22 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

XI. UM NOVO LAR

Maria estava indignada às palavras de Rosa. Ela, uma freira dominicana? Nunca! Entretanto a jovem terciária recusava ouvir os protestos de sua mãe. Um dia, quando o mosteiro de Santa Catarina fosse uma realidade, Maria de Oliva iria até lá e pediria o hábito dominicano, e lá haveria de passar seus últimos anos no serviço do Senhor.
Passaram-se meses e Rosa continuava sua vida de eremita. As vezes, entretanto, confiava a alguma de suas amigas que seu desejo maior era ser mártir.
"Se eu fosse homem, não quereria outra coisa senão ser missionário", confessou ela a Francisca de Montoya, uma moça de sua idade. "Imagine quantos missionários têm ido diretamente para o céu só porque morreram às mãos dos selvagens".
Francisca sentiu um arrepio. Embora pertencesse também à Ordem terceira de S. Domingos, sempre achara difícil a prática de mortificações, ainda as menores. Evidentemente suas visitas à Rosa afetavam-na bastante. Havia tanto mosquito no jardim de Gaspar Flores. Eles enchiam a acanhada ermida e Francisca sempre saia de lá crivada de dolorosas picadas.
- Eu nunca serei bastante corajosa para desejar a morte de mártir, -suspirou. - Nem posso suportar as picadas destes seus mosquitos.
Rosa sorriu.
- E não obstante você ainda vem ver-me, Francisca. Como explica isto, se tem tanto medo de sofrer?
- Mas isto é diferente! Você não sabe como me sinto melhor depois de uma conversa com você. Sou tão grata que você me permita vir, Rosa, ainda que realmente você não queria aborrecer-se com visitas. Há uma coisa, porém, que me deixa maravilhada.
- O quê?
- Por que os mosquitos não picam sua mãe? Nem dona Maria de Usátegui? Ou a você?
- Porque nós prometemos nunca ofender estes pequeninos hóspedes.
- Hóspedes? E' assim que vocês chamam esses insetos abomináveis.
Rosa meneou a cabeça.
- Suponhamos que você também faça esta promessa, Francisca. Então eles não a incomodarão mais.
A visitante olhou desolada para seu braço. Lá estavam já três marcas vermelhas.
- Se eu pudesse ter um pouco de paz quando venho ver você, eu prometeria qualquer coisa.
- Ora bem. Ofereça o sofrimento destas três picadas pelas pobres almas, em honra da Santíssima Trindade. E então faça a promessa.
Francisca não pôde deixar de rir.
- Não matarei nunca mais nenhum de seus hóspedes, - disse ela com firmeza. - Espero que eles entendam o que estou dizendo.
Rosa sorriu. Claro que as criaturinhas entendiam. Dai em diante Francisca de Montoya seria outra pessoa que poderia visitar, sem tribulações, a ermida de adobe.
A 30 de Abril de 1615, Rosa completava vinte e nove anos. Algumas semanas mais tarde ficou surpreendida ao encontrar seu jardinzinho rodeado por uma multidão excitada. Mulheres choravam; homens, maridos e filhos, estavam pálidos de medo. Chegara a notícia de que uma frota de piratas holandeses estava ancorada em frente ao porto de Calau. Este porto, a dez milhas de Lima, era então quase indefeso, e provavelmente os recém-chegados iniciariam a qualquer momento a invasão.
- Rosa, você deve rezar muito, - exclamou D. Gonçalo de Massa. - Os holandeses querem apoderar-se de nosso ouro e prata, de nossos escravos e até de nossos filhos.
- Eles são calvinistas - acrescentou sua mulher, Dona Maria. - Pensam que é seu dever matar todo católico que encontrem.
O doutor João del Castilho, um dos melhores médicos de Lima, concordou:
- Primeiro, eles incendiarão as igrejas. Têm um verdadeiro ódio ao Santíssimo Sacramento, Rosa. Já cometeram terríveis ultrajes em outras cidades. Minha querida, você rezará como nunca, não é?
Rosa saíra da ermida. O jardim estava repleto de gente, e o temor estampava-se em todas as faces.
- De certo que rezarei, - disse ela sossegada. - Mas não há motivo para alarmar-se. Os holandeses não tentarão desembarcar em Callao, nem tampouco incendiarão a cidade.
Em vão Dom Gonçalo descreveu os abomináveis feitos dos piratas no Panamá e outras colônias espanholas. Rosa insistia em que, durante a noite, a esquadra inimiga levantaria ferros e se afastaria de Callao. A multidão, porém, não podia crer em suas palavras, e por fim ela acedeu em rezar pela salvação de Lima, pedindo a proteção especial de Santa Maria Madalena, cuja festa ocorria no dia seguinte.
Toda a noite a cidade se preparou para o esperado ataque. Correios chegavam de Callao com as últimas noticias. Ofícios especiais foram determinados às igrejas. O povo acorria ansioso aos confessionários. O acontecimento lembrava as mesmas cenas de onze anos atrás, quando, a um sermão do Padre Francisco, se tinham convertido inumeráveis pecadores. O medo e a ansiedade enchiam todos os corações, espanhóis, negros, índios. Ninguém se lembrava de dormir aquela noite. Ao invés de ir para a cama dirigiam-se, como rebanhos, às igrejas, ou seguiam as várias procissões do Santíssimo Sacramento, que desfilavam pelas ruas sombrias.
Com permissão do Padre Alonso Velasquez, Rosa deixou sua ermida tranquila, e apressou-se para São Domingos em companhia de algumas amigas. Seu coração oscilava entre dois desejos. Se aos holandeses fosse permitido saquear a cidade, ela poderia ter oportunidade de morrer mártir. Já que isto lhe era negado, milhares de vidas seriam salvas.
A custo conseguiu um lugar na capela de S. Jerônimo na igreja dominicana, e aí ajoelhou-se, sorrindo ao pensamento de alcançar a coroa do martírio e ir diretamente para o céu. Se os holandeses viessem, ela, certamente, não faria o menor esforço para esconder-se. Empunhando o rosário, daria a vida em defesa do Santíssimo Sacramento.
Quando surgiu a cinzenta madrugada, a cena era bem diferente daquela da noite anterior. O povo cantava nas ruas, fora-se a ansiedade e o temor de algumas horas antes. A última mensagem de Callao anunciava que durante a noite os navios holandeses tinham levantado a âncora, e estavam fora de vista.
- E' um milagre! - disse a seu esposo dona Maria de Usátegui. - Estou certa que nossa Rosa é responsável. Dom Gonçalo, não acha também que ela possa ter oferecido sua vida a fim de poupar Lima à destruição?
Dom Gonçalo concordou.
- Não me surpreenderia, - disse ele. - Ela tem mais coragem e caridade que qualquer outra moça que eu conheço.
Outros havia que partilhavam a mesma opinião. Naquele momento, como acompanhamento ao repicar festivo dos sinos, vibrava pelo ar um só grito:
"As orações de Rosa Flores nos salvaram da desgraça!".
Em companhia de sua mãe e das amigas, Rosa seguiu vagarosamente para casa. Sentia-se cansada e um tanto confusa. Por que havia o povo de pensar que suas preces fossem tão poderosas. Não compreendiam que sua salvação era devida apenas à misericórdia de Deus? Ela, Rosa Flores, era menos que pó, e indigna de qualquer honra.
"Alegro-me, porém, que tenhais salvado a cidade, Senhor!" - pensou ela. - "E não estou muito triste porque não me concedestes o martírio. Afinal de contas, dais a cada um uma espécie de martírio neste mundo. E' bastante uma sorte comum, sem espadas, sem balas, sem fogo - nada mais que nossas pequenas aflições e contrariedades. Se as suportarmos alegremente, podemos agradar-vos como os santos mártires".
Foi poucos dias depois que o padre Alonso Velasquez veio ao eremitério de sua jovem amiga. Trazia algumas notícias muito especiais. Rosa estava para deixar a casa de seus pais " e ir morar com Dom Gonçalo e sua esposa. Dona Maria fora vê-lo recentemente e assegurara-lhe que a saúde de Rosa estava declinando, que a vida de eremita era excessivamente dura para ela.
- Você tem sorte que Dona Maria e Dom Gonçalo pensem tanto em você, - disse o padre Alonso. - São gente muito rica e seu único desejo é ver você forte e bem. Terá um esplêndido lar em casa deles.
Rosa não pôde ocultar sua perturbação.
- Mas como posso deixar minha própria família, padre? - Meus pais já não são jovens. Eles precisam de mim.
O sacerdote sorriu.
- Você sabe o que é obediência, Rosa? E' meu desejo que você acabe com essa vida de dureza. Eu quero que vá para a casa dos Massas e tente recuperar a saúde.
Rosa permaneceu silenciosa. Como membro da família dominicana devia obediência a seus superiores. Se o padre Alonso achava melhor para ela viver em outra parte, não competia a ela escolher e sim fazer o que lhe era ordenado.
- Irei, - respondeu. - Mas não estou realmente doente, padre. Nosso Senhor deu-me ainda dois anos mais para servi-lo.
- Você viverá mais do que isto, minha filha, se tomar cuidado consigo. De agora em diante vai pensar mais em sua saúde.
Assim Rosa foi morar com Dom Gonçalo e Dona Maria. Desde o começo ela declarou aos dois bondosos amigos que desejava apenas um simples quartinho e que era seu desejo ser útil, cuidando das crianças.
Micaela e Beatriz, as filhas mais velhas do casal, esforçaram-se para que a hóspede se sentisse como hóspede de honra, e que não era necessário ocupar-se em trabalho algum em seu novo lar. Pouco conseguiram, entretanto. Havia muito que Rosa se, apaixonara pela humildade.
- Ela é na verdade uma santa - disse Micaela à sua irmã. - Não me surpreenderia vê-la canonizada logo após a morte.
- Somos realmente felizes em tê-la aqui conosco, observou Beatriz. -Algum dia esta nossa casa será famosa. Virá gente de todo o mundo só para ver o quartinho em que Rosa viveu.
Dona Maria concordou.
- Não se passa um dia sem que eu agradeça a Deus por permitir que ela entrasse em nossa intimidade. Contudo, ela me preocupa um pouco...
- Porque ela diz que vai morrer daqui a dois anos? No dia de S. Bartolomeu?...
- Exatamente. Ela terá então trinta e um anos. E' muito cedo para que ela nos deixe.
D. Gonçalo animou a esposa:
- Com boa alimentação e bastante repouso, o caso será diferente, Maria. Olhe o seu pai. Tem noventa e três anos. Se Rosa puxar a ele, ficará conosco ainda muito, muito tempo..
Assim escoaram-se o dias. Rosa tinha saudades de sua celazinha no umbroso jardim, mas andava sempre ocupada. Durante anos tinha-se apurado em trabalhos de agulha, e no solar dos Massa continuou essa atividade, fazendo roupas para as crianças pequenas e toalhas para os altares de várias igrejas. De vez em quando entretinha a família e os servos, tocando harpa, citara, ou guitarra. Sua voz bem timbrada, doce e clara, deixava todos enlevados.
O padre Alonso insistira em que ela não se cansasse com excessos de orações e sacrifícios demasiados, de modo que Rosa levava agora uma vida mais aliviada. Nunca esqueceu, porém, que se dedicara à salvação de almas. Nem uma hora se passava, que não oferecesse uma curta oração pelos pecadores. Uma de suas favoritas era o inicio do Salmo 69: "Vinde, Senhor, em meu auxílio, apressai-vos em socorrer-me". Numerosas eram também as jaculatórias que proferia, pois tomavam pouco tempo para dizer e eram ricas de indulgências.
A maior, entretanto, era o Santo Sacrifício da Missa - a mais importante oração. Quando era uma eremita no jardim de seu pai, recebera uma graça maravilhosa: tivera o privilégio de assistir em espírito, através da janelinha de sua cela, a todas as missas celebras nas igrejas de Lima.
Transformada em membro da família de Dom Gonçalo, a preciosa graça continuava, e a jovem terceira dominicana sempre aplicava o mérito daquelas missas ao bem do próximo.
Às vezes Dona Maria olhava sua hóspede um tanto assombrada. Era uma grande honra ter Rosa morando em sua casa, mas, também, um pouco amedrontador. A moça fazia milagres tão abertamente, conversava com os santos e os anjos, e as pessoas acorriam constantemente à porta, pedindo orações e anunciando curas de várias espécies, e esses clientes não eram só pobres e ignorantes. Havia entre eles, por exemplo, nada menos que o Prior do convento dominicano de Santa Maria Madalena, o padre Bartolomeu Martinez. Este santo sacerdote insistia em que fora curado de grave moléstia porque Rosa oferecera algumas preces por ele a S. Domingos.
Havia também o caso de Maria Eufêmia de Pareja e seu filho Roderico. Embora a mãe tivesse sempre desejado que seu filho fosse padre jesuíta, Roderico mostrara pouca inclinação para a vida religiosa. A medida que o tempo passava, Maria Eufêmia se convencia tristemente da verdade: o que interessava ao rapaz eram os prazeres do mundo. Finalmente, ela foi ter com Rosa. Indubitavelmente, se a santa jovem rezasse nessa intenção, Roderico receberia a graça da vocação religiosa.
"E foi o que aconteceu - rememorava Dona Maria. - De uma hora para outra o rapaz reformou-se, e decidiu ser padre, se bem que na Ordem Franciscana, e não na Companhia de Jesus. Hoje, é o orgulho de sua mãe. Creio que nunca deixará de ser grata pelas orações de Rosa".
Decorriam os meses e Dona Maria observava de perto sua querida hóspede. A jovem apresentava boa aparência, mas havia nela qualquer coisa que preocupava a dona da casa. Estava-se então no ano de 1617. Seria certo que Deus a chamaria em breve para o Céu?
"Não posso suportar a ideia de perdê-la", pensava a boa mulher. "Ela tornou-se como filha para mim".
Rosa entristeceu-se ao pesar da sua mãe adotiva. Numa manhã de Abril aproximou-se dela humildemente:
- Dona Maria, quando eu estiver para morrer, serei atormentada por uma sede horrível. Quer dar-me água, então, quando eu a pedir?
A velha senhora tremeu num arrepio.
- Naturalmente, minha filha. Mas não falemos de morrer. Você está gozando muito mais saúde aqui, ultimamente.
Rosa sorriu.
- Há mais uma coisa. Eu desejo que somente a senhora e minha mãe preparem meu corpo para a sepultura.
Dona Maria fitou-a estarrecida e logo desatou em pranto. A festa de S. Bartolomeu estava tão perto... Quatro meses apenas...
- Não diga tal coisa, - implorou. - A vida não será a mesma se você nos deixar, Rosa.
Os receios da boa senhora começaram, entretanto, a desvanecer-se com a chegada do verão. Rosa estava a personificação da saúde. Até o padre Alonso concordou em que ela parecia muito bem.
- Eu a devia ter mandado para cá há muito tempo, disse a Dona Maria. - A vida que ela levava em casa era por demais penosa.
Dona Maria meneou a cabeça, confirmando.
- O sr. tem razão, padre Alonso. A criada dos Flores, Mariana, esteve aqui há dias. O que não me contou ela dos sacrifícios e orações de Rosa! Ainda não compreendo como alguém possa fazer tanto.
O sacerdote sorriu.
- Tem sido assim anos e anos, Dona Maria; desde que Rosa tinha onze anos e viu com seus próprios olhos o paganismo que reina entre os índios andinos. Nessa ocasião ela ouviu o arcebispo Turibio profetizar que Quivi seria destruída. Bem sei o que aquelas palavras significaram para ela. E depois, vieram o terremoto e as enchentes de 1601 e ela jamais esqueceu as centenas de pessoas que pereceram miseravelmente em Quivi como castigo pela zombaria ao Arcebispo e à fé que ele tentou levar-lhes. Desde então toda a vida ela tem dedicado à salvação das almas por meio de orações e sofrimentos.
Aconselhada pelo sacerdote dominicano a não se preocupar quanto à profecia de Rosa sobre a morte próxima, Dona Maria e toda a família respiraram mais aliviados. E quando, em fins de Julho, Rosa pediu permissão para visitar sua ermitagem no jardim, não acharam nada de extraordinário nisto. Durante a noite de primeiro de Agosto, porém, toda a casa despertou sobressaltada pelos gritos dolorosos que vinham de seu quarto. Dona Maria precipitou-se e foi encontrar sua hóspede atacada de doença mortal. Mal podia respirar e todo o corpo estava paralisado.
Imediatamente a aflita mulher mandou chamar o doutor João del Castillo e vários sacerdotes conhecidos de Rosa. Dom Gonçalo tentou consolar a esposa, mas ela agarrou-se-lhe aos braços desnorteada.
- Ela vai morrer, Gonçalo, e nada há que possamos fazer por ela!
O tesoureiro da cidade de Lima, cuja fortuna e alta posição davam-lhe importância e notoriedade em todo o Peru, mal podia controlar sua própria aflição. Naqueles dois últimos anos, desde que viera morar com eles, Rosa parecia tão bem disposta e feliz. Vinha, agora, de súbito, esta calamidade, este espetáculo aflitivo, de uma mulher tão jovem, tão bela, a deixar este mundo tão precocemente.
- Ela descansará melhor, agora que o padre João de Lorenzana a ungiu, -pensou ele. - Quem sabe, se cuidarmos dela com toda a solicitude...
Rosa, porém, apenas sorriu levemente ao ver os inúmeros remédios que traziam no afã de salvar-lhe a vida.
Um dia úmido de Agosto sucedeu ao outro, e ela continuava repetindo que o dia de S. Bartolomeu seria o último para ela na terra. Os mortais sofrimentos que lhe afligiam o corpo não podiam ser mitigados. Eram parte do pagamento ainda requerido para salvar do inferno certas almas.
Foi na véspera da festa do Apóstolo que ela estendeu a mão enfraquecida.
- Posso ver meus pais, Dona Maria? Eu queria dizer-lhes adeus. E quero pedir perdão a todos desta casa, por qualquer dificuldade que eu tenha causado.
A senhora acedeu pressurosamente. Maria de Oliva já lá estava, e os criados foram enviados com uma cadeira confortável a fim de trazerem o velho Gaspar Flores então com noventa e cinco anos.
Pelo dia em fora, toda sorte de visitantes desfilaram para dentro e para fora do quartinho de Rosa - homens e mulheres de quem fora tão amiga, outros médicos chamados na esperança de que a pudessem ajudar, sacerdotes das várias Ordens religiosas, todos impelidos pelo desejo de contemplar aquela jovem cuja fama de santa enchera toda a cidade. Somente Dona Maria de Usátegui, o rosto banhado em pranto, recusava-se a abandonar-lhe a cabeceira. Rosa começou a pedir água, porém os médicos disseram que ela não podia beber.
- Mas eu prometi! Eu prometi! - exclamava Dona Maria, lembrando-se daquele dia de Abril em que Rosa profetizara que havia de sofrer sede. -Não posso faltar à minha promessa!
- Chiu!, - murmurou Dom Gonçalo. - Água pode fazê-la sofrer mais!
Quando se aproximava a meia noite, Rosa lançou um olhar às pessoas ajoelhadas no quarto. O palor mortal de seu rosto desaparecera e assumira um aspecto mais belo que nunca.
- Por favor, não fiquem tristes porque vou deixa-los, murmurou. - Este é realmente um dia de felicidade!
- Rosa, minha querida, por que não me esforcei mais por compreender você? Perdoa-me, filha, a minha cegueira...
De um canto do quarto veio o murmúrio das vozes de Dom Gonçalo, sua mulher e das crianças que rezavam as orações pelos moribundos. Perto da porta aglomerava-se um grupo de negros, em cujas faces tisnadas rebrilhavam as lágrimas. Rosa sorriu ainda uma vez a seus amigos; em seguida baixou os olhos para o crucifixo que o padre Alonso lhe dera.
- Jesus, ficai comigo..., - disse baixinho.
Rapidamente, Maria de Oliva levantou-se e agarrou uma vela acesa. Por alguns instantes permaneceu contemplando a frágil figura estirada no leito, e então falou, e sua voz era surpreendentemente calma:
- Está... está tudo terminado.
Todos se precipitaram para frente, e como a sinal dado, ecoaram de longe os sons dos sinos através da tranquila escuridão. Meia-noite! A festa de S. Bartolomeu! E em cada convento de Lima, padres e freiras iniciavam o novo dia, cantando as orações litúrgicas em honra do Apóstolo.
Maria virou-se para seus companheiros. Havia um estranho olhar de contentamento em seu rosto cansado.
- Minha filhinha foi para o Céu! - disse tranquilamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.