11 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

III. O SEGREDO

Havia uma eclosão de felicidade no coração de Rosa, quando ela finalmente deixou a igreja. Era, enfim, um soldado de Cristo. Daí em diante ela podia crescer, auxiliada por quatro maravilhosos sacramentos.
- E meu nome agora é mesmo Rosa, mamãe?
Maria de Oliva sorriu:
- E' sim. O próprio Arcebispo acaba de dar-te este nome.
Então, não seria mais Isabel, de modo algum. Rosa riu satisfeita e pegou a mão de sua mãe. Que bonito que era o mundo! Que bom estar viva, com as três Pessoas da Santíssima Trindade na alma! Mas, de repente, o sorriso desapareceu do rosto da menina. A seus pés na grande praça desabrigada de Quivi, dezenas de índios, com suas roupas de colorido brilhante, agrupavam-se ameaçadores, berrando imprecações.
- Olha os cristãos! - gritavam. - Eles pensam que o Deus deles está na igreja!
- Cristãos, cristãos! - vociferam outros. - Cambada de loucos!
Rosa fitou-os admirada. Seria possível que aquela gente estivesse zombando dela?
- Eles estão falando a nosso respeito, mamãe?
Maria acenou que sim.
- Pagãos excomungados! Não conhecem nada melhor. Vamos embora, Rosa, antes que eles comecem alguma desordem. Palavra que tal coisa nunca aconteceria em Lima! Pelo menos lá temos leis e ordem.
Mãe e filha desceram apressadamente os degraus da igreja, mas, antes que atingissem o último, um grande clamor levantou-se da multidão. O Arcebispo Turíbio chegara à porta da igreja, e ai parara olhando a multidão aglomerada na praça. Seu rosto estava pálido e triste.
- Meus filhos, por que agis desta maneira? - exclamou ele cheio de tristeza. -Não ouvistes que só os cristãos adoram o verdadeiro Deus? Que ele está agora esperando por vós, aqui, nesta igreja? Que ele tornará vossas almas brancas e limpas como a neve nos Andes?
- Qual! - berrou um velho. - És um espanhol! Um espanhol narigudo! Não gostamos de ti. Vai-te embora para tua cidade!
- Espanhol narigudo! - entoou um grupo de crianças, e a turba pegou o grito:
- Espanhol narigudo! Vai embora para a tua cidade!
Rosa mal podia crer em seus ouvidos.
A praça inteira regurgitava então de índios, que gargalhavam e faziam troça do bom Arcebispo. Uma mulher agarrou um cesto e o colocou na cabeça à guisa de mitra. Logo os que a rodeavam curvaram-se até ao chão, fazendo o sinal da cruz, à medida que ela fingia abençoá-los.
De pé no alto da escadaria da igreja, o Arcebispo contemplava em silêncio aquele tumulto. O padre Francisco, que o seguira, sacudiu a cabeça.
- Esforcei-me duramente por convertê-los, Excelência. Ah! que se vai fazer. Quivi nada mais é que uma cidadezinha perdida nestas montanhas. Há dezenas de outras, todas cheias de indígenas que insistem em que o seu deus é o sol, do qual fazem imagem de ouro e o adoram dia e noite.
O Arcebispo fez um gesto de concordância. Suas feições tornaram-se subitamente severas e Rosa estremeceu ao vê-lo descer as escadas e avançar para a turba zombadora. Sua mão não se levantava na atitude usual de bênção, mas, ao contrário, apontava para o céu de um modo terrível.
- Desgraçados! - bradou o Arcebispo. - Vossa cidade só será poupada à destruição durante três anos. Mais do que isso, não vivereis para insultar os servos de Deus!
- Ha, ha! - escarneceu o povo, fazendo roda para dançar em volta do Arcebispo. - Nosso Deus é o sol - cantaram; - nossa cidade santa é Cuzco. Vocês, espanhóis, nos roubaram nosso ouro e nossa prata. Não acreditamos no que vocês nos dizem!
Rosa e sua mãe seguiram receosas esquivando-se à multidão, e entraram na rua que conduzia à sua casa. Podiam ainda ouvir os gritos e insultos dos índios, mas já não lhes viam as faces escarninhas. Ficava apenas a lembrança da cena, e as palavras assustadoras que o Arcebispo proferira.
Semanas decorriam, e Rosa pensava frequentemente no dia de sua Confirmação. Pouco a pouco enchia-lhe o coração o anseio de fazer alguma coisa pelas almas ignorantes dos indígenas. Mas o quê? Ela só tinha onze anos e era uma menina. Bem que Fernando tinha razão. Os homens e os rapazes podiam lançar-se ao mundo e ser úteis, mas que reservava o futuro para uma peruanazinha? Casamento, talvez... Ou a vida religiosa...
"Não quero nenhum dos dois", pensou Rosa.
Um dia acudiu-lhe uma ideia. Estivera, provavelmente, aninhada no fundo do cérebro desde os primeiros anos, e o problema dos índios pagãos fizera-a vir à tona.
"Se não posso fazer grandes coisas, não custa tentar fazer bem as pequenas, - disse a si mesma - Posso ser paciente nas pequenas dificuldades, e oferecê-las a Deus em união com as que seu Filho teve neste mundo. Deste modo elas terão merecimento, e talvez até eu salve uma ou duas almas".
Era uma ideia maravilhosa, e Rosa jamais a esqueceu. Se cortava o dedo, não se lamentava. Um corte no dedo pouca importância tem, mas podia significar muito se ela oferecesse a Deus a dor.
"Dar-lhe-ei também toda a minha felicidade - pensou. - Dar-lhe-ei tudo".
Assim escoaram-se os dias. A ninguém contou Rosa o seu segredo, mas Fernando, que, dos irmãos e irmãs, era-lhe o mais chegado, suspeitou alguma coisa.
- O que é que a torna tão feliz? - perguntou curioso.
- Será porque você gosta de morar em Quivi, Rosa? Será por isto que está sempre cantando, quando pensa que ninguém a vê?
O rubor afluiu ao rosto da menina.
- Talvez, - sorriu ela.
Fernando lançou um olhar penetrante à irmã e começou a apontar um pedaço de pau.
- Se você gosta tanto de Quivi, talvez seja melhor eu não estragar seu prazer. Entretanto, ontem à noite, depois que papai chegou da mina, eu ouvi alguma coisa. Adivinhe o quê?
Rosa sentou-se muito quieta. Aí estava uma ocasião de oferecer a Deus outro sacrifíciozinho. Curiosidade insatisfeita era em si pouca coisa, mas, junta aos sofrimentos de Jesus, assumia de repente grande valor. Podia ajudar algum pecador ignorado; podia aliviar uma alma do Purgatório.
Fernando parou de desgastar seu pedaço de pau.
- Que há com você? - inquiriu ele. - Está com um olhar esquisito, assim como se estivesse rezando... Não está interessada no que papai disse?
Rosa sorriu.
- Claro que estou interessada. Desculpe se fiz você pensar que eu não estava prestando atenção.
- Ora, está bem. Eu só queria contar que nós vamos voltar para Lima. O pessoal todo.
- Voltar para Lima?...
- Sim. Papai não está satisfeito na mina de prata. Ele diz que uma porção de índios morre todos os dias porque têm de trabalhar demais. Pior ainda, algumas das crianças estão morrendo de fome, porque os donos das minas não dão bastante comida ao povo. As coisas vão de mal , a pior. Foram as próprias palavras de papai.
Os olhos da menina encheram-se de lágrimas.
- Não devia ser assim, Fernando. O Peru, de fato, pertence aos índios e não aos espanhóis. Você acha que, depois de carregar tanto ouro e prata...
O rapazinho encrespou as sobrancelhas.
- Eu sei. Mas isso não parece fazer muita diferença. Eu lhe digo, Rosa, que nós devíamos estar bem contentes de não, sermos índios ou negros. Eles. não têm nenhuma oportunidade Você já pensou nisto.
Sobre isso Rosa já pensara muitas vezes, e depois que a família voltou para Lima, pensou ainda mais. Os índios e negros, que andavam pelas ruas da cidade, eram, sem exceção, pobres e esfarrapados. Os filhos deles não tinham escolas. A miséria dessa pobre gente era completa.
"Não podemos fazer algo" - pensava ela de vez em quando. - "Senhor, não posso ajudar de algum modo?".
Apesar, porém, de muito rezar, a, menina, na impotência de seus onze anos, não conseguia descobrir um meio material de socorrer os milhares de índios e negros desamparados. Tudo que podia fazer era continuar a oferecer a Deus Pai pequenos sacrifícios, unindo-os aos sofrimentos de Cristo na terra e pedindo-lhe que abençoasse os nativos tão pobres e ignorantes
Uma manhã, pouco depois do regresso a Lima, estava Rosa no jardim, nos fundos da casa. Dias antes recebera licença dos pais de levar flores para vender no mercado. Isto rendia algum dinheiro, dissera a mãe, e o trabalho não era pesado demais. Rosa era dotada de notável perícia com plantas e flores, e o jardim de Gaspar floria como nunca.
- Olá - irrompeu subitamente uma voz - esta atarefada senhorita é Rosa Flores?
- A menina ergueu os olhos dos molhos de violetas que estivera arrumando e ergueu-se.
- Doutor João! Que prazer ver o senhor!
O Doutor João Pérez de Zumeta pôs no chão o volumoso embrulho que trazia.
- Sua mãe disse que eu a encontraria aqui. Como vai a minha amiguinha depois da estada em Quivi?
- Bem, obrigada, Doutor.
- Com certeza?
Rosa deu uma risada alegre.
- Oh! com toda a certeza. O senhor sabe, Doutor, que eu agora estou fazendo negócios? Negócio de flores. Ontem no mercado algumas de minhas rosas foram vendidas por um preço excelente.
O Dr. João sorriu e sentou-se num pequeno banco de pedra.
- Mariana já me deu estas boas noticias. Mas não foi por causa de negócios que eu vim vê-la, Rosa. Sua mãe chamou-me aqui para eu ter uma conversa com você. Parece que ela está um pouco preocupada.
Rosa arregalou seus olhos escuros.
- Preocupada? Por minha causa? Mas que fiz eu, Doutor João? Não posso imaginar...
- Ela me disse que você não come nem o bastante para manter um passarinho. Mais ainda, que você não dorme direito, pois todas as noites, quando pensa que ninguém está vigiando, você pula da cama para rezar.
Rosa corou.
- Eu... eu sinto muito, - disse. - Pensei que ninguém soubesse disso.
O Doutor João contemplou a menina à sua frente.
- Você tem uma espécie de segredo, não é? - disse bondosamente. - Não quer contá-lo a mim? Você sabe que pode ter confiança. Não tenho sido seu amigo desde quando você era um bebezinho?
Rosa meneou a cabeça.
- O senhor é tão bom, - murmurou vagarosamente. Talvez me compreenderá.
Então o homem e a criança sentaram-se no vasto jardim, onde as borboletas multicores adejavam ao sol, e nos grossos ramos das oliveiras, as pombinhas de Fernando arrulhavam docemente. . .
- Então, - disse o médico, - você vai contar-me o que há.
Rosa respirou fundo e revelou seu segredo.
- Eu só quero salvar almas, centenas e centenas de almas, e o único meio que conheço é rezar e sofrer. Não está certo, Doutor João?

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