9 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

I. O QUE HÁ EM UM NOME?

Era um dia de Julho na cidade de Lima. O sol escondia-se atrás do espesso lençol de névoa que cobre geralmente o litoral do Peru e do Chile, de Junho a Setembro. Maria de Oliva Flores arrepiou-se toda ao sair para o vasto jardim nos fundos de sua casa. Dias como aquele, sem o brilho do sol, não lhe agradavam. O ar estava pesado e úmido e ela se sentia sonolenta o dia todo.
- Mariana! Você está aí?
Do outro lado do jardim, fora do alcance da vista, dentre as árvores e as flores, veio uma voz de menina.
- Si, senhora. Estou com Isabelinha.
Maria de Oliva enveredou por uma estreita passagem, curvando a cabeça ao passar sob uma copada figueira. Já devia saber onde estavam.
Depois do lanche, Mariana, a criadinha indígena, ia sempre para aquele sítio com a pequerrucha da família Flores. Desde os três meses de idade, Isabel se tornara definitivamente a favorita de Mariana. Maria apressou os passos ao avistar Mariana sentada ao lado do berço da criança. Com um sorriso de orgulho a iluminar-lhe o rosto, ela afastou a coberta rendada e contemplou a filhinha.
- Mariana, já tive muitos filhos, mas creio que Isabel é o mais lindo de todos. Que lindos cabelos negros, e que olhos! E estas facezinhas tão rosadas!...
A indiazinha sorriu e seus dentes brancos fulguraram no bronzeado da face.
- Isabel parece uma flor, senhora. É tão, boazinha! Nunca vi bebê tão amável.
- Parece uma flor, Mariana? Que flor?
- Uma rosa, senhora. Uma linda rosa. Olhe agora mesmo para ela, está sorrindo para nós como se compreendesse o que estamos dizendo.
Maria de Oliva quedou um momento. Aquela criança nascera há três meses, a 30 de Abril, festa de S. Catarina de Sena. A 25 de Maio fora batizada pelo padre Antônio Polanco, na igreja de S. Sebastião, e recebera o nome de Isabel, para agradar a avó, Isabel de Herrera, mãe de Maria Oliva. Mas conviria esse nome realmente à criança? Não seria melhor chamá-la Rosa, conforme a flor a que tanto se assemelhava?
Mariana vivia atarefada. A família Flores não era abastada, e, com vários filhos a alimentar e vestir, Gaspar Flores só podia manter uma criada. E isto, para Mariana, significava pouco tempo de folga. Para ela, isso era o menos e agora que a Isabelinha viera, era mesmo bom fazer parte da família Flores.
- Quando este bebê crescer, será a moça mais bonita de Lima, - disse Mariana. - Ela nos trará felicidade.
- Podemos aproveitar isso, - suspirou Maria. - As vezes é uma luta bem difícil chegar ao fim. Esperemos que Rosa despose um homem rico.
- Rosa, senhora?
- Isso mesmo. Não vou mais chamá-la Isabel. Rosa lhe calha muito melhor. Estou certa de que a avó não se há de importar se mudarmos o nome.
Isabel Herrera, no entanto, importou-se. Seu orgulho fora extremamente lisonjeado, quando Maria batizara assim a linda filhinha, e ela recusou-se a ouvir falar em mudança.
- Ela foi batizada Isabel, Maria. Por que você quer agora alterar as coisas?
- Porque eu acho que o nome de Rosa lhe vai muito melhor. Mamãe, por favor, não oponha dificuldades!
Isabel Herrera tinha um gênio inflamável.
- Dificuldades? Que está você dizendo? O nome da menina é Isabel, e pronto.
- E' Rosa!
- E' Isabel!
- Rosa, estou lhe dizendo!
- Isabel!
Às vezes Gaspar Flores perdia a paciência com sua mulher e sua sogra.
- Chamem a criança como quiserem - implorava mas deixem um homem ter um pouco de paz em sua própria casa. Por favor!
Passou-se um ano, passaram-se dois, quatro e ainda a menina Flores continuava o centro de amarga contenda.
"E' na verdade muita tolice - diziam os vizinhos. Esta pobre criança tem receio de responder quando a chamam Rosa porque desagrada à avó. E não sabe o que fazer quando alguém a chama Isabel, porque então é a mãe que fica zangada. Por que o Gaspar não impõe sua autoridade?"
Mas Gaspar era impotente. Pouco podia fazer com sua esposa, e muito menos com a sogra.
- Deus nos acuda, - implorava ele muitas vezes.
Maria de Oliva era dada a súbitos impulsos de energia, e um dia resolveu ensinar a menina a ler e escrever.
- Rosa, estás quase com cinco anos. Eu acho que podias aprender o alfabeto. Olha - esta letra é A. Esta aqui é B. E aqui está o C. E' muito simples.
Rosa achou uma folha de papel e uns pedaços de giz de cor. Ia ser muito bom! Bernardina, a irmã mais velha, sabia tudo a respeito da leitura e escrita. O mesmo se podia dizer de Joana, de André, de Antônio e de Mateus. Até o Fernando de sete anos sabia escrever seu nome muito bem. Talvez, pensou Rosa, ela pudesse pegar os irmãos e irmãs se trabalhasse com afinco.
Entretanto, depois de meia hora a copiar letras, os dedos de Rosa começaram a ficar duros.
- Estás cansada e eu também - decidiu Maria Oliva. - Amanhã teremos outra lição. Agora quero que me prometas uma coisa.
- Sim, mamãe!
- Não vais atender a nenhum outro nome senão Rosa. Não... não importa que tua avó fique aborrecida. Teu nome é Rosa Flores e nenhum outro. Compreendeste?
Rosa acenou com a cabeça. A discórdia por causa de seu nome sempre a entristecera. Detestava ver as pessoas questionarem, especialmente sua mãe e sua avó. Desde que podia lembrar-se, entretanto, tinha sempre havido discussões entre as duas. Mesmo apesar de Maria insistir em ter tido certa vez uma visão, na qual lhe aparecera uma linda rosa escarlate sobre o berço de Rosa, Isabel Herrera não lhe dava crédito.
- Essa rosa era um sinal do Céu, ordenando-me que mudasse o nome da menina - dizia Maria Oliva. - Estou absolutamente convencida disso.
- Um sinal do céu, com efeito! - exclamava a velha senhora. - Não foi mais que produto da sua imaginação!
Em breve Maria cansou-se de ensinar sua filha a ler e escrever. Não tinha muita paciência, nem mesmo nas melhores ocasiões. E ninguém havia que se interessasse pelo grande desejo de aprender que a criança demonstrava.
- Você é apenas uma menininha - consolou-a um dia Mariana. - Há muito tempo para aprender leitura e escrita. Pelo que se aproveita, a gente pode ser bem feliz sem saber nenhuma das duas coisas. Só existe uma coisa realmente importante.
- O quê? - perguntou Rosa, interessada.
- Saber o que é bom e fazê-lo. Você nunca terá verdadeira dificuldade se se lembrar disto, meu bem.
As palavras de Mariana agradaram a Rosa e frequentemente revolvia-as na mente. Deus era bom. Quanto mais alguém pensava nele, tanto mais chegava a conhecê-lo. Depois disto, ser bom e fazer o bem era a coisa mais simples do mundo. Contudo seria bonito saber algumas coisas de modo a ser útil às outras pessoas.
- Vou rezar - disse a si mesma a menina. - Já que ninguém tem tempo de me ensinar, vou pedir a Deus que me ensine. Ele pode fazer tudo, não pode?
Maria Oliva possuía em seu quarto uma imagem do Menino Jesus. Conforme o costume no Peru, a estatueta tinha um vestido próprio, de veludo vermelho orlado de ouro. Todos os dias Rosa ajoelhava-se diante da imagem e dizia uma oração.
"Senhor, ajudai-me a conhecer-vos e amar-vos" - rezava ela, fervorosamente. - E, por favor, ensinai-me a ler e escrever".
Maria de Oliva nada sabia dessas oraçõezinhas de Rosa. Múltiplos afazeres a absorviam na direção daquela casa enorme, e às vezes o trabalho deixava-a fatigada e amargurada.
"Não será sempre assim - pensava ela. - Algum dia a criança se há de casar, talvez muito bem. Então poderei fazer as coisas com mais sossego".
Uma manhã estava Maria amassando o pão. A cozinha estava quente e enfumaçada e o que ela não sentia era disposição para conversar.
- Não me amoles agora - disse, ao ver Rosa escancarar a porta. Vai brincar com Fernando até à hora do jantar.
- Mas, mamãe, a senhora não quer saber duma coisa maravilhosa? Eu sei ler e escrever!
Maria de Oliva bateu a enorme montanha de massa em sua frente.
- Não deves andar inventando histórias - ralhou. Já não és um bebê, e deves saber que contar mentira é pecado.
- Não estou contando mentira, mamãe. Eu sei ler e escrever. E' sério, de verdade. Olhei
Maria deu uma olhadela ao papel que Rosa lhe estendia. Estava coberto de palavras, claramente escritas com letra grande e redonda. Para uma criança de cinco anos, a letra era muito boa.
- Alguém andou te ajudando, - disse ela um pouco ríspida. - Teu pai ou tua avó.
Rosa sacudiu a cabeça:
- Ninguém me ajudou, mamãe. Só o pequeno Menino Jesus. A senhora está sempre tão ocupada e eu não queria aborrecê-la, então pedi a ele para me ajudar. E ele ajudou.
Um pouco do sangue fugiu do rosto aquecido de Maria.
- Vai buscar-me um livro. - ordenou severamente. Qualquer livro. Veremos já se estás dizendo a verdade.
Em poucos minutos Rosa estava de volta com um enorme volume verde.
- Olhe, mamãe, há quatro palavras escritas em letras de ouro na capa. Posso ler todas elas.
Maria de Oliva olhou. Se esta sua filha estava dizendo mesmo a verdade...
- Bem, quais são estas quatro palavras?
Rosa sorriu. Era um dia esplêndido aquele, de que ela se lembraria enquanto vivesse. As quatro palavras douradas da capa do livro verde eram SANTA CATARINA DE SENA.
Dentro do livro havia muitas outras palavras, contando a história e a vida da grande santa italiana, cuja festa se celebrava no dia em que Rosa nascera. E ela sabia ler todas aquelas palavras.

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