CAPÍTULO I
O PRIMEIRO ENCONTRO COM A SANTA
Vai correndo o trem através de um parque relvoso, onde capões elegantes de árvores se sucedem de espaço a espaço. Os taboleiros de relva vêm divididos por estacadas como na Inglaterra. Lindas novilhas brancas, quais animais sagrados, ali pastam, espalhadas com quase elegância, enquanto galinhas nanicas, não menos alvas, vão dando vida ao gramado com seu amiudado bicar. A luz é de tal modo serena que permite reconhecer a zona de Loire, única faixa donde se levanta neblina bastante rala e espalhadiça para dar à natureza o suave aspecto e às cores o levíssimo filó das manhãs perpétuas. É a zona do Nivernês.
Eis agora Nevers, a cidade das religiosas, por recordação do seu passado clássico. Toda sonora devido aos sinos de seus mosteiros, lá nos aparece debruçada na sua balaustrada, no ponto em que o Loire faz um meandro dos mais majestosos.
O mosteiro de S. Gildardo, que lã no alto hospeda as Irmãs de Caridade de Nevers, desce com seus pomares o declive da cidade até os trilhos da estrada de ferro. Poder-se-ia, ao chegar, tocar com a mão
no paredão que o cerca, na sua esquina. É um ângulo de paredão como se vê em qualquer quJntal fechado. Não se apresenta murado como uma fortaleza.
O muro é comum e nada tem de feroz. Não podemos, todavia, ver o que se oculta, por detrás dêle, ai nêsse recanto de jardim monacal. Mas em dado momento da nossa romaria voltaremos a divisar o que ali se dá. Entretanto, já, desde o trem, cumpre saber que êsse recanto de ângulo encerra um J)2queno oratório e que um nicho aí abriga uma antiga e linda estátua da ·Virgem, tôda alva, de sorriso enigmático e meigo e de braços ternamente acolhedores: é Nossa Senhora das Aguas. Eis, sumàriamente, o mistério todo contido naquela extremidade de cêrca e invisível para os viajantes do trem. O mistério, entretanto, é maior do que se pensa .
• • •
Vamos, neste entrementes, visitar à capela que lá no alto campeia, desde o limiar meio engastada dentro do quadrilátero grandioso das construções, donde apenas sobressai a delgada ábside. Capela de estilo gótico com duas naves laterais, mais ampla que a média das igrejas aldeãs e que nos impressiona com um céu sereno.
Por ela vão e vêm, sempre um pouco aterafadas como mulheres de muita lida, mas conservando aquêle passo ligeiro e suave das jovens religiosas a deslisar, as Irmãs do mosteiro, trajadas de preto. com o rosto estreitamente moldurado por uma ogiva de linho branco, que, debaixo do manto, se divide em duas tiras a caírem pelo peito.
Prece rápida, o serviço de caridade as reclama.
E aqui está uma delas, dormindo num esquife de cristal e ouro, erguido na capela de Maria, no fim da galeria reta.
Num colchão de setim branco, deitada a pequenina, seus pezinhos mal chegam com as meias pretas,
a sair fora das fartas dobras do hábito monacal; levemente voltada para a esquerda, seu rosto ao qual um banho de cera restituiu o frescor e feições de mocinha, pende para o ombro: d ir-se-ia que a vemos respirar com ritmo debilitado pelo sono que lhe deixa sossegadas as mãos postas, também
elas ungidas com pálida cera.
Meu Deus! eis portanto, aqui cerrados e selados com cera aqueles olhos que se enlevaram na beleza da Virgem! Eis aqui, hoje vendados e fechados aqueles ouvidos que lhe escutaram a voz! Esta é a boca que a saudou com Ave-Marias tão puras como a do Anjo. Estas as mãozinhas que se erguiam alvoroçadas para a Senhora celeste através de chama impotente. Este é o pé que ela despia da meia à beira do córrego no instante em que a eminência da Aparição desencadeava, para ela, na natureza, um ruído de temporal - sinal que a levou totalmente para a Gruta de repente luminosa!
Este é o corpo virginal que foi todo dor de expiação por amor daqueles coitados que de vós escapam nesta terra, ó meu Deus! Esta é a pastorita da encantadora aldeia de Bartrés. A pobre menina do casebre da rua das Valetas em Lourdes. A pensionista do mosteiro pirenaico, aonde iam desde os confins da terra para dela implorar uma audiência.
Esta a postulante que, para deixar a terra natal e a mãe, tanto sofreu que ficou insensível. Esta a religiosa de Nevers de quem se dizia: " É uma religiosa como as demais", mas que guardava sob a bela
fronte teimosa os três. segredos do céu. Aqui está aquela que viveu a sua vida encantada por ter entrevisto na manifestação da Mãe de Jesus a Beleza do Além. Esta é a Santa novinha que o Santo Padre, após prolongado processo, oferece qual guia aos que militam na Igreja de Cristo, qual medianeira para suas preces, qual modelo para sua boa vontade, qual heroína das virtudes para os garimpeiros da perfeição.
Já as relíquias dela nos tomam de respeito.
Parece-nos sagrado tudo quanto roçou no cristal da sua urna. Pedi que encostassem nela o estilógrafo que lhe há de descrever a vida. Sentimento não nítido, religião da lembrança, idealizamento das coisas materiais.
Quem é que não conserva piedosamente algum instrumentozinho de costura, dedal, tesoura, tear ou máquina que sua mãe outrora manejava? Ou não lhe imprime um impulso consolador?
Nossos antepassados da primitiva Igreja levavam para casa retalhos de pano embebidos no sangue dos mártires. Aquele sangue emblemático, relíquia substancial de seu sacrifício, tinha ainda o condão de comunicar a fortaleza e a graça daqueles heróis. Por isso, que veneração não inspirava imediatamente!
Assim também hoje tudo o que tocou neste despojo humano, que é da santa, parece-nos abençoado e veículo das graças que nele habitavam.
Fetichismo (dizem os incrédulos). Culto de amuleto! Sentimento de bárbaros! Mas o selvagem materializa as forças ocultas no seu talismã, e o cristão, venerando as relíquias segundo a tradição, vai, pelo contrário, espiritualizando o culto da recordação. Nele os sentidos veem e tocam um pedaço do véu da Santa. A sua fé espera encontrar ali vestígios da virtude de Deus da qual a Santa estava compenetrada.
Santa Bernadette, ajoelhados perante vossos despojos terrestres - pois o respeito e emoção fizeram-nos logo prostrar nas lajes - ó morta mais viva do que nós! - Contemplamo-vos nesse sepulcro transparente, no qual o ourives acumulou profusamente e sem medida todos os sinais e indícios da vossa glória. Impotentes como são os homens para representarem o triunfo da outra vida a vós prometido, pela Mãe de Deus, forçoso lhes é acumular aqui elementos valiosos, ornatos, florões, escudos, emblemas de vossas virtudes, evocações de vossas prerrogativas. Imagina-se até que anjos devem adejar à roda deste santo corpo, que foi tão sublime templo do Espírito Santo, altar da Eucaristia e alvo do sorriso de Maria.
Somos romeiros encantados pelo brilho da vossa glória, e encontrando-vos aqui, de repente, reconhecemo-vos, humildemente, no termo esplendoroso de vossa carreira. Quiséramos outrossim achar na Santa, cumulada hoje de honras e de vivas, a pobre rapariguinha que todos aqui neste mundo conheceram.
Tencionamos seguir vossos passos desde o tempo em que, pastorinha de oito anos, conduzíeis os cordeirinhos pelas encostas relvosas de algum morro dos Pireneus, até o dia em que, consumida pelo mal arcano, aparentemente apanágio das almas de escol, fostes morrendo aos poucos na poltrona da enfermaria, curtindo alegre aquele misterioso definhar das jovens religiosas predestinadas, sob o meigo
olhar de uma Virgem de gesso.
Desejamos palmilhar piedosamente todas vossas etapas e, mais que tudo, conhecer bem vossa alma, pois somos pobres seres humanos, muito ávidos de saberem tudo o que é do homem, e principalmente de conhecerem aqueles jorras de luz que às veles a criatura projeta ao entrar em contacto com seu Deus.
Santa Bemadette Soubirous, tomai-nos pela mão. Amém.