa graça. Concedei-me a santa perseverança, e fazei que sempre vo-la peça, particularmente nas tentações, invocando vosso santo nome e o de vossa Mãe santíssima: “Meu Jesus, socorrei-me!...
Maria, nossa Mãe, amparai-me!...” Sim, Rainha e Senhora minha, enquanto recorrer a vós, não serei vencido. E se persistir a tentação, fazei, ó minha Mãe, que persista em invocar-vos.

29 de março de 2014

Terceira Dor de Maria Santíssima – Perda de Jesus no templo.

Ecce pater tuus et ego dolentes quaerebamus te ― "Eis que teu pai e eu Te andávamos buscando cheios de aflição" (Luc. 2, 48).

Sumário. A dor de Maria pela perda de Jesus foi sem dúvida uma das mais acerbas; porque ela então sofria longe de Jesus, e a humildade fazia-lhe crer que o Filho se tinha apartado dela por causa de alguma negligência sua. Sirva-nos esta dor de conforto nas desolações espirituais; e ensine-nos o modo de buscarmos a Deus, se jamais para nossa desgraça viermos a perdê-Lo por nossa culpa. Lembremo-nos, porém, de que quem quiser achar a Jesus, não O deve buscar entre os prazeres e delícias, mas no pranto, entre as cruzes e mortificações, assim como Maria o procurou.

I. Quem nascer cego, pouco sente a pena de ser privado de ver a luz do dia; mas quem noutro tempo teve a vista e gozou a luz, muita pena sente em se ver dela privado. E assim igualmente as almas infelizes que, cegas pelo lodo desta terra, pouco têm conhecido a Deus, pouco sentem a pena de O não acharem. Ao contrário, quem, iluminado pela luz celeste, foi feito digno de achar no amor a doce presença do supremo Bem, ó Deus! Que tristeza sente em ver-se dela privado.

Vejamos portanto o muito que a Maria, acostumada a gozar continuamente a dulcíssima presença de seu Jesus, devia ser dolorosa a terceira espada que a feriu, quando, havendo-O perdido em Jerusalém, por três dias se viu dele separado. ― Alguns escritores opinam que esta dor não foi somente uma das maiores que teve Maria na sua vida, mas que foi em verdade a maior e mais acerba. E com razão, porque então ela não sofria em companhia de Jesus, como nas outras dores; e porque a sua humildade lhe fazia crer que Jesus se tinha afastado dela por alguma negligência no seu serviço. Por esta razão aqueles três dias lhe foram excessivamente longos e se lhe afiguraram séculos, cheios de amargura e de lágrimas.

Num quem diligit anima mea vidistis? (1) ― "Vistes porventura àquele a quem ama a minha alma?" É assim que a divina Mãe, como a Esposa dos Cantares, andava perguntando por toda a parte. E depois, cansada pela fadiga, mas sem O ter achado, oh, com quanto maior ternura não terá dito o que disse Ruben de seu irmão: Puer non comparet, et ego quo ibo? (2) ― "O menino não aparece, e eu para onde irei?" O meu Jesus não aparece, e eu não sei que mais possa fazer para O achar; mas aonde irei sem o meu tesouro? Ah, meu filho dileto! Cara luz de meus olhos: faze-me saber onde estás, a fim de que eu não ande mais errando e buscando-Te em vão. Numa palavra, afirma Orígenes que pelo amor que esta santa Mãe tinha a seu Filho, padeceu mais nesta perda de Jesus que qualquer outro mártir no tormento que o privou da vida.

II. Esta dor de Maria, em primeiro lugar, deve servir de conforto àquelas almas que estão desoladas e não gozam a doce presença de seu Senhor, gozada em outros tempos. Chorem, sim, mas chorem com paz, como chorou Maria a ausência de seu Filho. Não temam por isso de terem perdido a divina graça, animando-se com o que disse Deus mesmo a Santa Teresa: "Ninguém se perde sem o conhecer; e ninguém fica enganado sem querer ser enganado". ― Se o Senhor se ausenta dos olhos da alma que o ama, nem por isso se ausenta do coração. Esconde-se muitas vezes para ser por ela buscado com mais desejo e amor. Mas quem quer achar a Jesus, é preciso que o busque, não entre as delícias e os prazeres do mundo, mas entre as cruzes e mortificações, como o buscou Maria: Dolentes quaerebamus te ― "Nós Te andávamos buscando cheios de aflição".

Além disso, neste mundo não devemos buscar outro bem senão Jesus. Jó não foi, por certo, infeliz quando perdeu tudo o que possuía neste mundo, até descer a um monturo. Porque tinha consigo Deus, também então era feliz. Verdadeiramente infelizes e miseráveis são aquelas almas que perderam a Deus. Se, pois, Maria chorou a ausência do Filho, quanto mais deveriam chorar os pecadores que perderam a divina graça, e aos quais Deus diz: Vos non populus meus, et ego non ero vester (3) ― "Vós não sois meu povo, e eu não serei mais vosso".

Mas a maior desgraça para aquelas pobres almas, diz Santo Agostinho, é que, se perdem um boi, não deixam de procurá-lo; se perdem uma ovelha, não poupam diligência para achá-la; se perdem um jumento, não têm mais repouso; mas se perdem o sumo Bem, que é Deus, comem, bebem e ficam quietos. ― Ah, Maria, minha Mãe amabilíssima, se por minha desgraça eu também perdi a Jesus pelos meus pecados, rogo-vos, pelos méritos das vossas dores, fazei que eu depressa O vá buscar e O ache, para nunca mais tornar a perdê-Lo em toda a eternidade. (*I 238.)

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1. Cant. 3, 3.
2. Gen. 37, 30.
3. Os. 1, 9.

(Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Primeiro: Desde o primeiro Domingo do Advento até Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 352-355.)

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

21/25  -  Modelo admirável de perfeita confiança.

É crível que a Virgem Nossa Senhora recebesse tanto contentamento por trazer o seu Jesus menino nos braços, que esse contentamento lhe impedisse de sentir cansaços ou pelo menos o tornasse agradável; porque se o levar um ramo de águas castus alivia os viajantes e os desenfada, que alegria não recebeu a gloriosa Mãe ao levar o Cordeiro imaculado de Deus? Porque se alguma vez lhe deixava dar alguns passos, conduzindo-o pela mão, não era porque não o quisesse trazer ao colo ou debruçado sobre o seio; mas fazia-o para exercitar a andar por si. E nós outros, como filhinhos do Pai Celeste, podemos ir primeiramente caminhando compassadamente à nossa vontade, que uniremos à sua, tendo sempre a mão da nossa vontade segura na da sua intenção divina, e seguindo-o por toda parte onde nos conduza, que é o que Deus de nós requer pela significação da sua vontade; porque já que Deus quer que eu faça o que me ordena, eu quero ter poder para o fazer. Mas nós também podemos ir com Nosso Senhor, sem ter alguma vontade própria, deixando-nos simplesmente levar a seu bel prazer divino, como uma criança ao colo de sua mãe, por uma espécie de contentamento admirável, que se pode chamar união, ou antes, unidade da nossa vontade com a de Deus. Se tivesse perguntado ao doce Jesus quando era levado ao colo de sua mãe, onde ia, não teria razão de responder: "Não sou eu que vou; é minha mãe que caminha por mim". E se lhe perguntassem mas pelo dizer: "Eu não vou, ou se vou onde minha Mãe me leva, não vou, por meus passos, mas caminho pelo andar dela, ou Ela caminha por mim". E quem lhe replicasse: "Pelo menos dulcíssimo Jesus, quereis deixar-vos levar por vossa divina Mãe?" "Não de certo, diria Ele, nada disso desejo; mas como minha boa mãe caminha por mim, assim também deseja por mim; deixo-lhe igualmente o cuidado de ir e de querer ir por mim, e como não caminho senão pelos seus passos, também não quer o senão pelo seu querer; e quando estou em seus braços não presto nenhuma atenção a querer ou a não querer, deixando todo o cuidado a minha Mãe, a não ser o de me recostar a seu seio, de me nutrir com o seu leite virginal, de estar abraçado a seu amável colo, para a beijar amorosamente. E para que o saibais, enquanto estou entre os prazeres destas santas carícias, que excedem toda a suavidade, parece-me que minha Mãe é a árvore da vida e que eu sou como o seu fruto, que sou como o coração no seu peito ou a alma no seu coração; eis porque o seu caminhar é suficiente para ela e para mim, sem que cuide de dar algum passo a sua vontade basta para ela e para mim, sem que eu precise de ter querer algum; assim não me importa se ela vai depressa ou devagar, se caminha com elegância ou sem elegância; não me importa onde ela quer ir, contento-me de saber que estou sempre em seus braços, sobre o seu seio virginal, onde me alimento como entre os lírios". Oh Filho divino de Maria permiti à minha pobre alma estes arrebatamentos, do amor. Ó amabilíssimo Menino, ide, ou não, mas ficai docemente unido ao peito de vossa Mãe; ide sempre com ela e nunca vades só enquanto fordes menino: "Bem aventurado o seio que te trouxe e os peitos que te alimentaram". Devíamos assim ser, tornando-nos dóceis e manejáveis à vontade divina, como se fossemos de cera, não nos entretendo a desejar nada, mas deixando a Deus esse cuidado, e pondo nele toda a solicitude, tanto quanto cuidado tem de nós. E notai o que diz São Paulo: "Toda a solicitude; não só aquela com que devemos receber os acontecimentos, mas a de desejar ou não; porque Deus terá cuidado dos nossos sucessos e negócios e quererá para nós o que for melhor".

Preparação para a Morte

PONTO II

Dirá talvez o pecador que Deus é Deus de misericórdia... Quem o nega?... A misericórdia do Senhor é infinita; mas, apesar dela, quantas almas se condenam todos os dias? Deus cura os que têm boa vontade (Is 61,1). Perdoa o pecado, mas não pode perdoar a vontade de pecar...
Replicará o pecador que ainda é muito jovem... És moço?... Deus não conta os anos, conta as culpas. Ora, a medida dos pecados não é igual para todos. A um perdoa Deus cem pecados; a outro, mil; outro, ao segundo pecado, se verá precipitado no inferno. A quantos condenou após o primeiro pecado!
Refere São Gregório que um menino de cinco anos, por ter proferido uma blasfêmia, foi lançado no inferno. Segundo revelou a Santíssima Virgem à bem-aventurada Benedita de Florença, uma menina de doze anos fora condenada por seu primeiro pecado.
Outro menino, de oito anos de idade, também morreu com o primeiro pecado e se condenou. Lemos no Evangelho de São Mateus que o Senhor, a primeira vez em que achou a figueira sem fruto a a-maldiçoou, e a árvore secou (Mt 21,19). Em outro lugar diz o Senhor: “Depois das maldades que o povo de Damasco cometeu três e quatro vezes, eu não mudarei o meu decreto” (não revogarei os castigos que lhe tenho decretado) (Am 1,3). Algum temerário talvez ouse perguntar por que Deus perdoa a tal pecador três culpas e não quatro. Neste ponto é preciso adorar os inefáveis juízos de Deus e exclamar com o Apóstolo: “Ó profundidade das riquezas da sabedoria e ciência de Deus! Quão incompreensíveis são seus juízos e imperscrutáveis seus caminhos” (Rm 11,33). O Senhor sabe, diz Santo Agostinho, a quem há de perdoar e a quem não. Àqueles a quem se concede misericórdia, gratuitamente se concede a mesma, e àqueles a quem se lha nega, com justiça lhes é negada”.
Replicará a alma obstinada que, tendo ofendido tantas vezes a Deus, e Deus lhe tendo perdoado, es-pera que ele ainda lhe perdoará um novo pecado... Mas porque Deus não o tem castigado até esta hora, segue-se que sempre há de proceder assim? Encher-se-á a medida e o castigo virá. Sem interromper as relações com Dalila, esperava Sansão salvar-se das mãos dos filisteus, como antes tinha feito (Jt 16,20); mas nesta última vez foi preso e perdeu a vida. — “Não digas — exclama o Senhor — pequei, e qual a adversidade que me sobreveio? (Ecl 5,4).
Porque o Altíssimo, ainda que nos tolere, dá-nos o que merecemos” (Ecl 5,4), isto é: chegará o dia em que tudo lhe pagaremos, e quanto maior tiver sido a misericórdia tanto maior será a pena. Afiança-nos São João Crisóstomo que há mais para recear quando Deus tolera um pecador obstinado, do que quando lhe aplica o castigo sem detença.
Com efeito, observa São Gregório, todos aqueles a quem Deus espera com mais paciência, são de-pois, se perseverarem na sua ingratidão, castigados com mais rigor; e muitas vezes acontece, acrescenta o mesmo Santo, que os que foram por mais tempo tolerados por Deus, morrem de improviso sem ter tempo de se converter. Especialmente, quanto maiores tenham sido as luzes que Deus te haja dado, tanto maiores serão tua cegueira e obstinação no peca-do, se a tempo não fizeres penitência. “Era-lhe melhor — diz São Pedro — não ter conhecido o caminho da justiça, que depois do conhecimento voltar-lhe as costas” (2Pd 2,21). São Paulo diz que é (moralmente) impossível que uma alma ilustrada por luzes celestes, quando reincidir no pecado, se converta de novo (Hb 6,4.6).
Terríveis são as palavras do Senhor contra aqueles que não querem atender a seu convite: “Já que vos chamei e dissestes: não... eu também me rirei na hora da vossa morte e vos escarnecerei” (Pr 1,24- 26). Note-se que as palavras eu também significam que, assim como o pecador zombou de Deus, confessando-se, fazendo propósitos e não os cumprindo nunca, assim o Senhor zombará dele na hora da mor-te.
O sábio diz além disso: “Como cão que volta ao que vomitou, assim é o imprudente que recai na sua loucura” (Pr 26,11). Dionísio, o Cartuxo, desenvolve este pensamento e diz que tão abominável e asqueroso como o cão que devora o que tinha vomitado, se faz odioso a Deus o pecador que volta a cometer os pecados de que se arrependeu no sacramento da Penitência.

AFETOS E SÚPLICAS

Eis me aqui, Senhor, a vossos pés. Sou como o cão repugnante e asqueroso, que tantas vezes voltei a deleitar-me com o que antes tinha 58 detestado. Não mereço perdão, meu Redentor. O precioso sangue, porém, que por mim derramastes, me alenta e me obriga a esperar...
Quantas vezes vos ofendi e vós me perdoastes! Prometi não tornar a ofender-vos e daí a pouco de novo recaí, e vós outra vez me concedestes perdão! Que devo esperar, pois? Que me envieis ao inferno ou que me abandoneis a meus pecados, castigo maior que o próprio inferno? Não, meu Deus; quero emendar-me, e, para vos ser fiel, ponho em vós toda minha confiança e prometo recorrer sempre a vós quando me vir assediado de tentações. No passado fiei-me em minhas promessas e resoluções, olvidando encomendar-me a vós nas tentações. Daí proveio a minha ruína. Mas, de hoje em diante, sereis vós minha esperança, minha fortaleza e assim tudo me será possível (Fp 4,13). Dai-me, pois, meu Jesus, por vossos méritos, a graça de encomendar-me sempre a vós, e de pedir vosso auxílio em todas as minhas necessidades. Amo-vos, Sumo Bem, digno de ser ama-do sobre todos os bens e só a vós amarei se me ajudais para isso.
Vós também, ó Maria, Mãe nossa, auxiliai-me por vossa intercessão; abrigai-me debaixo de vosso manto; fazei que vos invoque sempre na tentação, e vosso nome dulcíssimo será minha defesa.

28 de março de 2014

Preparação para a Morte

CONSIDERAÇÃO XVIII

Do número dos pecados
Quia non profertur cito contra malos sententia, ideo filii hominum perpetrant mala. Porquanto o não ser proferida sentença logo contra os maus, é causa de os filhos dos homens cometerem crimes sem temor algum (Ecl 8,11).

PONTO I

Se Deus castigasse imediatamente a quem o ofende, não se veria, sem dúvida, tão ultrajado como o é atualmente. Mas, porque o Senhor não sói castigar logo, senão que espera benignamente, os pecadores cobram ânimo para ofendê-lo. É preciso, porém, considerar que Deus espera e é pacientíssimo, mas não para sempre. É opinião de muitos Santos Padres (de São Basílio, São Jerônimo, Santo Ambrósio, São Ciri-lo de Alexandria, São João Crisóstomo, Santo Agostinho e outros) que Deus, assim como determinou para cada homem o número dos dias de vida, e dotes de saúde e de talento que lhe quer outorgar (Sb 11,21), assim, também, contou e fixou o número de pecados que lhe quer perdoar. E, completo esse número, já não perdoa mais, diz Santo Agostinho. Eusébio de Cesaréia e os outros Padres acima citados afirmam o mesmo. E não falaram estes Padres sem fundamento, mas baseados na Sagrada Escritura. Diz o Senhor, em certo lugar do texto, que adiava a ruína dos amorreus porque ainda não estava completo o número de suas culpas (Gn 15,16). Em outra parte diz: “Não terei no futuro misericórdia de Israel (Os 1,6). Já por dez vezes me provocaram. Não verão a terra” (Nm 14,22-23). E no livro de Jo se lê: “Tendes selado, como num saco, as minhas culpas” (Jo 14,17). Os pecadores não tomam conta dos seus delitos, mas Deus enumera-os bem, a fim de os decifrar quando a seara estiver madura, isto é, quando estiver completo o número de pecados (Joel 3,13). Em outra passagem lemos: “Não estejas sem temor da ofensa que te foi perdoada e não amontoes peca-do sobre pecado” (Ecl 5,5). Ou seja: é preciso, peca-dor, que tremas ainda dos pecados que já te perdoei; porque, se lhes acrescentares outro poderá ser que este novo pecado com aquele complete o número e então não haverá misericórdia para ti. Ainda mais claramente, em outra passagem, diz a Escritura: “O Senhor espera com paciência (as nações) para castigá-las quando se completar a conta dos pecados, e então virá o dia do juízo” (2Mc 6,14). De sorte que Deus espera o dia em que se completa a medida dos pecados, e depois castiga.
A Escritura oferece-nos muitos exemplos de tais castigos, especialmente o de Saul, que, por ter reincidido na desobediência ao Senhor, foi abandonado por Deus de tal modo, que, ao rogar a Samuel que por ele intercedesse, lhe disse: “Rogo-te que tomes sobre ti o meu pecado e venhas comigo para adorar ao Senhor” (1Rs 15,25). Ao que Samuel respondeu: “Não irei contigo, porque desprezaste a palavra do Senhor, e o Senhor te repeliu” (1Rs 15,26). Temos também o exemplo do rei Baltasar que, achando-se num festim a profanar os vasos do templo, viu mão misteriosa a escrever na parede: Mane, Thecel, Pha-res.
Veio o profeta Daniel e explicou assim as palavras: “Foste pesado na balança e achado demasiadamente leve” (Dn 5,27), dando-lhe a entender que o peso de seus pecados havia inclinado até ao castigo a balança da justiça divina. E, com efeito, Baltasar foi morto naquele mesma noite (Dn 5,30). Quantos não há a quem sucede a mesma desgraça! Vivem longos anos em pecado; mas, quando se completa o número que lhes foi fixado, a morte dos arrebata e são precipitados no inferno (Jo 21,13). Quantos procuram investigar o número das estrelas que existem, saber a quantidade dos anjos no céu, e computar os anos de vida dos homens; mas quem se atrever a indagar do número de pecados que Deus quer perdoar-lhes...? Tenhamos, pois, salutar temor. Quem sabe, meu ir-mão, se, depois do primeiro deleite ilícito, ou do primeiro mau pensamento em que consintas, ou do próximo pecado em que incorras, Deus ainda te perdoa-rá?

AFETOS E SÚPLICAS

Meu Deus, dou-vos fervorosas graças! Quantas almas, menos culpadas que eu, estão agora no inferno, enquanto eu vivo ainda fora daquele cárcere e-terno, e com esperança de alcançar, se o quiser, per-dão e glória!... Sim, meu Deus, desejo ser perdoado. Arrependo-me de todo o coração de vos ter ofendido, porque injuriei a vossa Bondade infinita.
Eterno Pai, contemplai vosso divino Filho morto na cruz por mim (Sl 83,10), e, em consideração de seus merecimentos, tende misericórdia de minha alma. Proponho antes morrer do que tornar a ofen-der-vos.
Sem dúvida, devo temer que, em vista dos peca-dos que cometi e das graças que me concedestes, uma nova culpa venha completar a medida e eu seja justamente condenado... Ajudai-me, pois, com vossa graça, que de vós espero luz e graça para vos ser fiel. Se previrdes que tornarei a ofender-vos, dai-me a morte antes que perca a vossa graça.
Amo-vos, meu Deus, sobre todas as coisas, e mais do que a morte receio a desgraça de apartar-me de vós outra vez. Por piedade, não o permitais...
Maria, minha Mãe, alcançai-me a santa perseverança.

Comemoração das cinco Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Haurietis aquas in gaudio de fontibus Salvatoris — “Tirareis com alegria águas das fontes do Salvador” (Is. 12, 3).

Sumário. As Chagas de Jesus são aquelas benditas fontes preditas por Isaías, das quais podemos tirar todas as graças, se as pedimos com fé. São fontes de misericórdia, fontes de esperança, e sobretudo fontes de amor; porquanto as suas águas, ao passo que purificam a alma das manchas da culpa, abrasam-na no santo amor. Avizinhemo-nos muitas vezes daquelas fontes do Salvador, para apagar a nossa sede das graças.

I. As Chagas de Jesus Cristo são aquelas benditas fontes preditas por Isaías, das quais podemos tirar todas as graças, se as pedimos com fé: Haurietis aquas in gaudio de fontibus Salvatoris — “Tirareis com alegria água das fontes do Salvador”.

São em primeiro lugar fontes de misericórdia. Jesus Cristo quis que lhe fossem traspassados as mãos, os pés e o lado sacrossanto, a fim de aplacar por nós a divina justiça e ao mesmo tempo abrir-nos um asilo seguro, no qual nos pudéssemos subtrair às setas da ira de Deus.

Por isso, o Senhor mesmo nos anima, dizendo no Cântico dos cânticos: Vem, pomba minha, nas aberturas da pedra (1); isto é, na interpretação de São Pedro Damião: vem dentro destas minhas chagas, onde acharás todo o bem para tua alma. — Mais expressivas ainda são as palavras de que se serve na profecia de Isaías: Ecce in manibus meis descripsi te (2) — “Eis aí que te gravei em minhas mãos”. Como se dissesse: Minha pobre ovelha, tem ânimo; não vês quanto me custaste? Eu te gravei em minhas mãos, nestas chagas que recebi por teu amor. Elas me solicitam sempre a ajudar-te e defender-te de teus inimigos; tem, pois, amor e confiança em mim.

As Chagas de Jesus são também fontes de esperança; porquanto, como escreve São Paulo, o Senhor quis morrer consumido pelas dores, a fim de merecer o paraíso para todos os pecadores arrependidos e resolvidos a emendar-se: Et consummatus, factus est omnibus obtemperantibus causa salutis (3) — “E pela sua consumação foi feito autor da salvação para todos os que Lhe obedecem”. — Durante uma enfermidade, São Bernardo se viu certa vez transportado perante o tribunal de Deus, onde o demônio o acusava de seus pecados e lhe dizia que não merecia o céu. Respondeu-lhe então o Santo: “É verdade que eu não mereço o paraíso; mas Jesus tem dois direitos para este reino: um por ser Filho verdadeiro de Deus, outro por tê-lo merecido com a sua morte. Contentando-se com o primeiro, cedeu-me o segundo, em virtude do qual peço e espero a glória celeste”. É isto, meu irmão, o que nós também podemos dizer: As Chagas de Jesus Cristo são os nossos merecimentos, a nossa esperança: Vulnera tua merita mea.

II. As Chagas de Jesus Cristo são, em terceiro lugar, fontes de amor; porque as águas que ali brotam, purificam as almas e ao mesmo tempo abrasam-nas daquele santo fogo que o Senhor veio acender sobre a terra nos corações dos homens. Pelo que São Boaventura exclama: “Ó Chagas que feris os corações mais duros e abrasais as almas mais frias de amor divino.”

São Paulo protestou solenemente de si: Non enim indicavi scire me aliquid inter vos, nisi Iesum Chistum, et hunc crucifixum (4) — “Não entendi saber entre vós coisa alguma senão a Jesus Cristo, e este crucificado”. Não ignorava, de certo, o apóstolo, que Jesus Cristo nascera numa gruta, que passara trinta anos de sua vida numa oficina, que ressuscitara e subira ao céu. Não obstante isso diz que não queria saber senão de Jesus crucificado, porque este mistério o excitava mais a amá-Lo, visto que as sagradas Chagas lhe diziam o amor imenso que Jesus nos teve. — Recorramos, pois, freqüentes vezes por meio de uma meditação atenta a estas fontes divinas do Salvador: Omnes sitientes venite ad aquas (5) — “Todos vós os que tendes sede, vinde às águas”.

Eterno Pai, lançai vossos olhos sobre as Chagas de vosso divino Filho: estas Chagas Vos pedem todas as misericórdias para mim; perdoai-me, pois, as ofensas que Vos fiz; apoderai-Vos de meu coração todo, para que não ame, busque, nem deseje coisa alguma fora de Vós. Ó Chagas de meu Redentor, formosas fornalhas de amor, recebei-me e inflamai-me, não com o fogo do inferno que mereço, mas com a santa chama de amor a este Deus que quis morrer por mim, à força de tormentos. — “E Vós, Eterno Pai, que pela paixão de vosso Filho unigênito e pelo sangue que Ele derramou por suas cinco chagas, renovastes a natureza humana, perdida pelo pecado: concedei-me propício que, venerando na terra estas chagas divinas, eu mereça conseguir no céu o fruto do sangue preciosíssimo de Jesus.” (6) — Fazei-o pelo amor do próprio Jesus Cristo e de Maria Santíssima. (*I 588.)

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1. Cant. 2, 14.
2. Is. 49, 16.
3. Hebr. 5, 9.
4. I Cor. 2, 2.
5. Is. 55, 1.
6. Or. fest. curr.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 349-352.)

Sermão para o 3º Domingo da Quaresma – Padre Daniel Pinheiro, IBP

[Sermão] A boa Confissão

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…
 “Estava Jesus expulsando um demônio, e ele era mudo. E depois de ter expulsado o demônio, falou o mudo, e se admiraram as gentes.”
Caros católicos, temos insistido que a Quaresma é um tempo de conversão, de misericórdia, de busca da santidade. A verdadeira conversão nossa, a busca da santidade e a misericórdia divina se encontram de modo perfeito e pleno em um só ato: no sacramento da confissão, e na confissão bem feita.
Como sabemos, a confissão é o sacramento da nova lei no qual, pela absolvição do sacerdote, se confere ao pecador penitente a remissão dos pecados cometidos depois do batismo. Como cada um dos sete sacramentos, também o sacramento da penitência foi instituído por Cristo. A confissão foi instituída por Cristo no dia mesmo de sua ressurreição, ao dizer aos apóstolos: “recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos.” No sacramento da confissão, nós podemos ver a delicadeza da bondade e misericórdia divinas. Que meio sublime Deus nos deu para perdoar os nossos pecados, para purificar a nossa alma das quedas após o batismo. A confissão é a nossa segunda tábua de salvação, como nos diz o Concílio de Trento.
Nosso Senhor quis instituir o sacramento da penitência ou confissão para nos dar a certeza (na medida em que é possível) do perdão dos pecados confessados ao padre e absolvidos por ele, para que não tivéssemos angústias ou incertezas em campo tão importante. Nesse sacramento, Nosso Senhor nos diz como Ele disse ao Paralítico: “Tem confiança, filho, teus pecados estão perdoados.” Nosso Senhor quis também que os pecados fossem perdoados por meio da confissão ao sacerdote porque a sabedoria divina cura utilizando remédios contrários à doença. Todos os nossos pecados provêm, em certo grau, do orgulho, e a confissão é o contrário do orgulho, pois é certa humilhação para o pecador. Pecamos ao praticar a nossa própria vontade em detrimento da vontade divina. Na confissão, precisaremos exercer um grande desapego de nós mesmos, da nossa própria vontade e nos humilhar. A confissão diante do sacerdote foi o meio instituído pela sabedoria e misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo para nos tirar do pecado.
A confissão, como nos diz o Padre Spirago (Catecismo Católico Popular, que recomendo), dá ao indivíduo muitas vantagens, além do essencial e mais importante que é o perdão dos pecados: a) ela dá o conhecimento de si mesmo ao nos confrontarmos com os mandamentos divinos; b) ela dá a delicadeza da consciência, que vai se formando com os bons exames de consciência e os bons conselhos recebidos; c) ela dá a firmeza de caráter, pois o sacramento nos dá a graça que ilumina a nossa inteligência e fortalece a vontade; d) ele dá a perfeição moral, pois a confissão exige humildade, como dissemos, e a humildade é a base de toda virtude. A confissão traz também vantagens para a sociedade civil: a) com ela, as inimizades acabam, b) se bens foram de alguma forma prejudicados pelo pecador, eles serão restituídos, c) muitos crimes são evitados; d) muitos vícios combatidos e etc.
Todavia, para obtermos o perdão dos nossos pecados e todos os outros benefícios que advêm da confissão, precisamos nos confessar bem. Para nos confessarmos bem, precisamos, antes de tudo, fazer um bom exame de consciência. Depois, precisamos nos arrepender dos pecados cometidos e ter o propósito de nos emendarmos. Em seguida, é preciso confessar os pecados, isto é, manifestá-los diante do sacerdote, com sinceridade. Finalmente, é preciso aceitar a penitência, receber a absolvição e cumprir a penitência recebida.
O exame de consciência é a consideração ou investigação séria e diligente dos pecados cometidos desde a última confissão válida. O exame de consciência é muito importante para nos formar bem a consciência, para nos dar o conhecimento de nós mesmos diante de Deus e para assegurar a integridade da confissão. O exame de consciência deve ser feito antes da confissão e não durante a confissão, o que certamente levaria ao esquecimento de algum pecado e tomaria mais tempo do que o realmente necessário. Convém começar esse diligente exame de consciência pela invocação do Espírito santo, para que Ele nos mostre os nossos pecados e nos dê o arrependimento. Se durante o exame de consciência surgem pecados mortais, é preciso considerar também a espécie e o número desses pecados, como falaremos mais adiante.
(Contrição) Feito o exame de consciência, é preciso se arrepender dos pecados cometidos: é o que chamamos de contrição. A contrição é a dor e detestação dos pecados cometidos enquanto são ofensa a Deus. Para que haja a contrição é preciso,primeiro, que reconheçamos que fizemos um mal, um pecado. Reconhecendo o mal que fizemos, devemos ter uma dor espiritual por ter cometido esse mal. Essa dor é espiritual, da vontade, que não afeta necessariamente a sensibilidade. Pode ocorrer e ocorre que um pecador esteja pesaroso de ter pecado sem que sinta sensivelmente dor alguma. Para ter essa dor, basta querer tê-la sinceramente e pedi-la a Deus, que ela surgirá. Tendo reconhecido o pecado cometido, tendo dor por tê-lo cometido, precisaremos, em segundo lugar, detestá-lo. A detestação surgirá quase naturalmente da dor, pois ao reconhecermos o mal que é o pecado, detestaremos esse mal, que ofende a Deus e nos separa dEle. A detestação acende em nossas almas o desejo de destruir o pecado, supõe a abominação ao pecado cometido.
Devemos notar que essa dor da alma, e essa detestação devem provir do fato de que o pecado é uma ofensa a Deus. No arrependimento, é preciso que esteja necessariamente presente, em maior ou menor grau, esse motivo de arrependimento: ofensa feita a Deus. A pessoa que se arrependesse unicamente por medo do inferno ou por amor à vida eterna, mas sem relação com a ofensa feita a Deus, não teria contrição suficiente para ser perdoado. Assim, por mais que o motivo principal seja o temor da condenação, por exemplo, é preciso que esteja presente, ao menos em parte, a rejeição da ofensa a Deus. O verdadeiro arrependimento, além disso, supõe que consideramos o pecado como o maior de todos os males possíveis e que estejamos dispostos a perder tudo, inclusive a vida, para não voltar a cometê-lo. E que o pecado é o maior mal que existe é claro, pois vai diretamente contra Deus e contra nossa felicidade eterna. A contrição deve ser também universal, isto é, ela deve englobar todos os pecados mortais. Se eu me arrependo de dez pecados mortais, mas não me arrependo de um, meu arrependimento não é verdadeiro porque se eu me arrependesse dos nove pelos bons motivos (ofensa a Deus e perda da vida eterna), me arrependeria necessariamente de todos. Assim, deixar de se arrepender de um pecado mortal significa que não se está arrependido verdadeiramente de nenhum.
(Propósito de emenda) Depois do arrependimento, dessa dor da alma e da detestação do pecado, vem o propósito de emenda. O propósito de emenda nada mais é do que a vontade deliberada e séria de não mais voltar a pecar. Esse propósito deve ser firme, isto é, devemos estar decididos a não pecar mais, ainda que tenhamos que perder todos os bens e suportar todo tipo de sofrimento, mesmo a perda da vida. Esse propósito de emenda deve ser universal, estendendo-se a todos os pecados mortais, que deverão, então, ser evitados no futuro, sem exclusão de nenhum. Não é preciso rechaçá-los todos individualmente nem é prudente, basta rechaçá-los em conjunto. Esse propósito de emenda significa também que o penitente quer, com vontade séria, empregar os meios necessários para evitar os pecados futuros: fugir das ocasiões de pecado, perdoar as injúrias, rejeitar o ódio, restituir o bem alheio, frequentar os sacramentos, rezar, etc… Quem quer evitar o pecado deve empregar os meios para isso, sob pena de contradição.
(Confissão dos pecados) Tendo feito o exame de consciência, tendo dor espiritual pelos pecados, detestando-os e tendo o propósito de não mais cometê-los, o penitente pode aproximar-se da confissão. A confissão é a acusação voluntária dos pecados cometidos depois do batismo feita ao sacerdote legítimo, a fim de obter o perdão dos pecados. A confissão dos pecados deve ser íntegra. Isso significa que o penitente deve obrigatoriamente confessar todos os pecados mortais cometidos desde a sua última confissão válida. Ele não pode omitir nenhum sequer. Se ele confessa dez pecados mortais, mas omite um, nenhum pecado é perdoado. Se ele tem um só pecado mortal e cinco veniais, mas confessa só os veniais, não há perdão de nenhum pecado. A confissão deve ser íntegra quanto aos pecados mortais. Aquele que omitisse voluntariamente um pecado mortal, além de não ter nenhum pecado mortal perdoado, cometeria um pecado grave de sacrilégio, por tornar inválida a confissão. Se por acaso alguém esqueceu um pecado mortal no momento da confissão, ele será perdoado, mas será preciso acusá-lo na próxima confissão. Além de confessar todos os pecados mortais, é preciso dizer a espécie deles, o número e as circunstâncias que podem mudar a espécie ou a gravidade. Assim, não bastaria dizer genericamente pequei gravemente contra o primeiro mandamento, mas é preciso dizer qual foi a espécie do pecado: negação da fé, participação em culto acatólico, etc… É preciso dizer o número: fiz isso uma, ou duas, ou três vezes. Se não se sabe ao certo o número, tentar estabelecer a frequência: por exemplo, cometi esse pecado em torno de uma vez por mês durante aproximadamente 5 anos, etc… É preciso também dizer as circunstâncias que podem realmente influenciar na espécie ou na gravidade. Por exemplo, roubei objeto de grande valor da Igreja. O “da Igreja” é importante porque, além de roubo, teremos o pecado de sacrilégio. É importante, muitas vezes, que a pessoa diga seu estado de vida: solteiro, casado, religioso, sacerdote… pois isso pode ter influência na gravidade ou na espécie do pecado. Como se sabe, não existe obrigação de confessar os pecados veniais, embora seja bom fazê-lo, por humildade, e, sobretudo, para receber as graças a fim de evitá-los no futuro. O pecado venial, embora não nos separe de Deus, é o segundo maior mal que existe, atrás apenas do pecado mortal.
A confissão precisa ser, então, íntegra quanto aos pecados mortais. Ela precisa sem íntegra porque o sacerdote atua na confissão como juiz, como médico, como mestre. Como juiz, é preciso que ele conheça inteiramente a causa, para poder julgá-la corretamente e poder dar uma sentença justa. Como médico, o sacerdote precisa conhecer as doenças graves do penitente para poder prescrever os remédios adequados. Como mestre, o sacerdote precisa conhecer a consciência do penitente, para poder corrigi-la. Além disso, o sacerdote é também pai na confissão, recendo o penitente benignamente, a exemplo de Cristo e pronto a ajudá-lo ao máximo. A confissão é um tribunal e o padre é um juiz. Mas as pessoas não devem ter medo desse tribunal. É um tribunal muito peculiar, pois basta admitir a culpa com verdadeiro arrependimento para ser perdoado. E o padre, ademais de juiz, é também médico, mestre e pai.
                A confissão deve ser também humilde, com a pessoa realmente se reconhecendo pecadora e sem buscar desculpas vãs para os seus pecados. A confissão deve ser clara, com a pessoa dizendo de modo transparente a sua falta para que o confessor possa conhecer com exatidão o verdadeiro pecado cometido. Uma linguagem imprecisa e obscura com o fim de que o confessor não se dê conta do que está sendo confessado é profanar o sacramento. A confissão deve ser discreta, isto é, não se deve revelar os pecados alheios, e com relação ao sexto mandamento a clareza e a integridade são necessárias, mas sem o emprego de termos grosseiros ou expressões desnecessárias. A pessoa não deve contar toda a sua vida, mas somente o que diz respeito aos pecados confessados. A confissão deve ser secreta, ou seja, ela deve ser feita unicamente ao confessor, para evitar escândalos.
                (Penitência) Feita a confissão, o sacerdote dá os conselhos, prescreve os remédios, e impõe a penitência proporcional ao pecado. O penitente deve, então, aceitar a penitência, a não ser que esteja impossibilitado de cumpri-la, caso em que o confessor dá outra penitência. O penitente deve buscar cumprir a penitência o quanto antes, a fim de não esquecer qual foi a penitência imposta. A verdadeira e sincera aceitação da penitência é indispensável para a validade da confissão. Se depois, apesar de ter aceitado a penitência sinceramente, não a cumpre, a confissão foi válida, mas se comete um pecado pela omissão voluntária da penitência (grave ou leve dependendo da gravidade da penitência e da gravidade do pecado em função do qual ela foi imposta). A penitência sacramental é importantíssima, pois tem eficácia particular para satisfazer pela pena temporal dos pecados. Ela é muito mais eficaz do que mortificações e penitências pessoais. Destaque-se que a pessoa já está em estado de graça após receber a absolvição, mesmo se ainda não cumpriu a penitência. Assim, se ela se confessou antes da Missa, pode comungar ainda que não tenha feito a penitência imposta.
                (Absolvição) Imposta a penitência pelo confessor e tendo sido aceita pelo penitente, o sacerdote dá a absolvição.
                Uma confissão relativa a pecados mortais que foi mal feita por falta de arrependimento, por falta de propósito de emenda ou por omissão voluntária de um pecado, é inválida e sacrílega. E são sacrílegas também todas as comunhões subsequentes e todas as confissões subsequentes. O único meio de remediar essa situação é fazer uma confissão que envolva todos os pecados dessa primeira confissão ruim e todos os pecados subsequentes, incluindo as comunhões e confissões sacrílegas.
                Vemos hoje no Evangelho, caros católicos, Nosso Senhor expulsar um demônio mudo. Infelizmente, o demônio mudo age na confissão, ao nos afastar dela incutindo em nós uma falsa vergonha ou nos fazendo omitir voluntariamente um pecado mortal. É preciso afastar esse demônio mudo e recorrer a tão belo sacramento. Uma certa vergonha e uma certa humilhação existem na confissão e são um bem, porque são já uma pena pelo pecado e nos permite satisfazer por ele. Mas essa vergonha e essa humilhação devem nos levar justamente à confissão e não a nos afastar dela. O sacerdote, caros católicos, é obrigado ao segredo de confissão, sob a pena das mais duras sanções canônicas. O padre que revela diretamente o segredo de confissão incorre em excomunhão, que somete a Santa Sé pode tirar. O que o padre conhece no confessionário, ele conhece, em certo sentido, por ciência divina, que ele não pode comunicar a ninguém. O sacerdote deve morrer para guardar o segredo de confissão e muitos, de fato, morreram por causa disso. Portanto, não deixemos agir esse demônio mudo. Confessemo-nos. E depois que o mudo falou, as pessoas se admiraram, nos diz o Evangelho. Do mesmo modo, depois que um penitente faz uma boa confissão, o sacerdote se admira, junto com a corte celeste, que se alegra pela conversão de uma alma.
                Portanto, caros católicos, aproveitemos esse tempo da quaresma para recorrermos à misericórdia divina, que tão sabiamente instituiu o sacramento da confissão.
                Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.

27 de março de 2014

Preparação para a Morte

PONTO III

Lê-se na Vida do Padre Luís de Lanusa que, cer-to dia, dois amigos passeavam juntos em Palermo. Um deles, chamado César, que era ator, vendo o seu companheiro pensativo em extremo, disse-lhe: “Apos-taria que te foste confessar, e por isso estás tão pre-ocupado... Eu não quero acolher tais escrúpulos... Escuta: Disse-me um dia o Padre Lanusa que Deus me concedia ainda doze anos de vida, e que, se nesse tempo não me emendasse, morreria de má morte. Viajei depois por muitos países; sofri de diversas doenças, uma das quais me levou às portas da morte...
É neste mês que se completam os famosos doze anos, e sinto-me disposto como nunca...” Após esta fala, César convidou seu amigo a ver, no sábado seguinte, a estréia de uma comédia de sua autoria...
Naquele sábado, dia 24 de novembro de 1668, quando César se dispunha a entrar em cena, foi a-cometido subitamente de uma congestão e veio a morrer repentinamente nos braços de uma atriz. As-sim acabou a comédia. Pois bem, meu irmão, quando o demônio, por meio da tentação, te excita outra vez ao pecado, se quiseres condenar-te podes cometer livremente o pecado; mas então não digas que desejas tua salvação.
Quando quiseres pecar, considera-te como condenado, e imagina que Deus dita tua sentença, dizendo: Que mais posso fazer por ti, ingrato, além do que já fiz? (Is 5,4). Já que queres condenar-te, condena-te, condena-te, pois... a culpa é tua.
Dirás, acaso: onde está então a misericórdia de Deus?... Desgraçado! Não te parece misericórdia o ter-te Deus suportado tanto tempo, apesar de tantos pecados? Prostrado diante dele e com o rosto em terra, devias estar a render-lhe graças e dizendo: “Graças à misericórdia do Senhor é que não temos sido condenados” (Lm 3,2). Cometendo um só peca-do mortal, incorreste em delito maior do que se tivesses calcado aos pés o primeiro soberano do mundo. E tantos e tais tens cometido que, se essas ofensas fossem feitas a teu irmão, este não as teria aturado... Deus, entretanto, não somente te esperou, mas te vem chamando muitas vezes, e oferece-te o perdão. Que mais devia fazer? (Is 5,4). Se Deus tivesse necessidade de ti, ou se o houvesses honrado com grandes serviços, poderia ter-se mostrado mais clemente contigo? Se depois disto tornastes a ofendê-lo, farias que sua divina misericórdia se trocasse em in-dignação e castigo.
Se aquela figueira, encontrada estéril por seu do-no, não desse fruto depois do ano concedido como prazo para cultivá-la, quem ousaria esperar que se lhe desse mais tempo e não fosse cortada? Escuta, pois, o que diz Santo Agostinho: “Ó árvore infrutuosa! o golpe de derrubada foi diferido. Mas não te creias mais segura, porque serás cortada!” A pena foi adia-da — diz o Santo, — mas não suprimida. Se tornares a abusar da misericórdia divina, o castigo te atingirá: serás cortado. Esperas, portanto, que o próprio Deus te envie ao inferno? Mas, se te envia, já o sabes, jamais haverá remédio para ti. O Senhor se cala, mas não para sempre. Quando chega a hora da justiça, quebra o silêncio.
“Isto fizeste, e eu calei-me. Pensaste iniquamente que eu seria como tu; argüir-te-ei e porei (tudo) diante de teu rosto” (Sl 49,21). Porá diante dos teus olhos os atos da divina misericórdia e fará com que eles mesmos te julguem e condenem.

AFETOS E SÚPLICAS

Meu Deus, que desgraça para mim, se, depois de ter recebido a luz que agora me dais, voltasse a ser infiel, cometendo traição. Essas luzes são sinais de que quereis perdoar-me. Arrependo-me, ó Sumo Bem, de todas as ofensas que fiz à vossa infinita bondade. Por vosso preciosíssimo sangue, espero, com certeza, o perdão. Mas, se tornasse a afastar-me de vós, reconheço que mereceria o inferno, criado de propósito para mim. Tremo, Deus de minha alma, à vista da possibilidade de tornar a perder vossa graça. Muitas vezes já vos prometi ser fiel, e depois, in-felizmente, tornei a rebelar-me contra vós... Não o permitais, Senhor; não me deixeis cair na imensa desgraça de ver-me convertido outra vez em inimigo vosso. Dai-me outro castigo, mas este, não. “Não permitais que me aparte de vós”. Se prevedes que vos hei de tornar a ofender, fazei antes que perca a vida. Aceito a morte mais dolorosa que ter de chorar a desdita de ver-me privado de vossa graça. Ne permittas me separari a te. Repito-o, meu Deus, e fazei que o repita sempre: “Não permitais que me separe de vós. Amo-vos, meu caríssimo Redentor, e não quero mais separar-me de vós”. Pelos merecimentos de vossa morte, concedei-me amor tão fervoroso que convosco me una estreitamente e jamais possa desprender-me de vós.
Ajudai-me, ó Virgem Maria, por vossa intercessão; alcançai-me a santa perseverança e o amor para com Cristo Jesus.