27 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

III. CONVALESCENÇA DOLOROSA

A morte tinha passado pela casa de Loiola: D. Beltrão de Yáñez deixara de existir. D. Martim Garcia, seu primogênito tornara-se chefe da família, abandonara a corte e o serviço no exército, casara-se e vivia retirado no lato do Loiola. Desde a tomada de Pamplona, enviava todos dias um mensageiro a informar-se de Inácio, sabia que o jovem herói lhe seria entregue logo que os homens da ciência julgassem em estado de ser transportado e contava impacientemente os dias.
Inácio chegou enfim. Os médicos, que o esperavam no castelo declararam, depois de lhe terem examinado cuidadosamente a perna direita, da qual sofria muito, que ela fora mal curada.
- Deixando-a assim, - acrescentaram eles - o Sr. comandante sofrerá sempre dela e ficará defeituoso - E que é necessário fazer para evitar essa desgraça? - perguntou Inácio.
- É necessário quebrar o calo já formado, quebrar a perna de novo, unir as partes do osso e depois aplicar o aparelho.
- Pois bem, - respondeu o valente guerreiro - quebrem-na já; não quero ficar disforme.
Meteram mãos à obra. Inácio suportou esta longa e dolorosa operação sem deixar escapar uma só queixa; mas no dia seguinte sobrevieram-lhe uma febre ardente e sofrimentos do estômago que nada pôde acalmar. A doença fez progressos alarmantes; Inácio compreendeu-o.
- Doutor, - disse ele ao médico - sinto-me muito mal, quero morrer como fidalgo cristão; que pensa do meu estado?
- Senhor... Penso que na idade de V. Ex.a deve sempre esperar-se a cura.
O doente não interrogou mais o doutor e preparou-se para a morte. No dia 28 de junho, D. Garcia, aterrado com o enfraquecimento de seu irmão, comunicou ao médico as suas apreensões
- Ah! senhor, - lhe respondeu o doutor - é infelizmente verdade que não tenho esperança alguma!... A não sobrevir uma crise favorável, o que não espero, o Sr. comandante não passará da noite próxima.
- Hoje é a véspera dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, - replicou D. Garcia enxugando as lágrimas, que, a seu pesar, lhe banhavam as faces; - oremos para que nô-lo conservem! D. Ínigo compôs, no ano passado, um poema em honra de S. Pedro. Quem sabe se o príncipe dos Apóstolos lhe será propício em recordação desta homenagem?
Inácio também sentia a morte aproximar-se; pediu e recebeu os últimos sacramentos na tarde desse mesmo dia, no meio das lágrimas e dos soluços de sua família e das pessoas que o estimavam. Pela meia-noite, adormeceu placidamente, com grande admiração daqueles que esperavam o seu derradeiro suspiro, e viu em sonho o Apóstolo S. Pedro colocar a sua mão sobre ele e curá-lo. Quando despertou, todo o perigo tinha desaparecido; poucos dias depois, a saúde e as forças voltaram-lhe. Levantou-se o aparelho da perna esquerda... Viu-se então que as partes do osso partido se tinham deslocado, estavam disjuntas, uma sobre a outra, formavam uma saliência, os nervos se tinham estendido a todo o comprimento do membro, e, enfim, essa perna ficara mais curta que a outra. Tal descoberta consternou todos os corações.
O belo Inácio de Loiola, um dos senhores da corte considerados como mais elegantes, aquele cujas homenagens eram mais graciosamente acolhidas pelas damas da rainha e pelas próprias princesas; esse brilhante cortesão, tão elogiado e tão procurado, era, agora apenas um homem disforme e coxo.
Inácio, depois de tantos triunfos, não pôde aceitar esta disformidade antes de tentar todos os meios para a fazer desaparecer:
- Não quero esta saliência acima do joelho, disse aos cirurgiões. Que espécie de bota poderia eu calçar assim? Não quero. Façam uma abertura suficiente para pôr o osso a descoberto e arranquem toda a protuberância.
- Senhor, - responderam os cirurgiões - V. Ex.a não pode suportar tais sofrimentos. Seria necessário serrar o osso!
-Pois bem, serre-se!
Mas, senhor, todos os sofrimentos que V. Ex.a sofreu nas operações precedentes, não são nada em comparação desses.
- Isso é comigo; convosco é tirar-me este aleijão.
Inácio pronunciou estas últimas palavras num tom tão imperativo que os médicos não ousaram replicar. E acrescentou:
- Mandem fazer uma máquina que possa forçar este membro encolhido a retomar o seu comprimento natural; não quero ficar coxo.
- Senhor, admiro a coragem de V. Ex.a - disse-lhe o seu médico ; - porque o que me pede é um instrumento de martírio, é um suplício real! Por Deus, reflita V. Ex.a...
- Custe o que custar, não quero ficar disforme nem enfermo. Tome as suas medidas; quanto a mim, estou pronto.
D. Garcia advertido pelos cirurgiões da resolução de Inácio, procurou, mas em vão, fazê-lo mudar de parecer:
- Meu senhor e irmão, - lhe respondeu energicamente o jovem cortesão - permita-me que lhe diga, com todo o respeito devido ao chefe da casa, que não é aos trinta anos que se renuncia facilmente à corte, à guerra, a tudo o que constitui o prazer e a glória da vida.
- Podeis viver feliz conosco, meu caro Ínigo.
- Na minha idade? Não, senhor; tenho apego aos hábitos que tomei. Ainda que as torturas com que me ameaçam fossem mil vezes mais dolorosas, não hesitaria em submeter-me a elas. Que é a dor comparada com todas estas desvantagens?
Foram forçados a ceder. Estando feitos todos os preparativos, quiseram ligar o paciente para operar aquela perna, cuja saliência devia desaparecer.
- Ligar-me? - exclamou o corajoso guerreiro - ligar-me como um louco ou uma criança? Não, não, fiquem tranquilos; não me mexerei.
No momento de fazer a primeira incisão, o operador empalideceu, porque sabia o que Inácio ia sofrer.
- Coragem, doutor! - lhe disse o nosso herói; faça de conta que está a operar um cadáver.
A operação foi longa e é fácil compreender quanto seria dolorosa. Inácio não soltou um só grito, não se queixou, não empalideceu!
- Que admirável coragem! - disse-lhe seu irmão quando tudo estava terminado; - vistes serrar esse osso como se ele fosse de outra pessoa. Pergunto a mim mesmo se eu não sofri mais que vós.
- Tenho tanto empenho em não ficar defeituoso! respondeu-lhe. Como poderia, sem fazer a operação, trazer as botas que são de uso na corte? Era necessário fazer este sacrifício à elegância.
Curado desta operação, e tendo a chaga cicatrizada, entregou-se ao suplício da máquina de ferro, destinada a distender-lhe a perna; devia ser torturado daquele modo durante alguns meses, sem outra ocupação que a dos seus sofrimentos e sem outra distração que as conversas da família. Inácio pensava nos prazeres da corte e sonhava com a sua princesa, pela qual, sobretudo, ele se impunha dores tão cruéis; ao menos queria persuadir-se disso, e pensava em descrever-lhe em versos pomposos tudo o que tinha sofrido para evitar a desgraça de lhe desagradar. Todavia, devemos confessá-lo, Inácio temia mais ainda a desgraça de não tornar a ser um objeto de preferência na corte, e de deixar de ser apontado pela sua elegância e porte, bem como pela sua beleza.
O tempo corria e o aborrecimento apoderava-se dele apesar dos sonhos da sua imaginação. Os romances de cavalaria, então muito em voga em Espanha, pareceram-lhe dever preencher o vácuo que se fazia sentir nas suas longas horas de isolamento e de reclusão. Divertiam-no as imaginárias aventuras de cavaleiros andantes e as suas impossíveis proezas. Esta ideia agrada-lhe; ordena que lhe tragam um desses romances. Depois de alguns instantes, o seu criado de quarto volta: -Senhor aqui está tudo o que pude encontrar. Como! Peço-te um romance e trazes-me livros de devoção? Estás doido?
- Senhor, não há outros.
- Vai do meu mando pedir a D. Garcia romances de cavalaria.
-Já fui, Senhor; D. Garcia não tem romances; S. Ex.a não tem outros livros senão estes.
Estes livros eram: a Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo frade Ludolfo, e a Flor dos Santos, ambos em língua castelhana.
- Pois bem, - disse o jovem mundano - deixa-me esses livros.
Sobrevém-lhe o tédio e o espírito de Inácio tem necessidade de alimento; à falta de melhor, aceita a leitura que, por certo, não teria escolhido.
- Ah!- dizia ele muitas vezes desde que estava de cama -, S. Pedro curou-me miraculosamente, não me resta a menor dúvida, a ele devo a vida; mas porque me deixaria coxo? Porque me obrigaria a sofrer um tratamento que me retém tanto tempo nesta imobilidade? Não compreendo! De que serviria a vida, se eu não encontrasse de novo as minhas regalias pessoais?... Antes a morte...
Assim raciocinava o homem da corte, vaidoso da sua pessoa, soberbo dos seus triunfos na sociedade, orgulhoso por natureza, ardente e generoso pelo coração, dotado das mais brilhantes faculdades, e pregado, pela vontade divina, no leito de dor, onde julgava não estar preso senão pela vontade própria, com o único fim de satisfazer a vaidade.

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