Deus pede estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta.
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta;
Não quis, sobrando tempo, fazer conta.
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.
Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!
Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta
Chorarão, como eu, o não ter tempo..."
(Frei Antônio das Chagas, Séc. XVII)
Tradicionalmente, a filosofia atribui duas partes à natureza humana, o corpo e a alma, unidos substancialmente, de modo que o homem não é exatamente apenas um das partes, mas a realização da união de ambas.
Pelo corpo, o homem é um ser material. A matéria é definida como “pura potência”, porque sempre pode ser mudada e moldada, não possuindo determinabilidade própria, mas a recebendo extrinsecamente, que é a sua forma.
E justamente porque a matéria é uma “indeterminação determinável”, isto é, uma pura capacidade de receber moldagem, que a alma é a “forma do corpo”, pois é o princípio subsistente da vida, que, quando unida à matéria, dá-lhe a forma de homem, porque lhe determina e ordena para formar a unidade substancial da natureza humana. Em outras palavras, a matéria é a “parte fraca”, que está aberta a uma moldagem, enquanto que a alma é a “parte forte”, porque é o princípio determinador da vida, unindo-se à matéria e tornando-a um corpo ordenado, para assim formar a unidade substancial da natureza humana.
Entretanto, se a alma é um princípio vital, e por isso mesmo essencialmente imutável e imortal, o corpo, por sua vez, é passível de mudança, porque a matéria pode receber ou perder as suas determinações de forma. Deste modo, a morte é o fim inevitável dos seres corpóreos, pois a união entre corpo e alma irá se frustrar um dia, quando, da parte do corpo, este se desconfigurar de tal maneira que já não permitirá mais a vida.
Por esta razão, a fraqueza e passividade da matéria exige que o ser humano continuamente descanse. O homem possui muitas limitações físicas e psíquicas, de modo que precisa sempre se recompor, para evitar a exaustão. A matéria não é capaz de garantir uma atividade ilimitada ou ininterrupta, pois o desgaste conduzirá imediatamente à morte.
Assim Deus fez o homem para que, até mesmo em seu cansaço, algo da eternidade pudesse ser aprendido. Com efeito, o descanso – especialmente o sono – é figura da Vida Eterna, quando o homem terá posse do fruto de todos os seus trabalhos, e estará em completo repouso em Deus, mas um repouso ativo, porque o Céu consiste na união amorosa do homem com Deus.
Neste sentido, o descanso é parte essencial da vida humana, seja na terra, seja, de forma análoga, na eternidade.
Mas como qualquer ato humano, em tudo há uma justa medida, sem falta ou excesso. Afinal, quem descansa pouco, ainda não completou o seu repouso, mas quem descansa demais, prejudica a vida ativa e deturpa o fim do repouso. Este assunto, aparentemente banal, é a raiz da esterilidade da vida espiritual de muitos, pois o descanso, fora de sua justa medida, já não é repouso, mas ociosidade. Cabe agora perguntar: no que consiste o descanso?
O descanso é um momento de passividade, quando o homem deixa as suas atividades ordinárias, seja de qual natureza forem, e se aplica a restituir suas forças perdidas. Por conseguinte, o entretenimento pode ser uma maneira de descanso. Tendo o homem cansaços físicos e psíquicos, por muitos meios ele procurará readquirir o pleno uso de suas capacidades, desde atividades feitas em vigília até o próprio sono, realizando passeios, jogos, viagens, a leitura de um agradável livro, música, conversas, banhos, exercícios físicos, etc. Por algum destes meios cada um encontra uma forma particular de exercer um tempo de passividade, livre das preocupações diárias.
Neste sentido, o descanso é como um contratempo, um fôlego tomado em direção das atividades ordinárias. Não existe um descanso sem retorno, porque a natureza do descanso é existir para a execução plena e saudável das obrigações rotineiras. O descanso é um repouso em direção ao movimento. Esta é a sua justa medida e razão de existir.
Saindo de seus limites, o descanso deturpa-se e põe tudo a perder à sua volta. Aqui há de se notar o papel do pecado original. Com efeito, a natureza humana está decaída pelo pecado de Adão, de modo que a inteligência dificultosamente chega à verdade, e a vontade tende ao mal. Por conseguinte, o pecado original contribui como causa para a distorção do descanso e da sua finalidade, impondo ao homem uma tendência ao exagero.
A partir daí, o que devia ser um momento de passividade, um repouso em direção ao movimento, torna-se evagatio mentis—evagação da mente. O homem perde o interesse pela finalidade, fadiga-se com os objetivos e quer apenas “vagar” em divertimentos e entretenimentos que só desperdiçarão o seu tempo sem conduzi-lo a meta alguma.
A evagação da mente consiste em uma abstenção da vontade e da ação. Este vício está diretamente ligado à vã curiosidade, a um simples desejo de olhar tudo sem a nada se interessar. É uma apatia completa da alma, “cansada” ou desinteressada pelas suas atividades, inerte nos entretenimentos que a conduzem a uma passividade mórbida.
Segundo o psiquiatra Enrique Rojas em O homem moderno: A luta contra o vazio, este é exatamente o perfil psicológico contemporâneo. Com efeito, esta é uma época “cansada” sem jamais ter se fadigado, porque está entregue à passividade, a tudo o que é fácil e cômodo. A gênese desta atitude está no relativismo e no subjetivismo, que corrompem no homem a busca pelo Bem, reduzindo tudo uma questão pessoal. Deste modo, o homem, sem uma meta fixada e muito menos sem os meios para tal – todos corroídos pelo relativismo –, está inevitavelmente sem rumo, sem objetivos para a vida, entregue apenas ao bem estar, ao consumismo, à permissividade e ao hedonismo. Tal atitude mental contribui em muito para legitimar a evagatio mentis, tal qual um navio sem rumo, à deriva.
Por esta razão, um católico não pode se entregar à ociosidade sob o risco de fazer ruir a sua vida espiritual. Deus é o nosso fim último, e deu a cada um um tempo fixado para alcançá-Lo através da constante santificação. Quem se deixa dominar pela ociosidade perde o tempo que Deus lhe deu, deixa de fazer a única obrigação deixada para o homem sobre a terra, e consequentemente afasta-se do seu Sumo Bem. Não se trata, contudo, de um pecado mortal, mas de um enfastio pelo bem a ser feito em virtude da passividade a que a alma está entregue. Não sem razão Santo Tomás classifica a evagatio mentis como a primeira filha da acídia, a preguiça espiritual.
A tendência ao exagero causada pelo pecado original distorce o fim do descanso, tornando-o ociosidade. Tal vício corrói no homem a vida de oração, que para muitos chega a se tornar uma indesejável obrigação, um verdadeiro fardo. E sem vida de oração e entregue a um entretenimento vazio e sem relação com a vida ativa – porque o exagero isola o descanso da sua dependência das obrigações ordinárias –, facilmente a imperfeição torna-se pecado, e para que a alma caia em pecado mortal muito pouco falta, tendo em vista a exposição irremediada ao pecado venial. Em resumo, a preguiça, a ociosidade e a evagação da mente minam a execução das atividades do homem, porque ele passa a administrar imprudentemente o seu tempo. E uma alma entregue à passividade tem dificuldade em manter a vida de oração, de modo que, caso não venha a corrigir radicalmente seu defeito, a indiferença com relação às coisas da Religião podem culminar em uma queda no pecado mortal. Pessoas que não corrigem a deficiente vida de oração que mantém facilmente caem, porque a alma está longe da fonte que a faz permanecer na graça e no amor a Deus.
Tais constatações tornam-se mais profundas quando se observa os preciosos ensinamentos do Abade Jean-Baptiste Chautard em A alma de todo o apostolado. Com efeito, D. Chautard explica que a vida ativa – a vida de apostolado – é resultado e expressão da vida contemplativa, isto é, da vida de oração. Só tem apostolado frutífero e eficaz aquele que o faz brotar de uma autêntica e profunda vida de oração. Deus é a causa primeira, e aquele que confia seu apostolado em Deus pela oração obtém toda o sucesso, porque não esperou o mero favorecimento das circunstâncias. A Sagrada Escritura ensina que Deus ouve a oração do humilde, mas abate a do orgulhoso. Deste modo, quem reconhece a sua absoluta e radical dependência de Deus, faz toda a sua vida ativa depender de uma abandonada entrega a Deus pela oração.
O católico é aquele que reconhece, tal qual a Salve Rainha, que este mundo é um desterro, porque estamos apenas conquistando a cada dia a posse da Vida Eterna, isto é, estamos de passagem. Por esta razão, um verdadeiro católico faz tudo em função de Deus e da salvação. A sua auto-disciplina, os seus sacrifícios, as suas renúncias – é porque tais práticas o levam a Deus que elas fazem sentido. Portanto, manter uma autêntica vida de oração é reconhecer que esta vida só merece ser vivida em razão da salvação eterna, e por isso mesmo não há tempo para divertimentos irresponsáveis, nem para entretenimentos vazios. Tudo fazemos por Deus, e não por nós mesmos. Mesmo quando o homem descansa ele quer recuperar forças e adquirir maior ânimo para as batalhas e lutas que tem de enfrentar. Assim como os três mancebos foram cantando para a fornalha que os iria consumir, do mesmo modo o católico vai alegremente enfrentar as provações, sofrimentos e contrariedades desta vida, que são os meios pelos quais ele se une a Jesus no Calvário, morre para a glória deste mundo, e ganha a verdadeira felicidade que não se pode encontrar na terra, mas que se acha em Deus. Que o Sagrado Coração de Jesus, de onde a lança fez jorrar Sangue e água, seja para nós um verdadeiro refúgio de todas as falsas consolações do mundo, e nos dê o repouso e o descanso que nossas almas procuram, aqui na terra em forma de graça, e na eternidade em forma de glória.
Brevíssimo exame de consciência
1. Quando desejo descansar e relaxar, qual atividade costumo empreender? Em qual entretenimento ou divertimento me ocupo usualmente? O que faço para adquirir um momento de passividade?
2. Agora que já pensastes a respeito, reflita se tens empregado tempo suficiente para descansar e readquirir as forças gastas, o ânimo perdido e a motivação necessária para continuar as atividades ordinárias. Este tempo é suficiente ou muito além do necessário?
3. Para colaborar na auto-disciplina, tem empregado um tempo determinado para os divertimentos? Escolhe um horário do dia, com começo e fim, para se aplicar em atividades de descanso, ou confia demasiadamente em seu próprio auto-controle, de modo que sempre achas que podes parar quando bem julgas?
4. Tens comprometido as suas obrigações – especialmente as orações do dia – por causa dos entretenimentos? Aplicas nele um tempo indeterminado, mas para a oração e para as outras atividades tens empregado o tempo que sobra? Tens procurado corrigir esta falha disciplinando a própria vida de oração com horários regulares para rezar, de modo que nenhuma outra atividade o prejudique?
5. Julgas que és facilmente vencido pela preguiça e pela ociosidade? Tens disciplinado as atividades, de modo que tenhas um horário para rezar e estudar e outro para descansar? Tens procurado utilizar prudentemente as diversões, ou elas se constituem como verdadeira perda de tempo, de modo que outros entretenimentos ser-te-iam mais saudáveis e produtivos?
6. Tens considerado de que Deus te dá o tempo para empregá-lo na tua santificação e salvação? Consideras que esta vida é passageira, e que aqui jamais terás um repouso permanente e completo? Consideras que este mundo é um desterro, porque estás aqui para conquistar a vida eterna? Tens administrado sábia e prudentemente o tempo, ou confias que sempre haverá tempo para corrigir os teus desperdícios?