31 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

III. MANRESA: ENFERMIDADES E PROVAS

Estava-se no fim de julho[21]; o calor era sufocante e tinha soado a hora da sesta para todos, exceto para o nosso jovem penitente, que percorria os campos, inteiramente desertos naquele momento.
A seiscentos passos aproximadamente da pequena cidade de Manresa, não longe do confluente do Cardoner e do Llobregat, no lindo vale que os habitantes do país chamavam Vale do Paraíso, Inácio ajoelhava-se junto duma cruz de pedra, plantada à beira do caminho, chamada a Cruz de Tort. Por detrás, do outro lado do caminho, corria o Cardoner; na frente, do outro lado da cruz, elevava-se uma montanha rochosa cujas saliências lhe atraíram a atenção. Levanta-se, dirige-se para a montanha, parece interrogar cada uma das escabrosidades, e, parando alguns instantes diante dum montão de silvados e de grandes pedras, afasta as silvas e rola algumas pedras. Fere as mãos; está banhado de suor; suspende por vezes o seu rude trabalho, descansa alguns momentos e retoma-o depois com novo ardor. Por fim abaixa-se, curva-se, entra por uma abertura que acaba de desentulhar e alargar, e penetra no interior da montanha. Encontra-se então numa gruta de trinta passos de comprido sobre dez de largo e outros tantos de altura. Do lado de Monserrate, uma larga fenda deixa penetrar um frouxo raio de luz e permite ver a igreja que coroa o monte bendito; o solo e as paredes são cobertos de saliências duras e pedregosas. Inácio, contentíssimo com esta descoberta, estabeleceu ali a sua morada, e, só, sob o olhar de Deus, passava noites inteiras em oração, prescindia de todo o alimento durante dias seguidos, disciplinava-se até derramar sangue e feria o peito com uma pedra. Estas austeridades alteravam-lhe a saúde e enfraqueciam a sua forte constituição. Tinha violentas dores de estômago, sustentava-se a custo e muitas vezes caía em longos delíquios.
Voltando um dia da capela de Nossa Senhora de Viladorsis, as forças traíram-no à entrada da gruta; quando recobrou os sentidos pelos cuidados das pessoas que o haviam descoberto, foi levado ao hospital de Santa Lúcia, onde se apoderou dele uma forte febre, que lhe pôs a vida em grande perigo. Durante esta doença, Inácio julgou ouvir, um dia, uma voz interior dizer-lhe:
"- Como poderás sustentar tantas austeridades durante cinquenta anos, que ainda tens que viver?"
Inácio, reconhecendo nesta linguagem o espírito do mal, respondeu-lhe logo:
"- Tu, que assim falas, podes assegurar-me uma só hora de vida? Não é Deus o único senhor dos nossos dias? E, ainda que eu vivesse mais cinquenta anos, que é isso comparado com a eternidade?"
Entretanto a doença fazia rápidos progressos sobre aquele corpo gasto pela mais rigorosa penitência; chegou a desesperar-se da sua vida, e, não tendo podido o inimigo de todo o bem fazê-lo cair no desalento, procurou vencê-lo pelo orgulho. Persuadiu-o de que, depois duma penitência como aquela que acabava de fazer durante meses, não devia temer a justiça divina.
"- Por que hei-de chorar a vida? - pensava o nosso herói. Tenho vivido como um Santo anacoreta desde que estou em Manresa; estou coberto com um cilicio, tenho trazido uma rude cinta, tenho jejuado, orado, feito vigílias, tenho chorado a minha vida passada... Não é isto o que fizeram os Santos, e não devo ver o céu aberto e os anjos prontos a receber-me?"
Mas conheceu esta nova tentação e esforçou-se por combatê-la com a lembrança dos seus pecados.
"- Infeliz de mim! - dizia ele. Que proporção pode haver entre uma vida inteira de pecado e alguns meses de penitência?"
E, chamando em seu auxílio a misericórdia divina, pediu-lhe que lhe concedesse o perdão das suas culpas e não a recompensa das suas virtudes. Depois instou com as pessoas que o rodeavam que lhe repetissem:
"- Inácio, recorda-te dos pecados que cometeste e das penas que eles merecem; pensa que mereceste o inferno e nunca o paraíso!"
A doença cedeu enfim; mas recobrando a saúde, Inácio ficou exposto a uma provação mil vezes mais cruel que todos aos sofrimentos que tinha padecido até então, e que só pode ser compreendida e apreciada pelas almas a quem à Deus apraz fazer passar por tão dolorosa tribulação.
O nosso santo penitente, aterrado por ter tido o pensamento de que chegara à santidade pelo excesso dos rigores exercidos sobre o seu corpo, não cessava de recordar-se da sua vida passada, a fim de vencer o orgulho e de humilhar a vaidade. Deus permitiu que esta vista contínua de culpas tão amargamente deploradas, trouxesse a perturbação à sua alma e lhe fizesse sofrer todas as incertezas, todas as dúvidas, todos os terrores, todas as torturas do escrúpulo. Inácio receava ter feito mal a sua confissão geral em Monserrate; não ter suficientemente explicado as circunstâncias, ter diminuído a gravidade dos seus pecados pelo modo de os confessar; persuadia-se principalmente de ter esquecido; lembrando-se de coisas que não eram de modo algum pecados, julgava ver nelas uma ofensa à Majestade divina. Os escrúpulos estendiam-se mesmo A sua vida atual; tudo lhe parecia pecado: os pensamentos, as palavras, as ações, até os menores movimentos. Se era forçado a confessar que o fato em si mesmo não era mal, imaginava falta de pureza da intenção, a qual pensava não podia deixar de ser má, pelo facto de vir dele. A graça parecia tê-lo abandonado: nem sentimentos, nem confiança, nem atrativos, Ausência completa de consolações, que o haviam sustentado até então. O céu parecia fechado para ele, Deus mostrava-se surdo às suas orações, e sucedia que o último raio de esperança se obscurecia totalmente na sua alma desolada. E, contudo, nunca ele amara tanto a Deus! Nunca experimentara tão ardente sede da sua graça, tão fervoroso desejo de lhe agradar!...
Os religiosos dominicanos do convento de Manresa, compadecendo-se do seu estado, tiraram-no do hospital, deram-lhe uma cela no convento e prodigalizaram-lhe os cuidados. da mais terna caridade.
Inácio comungava todos os domingos; mas por vezes sucedia que o sentimento da sua indignidade, na perturbação em que o lançavam os seus escrúpulos, o afastava da Sagrada Eucaristia no mesmo momento em que se ia aproximar dela. Receava cometer um sacrilégio; o Deus do amor era para ele um juiz irritado, pronto a exercer as suas vinganças. O nosso Santo caiu numa melancolia que nada podia dissipar, e, num momento em que as trevas do seu espírito lhe pareciam mais espessas que nunca, desesperou da misericórdia infinita a ponta de querer pôr termo à vida: olhava para a janela da sua cela, media com a vista a altura que o separava do solo e dizia que era preferível todo o suplício àquele que torturava a sua alma... Um pensamento o deteve: Deus seria ofendido, e ele amava-o com todas as potências da sua alma! Então o desolado penitente cai de joelhos, chora copiosamente e exclama:
"- Meu Deus! soberano senhor de todas as coisas, eu vos peço que socorrais o vosso indigno servo! Vede o meu triste estado, tende piedade de mim!..."
Naquele momento, recordando-se de que um santo eremita, cuja vida lera, recusou toda a alimentação até que lhe fosse concedida uma graça há muito solicitada: - "Pois bem, - disse o nosso Santo - usarei o mesmo processo, e talvez Deus se apiede de mim".
E jejuou rigorosamente, sem comer nem beber, durante oito dias. Sabendo-o seu confessor, ordenou-lhe que quebrasse esse jejum, que não pudera, sem milagre, sustentar tanto tempo. Inácio, dócil como uma criancinha, obedeceu imediatamente; e Deus, agradado sem dúvida mais da sua obediência do que do jejum, restituiu-lhe a tranquilidade e inundou-o, durante três dias, das mais deliciosas consolações; mas, depois de lhe ter renovado deste modo as forças, pareceu que o abandonava de novo. Todos os terrores, dúvidas, desesperos o assaltavam novamente com maior ímpeto. O religioso que dirigia a sua consciência proibiu-lhe formalmente que detivesse de então por diante o pensamento nas faltas da sua vida passada; o Santo obedeceu e reconquistou então uma doce paz, que não tornou a perder.
Nos desígnios de Deus a experiência era suficiente.
Em alguns meses, Inácio de Loiola tinha experimentado todas as alegrias e todas as dores, todas as consolações e todas as amarguras da vida espiritual; tinha percorrido todas as vias, conhecia os diversos atalhos em que havia de dirigir um dia numerosos discípulos, destinados a tornar-se mestres.
Entretanto a saúde, fortemente abalada por tão violentas provas, inquietava todos os numerosos corações que o estimavam, porque toda a cidade e arredores o olhavam como um Santo e como tal o veneravam. D. André Ferreira de Ami suplicando aos Dominicanos que deixassem ir Inácio para sua casa, a fim, de lhe prodigalizar os cuidados necessários a tanto esgotamento de forças, obteve este favor. Inácio recebeu ordem de ir para casa do seu amigo até ao completo restabelecimento, e desde então, D. André de Amigante foi chamado Simão e sua mulher Marta.
- Não se lhes deve dar outros nomes, - diziam os habitantes de Manresa - porque tiveram a felicidade de ter em sua casa a mais viva imagem do divino Salvador.

30 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

II. O REPÚDIO DO MUNDO

D. Inês Pascoal, a quem a peste tinha momentaneamente afastado de Barcelona, refugiara-se em Manresa, e fazia frequentes peregrinações ao santuário de Monserrate. Tendo-se dirigido na madrugada do dia da festa da Anunciação, voltava a Manresa, acompanhada de três senhoras e dois jovens, quando pelo meio-dia, chegando ao sopé da montanha, peito da igreja dos Santos Apóstolos, viu um jovem peregrino cuja beleza e distinção lhe atraíram a atenção, principalmente porque ia vestido com uma túnica de grosso tecido e de corda à corta. Parecia fatigado e mancava ligeiramente; tudo nele denuncia o fidalgo. D. Inês contemplava o peregrino com interesse, e este lançando-lhe um olhar modesto e doce, perguntou-lhe
- Estou longe dum hospital, senhora?
- Senhor peregrino, - lhe respondeu ela - o hospital mais próximo é o de Manresa, onde nós moramos; se quereis vir conosco, receber-vos-emos e vos trataremos da melhor vontade. Não temos pressa e caminharemos com o vagar que quiserdes.
Tendo o peregrino aceitado, D. Inês acrescentou:
- Senhor peregrino, nós temos boas pernas e vós pareceis fatigado; servi-vos do nosso macho, que nos é desnecessário.
- Agradeço-vos senhora; desejo ir a pé.
Tendo o peregrino recusado o macho, que de tão boa vontade lhe foi oferecido, os seis viajantes, mui respeitosos para com ele, afrouxaram o passo e caminharam mais devagar, porque se via que ele andava com dificuldade.
A pequena caravana ia já longe no vale de Llobregat, quando um enviado do alcaide de Monserrate, correndo a toda a brida, chama o jovem peregrino a pergunta-lhe:
- É verdade, senhor, que V. Ex.a deu um rico vestuário de fidalgo a um mendigo de Monserrate?
- É verdade, - disse o nobre peregrino, corando.
- O alcaide não quis acreditar esse homem e prendeu-o esperando o meu regresso.
- Ah! -disse o nosso Santo deixando escapar algumas lágrimas -não me foi dado fazer algum bem a esse pobre homem sem lhe causar ao mesmo tempo um grande mal!
- Fique tranquilo, senhor, - replicou o enviado do alcaide - em algumas horas será posto em liberdade.
E, puxando a rédea ao cavalo, voltou para Monserrate [20].
Uma das três senhoras que acompanhavam D. Inês, da qual era amiga íntima, dirigia o hospital de Manresa, que se chamava de Santa Lúcia, em razão da sua proximidade da igreja deste nome. D. Inês, profundamente comovida com o que acabava de passar-se, e não podendo duvidar de que Inácio fosse um grande senhor e um grande Santo, recomendou-o calorosamente à sua amiga quando se separou dela, antes de chegar a Manresa, e convidou Inácio a segui-la na direção do hospital, anunciando-lhe que ia enviar-lhe comida da sua mesa, o que se apressou a fazer.
Em presença da miséria que encontrou naquele asilo da dor, Inácio receou que não fosse assaz pobre. A lembrança de quanto o buscavam e da sua elegância, do seu orgulho e da sua ambição, do seu desejo de agradar e de ser citado pelo atrativo da graça e do espírito, não o abandonava. Ele queria expiar toda essa vida de prazeres e de honras, de vanglória e de falsa grandeza. Queria tratar a sua natureza como sempre tinha tratado o inimigo do seu soberano: como herói. Determinado a combatê-la, por assim dizer, corpo-a-corpo, e a sustentar contra ela uma luta de morte, sem tréguas, julgava, apesar disso, nada ter feito.
Permitam-nos as minudências em que vamos entrar. Poderão parecer pueris, muito vulgares, repulsivas até a certos leitores delicados; mas se se colocarem somente sob o ponto de vista da fé, e se se considerar o princípio que produz as ações que vamos referir, ser-se-á forçado a admirar-lhe o heroísmo e a confessar-se vencido.
D. Inácio de Loiola está num hospital onde a piedade lhe concede um asilo; está coberto com uma grosseira túnica e cingido duma corda; mas é jovem e belo, e nada perdeu desse cunho de nobreza e de distinção que imprime respeito e indica o homem de coração. Ele sabe-o, vê-o, e é necessário que tudo isso desapareça. Todo o seu passado deve ser esmagado, calcado aos pés, destruído... E mete mãos à obra.
Os seus cabelos são belos e ele tem-nos sempre tratado...: deixa-os crescer numa desordem só comparável à dos mendigos de que está rodeado. A sua barba andava sempre escanhoada negligencia-a como os cabelos. A sua mão é um modelo de forma e de limpeza: deixa crescer as unhas e não se ocupa delas... A sua linguagem é a da corte: estuda o idioma catalão e esforça-se por falá-lo tão naturalmente como se tivesse nascido na última classe popular da catalunha.
D. Inácio de Loiola teve sempre, mesmo nos campos, alguns criados às ordens: faz-se agora servo dos pobres doentes, e os mais repelentes são os seus preferidos. Presta-lhes os serviços mais baixos, os mais repulsivos, e se a natureza delicada tenta revoltar-se, força-a a tratar as mais asquerosas chagas, a lavá-las, a beijá-las de joelhos!
Tais mortificações, porém, não lhe bastam: são-lhe necessárias ainda, e sempre, as macerações mais espantosas. A roupa branca era sempre fina: um rude cilício a substitui. Tece por suas próprias mãos uma erva comprida e com espinhos, colhida no campo, e faz dela um cinto, que traz sobre a pele; disciplina-se três vezes por dia; come o pão mais grosseiro; bebe água que ele mesmo vai buscar à fonte e recusa qualquer outro alimento, exceto ao domingo. O pão grosseiro, coxas que se alimenta, vai mendigá-lo de porta em porta, a fim de se humilhar. Assiste todos os dias ao santo sacrifício da missa e aos ofícios, de manhã e de tarde, na igreja dos Dominicanos; ora de joelhos sete horas inteiras. Dorme na terra nua, a cabeça apoiada numa pedra ou num pedaço de pau, e só concede ao sono os primeiros momentos da noite; o resto é para a oração. Ao domingo confessa-se a um dos Padres Dominicanos e comunga; sendo aquele dia para ele de felicidade, permite-se acrescentar algumas ervas cosidas em água à sua refeição de pão negro; mas espalha nelas cinza para lhe alterar o sabor.
Tal era a vida do nosso Santo no hospital de Santa Lúcia, na pequena. cidade de Manresa.
Esforçava-se por imitar as maneiras dos homens do povo, assim como a sua linguagem, a fim de não trair a sua nobre origem; mas, como de ordinário sucede, essa afetação fá-lo cair no exagero a ponto de passar por um miserável vagabundo que todos podiam insultar impunemente. Quando saía, os rapazes corriam atrás dele, apontavam-no a dedo e chamavam-lhe o Pai Saco, alusão ao saco de grosso tecido que o cobria. Aqueles a quem pedia a esmola dum pedaço de pão, riam-se dele, da sua comprida barba, dos seus grandes cabelos, de todo o conjunto da sua pessoa. Que provação humilhante para o orgulhoso fidalgo! Mas Inácio dizia imediatamente
"- O soberano, a quem tenho a honra de servir não usou, por meu amor, a túnica reservada entre os judeus aos insensatos? Não consentiu em cobrir-se com o manto da irrisão? Não foi perseguido pelos gritos dum povo ébrio de furor e cego pelo ódio? Esta gente ri-se de mim, é verdade; mas não me tem ódio nem me quer mal. Longe disso, auxilia-me muito a expiar o meu orgulho e a minha ambição de vanglória. Coragem, pois! Ainda não sofri por amor do Rei do céu e da terra, tantas humilhações como sua divina Majestade se dignou sofrer por amor de mim, miserável pecador!"
De tempos a tempos, ia a Monserrate, passava muito tempo aos pés da Santíssima Virgem, conversava acerca dos seus interesses espirituais como Padre Chanones, que pressentiu grandes desígnios divinos sobre o seu heroico penitente. D. Inácio ia também com frequência em peregrinação a um santuário vizinho de Manresa chamado de Nossa Senhora de Viladorsis, quando o cuidado dos doentes e o serviço dos pobres lhe deixavam tempo.
Entretanto o inimigo dos homens não podia ver sem furor os progressos daquele que o combatia sem tréguas com tais armas. A paciência, a humildade, a abnegação, a mortificação, a renúncia não faltavam, um só instante ao nobre cavaleiro de Jesus e de Maria, apesar do desprezo com que não cessavam de o perseguir, e por isso o demônio usou de outro meio.
Algumas pessoas souberam, em Monserrate, pelo mendigo a quem o nosso Santo dera os seus ricos vestidos, que, sob os andrajos da miséria e da mendicidade, se ocultava, por espírito de penitência, um nobre fidalgo, o qual não podia habitar longe de Monserrate, porque ia ali muitas vezes.
O boato chegou até Manresa, onde foi confirmado, apesar do segredo prometido por aqueles que tinham acompanhado Inácio no dia da sua chegada. Já censuravam o ter sido humilhado o pobre estrangeiro do hospital, que não era outro senão esse fidalgo. Desde então, começaram a testemunhar-lhe toda a benevolência e respeito; vinham até consultá-lo, e ele falava de Deus com tanto amor, que alguns pecadores, sensibilizados com as suas virtudes e palavras, converteram-se sinceramente.
- Visto que Deus se digna servir-se de mim para operar tais conversões, - disse ele um dia a si mesmo - que grande bem não poderia eu fazer se, em vez de me tornar desprezível por um exterior ignóbil, tivesse continuado a ser o que era, -um fidalgo! Porque, enfim, eu ultrapasso todos os limites. Não seria Deus mais honrado, mais glorificado, se se visse brilhar no seu servo a ilustração do nascimento e a glória das puas próprias ações? Se eu tivesse continuado na corte, e ali vivesse como um Santo, teria mais mérito; houvera convertido alguns jovens fidalgos... Para que, pois, permanecer num hospital, onde todo o brilho do meu nascimento e dos meus talentos não pode ganhar uma só alma? Demais, tantas austeridades não podem deixar de afastar da santidade... E com que direito exporei aos sarcasmos e insultos dos vagabundos a honra da minha família, que os meus antepassados conquistaram ao preço do seu sangue?..."
Neste momento a tentação foi tão forte, que tudo se revoltou na natureza impetuosa do nosso herói. Houve nele um abalo espantoso! A sua túnica, os farrapos que o cobriam, os seus cabelos, a sua barba, as suas mãos causavam-lhe horror; o pão da caridade revoltava-lhe o coração, o serviço dos doentes desgostava-o, a tempestade tornava-se terrível...
Inácio reconheceu as sugestões do inferno: correu aos seus doentes mais repulsivos, abraçou-os, tratou-os mais afetuosamente que nunca e permaneceu junto deles até que a tentação se afastasse.
Este assalto pode, porém, renovar-se; além disso, o nosso Santo é já bastante conhecido e vêm de muito longe vê-lo a Manresa; há perigo para ele em continuar no hospital de Santa Lúcia. Inácio quer um retiro onde os homens não possam ir perturbar a sua união com Deus, e vai procurar esse retiro com a confiança de que Deus lho fará encontrar.

29 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

SEGUNDA PARTE
MENDIGO E PEREGRINO
(1522-1524)

I. CAVALEIRO DE CRISTO

Um dia do mês de Março do ano de 1522, ao pôr do sol, um jovem e belo cavaleiro, montado num cavalo andaluz, saía da cidade de Cervera, na província de Catalunha, e tomava a estrada que conduzia a Barcelona. Não levava escudeiro nem criado, mas na sua pessoa tudo anunciava um dos primeiros fidalgos da Espanha, um dos grandes senhores da corte. Usava o saio curto de veludo encarnado[10]; a sua calça, tufada desde o alto terminava pela bota mole adornada duma glande de oiro e duma brilhante espora; pendia-lhe do cinto rica espada e do lado oposto via-se-lhe um punhal de muito valor; no gorro, cheio de rodados e pendido sobre a orelha direita, flutuava graciosamente a longa e bela pluma que só a nobreza tinha direito a usar [11].
Vendo-o cavalgar tão tranquilamente; ao passo regular sua cavalgadura, ninguém explicava a ausência dos criados todos a comentavam a seu modo. Estava pouco distante lugar de Igualada, quando um cavaleiro, saindo dum caminho à direita, se lhe aproximou saudando-o e dizendo-lhe:
- Senhor cavaleiro, teria grande prazer em viajar convosco, se me permitísseis acompanhar-vos.
- Da melhor vontade, - lhe respondeu o nosso fidalgo. - Sois Mouro, não é verdade? Conheço-o pelo vosso vestuário ...
-Sim, senhor, mas vivemos tranquilos agora no reino de Aragão e no de Valência, aonde me retirei com minha família. Estava previsto ! Era essa a vontade de Alá!
- Ides longe, senhor?
- A Igualada e de lá a Nossa Senhora de Monserrate.
- Ah! Ides em peregrinação à capela da Mãe de Jesus, senhor cavaleiro?
-Vou em peregrinação à capela da Santíssima Virgem, - respondeu com vivacidade o fidalgo cristão.
Então travou-se controvérsia entre os dois viajantes. O muçulmano sustenta que Maria não era virgem depois do parto; o cristão, forte na sua fé e na verdade que defende, sustenta a virgindade de Maria, antes, durante e depois do nascimento do Salvador. A discussão acalora-se; o muçulmano esgota em vão todas as razões, e não encontrando nada que opor ao seu adversário, exclama cheio de ódio:
- Não! por Maomé! a Mãe de Jesus não conservou a virgindade!
E, esporeando a mula, toma a dianteira e parte a galope.
Ouvindo esta última blasfêmia, o nobre cristão fez o sinal da cruz, recolheu-se, orou um instante e disse:
"- Aquele desgraçado ousou insultar horrorosamente a divina Mãe do meu Soberano Senhor! E eu, fidalgo, eu, cavaleiro da nossa soberana Senhora e Mestra, sofrerei este ultraje feito à sua honra sem procurar vingá-lo?! Não passarei a minha espada através do corpo desse maldito muçulmano?! Não, não será assim! Ínigo de Loiola não pode tornar-se culpado de semelhante felonia! Corramos após esse infiel, e, pondo-lhe o pé no pescoço, forcemo-lo a confessar que ele é um miserável blasfemador e que a puríssima Senhora e Rainha do Mundo, que eu tenho a honra de servir, conservou sempre a sua santíssima virgindade!..."
Lançou a toda a brida o cavalo e ia transpor a distância que o separava do muçulmano... De repente, para; a sua consciência perturba-se, e pergunta a si mesmo:
"- Ser-me-á permitido matar um homem para a glória e honra da minha Soberana? Ignoro-o completamente
Na dúvida, entreguemos o negócio ao juízo de Deus[12]. Vou abandonar o meu cavalo a si mesmo; se ele avançar para além do caminho que devo tomar e seguir a estrada de Barcelona, lançar-me-ei sobre esse miserável infiel e atravessá-lo-ei de lado a lado sem compaixão. Se ele voltar à esquerda, perdoarei a esse miserável".
Tomada esta resolução, o nosso herói seguiu a distância o muçulmano; chegado ao caminho que devia tomar para se dirigir a Monserrate, o seu andaluz abandonou a estrada real, voltou à esquerda e dirigiu-se a Igualada. Inácio aceitou o Juízo de Deus, mas compreendeu-o muito pouco. Mais instruído nas ciências que faziam os grandes capitães e cortesãos cavaleiros, do que na que fazia os grandes Santos ou somente os verdadeiros cristãos, aplicava à sua nova vida todas as ideias de guerra e de antiga cavalaria, de que sempre se alimentara.
Abandonando o teto paterno com a resolução de não habitar mais a feudal morada de seus pais, Inácio não tinha outro fim senão fugir do mundo e consagrar-se inteiramente à maior glória de Deus. Quanto à maneira como devia chegar a este fim, ignorava-a: tudo o que sabia era que queria viver de pobreza, de penitência, de humilhação, de imolação contínua de si mesmo, como os Santos cujo heroísmo era para ele objeto de tão grande admiração.
- Estivera poucos dias em Navarrete, e, abandonando esta cidade, tinha dado ordem aos seus criados de voltarem ao castelo de Loiola, e acrescentara, dirigindo-se ao seu escudeiro:
- Dirás ao sr. D. Garcia que vou fazer uma viagem, durante a qual os teus serviços me são desnecessários.
Dirigiu-se em seguida para a Catalunha, querendo ir a Monserrate pôr sob a proteção da Santíssima Virgem a sua resolução de viver doravante a vida dos Santos. Ao iniciar esta peregrinação, tinha feito voto de castidade perpétua, e chegara sem incidente a Cervera, onde o encontramos.
Depois de ter renunciado a matar o muçulmano, cuja vida tinha submetido ao juízo de Deus, o nosso cavaleiro parou em Igualada e comprou alguns objetos, que ligou ao seu cavalo, entrando em seguida no caminho tortuoso que conduz à santa montanha.
Chegado ao convento dos religiosos beneditinos, aos quais está confiada a guarda da miraculosa imagem, pediu para fazer uma confissão geral a um deles; designaram-lhe o Padre João Chanones [13], encarregado especialmente de ouvir os peregrinos.
Inácio escreveu a sua confissão com tão escrupuloso cuidado e tão viva contrição, que a sua acusação, frequentemente, interrompida pela abundância das lágrimas, só pôde ser acabada no terceiro dia. Feliz de poder abrir a sua alma a um homem de tão eminente virtude, fez-lhe conhecer as graças com que tinha sido favorecido, e pediu-lhe conselhos sobre a maneira como devia executar a sua inabalável resolução de não mais viver senão para serviço e glória de Deus. Essas conferências foram longas e frequentes vezes renovadas. Inácio, evidentemente chamado à mais alta santidade, mas ignorando os meios de lá chegar, estava persuadido de que os mais enérgicos deviam ser os mais eficazes.
Disciplinava-se todos os dias e trazia o mais rude cilício sob o seu elegante vestuário; privava-se do alimento e do sono e só esperava pelo momento em que pudesse, desconhecido de todo o mundo, sofrer os mais humilhantes desprezos dos homens. Quanto a consultar a vontade de Deus para conhecer o que dele exigia, não pensava nisso, e não pensava até que pudesse haver vocações especiais. Não compreendia e não queria senão uma coisa: uma vida de imolação incessante para glória de Deus. Jesus Cristo fez-se vítima pelos homens, ele queria fazer-se vítima por Jesus Cristo. A sua dor de ter vivido até então para o prazer e para a glória ilusória deste mundo era das mais amargas, e, todavia, o fim principal das, suas espantosas mortificações não era a expiação dos seus pecados, mas a glória de Deus. Para ele tudo consistia nisto.
Depois de ter recebido a absolvição, o nosso santo penitente, pediu e obteve o favor de passar a noite no santuário privilegiado, aos pés de Jesus e Maria. Era no dia 24 de Março.
À tarde, apresenta-se no átrio da igreja, passeia a vista sobre os mendigos que ali se encontram, vê um mais miserável, mais pobre que os outros, aproxima-se dele, sauda-o respeitosamente, pede-lhe que o siga, e leva-o para um lugar onde possa falar-lhe sem testemunhas:
- Meu amigo, - lhe diz - tenho um favor a pedir-lhe: Quer dar-me a sua roupa e aceitar em troca a minha?
O mendigo seguira da melhor vontade o belo peregrino esperança de receber uma boa. esmola; mas estava longe esperar tal proposta, e pensando ter ouvido mal, ou julgando que o jovem fidalgo tinha perdido o juízo, olhou-o admirado e não sabia o que responder
- Falo-vos seriamente, - acrescentou Inácio. - Fiz um voto
No tempo em que sucedeu esta história, esta palavra explicava tudo.
- Oh! então, da melhor vontade, meu nobre senhor, - respondeu o pobre catalão, contente por lhe aparecer tão fortuna.
E, imediatamente, o valente capitão, o herói de Navarra e de Pamplona, o elegante cortesão tão cortejado, tão aplaudido, tão amado na corte do seu soberano, o brilhante Inácio de Loiola despoja-se dos seus ricos vestidos e cobre-se com os andrajos de um mendigo! E, tomando a mão negra e calosa do pobre montanhês:
- Obrigado, meu amigo, - lhe disse - prestou-me um serviço que jamais esquecerei!
Entrou no seu quarto, abriu o embrulho que continha os objetos que comprou em Igualada, tirou dele uma longa túnica de grosso tecido, que vestiu, uma corda de cânhamo que atravessou à cinta, sandálias de junco entrançado [14] e uma cabaça que atou na ponta dum grande bordão. O seu desejo era ir de pés descalços, mas a sua perna esquerda, de que ainda sofre, está fraca, incha todos os dias e é até obrigado a conservá-la ligada [15]; limita-se, pois, a deixar só um pé descalço e põe uma sandália no outro.
Leu, nos romances de cavalaria, que na véspera do dia em que os eleitos deviam, ser armados cavaleiros, isto é, receber solenemente a espada e espora, [16] passavam a noite de pé cobertos com a sua espessa armadura e meditavam assim sobre o compromisso que iam tomar [17]. A isto chamava-se a vigília das armas.
Recordando-se disto, Inácio de Loiola, que devia ter a felicidade de comungar no dia seguinte, perguntou a si mesmo se não devia considerar-se como candidato à ordem da cavalaria mais eminente que jamais houve.
"- Que sou eu, - disse ele - senão um cavaleiro do soberano Senhor e da soberana Senhora do mundo ? Não vou receber amanhã as mais poderosas armas para combater os seus inimigos? Sim! como esforçado e valente cavaleiro, no momento de ser alistado na nobre milícia de Cristo e de Nossa Senhora, devo meditar sobre os compromissos que vou tomar... Devo fazer a vigília de armas".
E cingiu a sua espada por cima da corda, tomou o punhal, que pôs à cinta e dirigiu-se à igreja. Passou a noite a orar e a meditar, chorando abundantemente sobre a sua vida passada e renovando a Jesus e a Maria a promessa de ser para sempre o seu mais fiel vassalo e de morrer ao serviço de Suas Majestades.
Antes do dia, desafivelou o cinturão, fez homenagem à Rainha do céu da sua espada e do seu punhal, que deixou apensos a um pilar da capela [18], assistiu à primeira missa e comungou com fervor celeste.
Era o dia 25 de Março, festa da Anunciação.
O concurso dos peregrinos devia ser considerável. Inácio de Loiola, receando ser reconhecido, abreviou a ação de graças e abandonou Monserrate.
Despedindo-se dos bons Padres, fez-lhes presente do seu cavalo e partiu a pé, de cabeça descoberta, bastão na mão e vestido como acabamos de ver.
"Não é já o belo cavaleiro cujas recordações de infância se perdiam no meio das prodigalidades e dos prazeres da corte do rei católico. Nada há nele do jovem senhor que, há pouco ainda através da licença das armas, sabia espalhar o perfume da maior urbanidade e da mais poética galanteria... Este fidalgo tão cheio de si mesmo, tão ardente, tão generoso, tão susceptível sobre todas as coisas que se prendiam com pontos de honra, corre à conquista da humilhação, como se a humilhação se tornasse para ele uma nova fonte de glória" [19].
Inácio de Loiola desejava ardentemente ir em peregrinação à Terra Santa. Aos sentimentos piedosos que lhe inspiravam esta devoção, juntaram-se as suas ideias cavaleirescas. Recordava-se das cruzadas e dizia que um fiel cavaleiro de Jesus e de Maria não podia dispensar-se de visitar os Santos Lugares para a libertação dos quais o mais nobre sangue da Europa havia sido tão generosamente espalhado. Mas o porto de Barcelona estava fechado por causa da peste; nenhum navio podia ali entrar nem sair, e, esperando que a navegação fosse livre, o nosso Santo tinha determinado, por conselhos do Padre Chanones, retirar-se a Manresa, pequena cidade distante de Monserrate apenas doze quilômetros. Naquela época, tinha poucos habitantes, mas possuía um Convento de Dominicanos e um hospital, o que asseguraria a Inácio todos os recursos desejáveis para satisfazer a sua piedade e a sua mortificação. Estando o hospital situado fora da cidade, preenchia melhor o seu fixe: ali, podia permanecer desconhecido e exercer ao mesmo tempo a humildade, a caridade, o zelo, todas as virtudes que tinha necessidade de praticar no mais perfeito grau.

28 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

IV. A CONVERSÃO

D. Garcia não entrava no quarto do seu jovem irmão que o não encontrasse ocupado a ler ou a escrever.
- Achais interesse na vida dos Santos, caro Ínigo? - lhe disse um seu irmão.
- Sim, senhor, acho nela coisas surpreendentes, que ultrapassam tudo o que os cavaleiros imaginários têm empreendido para conquistar um nome glorioso. No primeiro momento, ou fosse por ser privado dos romances que eu desejava, ou por outra razão, este livro pareceu-me insípido. Mas forçando-me o aborrecimento a lê-lo, terminei por achar-lhe. muito interesse.
- Tanto melhor, caro Ínigo, porque esta longa reclusão é dolorosa para uma natureza tão viva como a vossa.
- Sofro menos, meu caro irmão, desde que leio este livro. Contudo, vede: condeno-me a este suplício para não perder a minha influência junto das damas da corte, ao passo que todos estes Santos teriam sofrido tudo isto, e mais ainda, só para agradarem a Deus. Eles ganharam uma eternidade de felicidade em recompensa da sua vida penitente ou do martírio que aceitaram; e eu apenas terei sorrisos de mulheres ou louvores cortesãos como única recompensa! Pergunto a mim mesmo o que me ficará de tudo isso, quando eles e eu tenhamos envelhecido?
- Sempre assim foi o mundo, meu bom Ínigo; o importante, para um fidalgo do vosso nascimento e do vosso valor, não é ser um Santo, como aqueles cuja vida estais lendo, mas portar-vos sempre com honra, e aumentar a glória que já vos mereceu a vossa valente espada.
É precisamente o que eu penso, meu caro irmão. Demais estou na idade dos triunfos, desejo-os, e ser-me-ia impossível sacrificá-los. O meu destino não é imitar estes heróis evangélicos incontestavelmente nunca serei um Santo!
Inácio não acrescentou,-só o confessou mais tarde -que tinha perguntado muitas vezes a si mesmo, ao ler a vida dos Santos, porque não procuraria imitá-los; por que não podia fazer o que os Santos puderam; por que não procuraria, como eles glorificar a Deus na terra, com a esperança de ser um dia participante da sua glória no céu. É verdade que esses bons sentimentos eram imediatamente abafados pelos sonhos de ambição e de vaidade, e que, indo-se-lhe pouco a pouco distendendo a perna, a esperança de não ficar coxo quando saísse do seu quarto o preocupava mais que tudo. Entretanto, lia relia as grandes ações dos Santos, e, querendo conservar a recordação delas, escrevia aquelas que mais o impressionavam. Passado pouco tempo, sentiu-se muito comovido ao entregar-se a esta ocupação, e perguntou de novo a si mesmo:
- Por que não hei-de ter a coragem que tiveram os Santos? Vejo entre eles alguns que eram de estirpe tão boa como a minha; vejo-os até que se sentaram em tronos ou foram oriundos de sangue real... Por que não hei-de eu procurar a única glória que eles ambicionaram? Hoje estão eles em posse duma felicidade que os prazeres e a glória desta vida não podem dar, e têm esta felicidade garantida por toda a eternidade! Esta felicidade eterna conquistaram-na renunciando às grandezas, aos prazeres, às vaidades deste mundo, e calcando-as aos pés, para só viverem da renúncia, da oração e da mortificação... Por que me parece tão estimável o que eles tanto desprezaram?... De que lado está a razão? Onde está a verdade? Eles só procuraram a glória da eternidade; eu ambiciono a do tempo... De que lado está a sabedoria? Onde o verdadeiro e sólido interesse? Tenho trinta anos, sou de nobre raça adornado de todos os dotes que agradam ao mundo. Se a minha perna ficar de novo curta quando a tirar desta máquina, eis-me forçado a afastar-me da corte e dos prazeres. da minha idade! Os meus triunfos estão, pois, dependentes dum movimento de nervos, duma ferida, duma doença, dum incidente que a coisa mais insignificante pode provocar! Eis o que vale a felicidade que o mundo pode oferecer!... Não será uma loucura procurá-la e viver para ela?"
Todas estas reflexões surgiam no espírito de D. Inácio assaltavam-no de dia e de noite e o fatigavam tanto mais quanto mais energicamente eram combatidas pelo respeito humano e pelo atrativo dos prazeres entre os quais tinha vivido até então...
- "Que se dirá na corte - perguntava ele a si mesmo - se eu não reaparecer? Crer-se-á que fiquei defeituoso até ao ridículo e que tenho vergonha de me deixar ver... Ou pensar-se-á que perdi Pamplona por culpa minha... Acusar-me-ão de inabilidade, dirão que me envergonho daquela, derrota e que fugi por cobardia... Se se escrevesse assim a história!..."
A este pensamento, todo o orgulho do nobre Inácio se revoltava; lançava a vista para a sua gloriosa espada suspensa perto do leito, com a qual quisera atravessar no mesmo instante o corpo do historiador desleal ou mal informado.
Prolongando-se esta luta na alma do nosso herói, perguntou um dia a si mesmo se não seria já tempo de pôr termo a ela, tomando uma resolução definitiva.
- "Há evidentemente em mim, - dizia ele - duas vontades opostas; uma, que me impele para o bem, e por ele à felicidade eterna; a outra, que me impele para o mal, e por ele à eterna infelicidade. Quando reflito largamente sobre as vantagens duma vida penitente, como a dos Santos, experimento uma tranquilidade, uma paz de espírito, uma doçura. interior, que são desconhecidas e que o mundo não pode dar-me. Quando, ao contrário, me deixo arrastar pelo pesar e pelo desejo dos prazeres e da glória desta vida, fico com uma perturbação, uma inquietação, uma agitação que se assemelham ao remorso, e me tornam desgraçado. É, pois, loucura hesitar no partido que devo tomar... Farei o que fizeram os Santos!"
Esta importante resolução estava tomada e, com uma natureza de Inácio de Loiola, devia ser executada. Aproxima-se o momento em que ele podia tirar o aparelho da perna e experimentar as suas forças; mas a estação era pouco favorável, o inverno começava a fazer-se sentir e a prudência recomendava que esta resolução fosse adiada por alguns meses.. Entretanto o nosso recluso ocupava-se em ler e reler a vida Nosso Senhor e a dos Santos, e escrevia sempre, mas com muito mais cuidado, os traços que mais o impressionavam. Fez este modo um livro de trezentas páginas, escritas no gosto época, em diversas cores. Empregava a cor de ouro para Nosso Senhor, a vermelha para a Santíssima Virgem e as outras cores para os Santos [9].
Entretanto, Inácio tornara-se um homem novo. Ocupado de Deus e do desejo de lhe agradar, dividia o seu tempo entre santas leituras, a oração, a meditação e a escrita. Procurava trazer à memória todas as faltas da sua vida passada, suspirando pelo momento em que lhe fosse permitido expiá-las pelos jejuns, vigílias, macerações e solidão. A sua família estranhava-o a linguagem, maneiras, assuntos de conversação, mudara nele, e D. Garcia preocupava-se seriamente com isso, Sabia que com um caráter enérgico e perseverante como o de Inácio, tudo o que se tentasse para o afastar do caminho em que ele entrara, encontraria a invencível barreira da sua firmeza. Além disso, Inácio não lhe falava dos seus projetos, nem lhe comunicava as suas impressões, e limitava-se deixar adivinhar que agora era todo de Deus e que o mundo não valia nada para ele.
Aguardando a cura completa, formava planos de vida que acolhia e rejeitava; mas não abandonava a ideia de ir em peregrinação à Palestina. Teve, um momento, o pensamento de se retirar a um mosteiro dos Cartuxos. Chegou a enviar um dos seus servos à Cartuxa de Burgos a pedir informações sobre a regra de S. Bruno, ordenando-lhe que guardasse segredo acerca da missão de que o encarregara. Guardá-lo-ia? É provável que não, e que fosse este servo de Inácio que despertasse as suspeitas de D. Garcia.
Por fim, o nosso ferido readquiriu a liberdade dos movimentos; pôde levantar-se e andar, mas tão longa inação e tão doloroso tratamento haviam-lhe enfraquecido a perna direita. Foi necessário fortificá-la com o ar puro e um exercício moderado. Inácio submeteu-se a este regime, cujo resultado devia secundar os projetos que lhe alimentavam o espírito. Todos os dias dava um pequeno passeio, sem perder o recolhimento; todas as noites se levantava para se entregar à oração por mais tempo e com mais tranquilidade que durante o dia. Gozava consolações tais neste exercício, que o desejo de retiro, de solidão e de mortificação, tornara-se para a sua alma um verdadeiro sofrimento.
Uma noite, sofrendo mais ainda que de ordinário. pela necessidade imperiosa de abandonar tudo por Deus, e estando a sua perna assaz fortificada para lhe permitir a execução dos seus projetos, prostrou-se diante duma imagem da Santíssima Virgem, pediu-lhe que aceitasse o compromisso, que ele tomava a seus pés, de só viver para a glória do seu divino Filho, e jurou-lhe, na sua linguagem de guerreiro, ser sempre fiel à sua bandeira, não servir senão na sua milícia e sob suas ordens, e ser do Filho e da Mãe, na vida e na morte. No mesmo instante, um estrondo, semelhante a uma forte detonação, faz-se ouvir no interior do castelo e o abala até aos alicerces. O abalo foi sentido em todos os cantos da casa, mas não deixou sinais senão no quarto de D. Inácio, mais violentamente atingido, e cujos muros, dalguns pés de espessura, sofreram um abalo tão forte que produziu uma larga fenda, que ainda existe.
Não foi um tremor de terra, porque só o castelo sofreu o abalo; as dependências nada sofreram. Qual a causa deste fenômeno? Procurou-se, mas não se encontrou. Preveria o demônio os temíveis e incessantes golpes que lhe viria a dar a santa Companhia de Jesus, e quereria manifestar a sua raiva impotente contra aquele que Deus tinha escolhido para ser o fundador da mesma? Os historiadores do Santo são dessa opinião.
D. Garcia continuava a preocupar-se com a transformação de Inácio e procurava ocasião de comunicar-lhe os receios que o agitava; esta apresentou-se breve. Inácio, sentindo-se mais forte, deu um passeio a cavalo sem prevenir o irmão, e, quando regressou, encontrou D. Garcia que o esperava na escadaria
- Julgastes, meu irmão, que fosse nosso tio Manrique? - perguntou.
- Não, meu irmão, - respondeu gravemente o chefe da família - sabia que vos tínheis ausentado a cavalo, e quando ouvi o som da buzina corri para ver se os vossos criados entravam sós ou se vos seguiam.
- Fui experimentar as forças, meu caro irmão. É conveniente readquirir o exercício de cavalgar.
À noite os dois conversavam sem testemunhas no quarto de Inácio.
- Confesso, - dizia D. Garcia - que a vossa saída a cavalo me inquietou bastante, em consequência do silêncio, que guardais sobre os vossos projetos. Por que me não prevenistes ?
- É verdade que vô-lo podia ter dito, mas que receais?
- Meu caro Ínigo com toda a franqueza vô-lo digo porque tenho necessidade de expandir. o coração. A vossa mudança é tal que receio tudo. A vossa. imaginação está exaltada com a leitura da vida de Jesus Cristo e dos Santos; renunciastes à corte, à guerra, às honras, à glória, a tudo o que amáveis.
Só viveis para Deus, não comunicais a ninguém os vossos projetos, e, na vossa idade, deveis tê-los certamente. É, pois, de temer que, deixando-vos levar por indiscreto fervor, falais mais do que deveis.
- Espero, caro irmão, não ir mais longe do que devo, - respondeu Inácio; - peço-vos que fiqueis tranquilo a esse respeito.
D. Garcia prolongou a conversa mais alguns momentos, e, vendo que não podia esperar confidência alguma sobre os projetos do irmão, deixou-o, recomendando-lhe que refletisse.
Na noite seguinte, quando Inácio estava em oração, a Santíssima Virgem apareceu-lhe rodeada de brilhante luz, trazendo Jesus Menino nos braços. Não lhe falou; mas a sua celestial presença inundou-lhe a alma de inefável consolação, e pareceu-lhe que a graça o purificava inteiramente, que tudo nele fora renovado. A partir daquele momento, ficou livre de toda a tentação, de todo o pensamento contrário à virtude da pureza.
O nosso Santo tinha experimentado as forças: prolongando a sua estada sob o teto da família, expunha-se a novas observações, a novas tentativas da parte do irmão para o afastar de seguir a voz que o chamava. Era, pois, urgente apressar a partida. Dois dias depois deu as necessárias ordens, e, entrando nos aposentos de D. Garcia, disse-lhe:
- Meu querido irmão, o tempo é favorável e vou aproveitá-lo para ir ver meu tio Manrique; estarei ausente alguns dias...
- Ínigo, - exclamou D. Garcia - enganais-me!
- Não, senhor, digo-vos a verdade, vou a Navarrete.
-Sim, mas de lá aonde ireis? Conheço-vos, Ínigo, e estou certo que há muito tempo alimentais um projeto de futuro, que não pode ser agradável à vossa família. Não posso afastar-vos dele, porque sei como sois firme nas resoluções tomadas. Mas, por Deus! não me direis nada? Afastais-vos dum irmão que vos ama sem lhe dizer aonde ides e o que fareis? Receio que a imaginação vos tenha iludido. Quereis viver longe do mundo, bem o sei. Mas não podeis estar aqui só e tão retirado como um solitário, ficando conosco? Deus não estará em toda a parte? Não consultastes ninguém; cedeis a um impulso de fervor inspirado pelo exemplo dos Santos; bem está. Todavia deveis ter em consideração também a honra da vossa família. Ides abraçar a pobreza evangélica e estender a mão aos viandantes?
Inácio não respondeu.
- Se me engano, - acrescentou D. Garcia - por que me não desenganais e tranquilizais?
O mesmo silêncio da parte de Inácio. Seu irmão continuou:
- Nada posso para vos fazer mudar de resolução, mas ao menos, meu irmão, meu caro irmão, se não voltardes de Navarrete, se vos afastardes de nós, como receio, prometei-me, a mim vosso irmão mais velho, que nunca desonrareis o nobre nome que usais! Prometei-me que em qualquer lugar em que vos acheis, não esquecereis o sangue que corre nas vossas veias, e que nunca adotareis um modo de viver que nos faça corar! Enfim, prometei-me que nunca vos tornareis indigno dos nossos gloriosos antepassados.
Prometo-vô-lo, meu irmão; não tenho e espero nunca ter a intenção de faltar à honra. Disse-vos a verdade. Vou a Navarrete fazer uma visita dalguns dias a meu tio Duque de Nájera que veio ver-me durante a doença, e a quem devo este testemunho de reconhecimento e de afeição.
- Estais assaz vigoroso para empreender tão longa viagem através das montanhas?
- Sim, senhor, estou certo que posso efetuá-la, a não ser que um incidente, que ninguém pode prever, mo impeça e pararei em Biscate para ver minha irmã.
- Pois bem, acompanhar-vos-ei até casa dela e em seguida deixar-vos-ei para irdes com os vossos criados a casa do tio Manrique.
No dia seguinte, os dois irmãos partiram a cavalo, seguidos dos seus escudeiros e criados, e só se separaram em Onate, como fora combinado. As despedidas fizeram-se à noite porque Inácio devia partir de madrugada. Mas quando todos estavam deitados o nosso herói, que tinha tomado todas as precauções, dirigiu-se à igreja de Nossa Senhora de Arancuza e ali passou a noite. Ao romper do dia montou a cavalo, e, seguido de dois criados, dirigiu-se para Navarrete.
Abandonando para sempre a opulenta casa dos pais, não levara mais nada que os seus manuscritos; não tomara sequer a bolsa. Chegado a casa de seu tio, recorda-se que tem algumas dividas e quer solvê-las; em casa de seu tio Manrique devem-lhe uma certa quantia, que ele reclama, encarrega o seu escudeiro de pagar as dívidas, e, julgando-se rico com o que lhe resta, manda fazer uma imagem da Santíssima Virgem, que trará sempre consigo; porque ela será agora a sua única Senhora.

27 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

III. CONVALESCENÇA DOLOROSA

A morte tinha passado pela casa de Loiola: D. Beltrão de Yáñez deixara de existir. D. Martim Garcia, seu primogênito tornara-se chefe da família, abandonara a corte e o serviço no exército, casara-se e vivia retirado no lato do Loiola. Desde a tomada de Pamplona, enviava todos dias um mensageiro a informar-se de Inácio, sabia que o jovem herói lhe seria entregue logo que os homens da ciência julgassem em estado de ser transportado e contava impacientemente os dias.
Inácio chegou enfim. Os médicos, que o esperavam no castelo declararam, depois de lhe terem examinado cuidadosamente a perna direita, da qual sofria muito, que ela fora mal curada.
- Deixando-a assim, - acrescentaram eles - o Sr. comandante sofrerá sempre dela e ficará defeituoso - E que é necessário fazer para evitar essa desgraça? - perguntou Inácio.
- É necessário quebrar o calo já formado, quebrar a perna de novo, unir as partes do osso e depois aplicar o aparelho.
- Pois bem, - respondeu o valente guerreiro - quebrem-na já; não quero ficar disforme.
Meteram mãos à obra. Inácio suportou esta longa e dolorosa operação sem deixar escapar uma só queixa; mas no dia seguinte sobrevieram-lhe uma febre ardente e sofrimentos do estômago que nada pôde acalmar. A doença fez progressos alarmantes; Inácio compreendeu-o.
- Doutor, - disse ele ao médico - sinto-me muito mal, quero morrer como fidalgo cristão; que pensa do meu estado?
- Senhor... Penso que na idade de V. Ex.a deve sempre esperar-se a cura.
O doente não interrogou mais o doutor e preparou-se para a morte. No dia 28 de junho, D. Garcia, aterrado com o enfraquecimento de seu irmão, comunicou ao médico as suas apreensões
- Ah! senhor, - lhe respondeu o doutor - é infelizmente verdade que não tenho esperança alguma!... A não sobrevir uma crise favorável, o que não espero, o Sr. comandante não passará da noite próxima.
- Hoje é a véspera dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, - replicou D. Garcia enxugando as lágrimas, que, a seu pesar, lhe banhavam as faces; - oremos para que nô-lo conservem! D. Ínigo compôs, no ano passado, um poema em honra de S. Pedro. Quem sabe se o príncipe dos Apóstolos lhe será propício em recordação desta homenagem?
Inácio também sentia a morte aproximar-se; pediu e recebeu os últimos sacramentos na tarde desse mesmo dia, no meio das lágrimas e dos soluços de sua família e das pessoas que o estimavam. Pela meia-noite, adormeceu placidamente, com grande admiração daqueles que esperavam o seu derradeiro suspiro, e viu em sonho o Apóstolo S. Pedro colocar a sua mão sobre ele e curá-lo. Quando despertou, todo o perigo tinha desaparecido; poucos dias depois, a saúde e as forças voltaram-lhe. Levantou-se o aparelho da perna esquerda... Viu-se então que as partes do osso partido se tinham deslocado, estavam disjuntas, uma sobre a outra, formavam uma saliência, os nervos se tinham estendido a todo o comprimento do membro, e, enfim, essa perna ficara mais curta que a outra. Tal descoberta consternou todos os corações.
O belo Inácio de Loiola, um dos senhores da corte considerados como mais elegantes, aquele cujas homenagens eram mais graciosamente acolhidas pelas damas da rainha e pelas próprias princesas; esse brilhante cortesão, tão elogiado e tão procurado, era, agora apenas um homem disforme e coxo.
Inácio, depois de tantos triunfos, não pôde aceitar esta disformidade antes de tentar todos os meios para a fazer desaparecer:
- Não quero esta saliência acima do joelho, disse aos cirurgiões. Que espécie de bota poderia eu calçar assim? Não quero. Façam uma abertura suficiente para pôr o osso a descoberto e arranquem toda a protuberância.
- Senhor, - responderam os cirurgiões - V. Ex.a não pode suportar tais sofrimentos. Seria necessário serrar o osso!
-Pois bem, serre-se!
Mas, senhor, todos os sofrimentos que V. Ex.a sofreu nas operações precedentes, não são nada em comparação desses.
- Isso é comigo; convosco é tirar-me este aleijão.
Inácio pronunciou estas últimas palavras num tom tão imperativo que os médicos não ousaram replicar. E acrescentou:
- Mandem fazer uma máquina que possa forçar este membro encolhido a retomar o seu comprimento natural; não quero ficar coxo.
- Senhor, admiro a coragem de V. Ex.a - disse-lhe o seu médico ; - porque o que me pede é um instrumento de martírio, é um suplício real! Por Deus, reflita V. Ex.a...
- Custe o que custar, não quero ficar disforme nem enfermo. Tome as suas medidas; quanto a mim, estou pronto.
D. Garcia advertido pelos cirurgiões da resolução de Inácio, procurou, mas em vão, fazê-lo mudar de parecer:
- Meu senhor e irmão, - lhe respondeu energicamente o jovem cortesão - permita-me que lhe diga, com todo o respeito devido ao chefe da casa, que não é aos trinta anos que se renuncia facilmente à corte, à guerra, a tudo o que constitui o prazer e a glória da vida.
- Podeis viver feliz conosco, meu caro Ínigo.
- Na minha idade? Não, senhor; tenho apego aos hábitos que tomei. Ainda que as torturas com que me ameaçam fossem mil vezes mais dolorosas, não hesitaria em submeter-me a elas. Que é a dor comparada com todas estas desvantagens?
Foram forçados a ceder. Estando feitos todos os preparativos, quiseram ligar o paciente para operar aquela perna, cuja saliência devia desaparecer.
- Ligar-me? - exclamou o corajoso guerreiro - ligar-me como um louco ou uma criança? Não, não, fiquem tranquilos; não me mexerei.
No momento de fazer a primeira incisão, o operador empalideceu, porque sabia o que Inácio ia sofrer.
- Coragem, doutor! - lhe disse o nosso herói; faça de conta que está a operar um cadáver.
A operação foi longa e é fácil compreender quanto seria dolorosa. Inácio não soltou um só grito, não se queixou, não empalideceu!
- Que admirável coragem! - disse-lhe seu irmão quando tudo estava terminado; - vistes serrar esse osso como se ele fosse de outra pessoa. Pergunto a mim mesmo se eu não sofri mais que vós.
- Tenho tanto empenho em não ficar defeituoso! respondeu-lhe. Como poderia, sem fazer a operação, trazer as botas que são de uso na corte? Era necessário fazer este sacrifício à elegância.
Curado desta operação, e tendo a chaga cicatrizada, entregou-se ao suplício da máquina de ferro, destinada a distender-lhe a perna; devia ser torturado daquele modo durante alguns meses, sem outra ocupação que a dos seus sofrimentos e sem outra distração que as conversas da família. Inácio pensava nos prazeres da corte e sonhava com a sua princesa, pela qual, sobretudo, ele se impunha dores tão cruéis; ao menos queria persuadir-se disso, e pensava em descrever-lhe em versos pomposos tudo o que tinha sofrido para evitar a desgraça de lhe desagradar. Todavia, devemos confessá-lo, Inácio temia mais ainda a desgraça de não tornar a ser um objeto de preferência na corte, e de deixar de ser apontado pela sua elegância e porte, bem como pela sua beleza.
O tempo corria e o aborrecimento apoderava-se dele apesar dos sonhos da sua imaginação. Os romances de cavalaria, então muito em voga em Espanha, pareceram-lhe dever preencher o vácuo que se fazia sentir nas suas longas horas de isolamento e de reclusão. Divertiam-no as imaginárias aventuras de cavaleiros andantes e as suas impossíveis proezas. Esta ideia agrada-lhe; ordena que lhe tragam um desses romances. Depois de alguns instantes, o seu criado de quarto volta: -Senhor aqui está tudo o que pude encontrar. Como! Peço-te um romance e trazes-me livros de devoção? Estás doido?
- Senhor, não há outros.
- Vai do meu mando pedir a D. Garcia romances de cavalaria.
-Já fui, Senhor; D. Garcia não tem romances; S. Ex.a não tem outros livros senão estes.
Estes livros eram: a Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo frade Ludolfo, e a Flor dos Santos, ambos em língua castelhana.
- Pois bem, - disse o jovem mundano - deixa-me esses livros.
Sobrevém-lhe o tédio e o espírito de Inácio tem necessidade de alimento; à falta de melhor, aceita a leitura que, por certo, não teria escolhido.
- Ah!- dizia ele muitas vezes desde que estava de cama -, S. Pedro curou-me miraculosamente, não me resta a menor dúvida, a ele devo a vida; mas porque me deixaria coxo? Porque me obrigaria a sofrer um tratamento que me retém tanto tempo nesta imobilidade? Não compreendo! De que serviria a vida, se eu não encontrasse de novo as minhas regalias pessoais?... Antes a morte...
Assim raciocinava o homem da corte, vaidoso da sua pessoa, soberbo dos seus triunfos na sociedade, orgulhoso por natureza, ardente e generoso pelo coração, dotado das mais brilhantes faculdades, e pregado, pela vontade divina, no leito de dor, onde julgava não estar preso senão pela vontade própria, com o único fim de satisfazer a vaidade.

26 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

II. NO CAMPO DE BATALHA

Aceitando o cargo que o vice-rei impusera à sua honra, o nobre Inácio de Loiola praticou um ato heroico de dedicação à Espanha e ao seu soberano.
A Navarra, sempre independente, e governada pelos seus reis hereditários havia setecentos anos, tinha sido conquistada por Fernando, o Católico, em 1512, e era então uma província espanhola. Os navarros, sofrendo com pesar a humilhante posição em que se achavam, lançavam frequentes vezes os olhos para além dos Pirenéus, e chamavam com todos os seus votos Henrique de Albret, filho e herdeiro de D. João III, que Fernando tinha destronado e espoliado pelo direito da força. Além disso, o restabelecimento da monarquia navarra e a restituição deste reino ao seu legítimo soberano tinham-lhes sido solenemente garantidos pelo tratado de Noyorl, e Carlos V havia faltado à promessa. Nestas condições o nosso herói poderia esperar que a guarnição, quase inteiramente composta de soldados e oficiais navarros, o secundaria um só instante ao primeiro ataque dos franceses? Poderia contar também com as tropas que D. Antônio Manrique fora buscar? E não seria para recear que todas as populações fossem com alegria ao encontro dos franceses e os acolhessem como libertadores?
Inácio de Loiola, via, com um só volvei de olhos, todas as dificuldades, todos os perigos da situação. Sabia que em caso de ataque antes da chegada do vice-rei, seria impossível vencer; mas sabia também que lhe seria possível morrer combatendo, e tinha aceitado a morte, prometendo vender caro a vida.
Os navarros receberam efetivamente com satisfação o exército que se apresentava em nome de Henrique de Albret; em todo o caminho, a marcha dos franceses não encontrou obstáculos e parecia um triunfo. No dia 8 de Maio, véspera Pentecostes, cercaram Pamplona, que não tinha ainda recebido nenhum reforço e o não podia esperar antes de alguns dias.
As autoridades civis pediram ao comandante da praça que se rendesse e não tentasse nenhuma resistência, porque não tinha força suficiente para defender a cidade contra um exército tão numeroso. Os oficiais da guarnição uniram-se aos habitantes da cidade e todos a uma voz pediram a rendição da praça nas condições impostas pelo chefe do exército francês [6]:
- O vice-rei não pode estar de volta antes da tomada da praça, - diziam os antigos capitães; para que servirá o sangue espalhado numa defesa impossível?
- Henrique de Albret é nosso rei legítimo, - exclamava o povo. Não queremos defesa! Abramos as portas ao conde de Esparra!
- Viva Henrique de Albret! - exclamavam os soldados navarros. Viva o rei de Navarra! Viva o exército francês!
O governador da cidadela propõe também a evacuação imediata. Inácio de Loiola é o único de opinião contrária; só ele se opõe, em nome da honra, em nome do soberano, a entregar a praça ao inimigo. Fala ao povo e aos soldados; censura aos oficiais a sua fraqueza e quer fazer-lhes compreender que podem esperar da severidade do vice-rei e da indignação de Carlos V. Vãos esforços! Aquela voz amada parece desconhecida de todos; glacial silêncio responde ao seu entusiástico apelo; ninguém se quer opor à entrada dos franceses, a o nobre Inácio tem a dor de ver abrirem-se para os soldados franceses as portas da praça, que ele se comprometera a defender ate à morte.
Retira-se então para a cidadela; é ali que esperará o inimigo e lhe provará que há, pelo menos, um homem de coração na guarnição desta fortaleza. Mas o governador quer parlamentar e vai descer à cidade com os seus mais antigos oficiais. Inácio teme as condições do vencedor; quer conhecê-las e acompanha os oficiais. André de Foix propõe uma capitulação vergonhosa, que o governador está disposto a assinar. Inácio encara altivamente os dois, e, dirigindo-se aos oficiais que estavam a distância
- Senhores,- disse - se me deixarem só na defesa da cidadela, defendê-la-ei até à última gota do meu sangue! A história não dirá à posteridade que entrego a minha espada antes de a tirar da bainha. Quem de vós me seguirá neste caminho da honra?
- Eu ! eu ! meu valente comandante! - exclamaram ao mesmo tempo alguns valorosos oficiais.
- Pois bem! - replicou o nosso herói -não capitulemos! Subamos à cidadela e saibamos morrer como valentes! Viva o imperador Carlos V!
- Viva o imperador! - repetiram os oficiais e soldados de Inácio. Viva o nosso valente comandante!
D. Inácio de Loiola, seguido dos seus poucos companheiros, encerrou-se na fortaleza e esperou o inimigo. Não tem ali sacerdote algum: pede a um fidalgo, seu irmão de armas, que ouça a sua confissão, e confessa os seus pecados àquele guerreiro com verdadeiro sentimento de humildade, porque sabe que pode estar morto daí a algumas horas [7].
No dia seguinte, 20 de Maio, segunda-feira de Pentecostes, ao romper do dia, os franceses começam o ataque.
O valente Inácio está nas trincheiras, e, com a palavra e com o exemplo, anima os seus, que se defendem com igual ardor. Os inimigos sobem ao assalto; Inácio repéle-os à medida que se apresentam. A artilharia francesa troa formidavelmente, mas a coragem de Inácio não se quebranta; os inimigos continuam a cair sob os seus golpes e enchem o fosso com os seus cadáveres.
Os chefes do exército francês admiram a valentia e habilidade do jovem oficial, que só por si vale uma companhia de velhos guerreiros, e sentem que ele não seja dos seus.
Entretanto, a artilharia redobra as suas espantosas descargas contra o bastião defendido pelo nosso herói. É abatido um lanço da muralha, uma lasca de pedra fere Inácio na perna esquerda, e ao mesmo tempo uma bala de canhão, lançada contra a muralha oposta, ricocheteia e quebra-lhe a perna direita. O valente Inácio cai gloriosamente no meio dos seus soldados. Estes, desanimados com a perda do seu chefe, depõem as armas e entregam a fortaleza aos vencedores [8].
Inácio transportado ao quartel general dos franceses, é ali tratado como herói, prodigalizando-lhe todos os maiores cuidados. O conde de Esparra manda pedir-lhe a honra de lhe apertar a mão e de o felicitar pelo seu nobre procedimento e altos feitos; D. Inácio recebe-o. Mas vendo-o, diz-lhe:
Senhor, deixaram-me a espada e contudo eu sou vosso prisioneiro.
- Um oficial do merecimento de V. Ex.a nunca é vencido - lhe respondeu André de Foix; V. Ex.a é livre e não ficará junto de nós senão o tempo indispensável para curar as suas gloriosas feridas. Entretanto, aceite a minha amizade e honre-me com a sua.
- Da melhor vontade, senhor, - lhe disse o nobre ferido apertando-lhe a mão; - e visto que a sua generosidade me trata como irmão de armas e não como prisioneiro, permita-me que lhe exprima um desejo.
- Fale, senhor; dou-lhe a minha palavra de honra de que o que eu puder fazer para ser-lhe agradável, o farei.
- O vice-rei de Navarra é meu parente e meu segundo pai, - disse Inácio. Ele marcha sobre Pamplona com o exército destinado a repelir-vos; peço-vos que lhe envieis um dos seus oficiais a informá-lo de que o serdes vós senhor da praça e da fortaleza é sinal de que eu caí como homem de honra.
- Como herói! - acrescentou o conde abraçando cordialmente o seu novo amigo.
Alguns dias depois, tendo os cirurgiões declarado que Inácio podia ser transportado sem perigo, André de Foix disse-lhe
- Chegou o momento de nos separarmos, com grande pesar meu; mas V. Ex.a será melhor e mais agradavelmente tratado no seio da família. Mandei preparar uma boa liteira; os soldados de V. Ex.a o conduzirão e escoltarão; a sua gente segue-o; todos aqueles que lhe pertencem são livres. Confesso que esta separação me é penosa e faço votos para que as nossas espadas não mais tenham que cruzar-se.
- Desejo-o tanto como vós, - lhe respondeu o nosso herói; mas se os nossos soberanos, a quem Deus guarde, se puseram em frente um do outro, não ouvirei, juro-vô-lo, outra voz senão a da honra e do dever!
- E isso é digno de V. Ex:a! E eu também espero ser fiel à divisa do rei de França: "Faze o que deves, suceda o que suceder".
- Salvo a honra, caro conde, para a vida e para a morte !
Os dois cavaleiros abraçaram-se, e Inácio foi colocado alguns instantes depois numa liteira e levado ao castelo de Loiola, pouco distante de Pamplona.

25 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

PRIMEIRA PARTE
CORTESÃO E GUERREIRO
(1491 - 1522)

I. INFÂNCIA E JUVENTUDE

D. Beltrão Yánez de Onaz y Loyola, descendente duma das mais ilustres e das mais antigas famílias da Biscaia, havia esposado D. Marina Sáenz de Licona y Balda, que pertencia à mesma província e cujo nascimento e virtudes a tornavam digna desta nobre aliança.
Deus havia-lhe dado já sete filhos e três filhas quando Inácio veio ao mundo, pelos anos de 1491[1], no castelo de Loiola, antigo solar da família [2]. Sabendo que era mãe dum oitavo filho, D. Marina ergueu os olhos ao céu, e lançando-os em seguida para seu marido, disse-lhe:
- Deus queira que este querido filho tenha disposições menos belicosas que seus irmãos, e que possamos educá-lo e conservá-lo ao nosso lado.
- Oxalá, - respondeu Beltrão - que este tenha gosto pelo estudo.
- Deus o queira! - repetiu a nobre castelã - mas não me acostumarei a essa ideia, porque tenho muitas vezes esperado em vão.
O filho predestinado foi batizado na igreja de S. Sebastião, sua freguesia [3], em Azpeitia, e não levou muito tempo a demonstrar que sua mãe tivera razão em não confiar nas pacificas inclinações, que tanto desejava nele.
Desde os primeiros anos, Inácio mostrou-se mais vivo, mais turbulento, mais arrebatado ainda que seus irmãos; e, apesar das suas raras qualidades de espírito e de coração, foi impossível acalmá-lo ao estudo. Não ouvindo falar senão de cercos e de assaltos, de batalhas e de vitórias, de altos feitos e de brilhantes renomes, cresceu com o desejo de cingir um dia uma espada e de se distinguir por sua vez em proezas guerreiras.
O duque de Nájera, que gozava de grande favor na corte e era próximo parente de D. Beltrão, tinha afeto paternal a Inácio. A natureza franca, o coração leal, a alma ardente e generosa deste menino tinham para ele os maiores encantos; até os seus arrebatamentos e a sua altivez precoce lhe não desagradavam.
- Bravo! rapaz, - lhe dizia algumas vezes - a historia militar de Espanha há-de registrar um dia o teu nome.
- Ah! - murmurava docemente D. Marina - não repara, senhor duque, no coração da pobre mãe De todos os meus filhos, não terei a consolação de conservar nenhum junto de mim. O mais velho já está exposto a todos os perigos da guerra` - e os outros seguir-lhe-ão brevemente o exemplo.
- Compreendo a sua dor e solicitude - lhe dizia o duque; mas, em Espanha como em França, nobreza obriga.
D. Marina não chegou a experimentar a dor que tanto temia. Deus não tardou a chamá-la a Si, e Inácio foi confiado a sua tia, D. Maria de Guevara, que habitava Arévalo, perto de Avila, e que o educou como se fora seu filho. Alguns anos mais tarde, o duque de Najera, seu tio, grande de Espanha, fê-lo admitir na escola dos pajens do rei [4].
Fernando, o Católico, encantado com a sua graça, inteligência e beleza, testemunhou-lhe desde logo uma preferência, que lhe atraiu a dos cortesãos. A vaidade do belo pajem cresceu um pouco, mas dominando esta fraqueza a nobreza do meu coração e a delicadeza dos seus sentimentos, soube fazer-se amar de todos, até daqueles que o invejavam.
Terminada a sua educação, Inácio de Loiola não abandonou a corte. Ausentava-se de tempos a tempos para fazer os seus primeiros ensaios na carreira das armas sob a direção do duque de Najera, mas voltava após cada campanha e fixava a sua residência na corte. Um interesse do coração o atraía no palácio dos soberanos: Inácio rendia homenagens a uma princesa, de que a história nos oculta o nome, e não era repelido [5]. Mas a distância não podia ser transposta: Inácio não podia esperar uma aliança com uma princesa de sangue; limitava-se, por isso, a usar as suas cores e dar por vezes uma cutilada àqueles que ousavam falar da sua temeridade ou recusar à princesa a palma da formosura.
Entretanto Carlos V tinha sucedido a Fernando, o Católico; a guerra havia rebentado no exterior em alguns pontos ao mesmo tempo; e, no interior, as principais províncias de Espanha, ciosas da sua antiga independência, tentavam reconquistá-la com as armas na mão. Este estado de rebelião continua exigia, em diversos lugares, a presença dum exército forte e aguerrido, dirigido por oficiais distintos e de experimentada fidelidade. O Duque de Nájera, D. António Manrique, comandava um desses corpos de exército.
Inácio continuava na corte, e, se se batia, era em duelo, todas as vezes que se lhe oferecia ocasião.
Um dia recebem-se no palácio notícias do exército de Nápoles e sabe-se que os filhos de Beltrão de Oñaz se distinguem com igual valor. Inácio envergonha-se da sua inação e pede ao duque de Nájera uma companhia de homens de armas, que ele se propõe conduzir à vitória. A sua ardente e poética, imaginação sonha com a glória de se assinalar também com esplendor e de voltar em seguida a depor aos pés da princesa, de que se constituiu cavaleiro, os louros colhidos no campo da honra. D. Antônio acede com alegria ao desejo do seu sobrinho, dá-lhe uma companhia no corpo que está sob suas ordens, e D. Inácio abandona a corte, prometendo não entrar lá de novo senão como vencedor. Tinha então vinte e seis anos.
Neste momento os castelhanos caiam sobre a Biscaia e acabavam de se apoderar de Nájera. D. Antônio Manrique marcha sobre aquela cidade e põe-lhe cerco; Inácio acompanha-o. Os sitiados defendem-se tão vigorosamente como são atacados; têm provisões consideráveis e receia-se que o cerco seja assaz longo. Inácio, que já tinha mostrado prodígios de coragem, de inteligência e de habilidade, fala aos seus soldados, excita-lhes o ardor, é o primeiro a subir ao assalto e toma a praça no meio dos aplausos do exército. Esta glória não lhe basta: a cidade é entregue à pilhagem, a mais rica parte do saque é para o jovem capitão, cuja valentia decidiu a vitória; o nosso herói recusa-a e abandona-a à sua companhia. Este duplo rasgo de desinteresse e de generosidade é acolhido por aclamações entusiásticas dos oficiais e dos soldados.
Inácio de Loiola era certamente sensível aos testemunhos de estima e admiração que recebia; mas somos forçados a confessar que, no meio deste triunfo, um pensamento o preocupava singularmente. Era compor uns versos destinados a oferecer aquela gloriosa vitória à princesa, cujas cores usava: assim o pediam os costumes da época e o uso da corte onde Inácio fora educado.
Depois da pacificação de Castela, Inácio voltou a Valência e achou a mais bela recompensa nos elogios que lhe fizeram nas felicitações que recebeu. Depois de longa permanência na sorte, abandonou-a de novo para se dirigir aonde a honra o chamava
Sendo D. Antônio Manrique, vice-rei de Navarra, obrigado a ir tomar posse do seu governo, Inácio seguiu-o com uma parte dos seus homens de armas. Não levou muito tempo que um correio não viesse anunciar a D. Antônio que o Conde de España, André de Foix, marchava sobre a Espanha, à frente dum corpo de exército considerável.
O vice-rei dirigiu-se a toda a pressa à província de Castela para procurar ali um reforço de tropas navarras, e deixou o comando das tropas de Pamplona a seu sobrinho, no momento em que os franceses desciam os Pirenéus para reconquistar a Navarra espanhola em nome de Henrique de Albret.

24 de julho de 2021

A Santa Missa de Sempre. (vídeo animado sobre a Missa Tridentina)

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

XIII. HEROÍNAS DE PRETO E BRANCO

Nos meses seguintes à sua morte, a fama de Rosa Flores espalhou-se por toda a América do Sul. Dia após dia, centenas de pessoas vinham a S. Domingos pedir-lhe orações. Visto terem os santos restos sido sepultados dentro do claustro solene do convento, mulher alguma tinha permissão de entrar para rezar à beira da sepultura. Afinal, incapaz de recusar os pedidos dos amigos da santa, o Arcebispo consentiu que o corpo fosse removido para a igreja pública. Nesta cerimônia, realizada a 19 de Março de 1619, cerca de dezenove anos depois da morte de Rosa, os restos mortais foram colocados numa urna dourada e depositados em um nicho próximo ao altar-mor.
O novo sítio, porém, tinha muitos inconvenientes. O povo ia e vinha continuamente pelo santuário, mesmo durante o santo Sacrifício da Missa. Por fim, as relíquias foram outra vez removidas, para a capela de Santa Catarina de Sena uma capelinha do lado da epístola do altar-mor.
Os anos passaram e Maria de Oliva considerava com admiração a mudança que se operava em sua posição social. Já não era a simples mulher de um homem que fabricava armas para o exército espanhol em Lima. Tornara-se uma pessoa importante; raro era o dia em que não viesse alguém tributar-lhe honra, congratular-se com ela pelo fato de ser a mãe de uma santa. Muitos até deixavam consideráveis esmolas em agradecimento por algum favor alcançado pela intercessão de Rosa.
No entanto, não se tornou soberba. Seu caráter sofrera uma reforma notável desde a morte de Rosa, e era difícil crer que fosse a mesma pessoa que certa vez ridicularizara a Regra da Ordem terceira dominicana, e se deixara dominar pela raiva quando lhe fora dito que terminaria seus dias usando o hábito da família de S. Domingos.
"Deus me perdoe meus inumeráveis pecados" - pensava ela muitas vezes. "Querida Rosa, roga por tua pobre mãe".
A 10 de Fevereiro de 1624, a população de Lima afluiu para assistir à dedicação de um novo convento de mulheres o sexto a ser construído na cidade. Era o mosteiro de Santa Catarina, anunciado por Rosa quando ainda vivia como eremita no jardim de seu pai. Era o primeiro convento de freiras dominicanas a ser fundado em Lima, e as lágrimas corriam livremente pelas faces de Maria, enquanto assistia à Missa oferecida na nova capela. Sua filha bem-aventurada tinha razão. O padre Luís de Bilbao estava celebrando a primeira missa, e daí a alguns minutos Dona Lúcia de la Daga, cujo marido e cinco filhos tinham morrido alguns anos antes, acompanhada de sua jovem irmã Clara, ajoelhar-se-ia para receber o hábito dominicano.
Quatro anos depois, o mosteiro de Santa Catarina abrigava cento e quarenta e cinco freiras, número que em breve elevou-se a trezentos. Muitos padres explicavam o grande número de vocações, dizendo que aquelas que já viviam dentro dos muros de Santa Catarina, acreditavam que Rosa Flores estava entre elas. Sentiam que ela as ajudava com suas orações, que as tornaria santas. Que admiração que o convento florescesse? Não era só Santa Catarina de Sena a amiga especial e protetora; Rosa também cuidava do bem-estar da casa.
Uma tarde, logo depois das vésperas cantadas pelas irmãs de Santa Catarina, uma jovem irmã leiga procurou a prioreza, outrora Dona Lúcia de la Daga, agora Madre Lúcia da Santíssima Trindade. A jovem religiosa tinha um ar aflito.
- A irmã Maria está pior, Madre. Está chamando pela senhora a tarde toda.
A prioreza olhou-a surpreendida.
- Mas ela estava muito melhor esta manhã, irmã. O doutor João de Tejada mo afirmou.
A irmã leiga suspirou.
- Ela já passou dos setenta, Madre, e não é muito forte. Acho melhor a senhora vir já.
Assim Madre Lúcia encaminhou-se para a pequena cela onde a velha irmã jazia doente. Famosa em todo o Peru como mãe de Rosa Flores, a irmã Maria de Santa Maria era freira em Santa Catarina desde 1629. Mas fazia apenas quatro anos, e certamente a boa senhora não ia morrer ainda.
A irmã Maria, entretanto, pensava de outro modo. Quando a porta se abriu e a prioreza se dirigiu rapidamente para seu lado, ela ergueu-se fracamente sobre um braço:
- Querida Madre Lúcia, Rosa disse-me que viria buscar-me quando eu morresse. Acho que será hoje à noite.
A prioreza tateou nervosamente seu rosário. A irmã leiga tinha razão; a irmã Maria piorara desde a manhã. Seu rosto enrugado estava pálido e a respiração ofegante.
- Mas, querida irmã, não deve dizer tal coisa. Por que não pedir a Rosa que a cure? Ela já a ajudou antes tantas vezes.
- A cura? Para que havia eu de desejá-la? Estou velha, e pouco útil aos outros. Meu marido está morto, meu filho Fernando, minha Rosinha - ah! só quero ir para o céu, ser feliz com esses meus queridos!
Houve silêncio no quartinho, enquanto a doente reclinava novamente no travesseiro. Madre Lúcia contemplou-lhe as feições cansadas e mil lembranças lhe tumultuaram na memória. Os muros de Santa Catarina pareciam desfazer-se e ela voltava a ser uma jovem mulher, a esposa feliz de Antônio Perez de Monteja. Subitamente uma voz de menina ecoou-lhe aos ouvidos:
"Tudo isto passará, Dona Lúcia. Vosso esposo e filhos morrerão. Fundareis o mosteiro de Santa Catarina com vossa enorme fortuna. Minha própria mãe buscará e receberá de vossas mãos o hábito dominicano".
Como, então, estas palavras lhe pareceram impossíveis, naquele tempo distante em 1614. No entanto, tudo aquilo que Rosa havia predito era agora realidade. Antônio estava morto, bem como seus quatro filhos e sua filha. Gaspar Flores fora chamado para o descanso eterno e no mosteiro de Santa Catarina louvava-se a Deus, dia e noite.
De repente a enferma abriu os olhos.
- Rosa... Rosa... Onde estás?
Madre Lúcia estendeu a mão confortadora.
- Está tudo bem, minha querida. Rosa está no Céu. Não se lembra? Ela vai ser canonizada pelo Santo Padre.
A irmã Maria meneou a cabeça.
- Eu me refiro à minha neta, Madre Lúcia. Podia eu ver Maria Rosa outra vez? Ela... ela me faz lembrar tanto a minha Rosinha...
A prioreza acenou afirmativamente.
- Claro que pode ver Maria Rosa. E chamarei também as outras, se quiser.
- Para rezar um pouco? Ah, sim, eu gostaria.
Daí a pouco as irmãs estavam reunidas. A maioria ajoelhou-se no corredor, do lado de fora do quarto da irmã Maria, enquanto algumas rodearam o leito da moribunda. Todas, exceto uma, traziam o hábito branco da Ordem dominicana. Era uma menina de quinze anos, trajada com um simples vestido preto. Era Maria Rosa Flores, cujo pai, Fernando, falecera quando ela era ainda pequena. Ao morrer-lhe a mãe, D. Francisco Lasso de la Vega, governador do Chile, enviara-a à sua avó, e, quando esta entrara para o convento de Santa Catarina, acompanhara-a.
A prioresa contemplou-a afetuosamente, quando ela entrou no quarto. Era uma linda menina, o retrato de sua santa tia, apenas com uma ligeira diferença, uma interessante marca de nascença em uma das faces - uma minúscula rosa vermelha, o que sempre despertara grande curiosidade. Era como se Rosa Flores tivesse assinalado a filha de seu irmão preferido, um sinal que indicava ser a pequena sobrinha uma alma já escolhida de Deus.
- Entre, minha querida. A irmã Maria deseja falar-lhe.
Maria Rosa dirigiu-se vagarosamente para o leito, com os olhos abertos de súbito receio.
- A senhora não vai morrer, vovó!? Não vai deixar-me sozinha. . .
A irmã Maria sorriu à expressão ansiosa da menina.
- Acho que sim, meu bem. Mas não se preocupe. Estas boas religiosas cuidarão de você.
Maria Rosa caiu de joelhos. Não devia chorar. A vovó ia para o Céu. Não sabiam todos em Lima que Rosa a guiaria diretamente ao trono de Deus?
- A senhora... a senhora não se esquecerá de mim?
- Esquecer você? Claro que não.
- Mas a senhora não podia viver um pouco mais, vovó? Não podia esperar até me ver vestida com o hábito dominicano?
A moribunda sorriu.
- Não, filhinha. Eu assistirei à feliz cerimônia lá do Céu. Ah! não imagina que sorte a sua de ter, tão jovem, compreendido o valor de uma vocação religiosa. Sabe o que esta velha tola disse quando Rosa lhe anunciou que morreria como dominicana?
A mocinha acenou que sim, pois ouvira a história muitas vezes. Maria de Oliva afirmara que entraria num convento só depois de ter visto um elefante voar.
- Sim, vovó, eu me lembro. Mas a senhora não deve fatigar-se. Experimente dormir um pouco.
A senhora deu um profundo suspiro.
- Você tem razão, criança. Estou fatigada. Mas não vá embora. Fique aqui a meu lado.
Maria Rosa pos a mão sobre a mão da avó, e por algum tempo reinou profundo silêncio. Subitamente a irmã Maria fez um esforço para falar.
A superiora deu logo um passo para a frente...
- Que é, minha querida irmã?
- Peça às outras que comecem a rezar, sim? Eu . . . eu não tenho mais muito tempo de vida.
A fundadora do convento de Santa Catarina saiu na ponta dos pés e da porta toda aberta deu um sinal. Imediatamente as religiosas no corredor e dentro do quarto começaram a cantar o "Salve Regina", o velho cântico entoado pelos dominicanos sempre que um confrade está morrendo. Assim que a doce melodia vibrou pelo ar, uma campainha tilintou à distância. Pela última vez o capelão trazia o Sagrado Viático à mãe de Rosa Flores.
A irmã Maria sorriu. Seus olhos, nos quais fulgia um brilho diferente, estavam fixos em alguma distante visão.
- Espere Rosa, - murmurou - ainda não.
Madre Lúcia reprimiu as lágrimas. Sentia-se, de repente, estranhamente feliz. Pairava no ar uma doce fragrância, aquele mesmo perfume que enchia a igreja de S. Domingos quando o corpo de uma santa descansava entre os altos e fúnebres círios. E embora não pudesse contemplar a visão, da qual gozava a velha irmã no limiar da morte, a prioresa não tinha a menor dúvida: uma santa viera cumprir uma santa promessa.

23 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

XII. O ORGULHO DO PERU

A madrugada veio encontrar as ruas de Lima repletas de gente que se apressava para a casa de Dom Gonçalo. A notícia da morte de Rosa espalhara-se como um incêndio e havia uma corrida ansiosa para conseguir relíquias. Entre os primeiros a chegar estava Alfonsa Serrano, íntima amiga da morta.
- Ontem à noite Rosa apareceu-me - declarou ela excitada. - Eu estava profundamente adormecida. De repente, pouco depois da meia noite, uma luz brilhante iluminou meu quarto. E no meio da luz vi Rosa, vestida como terceira dominicana, e brilhando como o sol. Ela disse-me que acabava de entrar no Paraíso.
O padre Alonso Velasquez, juntamente com outros visitantes, ouviu interessado o que Alfonsa contava. A moça fora uma das mais íntimas amigas de Rosa, e tinham feito uma combinação anos antes: aquela que morresse primeiro apareceria à outra, a fim de encorajá-la a continuar a vida de orações e boas obras.
- Parece que Rosa cumpriu a palavra, - disse sorrindo o padre. - Ela falecera poucos minutos antes de contar-lhe a respeito das belezas do Céu. Do mesmo modo apareceu também a várias outras pessoas, entre as quais, o doutor João del Castillo.
A manhã toda foi uma peregrinação em fila ao quartinho em que Rosa falecera, e, o que é mais estranho, ninguém se sentia triste. A visita da jovem morta, seu rosto mais belo do que jamais o tinham visto, enchia todos de alegria. Pairava no ar um estranho perfume, como de rosas e lírios recentemente colhidos, e que se sentia em toda a casa, mas especialmente junto do corpo.
- Não compreendo - disse Maria de Oliva ao padre Alonso. - Não vem, com certeza, daquela simples grinalda de flores que lhe pusemos sobre a cabeça!
- E' um milagre, senhora - replicou o sacerdote. - E' este o modo que Deus está escolhendo para patentear-nos a santidade de Rosa.
A medida que os homens passavam e a casa se apinhava de gente, Dona Maria era assediada de pedidos para que mostrasse o que pertencera à querida morta. Atendendo, pôs à vista dos visitantes a estatueta milagrosa do Menino Jesus, "O Doutorzinho", juntamente com o rosário, alguns quadros de santos e outros objetos. Havia também uma carta que Rosa escrevera a Dona Maria alguns anos atrás. Estava assinada "Rosa de Santa Maria", o nome tão querido à filha de Gaspar, e que ela tomara no dia em que se tornara terceira dominicana.
Ao olhar a carta, Maria de Oliva lembrava-se daquela noite em que encontrara sua filha desfalecendo de fome na celazinha do jardim. No momento quis mandar Mariana ao armazém próximo comprar chocolate e açúcar com que fazer uma bebida reconfortante, mas Rosa pediu que não o fizesse. Em poucos minutos, afirmava, uma criada da casa dos Massa chegaria com o chocolate quente, já preparado, pois ela pedira ao seu Anjo da guarda que avisasse Dona Maria do súbito ataque de fraqueza que a acometera.
"E assim aconteceu", pensava a mãe. "Daí a pouco, àquela hora da noite, bateram ao portão do jardim. Quando fui abri-lo, lá encontrei a criada com um bule de prata cheio de delicioso chocolate. No dia seguinte ela escreveu esta carta a Dona Maria, agradecendo a gentileza".
Muitas outras histórias contavam-se dos dons e virtudes de Rosa, durante as horas em que seu corpo esteve na casa de D. Gonçalo. Vários casos foram narrados por Mariana, a criada índia. Tanto ela como Fernando, agora soldado no Chile, tinham partilhado muitos segredos com a morta. Os rostos dos ouvintes consternavam-se ao ouvir Mariana descrever os heroicos sacrifícios de Rosa, inspirados no interesse pelos pecadores. Durante anos usara ela uma coroa de pregos debaixo do branco véu de terceira, até que o padre jesuíta João de Vilalobos, sabendo dessa desusada mortificação, ficou tão aflito que insistiu em que a maior parte das pontas fossem embotadas. Rosa usava também na cintura uma corrente, que ligara com um cadeado, atirando a chave no poço perto da porta dos fundos.
- Uma noite ela não podia mais suportar aquela penosa cadeia, - narrava Mariana. - Ela chorava e soluçava; e eu sabia que tinha de quebrar o cadeado. Mas como, sem despertar toda a família?
Os ouvintes estavam silenciosos, absorvidos na descrição de tão heroica generosidade, que as palavras da velha serva pintavam vivamente.
- Continue, Mariana, - disse o padre Alonso. - Que aconteceu?
- A bendita menina começou a rezar à Mãe do céu e a cadeia abriu-se por si, caindo-lhe aos pés.
A instâncias do padre João de Lorenzana, antigo provincial dos dominicanos, Maria continuou a relatar outros casos do heroismo de Rosa. Finalmente D. Gonçalo pediu permissão para falar.
- Eu sempre soube que Rosa era uma santa, padre João, Agora quer ter a bondade de olhar isto?
O sacerdote virou-se para pegar o papel que D. Gonçalo lhe apresentava. Era um documento assinado por Rosa no leito de morte, pedindo aos padres de S. Domingos que lhe concedessem uma esmola: ser enterrada dentro do claustro do seu convento.
- Estou certo que todas as Ordens religiosas em Lima desejariam possuir este santo corpo - apressou-se em explicar D. Gonçalo. - A fim de evitar dificuldades, eu disse a Rosa que seria um ato de humildade pedir ela a seus superiores na Ordem dominicana que lhe concedessem uma sepultura.
O padre João de Lorenzana examinou cuidadosamente o papel. Não havia dúvida quanto à autenticidade da assinatura de Rosa.
- São quase quatro horas, - disse ele. - Acho que seria melhor levar o corpo agora para S. Domingos. Há muita gente aglomerada aqui. Na igreja haveria mais espaço.
Assim, pela última vez, Rosa foi acompanhada pelas ruas de Lima. A multidão era tal, e tão ansiosa por obter relíquias, que os soldados do Vice-rei, que tinham estado de guarda à casa dos Massa, tiveram que abrir caminho para a procissão. Em toda parte - dos balcões, das janelas, do limiar das portas - homens, mulheres, tentavam uma última vista à santa filha de Gaspar. O ar ressoava de exclamações pedindo a bênção da jovem lá do seu lugar no Paraíso. Nem causou a menor estranheza que os seis homens que carregavam o esquife fossem membros da "Audiência", esse importantíssimo grupo de homens que assistiam o Vice-Rei no governo. Sabiam que nada era bom demais para "La Rosita", a Rosinha de todos, que se tornara o orgulho não só de Lima mas de todo o Peru.
Lentamente foi a procissão coleando pelas ruas em direção à igreja dos dominicanos. Desaparecera a distinção usual de classes e raças. Nobres espanhóis marchavam lado a lado com mendigos índios. Escravos negros acotovelavam ilustrados professores. Realmente, tão densa era a multidão que Bartolomeu Lobo Guerrero, sucessor de Turíbio como Arcebispo de Lima, vira-se impossibilitado de chegar à casa de D. Gonçalo para presidir a procissão. A carruagem teve de fazer uma volta e ele foi esperar o corpo na igreja.
Aí foram colocados os santos despojos, numa elevada plataforma perto do presbitério. Um pequeno espaço foi reservado para que os doentes pudessem aproximar-se e implorar a cura. Logo se espalhou a notícia de que o corpo estava quente e flexível, como se ainda conservasse vida. E um grito maravilhado levantou-se quando a capela do Rosário, onde Rosa tanto gostava de rezar, foi vista banhada duma luz gloriosa e sobrenatural.
"Outro milagre", pensou o padre Luís de Bilbao, confessor de Rosa durante catorze anos. "A própria Mãe de Deus presta homenagem à nossa amiguinha".
Devido ao costume peruano de fazer o enterro poucas horas depois da morte, aprestaram-se os preparativos para conduzir Rosa ao claustro do convento onde já se preparara a sepultura. Tal, porém, foi o protesto do povo que ainda não conseguira uma relíquia, que o Arcebispo consentiu em protelar o funeral. Seria realizado no dia seguinte, disse ele. Entretanto, o corpo permaneceria onde estava, de modo que todos pudessem venerá-lo com a devida devoção. Ficaria em exposição toda a noite na capela do noviciado.
Os planos do Arcebispo sofreriam, porém, uma mudança. Quando veio a madrugada, e o corpo voltou à igreja pública, o povo de Lima recusou separar-se de Rosa. Tão alto foi o coro de lacrimosas orações que os celebrantes do funeral mal se podiam ouvir. O Bispo de Guatemala, D. Pedro de Valência; nem podia crer no que via. Como se poderia realizar as cerimônias se continuasse aquele borborinho?
Finalmente veio outra ordem: o funeral seria adiado por mais vinte e quatro horas. A esta boa nova uma onda de alívio percorreu a multidão reunida na igreja. O povo gritava de júbilo. Havia agora uma oportunidade de conseguir um pedaço do branco hábito de lã que revestia o corpo da querida morta, ou mesmo uma das belas rosas que lhe rodeavam a fronte.
Com o perpassar das horas, a excitação atingia o máximo. Todo mundo sabia que vários inválidos tinham ficado curados ao tocar o santo corpo. Um deles, um rapaz negro de dom anos, estava especialmente em foco. Nascera com os pés tão aleijados que nunca lhe fora possível andar. O mais que podia era arrastar-se sobre os joelhos. Impelido por sua grande fé no poder da intercessão de Rosa junto de Deus, tentara uma vez e outra alcançar o elevado estrado em que jazia o corpo, e insinuara-se em baixo, atrás das dobras do negro estofo de veludo ricamente decorado. Nem rogos nem ameaças conseguiram afastá-lo de seu refúgio. Por fim, "La Rosita", ouviu-lhe as preces. Concedeu-lhe o uso normal dos pés, de modo que ele podia andar, correr, saltar como os outros meninos de sua idade.
- Olha o garoto agora! - dizia Dom Gonçalo à esposa. - Já viste tanta alegria no rosto de uma criança? Vê, está positivamente radiante. Está até ajudando outras pessoas a chegarem perto do corpo.
Dona Maria concordou. Ela nunca duvidara que Rosa era uma santa. Agora, todo mundo concordava com ela, e no intimo de seu coração cantou um comovido Te Deum.
Entretanto o Arcebispo Bartolomeu Lobo Guerrero afligia-se, pois as horas passavam. Procurou, por fim, o prior de S. Domingos.
- Quantas vezes já vestiu novo hábito no corpo? perguntou. - Quatro ou cinco?
- Seis vezes, excelência. Tem havido incontáveis pedidos de pedaços do hábito como relíquia. Muita gente traz até tesouras escondidas na manga e nem os soldados do Vice-rei conseguem impedi-las de se aproximarem do corpo.
O Arcebispo meneou a cabeça.
- Então temos de fazer um enterro secreto esta tarde, padre; durante a sesta. E' o único meio.
O prior compreendeu a sabedoria das palavras do Arcebispo. Se Rosa Flores não fosse logo sepultada, seu corpo corria o perigo de sofrer algum dano da multidão excitada.
- Um enterro secreto - repetiu, pensativo. - Perfeitamente, excelência. Vou providenciar para que tudo esteja preparado.
Ao meio dia a igreja dos dominicanos começou a esvaziar-se, e dai a pouco as portas podiam ser fechadas e aferrolhadas. Ninguém demonstrou surpresa, pois era costume descansar todo mundo do meio dia até às três da tarde. Durante estas horas de sesta pouca ou nenhuma atividade havia em qualquer parte. Igrejas e lojas fechavam-se e as persianas das casas eram descidas de modo a proporcionar no interior uma fresca penumbra.
Nesse dia, porém, não houve sesta em S. Domingos, nem os padres da comunidade foram ao jantar de costume. Ao invés, padres e irmãos leigos vieram em silenciosa procissão ao local em que jazia o corpo de Rosa. Enormes velas de cera bruxuleavam como sempre, e uma suave fragrância de flores se evolava pelo ar. Ainda uma vez enlevaram-se os corações dos que a contemplavam, à beleza desta jovem irmã em S. Domingos, que já estava morta havia trinta e seis horas.
- Bendito o dia em que vieste ao mundo! - pensou o padre João de Lorenzana. - Roga por nós, Rosinha, agora que estás no Céu!
Os que iam levar o esquife aproximaram-se do estrado para levantar a preciosa carga, e em seguida o cortejo passou da igreja para o jardim do claustro do convento. Nada mais se ouvia que o ruído dos rosários e os leves passos dos padres. Este último adeus a Rosa foi por necessidade um segredo, do contrário os cidadãos de Lima, sabendo o que se passava, teriam tentado invadir a igreja. Nada, porém, sucedeu; todos os corações se sentiam felizes, pois que a filha de Gaspar finalmente descansava. Uma jovem morrera, uma nova santa passeava nos jardins do Céu.

22 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

XI. UM NOVO LAR

Maria estava indignada às palavras de Rosa. Ela, uma freira dominicana? Nunca! Entretanto a jovem terciária recusava ouvir os protestos de sua mãe. Um dia, quando o mosteiro de Santa Catarina fosse uma realidade, Maria de Oliva iria até lá e pediria o hábito dominicano, e lá haveria de passar seus últimos anos no serviço do Senhor.
Passaram-se meses e Rosa continuava sua vida de eremita. As vezes, entretanto, confiava a alguma de suas amigas que seu desejo maior era ser mártir.
"Se eu fosse homem, não quereria outra coisa senão ser missionário", confessou ela a Francisca de Montoya, uma moça de sua idade. "Imagine quantos missionários têm ido diretamente para o céu só porque morreram às mãos dos selvagens".
Francisca sentiu um arrepio. Embora pertencesse também à Ordem terceira de S. Domingos, sempre achara difícil a prática de mortificações, ainda as menores. Evidentemente suas visitas à Rosa afetavam-na bastante. Havia tanto mosquito no jardim de Gaspar Flores. Eles enchiam a acanhada ermida e Francisca sempre saia de lá crivada de dolorosas picadas.
- Eu nunca serei bastante corajosa para desejar a morte de mártir, -suspirou. - Nem posso suportar as picadas destes seus mosquitos.
Rosa sorriu.
- E não obstante você ainda vem ver-me, Francisca. Como explica isto, se tem tanto medo de sofrer?
- Mas isto é diferente! Você não sabe como me sinto melhor depois de uma conversa com você. Sou tão grata que você me permita vir, Rosa, ainda que realmente você não queria aborrecer-se com visitas. Há uma coisa, porém, que me deixa maravilhada.
- O quê?
- Por que os mosquitos não picam sua mãe? Nem dona Maria de Usátegui? Ou a você?
- Porque nós prometemos nunca ofender estes pequeninos hóspedes.
- Hóspedes? E' assim que vocês chamam esses insetos abomináveis.
Rosa meneou a cabeça.
- Suponhamos que você também faça esta promessa, Francisca. Então eles não a incomodarão mais.
A visitante olhou desolada para seu braço. Lá estavam já três marcas vermelhas.
- Se eu pudesse ter um pouco de paz quando venho ver você, eu prometeria qualquer coisa.
- Ora bem. Ofereça o sofrimento destas três picadas pelas pobres almas, em honra da Santíssima Trindade. E então faça a promessa.
Francisca não pôde deixar de rir.
- Não matarei nunca mais nenhum de seus hóspedes, - disse ela com firmeza. - Espero que eles entendam o que estou dizendo.
Rosa sorriu. Claro que as criaturinhas entendiam. Dai em diante Francisca de Montoya seria outra pessoa que poderia visitar, sem tribulações, a ermida de adobe.
A 30 de Abril de 1615, Rosa completava vinte e nove anos. Algumas semanas mais tarde ficou surpreendida ao encontrar seu jardinzinho rodeado por uma multidão excitada. Mulheres choravam; homens, maridos e filhos, estavam pálidos de medo. Chegara a notícia de que uma frota de piratas holandeses estava ancorada em frente ao porto de Calau. Este porto, a dez milhas de Lima, era então quase indefeso, e provavelmente os recém-chegados iniciariam a qualquer momento a invasão.
- Rosa, você deve rezar muito, - exclamou D. Gonçalo de Massa. - Os holandeses querem apoderar-se de nosso ouro e prata, de nossos escravos e até de nossos filhos.
- Eles são calvinistas - acrescentou sua mulher, Dona Maria. - Pensam que é seu dever matar todo católico que encontrem.
O doutor João del Castilho, um dos melhores médicos de Lima, concordou:
- Primeiro, eles incendiarão as igrejas. Têm um verdadeiro ódio ao Santíssimo Sacramento, Rosa. Já cometeram terríveis ultrajes em outras cidades. Minha querida, você rezará como nunca, não é?
Rosa saíra da ermida. O jardim estava repleto de gente, e o temor estampava-se em todas as faces.
- De certo que rezarei, - disse ela sossegada. - Mas não há motivo para alarmar-se. Os holandeses não tentarão desembarcar em Callao, nem tampouco incendiarão a cidade.
Em vão Dom Gonçalo descreveu os abomináveis feitos dos piratas no Panamá e outras colônias espanholas. Rosa insistia em que, durante a noite, a esquadra inimiga levantaria ferros e se afastaria de Callao. A multidão, porém, não podia crer em suas palavras, e por fim ela acedeu em rezar pela salvação de Lima, pedindo a proteção especial de Santa Maria Madalena, cuja festa ocorria no dia seguinte.
Toda a noite a cidade se preparou para o esperado ataque. Correios chegavam de Callao com as últimas noticias. Ofícios especiais foram determinados às igrejas. O povo acorria ansioso aos confessionários. O acontecimento lembrava as mesmas cenas de onze anos atrás, quando, a um sermão do Padre Francisco, se tinham convertido inumeráveis pecadores. O medo e a ansiedade enchiam todos os corações, espanhóis, negros, índios. Ninguém se lembrava de dormir aquela noite. Ao invés de ir para a cama dirigiam-se, como rebanhos, às igrejas, ou seguiam as várias procissões do Santíssimo Sacramento, que desfilavam pelas ruas sombrias.
Com permissão do Padre Alonso Velasquez, Rosa deixou sua ermida tranquila, e apressou-se para São Domingos em companhia de algumas amigas. Seu coração oscilava entre dois desejos. Se aos holandeses fosse permitido saquear a cidade, ela poderia ter oportunidade de morrer mártir. Já que isto lhe era negado, milhares de vidas seriam salvas.
A custo conseguiu um lugar na capela de S. Jerônimo na igreja dominicana, e aí ajoelhou-se, sorrindo ao pensamento de alcançar a coroa do martírio e ir diretamente para o céu. Se os holandeses viessem, ela, certamente, não faria o menor esforço para esconder-se. Empunhando o rosário, daria a vida em defesa do Santíssimo Sacramento.
Quando surgiu a cinzenta madrugada, a cena era bem diferente daquela da noite anterior. O povo cantava nas ruas, fora-se a ansiedade e o temor de algumas horas antes. A última mensagem de Callao anunciava que durante a noite os navios holandeses tinham levantado a âncora, e estavam fora de vista.
- E' um milagre! - disse a seu esposo dona Maria de Usátegui. - Estou certa que nossa Rosa é responsável. Dom Gonçalo, não acha também que ela possa ter oferecido sua vida a fim de poupar Lima à destruição?
Dom Gonçalo concordou.
- Não me surpreenderia, - disse ele. - Ela tem mais coragem e caridade que qualquer outra moça que eu conheço.
Outros havia que partilhavam a mesma opinião. Naquele momento, como acompanhamento ao repicar festivo dos sinos, vibrava pelo ar um só grito:
"As orações de Rosa Flores nos salvaram da desgraça!".
Em companhia de sua mãe e das amigas, Rosa seguiu vagarosamente para casa. Sentia-se cansada e um tanto confusa. Por que havia o povo de pensar que suas preces fossem tão poderosas. Não compreendiam que sua salvação era devida apenas à misericórdia de Deus? Ela, Rosa Flores, era menos que pó, e indigna de qualquer honra.
"Alegro-me, porém, que tenhais salvado a cidade, Senhor!" - pensou ela. - "E não estou muito triste porque não me concedestes o martírio. Afinal de contas, dais a cada um uma espécie de martírio neste mundo. E' bastante uma sorte comum, sem espadas, sem balas, sem fogo - nada mais que nossas pequenas aflições e contrariedades. Se as suportarmos alegremente, podemos agradar-vos como os santos mártires".
Foi poucos dias depois que o padre Alonso Velasquez veio ao eremitério de sua jovem amiga. Trazia algumas notícias muito especiais. Rosa estava para deixar a casa de seus pais " e ir morar com Dom Gonçalo e sua esposa. Dona Maria fora vê-lo recentemente e assegurara-lhe que a saúde de Rosa estava declinando, que a vida de eremita era excessivamente dura para ela.
- Você tem sorte que Dona Maria e Dom Gonçalo pensem tanto em você, - disse o padre Alonso. - São gente muito rica e seu único desejo é ver você forte e bem. Terá um esplêndido lar em casa deles.
Rosa não pôde ocultar sua perturbação.
- Mas como posso deixar minha própria família, padre? - Meus pais já não são jovens. Eles precisam de mim.
O sacerdote sorriu.
- Você sabe o que é obediência, Rosa? E' meu desejo que você acabe com essa vida de dureza. Eu quero que vá para a casa dos Massas e tente recuperar a saúde.
Rosa permaneceu silenciosa. Como membro da família dominicana devia obediência a seus superiores. Se o padre Alonso achava melhor para ela viver em outra parte, não competia a ela escolher e sim fazer o que lhe era ordenado.
- Irei, - respondeu. - Mas não estou realmente doente, padre. Nosso Senhor deu-me ainda dois anos mais para servi-lo.
- Você viverá mais do que isto, minha filha, se tomar cuidado consigo. De agora em diante vai pensar mais em sua saúde.
Assim Rosa foi morar com Dom Gonçalo e Dona Maria. Desde o começo ela declarou aos dois bondosos amigos que desejava apenas um simples quartinho e que era seu desejo ser útil, cuidando das crianças.
Micaela e Beatriz, as filhas mais velhas do casal, esforçaram-se para que a hóspede se sentisse como hóspede de honra, e que não era necessário ocupar-se em trabalho algum em seu novo lar. Pouco conseguiram, entretanto. Havia muito que Rosa se, apaixonara pela humildade.
- Ela é na verdade uma santa - disse Micaela à sua irmã. - Não me surpreenderia vê-la canonizada logo após a morte.
- Somos realmente felizes em tê-la aqui conosco, observou Beatriz. -Algum dia esta nossa casa será famosa. Virá gente de todo o mundo só para ver o quartinho em que Rosa viveu.
Dona Maria concordou.
- Não se passa um dia sem que eu agradeça a Deus por permitir que ela entrasse em nossa intimidade. Contudo, ela me preocupa um pouco...
- Porque ela diz que vai morrer daqui a dois anos? No dia de S. Bartolomeu?...
- Exatamente. Ela terá então trinta e um anos. E' muito cedo para que ela nos deixe.
D. Gonçalo animou a esposa:
- Com boa alimentação e bastante repouso, o caso será diferente, Maria. Olhe o seu pai. Tem noventa e três anos. Se Rosa puxar a ele, ficará conosco ainda muito, muito tempo..
Assim escoaram-se o dias. Rosa tinha saudades de sua celazinha no umbroso jardim, mas andava sempre ocupada. Durante anos tinha-se apurado em trabalhos de agulha, e no solar dos Massa continuou essa atividade, fazendo roupas para as crianças pequenas e toalhas para os altares de várias igrejas. De vez em quando entretinha a família e os servos, tocando harpa, citara, ou guitarra. Sua voz bem timbrada, doce e clara, deixava todos enlevados.
O padre Alonso insistira em que ela não se cansasse com excessos de orações e sacrifícios demasiados, de modo que Rosa levava agora uma vida mais aliviada. Nunca esqueceu, porém, que se dedicara à salvação de almas. Nem uma hora se passava, que não oferecesse uma curta oração pelos pecadores. Uma de suas favoritas era o inicio do Salmo 69: "Vinde, Senhor, em meu auxílio, apressai-vos em socorrer-me". Numerosas eram também as jaculatórias que proferia, pois tomavam pouco tempo para dizer e eram ricas de indulgências.
A maior, entretanto, era o Santo Sacrifício da Missa - a mais importante oração. Quando era uma eremita no jardim de seu pai, recebera uma graça maravilhosa: tivera o privilégio de assistir em espírito, através da janelinha de sua cela, a todas as missas celebras nas igrejas de Lima.
Transformada em membro da família de Dom Gonçalo, a preciosa graça continuava, e a jovem terceira dominicana sempre aplicava o mérito daquelas missas ao bem do próximo.
Às vezes Dona Maria olhava sua hóspede um tanto assombrada. Era uma grande honra ter Rosa morando em sua casa, mas, também, um pouco amedrontador. A moça fazia milagres tão abertamente, conversava com os santos e os anjos, e as pessoas acorriam constantemente à porta, pedindo orações e anunciando curas de várias espécies, e esses clientes não eram só pobres e ignorantes. Havia entre eles, por exemplo, nada menos que o Prior do convento dominicano de Santa Maria Madalena, o padre Bartolomeu Martinez. Este santo sacerdote insistia em que fora curado de grave moléstia porque Rosa oferecera algumas preces por ele a S. Domingos.
Havia também o caso de Maria Eufêmia de Pareja e seu filho Roderico. Embora a mãe tivesse sempre desejado que seu filho fosse padre jesuíta, Roderico mostrara pouca inclinação para a vida religiosa. A medida que o tempo passava, Maria Eufêmia se convencia tristemente da verdade: o que interessava ao rapaz eram os prazeres do mundo. Finalmente, ela foi ter com Rosa. Indubitavelmente, se a santa jovem rezasse nessa intenção, Roderico receberia a graça da vocação religiosa.
"E foi o que aconteceu - rememorava Dona Maria. - De uma hora para outra o rapaz reformou-se, e decidiu ser padre, se bem que na Ordem Franciscana, e não na Companhia de Jesus. Hoje, é o orgulho de sua mãe. Creio que nunca deixará de ser grata pelas orações de Rosa".
Decorriam os meses e Dona Maria observava de perto sua querida hóspede. A jovem apresentava boa aparência, mas havia nela qualquer coisa que preocupava a dona da casa. Estava-se então no ano de 1617. Seria certo que Deus a chamaria em breve para o Céu?
"Não posso suportar a ideia de perdê-la", pensava a boa mulher. "Ela tornou-se como filha para mim".
Rosa entristeceu-se ao pesar da sua mãe adotiva. Numa manhã de Abril aproximou-se dela humildemente:
- Dona Maria, quando eu estiver para morrer, serei atormentada por uma sede horrível. Quer dar-me água, então, quando eu a pedir?
A velha senhora tremeu num arrepio.
- Naturalmente, minha filha. Mas não falemos de morrer. Você está gozando muito mais saúde aqui, ultimamente.
Rosa sorriu.
- Há mais uma coisa. Eu desejo que somente a senhora e minha mãe preparem meu corpo para a sepultura.
Dona Maria fitou-a estarrecida e logo desatou em pranto. A festa de S. Bartolomeu estava tão perto... Quatro meses apenas...
- Não diga tal coisa, - implorou. - A vida não será a mesma se você nos deixar, Rosa.
Os receios da boa senhora começaram, entretanto, a desvanecer-se com a chegada do verão. Rosa estava a personificação da saúde. Até o padre Alonso concordou em que ela parecia muito bem.
- Eu a devia ter mandado para cá há muito tempo, disse a Dona Maria. - A vida que ela levava em casa era por demais penosa.
Dona Maria meneou a cabeça, confirmando.
- O sr. tem razão, padre Alonso. A criada dos Flores, Mariana, esteve aqui há dias. O que não me contou ela dos sacrifícios e orações de Rosa! Ainda não compreendo como alguém possa fazer tanto.
O sacerdote sorriu.
- Tem sido assim anos e anos, Dona Maria; desde que Rosa tinha onze anos e viu com seus próprios olhos o paganismo que reina entre os índios andinos. Nessa ocasião ela ouviu o arcebispo Turibio profetizar que Quivi seria destruída. Bem sei o que aquelas palavras significaram para ela. E depois, vieram o terremoto e as enchentes de 1601 e ela jamais esqueceu as centenas de pessoas que pereceram miseravelmente em Quivi como castigo pela zombaria ao Arcebispo e à fé que ele tentou levar-lhes. Desde então toda a vida ela tem dedicado à salvação das almas por meio de orações e sofrimentos.
Aconselhada pelo sacerdote dominicano a não se preocupar quanto à profecia de Rosa sobre a morte próxima, Dona Maria e toda a família respiraram mais aliviados. E quando, em fins de Julho, Rosa pediu permissão para visitar sua ermitagem no jardim, não acharam nada de extraordinário nisto. Durante a noite de primeiro de Agosto, porém, toda a casa despertou sobressaltada pelos gritos dolorosos que vinham de seu quarto. Dona Maria precipitou-se e foi encontrar sua hóspede atacada de doença mortal. Mal podia respirar e todo o corpo estava paralisado.
Imediatamente a aflita mulher mandou chamar o doutor João del Castillo e vários sacerdotes conhecidos de Rosa. Dom Gonçalo tentou consolar a esposa, mas ela agarrou-se-lhe aos braços desnorteada.
- Ela vai morrer, Gonçalo, e nada há que possamos fazer por ela!
O tesoureiro da cidade de Lima, cuja fortuna e alta posição davam-lhe importância e notoriedade em todo o Peru, mal podia controlar sua própria aflição. Naqueles dois últimos anos, desde que viera morar com eles, Rosa parecia tão bem disposta e feliz. Vinha, agora, de súbito, esta calamidade, este espetáculo aflitivo, de uma mulher tão jovem, tão bela, a deixar este mundo tão precocemente.
- Ela descansará melhor, agora que o padre João de Lorenzana a ungiu, -pensou ele. - Quem sabe, se cuidarmos dela com toda a solicitude...
Rosa, porém, apenas sorriu levemente ao ver os inúmeros remédios que traziam no afã de salvar-lhe a vida.
Um dia úmido de Agosto sucedeu ao outro, e ela continuava repetindo que o dia de S. Bartolomeu seria o último para ela na terra. Os mortais sofrimentos que lhe afligiam o corpo não podiam ser mitigados. Eram parte do pagamento ainda requerido para salvar do inferno certas almas.
Foi na véspera da festa do Apóstolo que ela estendeu a mão enfraquecida.
- Posso ver meus pais, Dona Maria? Eu queria dizer-lhes adeus. E quero pedir perdão a todos desta casa, por qualquer dificuldade que eu tenha causado.
A senhora acedeu pressurosamente. Maria de Oliva já lá estava, e os criados foram enviados com uma cadeira confortável a fim de trazerem o velho Gaspar Flores então com noventa e cinco anos.
Pelo dia em fora, toda sorte de visitantes desfilaram para dentro e para fora do quartinho de Rosa - homens e mulheres de quem fora tão amiga, outros médicos chamados na esperança de que a pudessem ajudar, sacerdotes das várias Ordens religiosas, todos impelidos pelo desejo de contemplar aquela jovem cuja fama de santa enchera toda a cidade. Somente Dona Maria de Usátegui, o rosto banhado em pranto, recusava-se a abandonar-lhe a cabeceira. Rosa começou a pedir água, porém os médicos disseram que ela não podia beber.
- Mas eu prometi! Eu prometi! - exclamava Dona Maria, lembrando-se daquele dia de Abril em que Rosa profetizara que havia de sofrer sede. -Não posso faltar à minha promessa!
- Chiu!, - murmurou Dom Gonçalo. - Água pode fazê-la sofrer mais!
Quando se aproximava a meia noite, Rosa lançou um olhar às pessoas ajoelhadas no quarto. O palor mortal de seu rosto desaparecera e assumira um aspecto mais belo que nunca.
- Por favor, não fiquem tristes porque vou deixa-los, murmurou. - Este é realmente um dia de felicidade!
- Rosa, minha querida, por que não me esforcei mais por compreender você? Perdoa-me, filha, a minha cegueira...
De um canto do quarto veio o murmúrio das vozes de Dom Gonçalo, sua mulher e das crianças que rezavam as orações pelos moribundos. Perto da porta aglomerava-se um grupo de negros, em cujas faces tisnadas rebrilhavam as lágrimas. Rosa sorriu ainda uma vez a seus amigos; em seguida baixou os olhos para o crucifixo que o padre Alonso lhe dera.
- Jesus, ficai comigo..., - disse baixinho.
Rapidamente, Maria de Oliva levantou-se e agarrou uma vela acesa. Por alguns instantes permaneceu contemplando a frágil figura estirada no leito, e então falou, e sua voz era surpreendentemente calma:
- Está... está tudo terminado.
Todos se precipitaram para frente, e como a sinal dado, ecoaram de longe os sons dos sinos através da tranquila escuridão. Meia-noite! A festa de S. Bartolomeu! E em cada convento de Lima, padres e freiras iniciavam o novo dia, cantando as orações litúrgicas em honra do Apóstolo.
Maria virou-se para seus companheiros. Havia um estranho olhar de contentamento em seu rosto cansado.
- Minha filhinha foi para o Céu! - disse tranquilamente.