VII. UM AMIGO NA NECESSIDADE
Quando Rosa ficou mais crescida, obteve do pai permissão para cuidar de outras mulheres pobres e doentes. Uma sala especial foi reservada para essas infelizes. Recebeu o título de "Enfermaria", e em pouco tempo tornou-se um verdadeiro refúgio para as pobres doentes de Lima. Passados meses, vários índios começaram a propalar que tinham sido curados na "Enfermaria", especialmente depois de Rosa ter-lhes deixado segurar a estatuazinha do Menino Jesus. Aquela estatueta, insistiam eles, era milagrosa, e a própria Rosa referia-se a ela como ao "Doutorzinho".
Apesar da popularidade da filha entre os pobres de Lima, Maria de Oliva perdia às vezes a calma, quanto ao número de casos na "Enfermaria".
- Não haverá hospitais bastantes em Lima para que nossa casa se transforme também num? - perguntou certo dia a seu marido. - Há o de Sant'Ana, o de Santo André, o de São Lázaro! Com efeito, Gaspar, não vejo motivo por que Rosa há de manter aqui estas mulheres. Isto me põe doente!
Gaspar Flores limitou-se a sorrir. Raro era o dia em que, sua enérgica esposa não se queixasse de alguma coisa.
- Temos uma casa enorme, Maria. Certamente Rosa pode usar uma sala para sua caridade.
- Caridade! Gaspar, podes compreender isto no ano de 1606? Rosa tem vinte anos e ainda não se casou. Então não tenho direito de reclamar, vendo-a gastar horas e horas com doentes índios e negros? Por que não há de ela interessar-se em travar conhecimento com algum jovem distinto?
- Que adiantaria isso? Sabes o que ela nos disse.
A sombra de um desgosto toldou o rosto de Maria. Então Gaspar acreditava realmente que sua filha não poderia casar-se nunca, porque se prometera a Deus quando tinha cinco anos. Que absurdo! Nenhuma criança de cinco anos entende essas coisas.
- Se Rosa não se casar, eu morrerei de vergonha, declarou ela, decisivamente. - Todo mundo já começa a falar. Dizem que há qualquer coisa de errado nela, que ela é esquisita...
Gaspar soltou um suspiro. Rosa fora sempre diferente de seus outros filhos. Mesmo quando pequenina tinha coisas que o deixavam intrigado. As histórias que ela contava, por exemplo. Seria possível que o Menino Jesus lhe ensinara a ler e escrever? Que ela via o Anjo da Guarda? Que a Virgem Maria lhe aparecia frequentemente, enquanto ela trabalhava no jardim?
- Talvez seja a vontade de Deus que Rosa entre para um convento -disse ele, reatando a conversa. - Ao menos um de nossos onze filhos devemos à vida religiosa, Maria. Rosa está bem adequada, ao que me parece...
- A menina entra para o convento, mas só passando sobre o meu cadáver - anunciou amargada a esposa. - Durante anos tenho colocado todas as minhas esperanças num bom casamento para ela. Achas que vou me deixar agora desapontar?
Ora, pensou Gaspar, que adianta discutir? Nos vinte e nove anos de vida conjugal Maria fizera sempre o que queria.
Muitos havia em Lima, entretanto, que concordavam com Gaspar, declarando que Rosa possuía todas as qualidades de uma vocação religiosa. E por acaso, entre estes contava-se o tesoureiro da cidade, D. Gonçalo de Massa.
Natural de Burgos, na Espanha, D. Gonçalo chegara em Lima em 1601, e pouco depois travara conhecimento com a família Flores. A despeito de sua riqueza e alta linhagem, era um homem extremamente humilde, e seus servos negros e índios consideravam-se felizes de trabalhar em casa dele. Não ouvia D. Gonçalo cada manhã a missa numa das igrejas da cidade? E não dera ordens que nenhum pobre fosse jamais despedido de sua porta sem ter a fome saciada? E quanto a sua esposa, Dona Maria de Usátegui - onde se encontraria mais fiel cristã?
Na manhã em que Gaspar e sua mulher discutiam o futuro de Rosa, D. Gonçalo estava a caminho da igreja dos dominicanos para ouvir a missa. Era segunda-feira de Páscoa, uma brilhante e alegre manhã em fins de Março. Enquanto a carruagem rodava ligeira pelas ruas estreitas, D. Gonçalo ria-se, imaginando a recepção que o aguardava. Como sempre, era esperado por um bando de crianças, garotos esfarrapados, que sabiam que ele lhes trazia sempre, numa bolsa, um punhado de moedas de prata. Reboavam os gritos de boas-vindas, à aproximação do veículo, e ansiosos, os pequenos se precipitavam para o bom homem.
- Deus vos abençoe, meus amiguinhos - gritava ele, espalhando pelo ar uma chuva de moedas. - João, cuidado com os cavalos, não atropeles a criançada.
- Si, senhor - sorria o cocheiro índio.
Mas nem ele nem os cavalos precisavam de recomendação para andar com cautela. Já sabiam o que os esperava quando D. Gonçalo saía para a missa de manhã.
A carruagem chegara quase à igreja, quando os grandes sinos da catedral começaram subitamente a soar. O dobre solene e pesado anunciava que a morte viera para alguma pessoa importante. Logo outros sinos juntaram suas vozes à fúnebre música. De todos os cantos da cidade ressoavam as graves badaladas, num contraste flagrante com os repiques exultantes de Páscoa, no dia anterior.
D. Gonçalo quedou-se atento nas almofadas de sua bela viatura. "E' o meu velho amigo, o Padre João de Lorenzana, que morreu!", pensou ele. "Por que não fui vê-lo ontem como tinha planejado? Não me faltava tempo, ainda que fosse domingo de Páscoa".
Agora era tarde. E, enquanto a carruagem enveredava por uma rua lateral, D. Gonçalo murmurou uma ligeira prece pelo bondoso Padre dominicano, que fora seu confessor. Aí brilharam-lhe os olhos ao divisar uma figura familiar que descia a rua - o santo negro, Martim de Porres.
Martim fora a princípio um simples terceiro auxiliar em S. Domingos. Três anos antes, contudo, em obediência aos pedidos de seus superiores, ele se tornara Irmão leigo. A maior parte de seus vinte e sete anos ele os despendera ajudando os desafortunados de Lima. Pouco importava se os infelizes eram ricos ou pobres, espanhóis, índios ou negros. A caridade do Irmão Martim desconhecia limites. Um dia não se passava, em que as maravilhas operadas por suas orações faltassem a algum indivíduo ou lar da cidade.
- Deus seja louvado! - exclamou D. Gonçalo. - Justamente a pessoa que eu queria ver. João, deixa-me aqui, e conduz o carro para casa. Desejo falar ao Irmão Martim.
- Si, senhor - concordou sorridente o índio.
O Irmão dominicano vinha andando vagarosamente, a cabeça inclinada e movendo os lábios em oração. Vestia um hábito branco remendado sob um velho capote preto. Do braço pendia-lhe um cesto de mantimentos. Um cãozinho castanho, a cauda ereta, trotava-lhe satisfeito no encalço.
- Espere um instante, Martim!
O religioso virou-se e olhou.
- Bom dia, Excelência. Que as bênçãos desta santa Páscoa permaneçam convosco para sempre.
D. Gonçalo estendia-lhe nervosamente a mão.
- Irmão Martim, será que estes sinos estão dobrando pelo Padre João de Lorenzana? Terá o bom homem nos deixado?
Aos lábios do Irmão aflorou um sorriso.
- Estive com o Padre João esta manhã. Ele já não está doente.
- Não está mais doente? Mas não é possível! Semana passada ele estava às portas da morte.
- Ele se levantará amanhã.
Dom Gonçalo ficou estarrecido.
- Então os sinos estão tocando por outra pessoa?
- Sim, Excelência. Acaba de chegar uma mensagem de Sana. O Arcebispo Turíbio faleceu lá há quatro dias.
- Não pode ser...
- Expirou na tarde de Quinta-feira Santa - informou calmamente o Irmão Martim. - Se bem que nenhuma mensagem pudesse ter chegado aqui, até hoje, muita gente já adivinhou a verdade. As Irmãs do convento da Encarnação, por exemplo, viram na quinta-feira passada uma cruz brilhante no céu. Nessa noite havia, também, um eclipse da lua. As Irmãs acreditam que estes eram sinais de que o Senhor chamara a si o Arcebispo.
Nesse ínterim o contínuo badalar dos sinos trouxera para a rua centenas de pessoas. E quando a noticia se espalhou de que o querido Arcebispo estava morto, muitos romperam em pranto. Que fariam sem o bondoso homem que, durante vinte e cinco anos, fora o seu pastor espiritual? que partilhara com os pobres todos os seus bens mundanos?
D. Gonçalo deixou escapar um suspiro.
- Estive em Callao toda a semana passada, Martim. Estava lá um navio chegado da Espanha e eu tinha ordem de inspecionar a carga. Mas não tenho escusa para minha ignorância a respeito do Arcebispo. Hoje de manhã minha filha Micaela tentou dizer-me alguma coisa sobre aqueles sinais no céu. Deus me perdoe! Eu estava muito apressado para ouvi-la.
Martim sorriu.
- Acho que sei por que, Excelência. Queríeis assistir à missa na igreja dos Dominicanos... Vejo, porém, que vos estou atrasando...
D. Gonçalo meneou a cabeça.
- Não, Martim. Tenho algum tempo ainda. Mas você... vai a algum lugar com este cesto de víveres?
O religioso concordou com um gesto da cabeça.
- Há na próxima rua uma pobre mulher leprosa. Quereis fazer uma oração para que ela melhore de saúde?
D. Gonçalo não pôde deixar de achar graça. O Irmão Martim tinha um jeito especial de fazer suas obras de caridade, e sempre pedia aos outros que rezassem por seus protegidos doentes. Quando estes apareciam subitamente curados, atribuía o fato extraordinário à bondade das outras pessoas. As vezes até dizia que o caso era devido a algum novo remédio.
- Está bem, rezarei uma oração, - replicou D. Gonçalo, - mas você, de fato, não me engana, Martim. Não terminamos justamente o santo período da Quaresma? Nesse tempo você há de ter feito boas obras bastantes para curar um exército de leprosos.
Martim meneou a cabeça.
- O' Excelência, por que zombar de mim? Eu sou apenas um pobre negro.
- Um pobre negro que se consome pelos outros. Deus o abençoe, Irmão Martim. E reze também por mim!
Com um rápido aperto de mão, despediu-se D. Gonçalo de seu santo amigo, e dirigiu-se apressado para a igreja dos dominicanos. Grande número de pessoas enchia o templo quando ele chegou, pois várias missas estavam sendo celebradas em sufrágio da alma do Arcebispo Turíbio. Um jovem Irmão leigo conduziu o recém-chegado a um dos primeiros assentos do lado da Epístola, junto à capela do Rosário. Aí o Padre Francisco da Vega, recentemente eleito Provincial dos dominicanos, celebrava a Missa.
D. Gonçalo dispôs-se para assistir com o devido zelo ao santo Sacrifício, mas uma distração veio logo perturba-lo, na figura de duas pessoas que lhe atraíram o olhar a pouca distância. A primeira era um rapaz de vinte e dois anos que, inquieto, mudava de posição a cada momento. A segunda era uma jovem de vinte anos, com a cabeça é os ombros envoltos numa mantilha de rendas, negra, numa atitude toda absorta nos movimentos do padre no altar.
- Aquela é Rosa Flores, - disse consigo D. Gonçalo. Eu havia de saber que ela traria Fernando à igreja num dia como este.
Embora o tentasse, D. Gonçalo achou cada vez mais difícil desviar o pensamento da jovem ajoelhada a poucos passos. Que tranquilidade a sua, seguindo os gestos do Padre Francisco da Vega a oferecer o Santo Sacrifício. No entanto ela devia estar fraca; justamente na véspera sua mulher lhe contara que Rosa mal provara algum alimento durante toda a quaresma.
"Ela estaria melhor num convento - pensou D. Gonçalo. - Provavelmente a única coisa que a impede é o fato de sua família ser pobre. Precisam do dinheiro que ela ganha na venda de flores. Além disso, Gaspar Flores é muito pobre para dar um dote à filha.
Subitamente uma ideia surgiu no espírito de D. Gonçalo. Não poderia ele ajudar? Como homem de alta influência política não lhe faltava dinheiro nem prestígio. Seria coisa de nonada para ele, providenciar para que Rosa tivesse um dote adequado e que a família recebesse uma espécie honrosa de auxílio.
"Vou fazê-lo! - disse a si mesmo. - Será realmente um prazer ajudar a menina".
E, enquanto considerava a parte que estava para representar na vida daquela jovem, D. Gonçalo sentiu-se inundado de uma grande onda de felicidade.
Mas quando ele oferecesse a Rosa a possibilidade de ser freira, qual dos cinco conventos de Lima ela escolheria? divagava ele. - Talvez o mais recente, o convento franciscano de Santa Clara, que o bom Arcebispo (Deus tenha sua alma!) fundara dois meses antes...
Quanto mais examinava a ideia, melhor lhe parecia. A vida de uma pobre clarissa era dura, mas Rosa com certeza sabia suportar o sofrimento. De acordo com sua esposa, raro era o dia em que a menina não tivesse algum sacrifício, aceito alegremente, a oferecer a Deus.
"Uma vez no convento - devaneava o bom homem ao menos uma tribulação lhe será poupada. A mãe pode querer casa-la com alguém que não seja digno dela... "
De repente soaram as campainhas, e D. Gonçalo olhou para o altar com ar de culpado. "Que se passa comigo? censurou-se. - Não prestei a menor atenção a esta Missa... "
Quando Rosa ficou mais crescida, obteve do pai permissão para cuidar de outras mulheres pobres e doentes. Uma sala especial foi reservada para essas infelizes. Recebeu o título de "Enfermaria", e em pouco tempo tornou-se um verdadeiro refúgio para as pobres doentes de Lima. Passados meses, vários índios começaram a propalar que tinham sido curados na "Enfermaria", especialmente depois de Rosa ter-lhes deixado segurar a estatuazinha do Menino Jesus. Aquela estatueta, insistiam eles, era milagrosa, e a própria Rosa referia-se a ela como ao "Doutorzinho".
Apesar da popularidade da filha entre os pobres de Lima, Maria de Oliva perdia às vezes a calma, quanto ao número de casos na "Enfermaria".
- Não haverá hospitais bastantes em Lima para que nossa casa se transforme também num? - perguntou certo dia a seu marido. - Há o de Sant'Ana, o de Santo André, o de São Lázaro! Com efeito, Gaspar, não vejo motivo por que Rosa há de manter aqui estas mulheres. Isto me põe doente!
Gaspar Flores limitou-se a sorrir. Raro era o dia em que, sua enérgica esposa não se queixasse de alguma coisa.
- Temos uma casa enorme, Maria. Certamente Rosa pode usar uma sala para sua caridade.
- Caridade! Gaspar, podes compreender isto no ano de 1606? Rosa tem vinte anos e ainda não se casou. Então não tenho direito de reclamar, vendo-a gastar horas e horas com doentes índios e negros? Por que não há de ela interessar-se em travar conhecimento com algum jovem distinto?
- Que adiantaria isso? Sabes o que ela nos disse.
A sombra de um desgosto toldou o rosto de Maria. Então Gaspar acreditava realmente que sua filha não poderia casar-se nunca, porque se prometera a Deus quando tinha cinco anos. Que absurdo! Nenhuma criança de cinco anos entende essas coisas.
- Se Rosa não se casar, eu morrerei de vergonha, declarou ela, decisivamente. - Todo mundo já começa a falar. Dizem que há qualquer coisa de errado nela, que ela é esquisita...
Gaspar soltou um suspiro. Rosa fora sempre diferente de seus outros filhos. Mesmo quando pequenina tinha coisas que o deixavam intrigado. As histórias que ela contava, por exemplo. Seria possível que o Menino Jesus lhe ensinara a ler e escrever? Que ela via o Anjo da Guarda? Que a Virgem Maria lhe aparecia frequentemente, enquanto ela trabalhava no jardim?
- Talvez seja a vontade de Deus que Rosa entre para um convento -disse ele, reatando a conversa. - Ao menos um de nossos onze filhos devemos à vida religiosa, Maria. Rosa está bem adequada, ao que me parece...
- A menina entra para o convento, mas só passando sobre o meu cadáver - anunciou amargada a esposa. - Durante anos tenho colocado todas as minhas esperanças num bom casamento para ela. Achas que vou me deixar agora desapontar?
Ora, pensou Gaspar, que adianta discutir? Nos vinte e nove anos de vida conjugal Maria fizera sempre o que queria.
Muitos havia em Lima, entretanto, que concordavam com Gaspar, declarando que Rosa possuía todas as qualidades de uma vocação religiosa. E por acaso, entre estes contava-se o tesoureiro da cidade, D. Gonçalo de Massa.
Natural de Burgos, na Espanha, D. Gonçalo chegara em Lima em 1601, e pouco depois travara conhecimento com a família Flores. A despeito de sua riqueza e alta linhagem, era um homem extremamente humilde, e seus servos negros e índios consideravam-se felizes de trabalhar em casa dele. Não ouvia D. Gonçalo cada manhã a missa numa das igrejas da cidade? E não dera ordens que nenhum pobre fosse jamais despedido de sua porta sem ter a fome saciada? E quanto a sua esposa, Dona Maria de Usátegui - onde se encontraria mais fiel cristã?
Na manhã em que Gaspar e sua mulher discutiam o futuro de Rosa, D. Gonçalo estava a caminho da igreja dos dominicanos para ouvir a missa. Era segunda-feira de Páscoa, uma brilhante e alegre manhã em fins de Março. Enquanto a carruagem rodava ligeira pelas ruas estreitas, D. Gonçalo ria-se, imaginando a recepção que o aguardava. Como sempre, era esperado por um bando de crianças, garotos esfarrapados, que sabiam que ele lhes trazia sempre, numa bolsa, um punhado de moedas de prata. Reboavam os gritos de boas-vindas, à aproximação do veículo, e ansiosos, os pequenos se precipitavam para o bom homem.
- Deus vos abençoe, meus amiguinhos - gritava ele, espalhando pelo ar uma chuva de moedas. - João, cuidado com os cavalos, não atropeles a criançada.
- Si, senhor - sorria o cocheiro índio.
Mas nem ele nem os cavalos precisavam de recomendação para andar com cautela. Já sabiam o que os esperava quando D. Gonçalo saía para a missa de manhã.
A carruagem chegara quase à igreja, quando os grandes sinos da catedral começaram subitamente a soar. O dobre solene e pesado anunciava que a morte viera para alguma pessoa importante. Logo outros sinos juntaram suas vozes à fúnebre música. De todos os cantos da cidade ressoavam as graves badaladas, num contraste flagrante com os repiques exultantes de Páscoa, no dia anterior.
D. Gonçalo quedou-se atento nas almofadas de sua bela viatura. "E' o meu velho amigo, o Padre João de Lorenzana, que morreu!", pensou ele. "Por que não fui vê-lo ontem como tinha planejado? Não me faltava tempo, ainda que fosse domingo de Páscoa".
Agora era tarde. E, enquanto a carruagem enveredava por uma rua lateral, D. Gonçalo murmurou uma ligeira prece pelo bondoso Padre dominicano, que fora seu confessor. Aí brilharam-lhe os olhos ao divisar uma figura familiar que descia a rua - o santo negro, Martim de Porres.
Martim fora a princípio um simples terceiro auxiliar em S. Domingos. Três anos antes, contudo, em obediência aos pedidos de seus superiores, ele se tornara Irmão leigo. A maior parte de seus vinte e sete anos ele os despendera ajudando os desafortunados de Lima. Pouco importava se os infelizes eram ricos ou pobres, espanhóis, índios ou negros. A caridade do Irmão Martim desconhecia limites. Um dia não se passava, em que as maravilhas operadas por suas orações faltassem a algum indivíduo ou lar da cidade.
- Deus seja louvado! - exclamou D. Gonçalo. - Justamente a pessoa que eu queria ver. João, deixa-me aqui, e conduz o carro para casa. Desejo falar ao Irmão Martim.
- Si, senhor - concordou sorridente o índio.
O Irmão dominicano vinha andando vagarosamente, a cabeça inclinada e movendo os lábios em oração. Vestia um hábito branco remendado sob um velho capote preto. Do braço pendia-lhe um cesto de mantimentos. Um cãozinho castanho, a cauda ereta, trotava-lhe satisfeito no encalço.
- Espere um instante, Martim!
O religioso virou-se e olhou.
- Bom dia, Excelência. Que as bênçãos desta santa Páscoa permaneçam convosco para sempre.
D. Gonçalo estendia-lhe nervosamente a mão.
- Irmão Martim, será que estes sinos estão dobrando pelo Padre João de Lorenzana? Terá o bom homem nos deixado?
Aos lábios do Irmão aflorou um sorriso.
- Estive com o Padre João esta manhã. Ele já não está doente.
- Não está mais doente? Mas não é possível! Semana passada ele estava às portas da morte.
- Ele se levantará amanhã.
Dom Gonçalo ficou estarrecido.
- Então os sinos estão tocando por outra pessoa?
- Sim, Excelência. Acaba de chegar uma mensagem de Sana. O Arcebispo Turíbio faleceu lá há quatro dias.
- Não pode ser...
- Expirou na tarde de Quinta-feira Santa - informou calmamente o Irmão Martim. - Se bem que nenhuma mensagem pudesse ter chegado aqui, até hoje, muita gente já adivinhou a verdade. As Irmãs do convento da Encarnação, por exemplo, viram na quinta-feira passada uma cruz brilhante no céu. Nessa noite havia, também, um eclipse da lua. As Irmãs acreditam que estes eram sinais de que o Senhor chamara a si o Arcebispo.
Nesse ínterim o contínuo badalar dos sinos trouxera para a rua centenas de pessoas. E quando a noticia se espalhou de que o querido Arcebispo estava morto, muitos romperam em pranto. Que fariam sem o bondoso homem que, durante vinte e cinco anos, fora o seu pastor espiritual? que partilhara com os pobres todos os seus bens mundanos?
D. Gonçalo deixou escapar um suspiro.
- Estive em Callao toda a semana passada, Martim. Estava lá um navio chegado da Espanha e eu tinha ordem de inspecionar a carga. Mas não tenho escusa para minha ignorância a respeito do Arcebispo. Hoje de manhã minha filha Micaela tentou dizer-me alguma coisa sobre aqueles sinais no céu. Deus me perdoe! Eu estava muito apressado para ouvi-la.
Martim sorriu.
- Acho que sei por que, Excelência. Queríeis assistir à missa na igreja dos Dominicanos... Vejo, porém, que vos estou atrasando...
D. Gonçalo meneou a cabeça.
- Não, Martim. Tenho algum tempo ainda. Mas você... vai a algum lugar com este cesto de víveres?
O religioso concordou com um gesto da cabeça.
- Há na próxima rua uma pobre mulher leprosa. Quereis fazer uma oração para que ela melhore de saúde?
D. Gonçalo não pôde deixar de achar graça. O Irmão Martim tinha um jeito especial de fazer suas obras de caridade, e sempre pedia aos outros que rezassem por seus protegidos doentes. Quando estes apareciam subitamente curados, atribuía o fato extraordinário à bondade das outras pessoas. As vezes até dizia que o caso era devido a algum novo remédio.
- Está bem, rezarei uma oração, - replicou D. Gonçalo, - mas você, de fato, não me engana, Martim. Não terminamos justamente o santo período da Quaresma? Nesse tempo você há de ter feito boas obras bastantes para curar um exército de leprosos.
Martim meneou a cabeça.
- O' Excelência, por que zombar de mim? Eu sou apenas um pobre negro.
- Um pobre negro que se consome pelos outros. Deus o abençoe, Irmão Martim. E reze também por mim!
Com um rápido aperto de mão, despediu-se D. Gonçalo de seu santo amigo, e dirigiu-se apressado para a igreja dos dominicanos. Grande número de pessoas enchia o templo quando ele chegou, pois várias missas estavam sendo celebradas em sufrágio da alma do Arcebispo Turíbio. Um jovem Irmão leigo conduziu o recém-chegado a um dos primeiros assentos do lado da Epístola, junto à capela do Rosário. Aí o Padre Francisco da Vega, recentemente eleito Provincial dos dominicanos, celebrava a Missa.
D. Gonçalo dispôs-se para assistir com o devido zelo ao santo Sacrifício, mas uma distração veio logo perturba-lo, na figura de duas pessoas que lhe atraíram o olhar a pouca distância. A primeira era um rapaz de vinte e dois anos que, inquieto, mudava de posição a cada momento. A segunda era uma jovem de vinte anos, com a cabeça é os ombros envoltos numa mantilha de rendas, negra, numa atitude toda absorta nos movimentos do padre no altar.
- Aquela é Rosa Flores, - disse consigo D. Gonçalo. Eu havia de saber que ela traria Fernando à igreja num dia como este.
Embora o tentasse, D. Gonçalo achou cada vez mais difícil desviar o pensamento da jovem ajoelhada a poucos passos. Que tranquilidade a sua, seguindo os gestos do Padre Francisco da Vega a oferecer o Santo Sacrifício. No entanto ela devia estar fraca; justamente na véspera sua mulher lhe contara que Rosa mal provara algum alimento durante toda a quaresma.
"Ela estaria melhor num convento - pensou D. Gonçalo. - Provavelmente a única coisa que a impede é o fato de sua família ser pobre. Precisam do dinheiro que ela ganha na venda de flores. Além disso, Gaspar Flores é muito pobre para dar um dote à filha.
Subitamente uma ideia surgiu no espírito de D. Gonçalo. Não poderia ele ajudar? Como homem de alta influência política não lhe faltava dinheiro nem prestígio. Seria coisa de nonada para ele, providenciar para que Rosa tivesse um dote adequado e que a família recebesse uma espécie honrosa de auxílio.
"Vou fazê-lo! - disse a si mesmo. - Será realmente um prazer ajudar a menina".
E, enquanto considerava a parte que estava para representar na vida daquela jovem, D. Gonçalo sentiu-se inundado de uma grande onda de felicidade.
Mas quando ele oferecesse a Rosa a possibilidade de ser freira, qual dos cinco conventos de Lima ela escolheria? divagava ele. - Talvez o mais recente, o convento franciscano de Santa Clara, que o bom Arcebispo (Deus tenha sua alma!) fundara dois meses antes...
Quanto mais examinava a ideia, melhor lhe parecia. A vida de uma pobre clarissa era dura, mas Rosa com certeza sabia suportar o sofrimento. De acordo com sua esposa, raro era o dia em que a menina não tivesse algum sacrifício, aceito alegremente, a oferecer a Deus.
"Uma vez no convento - devaneava o bom homem ao menos uma tribulação lhe será poupada. A mãe pode querer casa-la com alguém que não seja digno dela... "
De repente soaram as campainhas, e D. Gonçalo olhou para o altar com ar de culpado. "Que se passa comigo? censurou-se. - Não prestei a menor atenção a esta Missa... "
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