XII. O ORGULHO DO PERU
A madrugada veio encontrar as ruas de Lima repletas de gente que se apressava para a casa de Dom Gonçalo. A notícia da morte de Rosa espalhara-se como um incêndio e havia uma corrida ansiosa para conseguir relíquias. Entre os primeiros a chegar estava Alfonsa Serrano, íntima amiga da morta.
- Ontem à noite Rosa apareceu-me - declarou ela excitada. - Eu estava profundamente adormecida. De repente, pouco depois da meia noite, uma luz brilhante iluminou meu quarto. E no meio da luz vi Rosa, vestida como terceira dominicana, e brilhando como o sol. Ela disse-me que acabava de entrar no Paraíso.
O padre Alonso Velasquez, juntamente com outros visitantes, ouviu interessado o que Alfonsa contava. A moça fora uma das mais íntimas amigas de Rosa, e tinham feito uma combinação anos antes: aquela que morresse primeiro apareceria à outra, a fim de encorajá-la a continuar a vida de orações e boas obras.
- Parece que Rosa cumpriu a palavra, - disse sorrindo o padre. - Ela falecera poucos minutos antes de contar-lhe a respeito das belezas do Céu. Do mesmo modo apareceu também a várias outras pessoas, entre as quais, o doutor João del Castillo.
A manhã toda foi uma peregrinação em fila ao quartinho em que Rosa falecera, e, o que é mais estranho, ninguém se sentia triste. A visita da jovem morta, seu rosto mais belo do que jamais o tinham visto, enchia todos de alegria. Pairava no ar um estranho perfume, como de rosas e lírios recentemente colhidos, e que se sentia em toda a casa, mas especialmente junto do corpo.
- Não compreendo - disse Maria de Oliva ao padre Alonso. - Não vem, com certeza, daquela simples grinalda de flores que lhe pusemos sobre a cabeça!
- E' um milagre, senhora - replicou o sacerdote. - E' este o modo que Deus está escolhendo para patentear-nos a santidade de Rosa.
A medida que os homens passavam e a casa se apinhava de gente, Dona Maria era assediada de pedidos para que mostrasse o que pertencera à querida morta. Atendendo, pôs à vista dos visitantes a estatueta milagrosa do Menino Jesus, "O Doutorzinho", juntamente com o rosário, alguns quadros de santos e outros objetos. Havia também uma carta que Rosa escrevera a Dona Maria alguns anos atrás. Estava assinada "Rosa de Santa Maria", o nome tão querido à filha de Gaspar, e que ela tomara no dia em que se tornara terceira dominicana.
Ao olhar a carta, Maria de Oliva lembrava-se daquela noite em que encontrara sua filha desfalecendo de fome na celazinha do jardim. No momento quis mandar Mariana ao armazém próximo comprar chocolate e açúcar com que fazer uma bebida reconfortante, mas Rosa pediu que não o fizesse. Em poucos minutos, afirmava, uma criada da casa dos Massa chegaria com o chocolate quente, já preparado, pois ela pedira ao seu Anjo da guarda que avisasse Dona Maria do súbito ataque de fraqueza que a acometera.
"E assim aconteceu", pensava a mãe. "Daí a pouco, àquela hora da noite, bateram ao portão do jardim. Quando fui abri-lo, lá encontrei a criada com um bule de prata cheio de delicioso chocolate. No dia seguinte ela escreveu esta carta a Dona Maria, agradecendo a gentileza".
Muitas outras histórias contavam-se dos dons e virtudes de Rosa, durante as horas em que seu corpo esteve na casa de D. Gonçalo. Vários casos foram narrados por Mariana, a criada índia. Tanto ela como Fernando, agora soldado no Chile, tinham partilhado muitos segredos com a morta. Os rostos dos ouvintes consternavam-se ao ouvir Mariana descrever os heroicos sacrifícios de Rosa, inspirados no interesse pelos pecadores. Durante anos usara ela uma coroa de pregos debaixo do branco véu de terceira, até que o padre jesuíta João de Vilalobos, sabendo dessa desusada mortificação, ficou tão aflito que insistiu em que a maior parte das pontas fossem embotadas. Rosa usava também na cintura uma corrente, que ligara com um cadeado, atirando a chave no poço perto da porta dos fundos.
- Uma noite ela não podia mais suportar aquela penosa cadeia, - narrava Mariana. - Ela chorava e soluçava; e eu sabia que tinha de quebrar o cadeado. Mas como, sem despertar toda a família?
Os ouvintes estavam silenciosos, absorvidos na descrição de tão heroica generosidade, que as palavras da velha serva pintavam vivamente.
- Continue, Mariana, - disse o padre Alonso. - Que aconteceu?
- A bendita menina começou a rezar à Mãe do céu e a cadeia abriu-se por si, caindo-lhe aos pés.
A instâncias do padre João de Lorenzana, antigo provincial dos dominicanos, Maria continuou a relatar outros casos do heroismo de Rosa. Finalmente D. Gonçalo pediu permissão para falar.
- Eu sempre soube que Rosa era uma santa, padre João, Agora quer ter a bondade de olhar isto?
O sacerdote virou-se para pegar o papel que D. Gonçalo lhe apresentava. Era um documento assinado por Rosa no leito de morte, pedindo aos padres de S. Domingos que lhe concedessem uma esmola: ser enterrada dentro do claustro do seu convento.
- Estou certo que todas as Ordens religiosas em Lima desejariam possuir este santo corpo - apressou-se em explicar D. Gonçalo. - A fim de evitar dificuldades, eu disse a Rosa que seria um ato de humildade pedir ela a seus superiores na Ordem dominicana que lhe concedessem uma sepultura.
O padre João de Lorenzana examinou cuidadosamente o papel. Não havia dúvida quanto à autenticidade da assinatura de Rosa.
- São quase quatro horas, - disse ele. - Acho que seria melhor levar o corpo agora para S. Domingos. Há muita gente aglomerada aqui. Na igreja haveria mais espaço.
Assim, pela última vez, Rosa foi acompanhada pelas ruas de Lima. A multidão era tal, e tão ansiosa por obter relíquias, que os soldados do Vice-rei, que tinham estado de guarda à casa dos Massa, tiveram que abrir caminho para a procissão. Em toda parte - dos balcões, das janelas, do limiar das portas - homens, mulheres, tentavam uma última vista à santa filha de Gaspar. O ar ressoava de exclamações pedindo a bênção da jovem lá do seu lugar no Paraíso. Nem causou a menor estranheza que os seis homens que carregavam o esquife fossem membros da "Audiência", esse importantíssimo grupo de homens que assistiam o Vice-Rei no governo. Sabiam que nada era bom demais para "La Rosita", a Rosinha de todos, que se tornara o orgulho não só de Lima mas de todo o Peru.
Lentamente foi a procissão coleando pelas ruas em direção à igreja dos dominicanos. Desaparecera a distinção usual de classes e raças. Nobres espanhóis marchavam lado a lado com mendigos índios. Escravos negros acotovelavam ilustrados professores. Realmente, tão densa era a multidão que Bartolomeu Lobo Guerrero, sucessor de Turíbio como Arcebispo de Lima, vira-se impossibilitado de chegar à casa de D. Gonçalo para presidir a procissão. A carruagem teve de fazer uma volta e ele foi esperar o corpo na igreja.
Aí foram colocados os santos despojos, numa elevada plataforma perto do presbitério. Um pequeno espaço foi reservado para que os doentes pudessem aproximar-se e implorar a cura. Logo se espalhou a notícia de que o corpo estava quente e flexível, como se ainda conservasse vida. E um grito maravilhado levantou-se quando a capela do Rosário, onde Rosa tanto gostava de rezar, foi vista banhada duma luz gloriosa e sobrenatural.
"Outro milagre", pensou o padre Luís de Bilbao, confessor de Rosa durante catorze anos. "A própria Mãe de Deus presta homenagem à nossa amiguinha".
Devido ao costume peruano de fazer o enterro poucas horas depois da morte, aprestaram-se os preparativos para conduzir Rosa ao claustro do convento onde já se preparara a sepultura. Tal, porém, foi o protesto do povo que ainda não conseguira uma relíquia, que o Arcebispo consentiu em protelar o funeral. Seria realizado no dia seguinte, disse ele. Entretanto, o corpo permaneceria onde estava, de modo que todos pudessem venerá-lo com a devida devoção. Ficaria em exposição toda a noite na capela do noviciado.
Os planos do Arcebispo sofreriam, porém, uma mudança. Quando veio a madrugada, e o corpo voltou à igreja pública, o povo de Lima recusou separar-se de Rosa. Tão alto foi o coro de lacrimosas orações que os celebrantes do funeral mal se podiam ouvir. O Bispo de Guatemala, D. Pedro de Valência; nem podia crer no que via. Como se poderia realizar as cerimônias se continuasse aquele borborinho?
Finalmente veio outra ordem: o funeral seria adiado por mais vinte e quatro horas. A esta boa nova uma onda de alívio percorreu a multidão reunida na igreja. O povo gritava de júbilo. Havia agora uma oportunidade de conseguir um pedaço do branco hábito de lã que revestia o corpo da querida morta, ou mesmo uma das belas rosas que lhe rodeavam a fronte.
Com o perpassar das horas, a excitação atingia o máximo. Todo mundo sabia que vários inválidos tinham ficado curados ao tocar o santo corpo. Um deles, um rapaz negro de dom anos, estava especialmente em foco. Nascera com os pés tão aleijados que nunca lhe fora possível andar. O mais que podia era arrastar-se sobre os joelhos. Impelido por sua grande fé no poder da intercessão de Rosa junto de Deus, tentara uma vez e outra alcançar o elevado estrado em que jazia o corpo, e insinuara-se em baixo, atrás das dobras do negro estofo de veludo ricamente decorado. Nem rogos nem ameaças conseguiram afastá-lo de seu refúgio. Por fim, "La Rosita", ouviu-lhe as preces. Concedeu-lhe o uso normal dos pés, de modo que ele podia andar, correr, saltar como os outros meninos de sua idade.
- Olha o garoto agora! - dizia Dom Gonçalo à esposa. - Já viste tanta alegria no rosto de uma criança? Vê, está positivamente radiante. Está até ajudando outras pessoas a chegarem perto do corpo.
Dona Maria concordou. Ela nunca duvidara que Rosa era uma santa. Agora, todo mundo concordava com ela, e no intimo de seu coração cantou um comovido Te Deum.
Entretanto o Arcebispo Bartolomeu Lobo Guerrero afligia-se, pois as horas passavam. Procurou, por fim, o prior de S. Domingos.
- Quantas vezes já vestiu novo hábito no corpo? perguntou. - Quatro ou cinco?
- Seis vezes, excelência. Tem havido incontáveis pedidos de pedaços do hábito como relíquia. Muita gente traz até tesouras escondidas na manga e nem os soldados do Vice-rei conseguem impedi-las de se aproximarem do corpo.
O Arcebispo meneou a cabeça.
- Então temos de fazer um enterro secreto esta tarde, padre; durante a sesta. E' o único meio.
O prior compreendeu a sabedoria das palavras do Arcebispo. Se Rosa Flores não fosse logo sepultada, seu corpo corria o perigo de sofrer algum dano da multidão excitada.
- Um enterro secreto - repetiu, pensativo. - Perfeitamente, excelência. Vou providenciar para que tudo esteja preparado.
Ao meio dia a igreja dos dominicanos começou a esvaziar-se, e dai a pouco as portas podiam ser fechadas e aferrolhadas. Ninguém demonstrou surpresa, pois era costume descansar todo mundo do meio dia até às três da tarde. Durante estas horas de sesta pouca ou nenhuma atividade havia em qualquer parte. Igrejas e lojas fechavam-se e as persianas das casas eram descidas de modo a proporcionar no interior uma fresca penumbra.
Nesse dia, porém, não houve sesta em S. Domingos, nem os padres da comunidade foram ao jantar de costume. Ao invés, padres e irmãos leigos vieram em silenciosa procissão ao local em que jazia o corpo de Rosa. Enormes velas de cera bruxuleavam como sempre, e uma suave fragrância de flores se evolava pelo ar. Ainda uma vez enlevaram-se os corações dos que a contemplavam, à beleza desta jovem irmã em S. Domingos, que já estava morta havia trinta e seis horas.
- Bendito o dia em que vieste ao mundo! - pensou o padre João de Lorenzana. - Roga por nós, Rosinha, agora que estás no Céu!
Os que iam levar o esquife aproximaram-se do estrado para levantar a preciosa carga, e em seguida o cortejo passou da igreja para o jardim do claustro do convento. Nada mais se ouvia que o ruído dos rosários e os leves passos dos padres. Este último adeus a Rosa foi por necessidade um segredo, do contrário os cidadãos de Lima, sabendo o que se passava, teriam tentado invadir a igreja. Nada, porém, sucedeu; todos os corações se sentiam felizes, pois que a filha de Gaspar finalmente descansava. Uma jovem morrera, uma nova santa passeava nos jardins do Céu.
A madrugada veio encontrar as ruas de Lima repletas de gente que se apressava para a casa de Dom Gonçalo. A notícia da morte de Rosa espalhara-se como um incêndio e havia uma corrida ansiosa para conseguir relíquias. Entre os primeiros a chegar estava Alfonsa Serrano, íntima amiga da morta.
- Ontem à noite Rosa apareceu-me - declarou ela excitada. - Eu estava profundamente adormecida. De repente, pouco depois da meia noite, uma luz brilhante iluminou meu quarto. E no meio da luz vi Rosa, vestida como terceira dominicana, e brilhando como o sol. Ela disse-me que acabava de entrar no Paraíso.
O padre Alonso Velasquez, juntamente com outros visitantes, ouviu interessado o que Alfonsa contava. A moça fora uma das mais íntimas amigas de Rosa, e tinham feito uma combinação anos antes: aquela que morresse primeiro apareceria à outra, a fim de encorajá-la a continuar a vida de orações e boas obras.
- Parece que Rosa cumpriu a palavra, - disse sorrindo o padre. - Ela falecera poucos minutos antes de contar-lhe a respeito das belezas do Céu. Do mesmo modo apareceu também a várias outras pessoas, entre as quais, o doutor João del Castillo.
A manhã toda foi uma peregrinação em fila ao quartinho em que Rosa falecera, e, o que é mais estranho, ninguém se sentia triste. A visita da jovem morta, seu rosto mais belo do que jamais o tinham visto, enchia todos de alegria. Pairava no ar um estranho perfume, como de rosas e lírios recentemente colhidos, e que se sentia em toda a casa, mas especialmente junto do corpo.
- Não compreendo - disse Maria de Oliva ao padre Alonso. - Não vem, com certeza, daquela simples grinalda de flores que lhe pusemos sobre a cabeça!
- E' um milagre, senhora - replicou o sacerdote. - E' este o modo que Deus está escolhendo para patentear-nos a santidade de Rosa.
A medida que os homens passavam e a casa se apinhava de gente, Dona Maria era assediada de pedidos para que mostrasse o que pertencera à querida morta. Atendendo, pôs à vista dos visitantes a estatueta milagrosa do Menino Jesus, "O Doutorzinho", juntamente com o rosário, alguns quadros de santos e outros objetos. Havia também uma carta que Rosa escrevera a Dona Maria alguns anos atrás. Estava assinada "Rosa de Santa Maria", o nome tão querido à filha de Gaspar, e que ela tomara no dia em que se tornara terceira dominicana.
Ao olhar a carta, Maria de Oliva lembrava-se daquela noite em que encontrara sua filha desfalecendo de fome na celazinha do jardim. No momento quis mandar Mariana ao armazém próximo comprar chocolate e açúcar com que fazer uma bebida reconfortante, mas Rosa pediu que não o fizesse. Em poucos minutos, afirmava, uma criada da casa dos Massa chegaria com o chocolate quente, já preparado, pois ela pedira ao seu Anjo da guarda que avisasse Dona Maria do súbito ataque de fraqueza que a acometera.
"E assim aconteceu", pensava a mãe. "Daí a pouco, àquela hora da noite, bateram ao portão do jardim. Quando fui abri-lo, lá encontrei a criada com um bule de prata cheio de delicioso chocolate. No dia seguinte ela escreveu esta carta a Dona Maria, agradecendo a gentileza".
Muitas outras histórias contavam-se dos dons e virtudes de Rosa, durante as horas em que seu corpo esteve na casa de D. Gonçalo. Vários casos foram narrados por Mariana, a criada índia. Tanto ela como Fernando, agora soldado no Chile, tinham partilhado muitos segredos com a morta. Os rostos dos ouvintes consternavam-se ao ouvir Mariana descrever os heroicos sacrifícios de Rosa, inspirados no interesse pelos pecadores. Durante anos usara ela uma coroa de pregos debaixo do branco véu de terceira, até que o padre jesuíta João de Vilalobos, sabendo dessa desusada mortificação, ficou tão aflito que insistiu em que a maior parte das pontas fossem embotadas. Rosa usava também na cintura uma corrente, que ligara com um cadeado, atirando a chave no poço perto da porta dos fundos.
- Uma noite ela não podia mais suportar aquela penosa cadeia, - narrava Mariana. - Ela chorava e soluçava; e eu sabia que tinha de quebrar o cadeado. Mas como, sem despertar toda a família?
Os ouvintes estavam silenciosos, absorvidos na descrição de tão heroica generosidade, que as palavras da velha serva pintavam vivamente.
- Continue, Mariana, - disse o padre Alonso. - Que aconteceu?
- A bendita menina começou a rezar à Mãe do céu e a cadeia abriu-se por si, caindo-lhe aos pés.
A instâncias do padre João de Lorenzana, antigo provincial dos dominicanos, Maria continuou a relatar outros casos do heroismo de Rosa. Finalmente D. Gonçalo pediu permissão para falar.
- Eu sempre soube que Rosa era uma santa, padre João, Agora quer ter a bondade de olhar isto?
O sacerdote virou-se para pegar o papel que D. Gonçalo lhe apresentava. Era um documento assinado por Rosa no leito de morte, pedindo aos padres de S. Domingos que lhe concedessem uma esmola: ser enterrada dentro do claustro do seu convento.
- Estou certo que todas as Ordens religiosas em Lima desejariam possuir este santo corpo - apressou-se em explicar D. Gonçalo. - A fim de evitar dificuldades, eu disse a Rosa que seria um ato de humildade pedir ela a seus superiores na Ordem dominicana que lhe concedessem uma sepultura.
O padre João de Lorenzana examinou cuidadosamente o papel. Não havia dúvida quanto à autenticidade da assinatura de Rosa.
- São quase quatro horas, - disse ele. - Acho que seria melhor levar o corpo agora para S. Domingos. Há muita gente aglomerada aqui. Na igreja haveria mais espaço.
Assim, pela última vez, Rosa foi acompanhada pelas ruas de Lima. A multidão era tal, e tão ansiosa por obter relíquias, que os soldados do Vice-rei, que tinham estado de guarda à casa dos Massa, tiveram que abrir caminho para a procissão. Em toda parte - dos balcões, das janelas, do limiar das portas - homens, mulheres, tentavam uma última vista à santa filha de Gaspar. O ar ressoava de exclamações pedindo a bênção da jovem lá do seu lugar no Paraíso. Nem causou a menor estranheza que os seis homens que carregavam o esquife fossem membros da "Audiência", esse importantíssimo grupo de homens que assistiam o Vice-Rei no governo. Sabiam que nada era bom demais para "La Rosita", a Rosinha de todos, que se tornara o orgulho não só de Lima mas de todo o Peru.
Lentamente foi a procissão coleando pelas ruas em direção à igreja dos dominicanos. Desaparecera a distinção usual de classes e raças. Nobres espanhóis marchavam lado a lado com mendigos índios. Escravos negros acotovelavam ilustrados professores. Realmente, tão densa era a multidão que Bartolomeu Lobo Guerrero, sucessor de Turíbio como Arcebispo de Lima, vira-se impossibilitado de chegar à casa de D. Gonçalo para presidir a procissão. A carruagem teve de fazer uma volta e ele foi esperar o corpo na igreja.
Aí foram colocados os santos despojos, numa elevada plataforma perto do presbitério. Um pequeno espaço foi reservado para que os doentes pudessem aproximar-se e implorar a cura. Logo se espalhou a notícia de que o corpo estava quente e flexível, como se ainda conservasse vida. E um grito maravilhado levantou-se quando a capela do Rosário, onde Rosa tanto gostava de rezar, foi vista banhada duma luz gloriosa e sobrenatural.
"Outro milagre", pensou o padre Luís de Bilbao, confessor de Rosa durante catorze anos. "A própria Mãe de Deus presta homenagem à nossa amiguinha".
Devido ao costume peruano de fazer o enterro poucas horas depois da morte, aprestaram-se os preparativos para conduzir Rosa ao claustro do convento onde já se preparara a sepultura. Tal, porém, foi o protesto do povo que ainda não conseguira uma relíquia, que o Arcebispo consentiu em protelar o funeral. Seria realizado no dia seguinte, disse ele. Entretanto, o corpo permaneceria onde estava, de modo que todos pudessem venerá-lo com a devida devoção. Ficaria em exposição toda a noite na capela do noviciado.
Os planos do Arcebispo sofreriam, porém, uma mudança. Quando veio a madrugada, e o corpo voltou à igreja pública, o povo de Lima recusou separar-se de Rosa. Tão alto foi o coro de lacrimosas orações que os celebrantes do funeral mal se podiam ouvir. O Bispo de Guatemala, D. Pedro de Valência; nem podia crer no que via. Como se poderia realizar as cerimônias se continuasse aquele borborinho?
Finalmente veio outra ordem: o funeral seria adiado por mais vinte e quatro horas. A esta boa nova uma onda de alívio percorreu a multidão reunida na igreja. O povo gritava de júbilo. Havia agora uma oportunidade de conseguir um pedaço do branco hábito de lã que revestia o corpo da querida morta, ou mesmo uma das belas rosas que lhe rodeavam a fronte.
Com o perpassar das horas, a excitação atingia o máximo. Todo mundo sabia que vários inválidos tinham ficado curados ao tocar o santo corpo. Um deles, um rapaz negro de dom anos, estava especialmente em foco. Nascera com os pés tão aleijados que nunca lhe fora possível andar. O mais que podia era arrastar-se sobre os joelhos. Impelido por sua grande fé no poder da intercessão de Rosa junto de Deus, tentara uma vez e outra alcançar o elevado estrado em que jazia o corpo, e insinuara-se em baixo, atrás das dobras do negro estofo de veludo ricamente decorado. Nem rogos nem ameaças conseguiram afastá-lo de seu refúgio. Por fim, "La Rosita", ouviu-lhe as preces. Concedeu-lhe o uso normal dos pés, de modo que ele podia andar, correr, saltar como os outros meninos de sua idade.
- Olha o garoto agora! - dizia Dom Gonçalo à esposa. - Já viste tanta alegria no rosto de uma criança? Vê, está positivamente radiante. Está até ajudando outras pessoas a chegarem perto do corpo.
Dona Maria concordou. Ela nunca duvidara que Rosa era uma santa. Agora, todo mundo concordava com ela, e no intimo de seu coração cantou um comovido Te Deum.
Entretanto o Arcebispo Bartolomeu Lobo Guerrero afligia-se, pois as horas passavam. Procurou, por fim, o prior de S. Domingos.
- Quantas vezes já vestiu novo hábito no corpo? perguntou. - Quatro ou cinco?
- Seis vezes, excelência. Tem havido incontáveis pedidos de pedaços do hábito como relíquia. Muita gente traz até tesouras escondidas na manga e nem os soldados do Vice-rei conseguem impedi-las de se aproximarem do corpo.
O Arcebispo meneou a cabeça.
- Então temos de fazer um enterro secreto esta tarde, padre; durante a sesta. E' o único meio.
O prior compreendeu a sabedoria das palavras do Arcebispo. Se Rosa Flores não fosse logo sepultada, seu corpo corria o perigo de sofrer algum dano da multidão excitada.
- Um enterro secreto - repetiu, pensativo. - Perfeitamente, excelência. Vou providenciar para que tudo esteja preparado.
Ao meio dia a igreja dos dominicanos começou a esvaziar-se, e dai a pouco as portas podiam ser fechadas e aferrolhadas. Ninguém demonstrou surpresa, pois era costume descansar todo mundo do meio dia até às três da tarde. Durante estas horas de sesta pouca ou nenhuma atividade havia em qualquer parte. Igrejas e lojas fechavam-se e as persianas das casas eram descidas de modo a proporcionar no interior uma fresca penumbra.
Nesse dia, porém, não houve sesta em S. Domingos, nem os padres da comunidade foram ao jantar de costume. Ao invés, padres e irmãos leigos vieram em silenciosa procissão ao local em que jazia o corpo de Rosa. Enormes velas de cera bruxuleavam como sempre, e uma suave fragrância de flores se evolava pelo ar. Ainda uma vez enlevaram-se os corações dos que a contemplavam, à beleza desta jovem irmã em S. Domingos, que já estava morta havia trinta e seis horas.
- Bendito o dia em que vieste ao mundo! - pensou o padre João de Lorenzana. - Roga por nós, Rosinha, agora que estás no Céu!
Os que iam levar o esquife aproximaram-se do estrado para levantar a preciosa carga, e em seguida o cortejo passou da igreja para o jardim do claustro do convento. Nada mais se ouvia que o ruído dos rosários e os leves passos dos padres. Este último adeus a Rosa foi por necessidade um segredo, do contrário os cidadãos de Lima, sabendo o que se passava, teriam tentado invadir a igreja. Nada, porém, sucedeu; todos os corações se sentiam felizes, pois que a filha de Gaspar finalmente descansava. Uma jovem morrera, uma nova santa passeava nos jardins do Céu.
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