IV. OUTRA VISITA
O Doutor João ouviu com interesse a sua amiguinha; nada, porém, do que ela dizia lhe mudaria a opinião. Salvar almas era sem dúvida. uma belíssima obra, mas meninas de onze anos precisam bastante alimento e, pelo menos, dez horas de sono cada noite.
- Você me faz lembrar alguém que encontrei há pouco tempo, - disse ele. -E' um rapazinho mais velho do que você, tem mais ou menos dezoito anos, suponho. Mas o caso é que ele tem a mesma ideia. Deseja salvar as almas dos pecadores: índios, pretos, gente branca, todo mundo.
Rosa arregalou os olhos negros.
- Um menino? - murmurou. - Eu não o conheço. Conheço?
O Doutor meneou a cabeça.
- Provavelmente não. Ele se chama Martim de Porres. Atualmente seu pai é governador do Panamá, mas a mãe dele é uma pobre preta, e mora com Dona Francisca Velez, perto da igreja de S. Lázaro.
Rosa ficou quieta. Martim! Ela tinha ouvido esse nome em algum lugar. Não tinha um dos padres da igreja dominicana?...
- Martim costumava servir de assistente ao meu velho amigo, o Dr. Marcelo de Rivero - continuou o Doutor João. Estes três últimos anos, entretanto, ele esteve ajudando os padres dominicanos em seu convento. Ele é apenas um auxiliar terceiro, nem chega a ser Irmão leigo, mas muito útil também, pelo que se conta.
Rosa fez um sinal de aprovação.
- Espero que ele salve muitas almas - disse suavemente. - Doutor João, o mundo precisa de tanta oração! Se o senhor tivesse visto aqueles pobres índios pagãos em Quivi...
O médico levantou-se do rústico banco de pedra.
- Esses índios devem ter impressionado profundamente a você, minha menina. Mas não pode estar a pensar neles todo o tempo. Olhe... trouxe-lhe um presentinho. Tinha que chegar-lhe às mãos um destes dias.
O presente era um grande pacote que o Dr. João trouxera para o jardim. Rosa olhava ansiosa, enquanto ele desembrulhava.
- E' uma roseirinha! - exclamou. - O' Doutor! E' branca?... quero dizer, dá rosas brancas'!'
O Doutor sorriu.
- Assim me disseram. Uma amiga trouxe-ma ontem, de sua terra em Limatambo. Imaginei que você gostasse de possuí-la, pois vejo que está no negócio de flores.
Rosa exultou. O Doutor era mesmo o mais amável dos homens. Fora sempre um bom amigo para ela, até naquele dia terrível em que lhe cortara a unha do polegar porque estava se arruinando. Ela tinha então só três anos, mas a lembrança daquela faca afiada estava ainda fresca em sua memória.
- Uma roseira branca era mesmo o que eu queria disse ela radiante. -Mariana sempre diz que as damas ricas mandam seus criados escolher rosas brancas no mercado. Muito obrigada, Doutor João.
O médico sorriu.
- Não há de que, minha menina. E agora tudo que eu desejo de você é que me prometa cuidar de sua saúde. Promete? Vai deixar de pensar tanto nos pecadores, e mais em você mesma?
Rosa riu francamente.
- Eu não fico doente, Doutor. Agora que eu tenho este jardim para cuidar, não há nem tempo para ficar doente. Além das flores, tenho as hortaliças e ervas para cuidar, e também as fruteiras. E' um bocado de trabalho. Mas sou tão feliz, Doutor João. Enfim encontrei um jeito de ser útil à família.
Quando, entretanto, ficou outra, vez sozinha, Rosa suspirou acabrunhada. Então a mamãe estava preocupada por causa dela, mamãe achava que ela passava muito tempo rezando.
"Não é", - disse consigo a menina. - "Ninguém pode rezar demais".
E ela sentou-se pensativa no banco de pedra. O sol inundava de luz e calor o jardim e as pombinhas arrulhavam satisfeitas, mas no coração de Rosa começou a brotar uma leve tristeza. Ainda se alguém da família compreendesse... Mas nenhum deles se incomodava muito com salvar almas.
E o que é pior: se bem que nada se dissera recentemente, Rosa sabia que o dinheiro proveniente da venda das flores era apenas o suficiente para saldar algumas contas. Dentro de cinco ou seis anos, portanto, esperava-se que ela fizesse algo, mais do que cultivar frutos e flores para vender em Lima: a expectativa era que ela se casasse com um espanhol portador de bom nome e sólida fortuna. Muitos havia então na cidade - rapazes cujos pais tinham deixado a Espanha em busca de riquezas nas minas dos Andes.
Lima borboleta preta e branca adejou levemente sobre a roseira a seus pés e Rosa esqueceu seus pesares. Que linda criatura, essa borboleta alvi-negra; cujas asas brilhantes como veludo cintilavam ao sol.
"Talvez um dia eu possa usar também um vestido preto e branco", - pensou. - "Esse menino de quem o Doutor João me falou - o Martim, ele deve usar uma roupa assim, se vive no convento dos dominicanos.
Mas uma menina não podia viver em S. Domingos - só padres dominicanos e irmãos leigos e auxiliares da ordem terceira como Martim.
"Além disso, eu, não quero ser freira", - pensou Rosa. - "O que eu desejo é viver aqui em casa e salvar almas, rezando".
Subitamente, quebrou-se o silêncio no jardim. Os passos apressados de Mariana ressoaram na aléia, acompanhados do ranger de suas sandálias vermelhas.
- Senhorita Rosa! Sua mãe quer que venha já para dentro. Há uma pessoa que quer vê-la.
A menina sentiu o coração confranger-se-lhe no peito. Raro era o dia em que não aparecessem algumas senhoras em visita a Maria de Oliva, e sempre era exigida a presença de Rosa, para tocar guitarra, cantar algumas canções, e entreter os visitantes. Não seria mau, se ao menos aquelas damas fossem tão sensatas e compreendedoras como o Doutor João. Mas elas esgotavam o tempo conversando e tagarelando sobre as coisas mais tolas. E às vezes eram bem pouco amáveis a respeito de outras senhoras ausentes.
- Eu ia mesmo plantar esta roseira, Mariana. Mas irei imediatamente, se mamãe realmente precisa de mim.
A moça indígena, adivinhando-lhe os pensamentos, não disfarçou o riso:
- Não precisa sentir-se tão mal. A visita de sua mãe é Dona Maria de Quinhones.
- Dona Maria?
- Isso mesmo. Não faz muito tempo que ela esteve aqui.
Os olhos negros de Rosa iluminaram-se. Oh! isto era outra coisa! Dona Maria, a sobrinha do Arcebispo Turíbio, era uma pessoa amabilíssima. Apesar de possuir uma bela casa e muitos servos, era muito humilde, e todos os dias, a despeito de todos os seus deveres sociais, conseguia tempo para fazer uma visita a Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento.
- Estou contente que seja ela, - disse Rosa simplesmente. - Irei logo; Mariana. Somente tenho que limpar-me um pouco primeiro. Estive plantando violetas, e minhas mãos estão sujas.
Mariana concordou.
- Trate de pôr seu vestido novo, o azul, - preveniu. E antes de apresentar-se a D. Maria, desça à cozinha. Tenho uma linda flor vermelha para lhe colocar nos cabelos.
Pouco depois Rosa entrava na sala de visitas, que era a da da frente. Seus longos cabelos negros tinham sido alisado cuidadosamente e presa ao lado ostentava-se uma papoula rubra. O vestido azul de seda era da última moda para meninas da sua idade: comprido até aos pés com um cinto estreito de prata das famosas minas de Potosi. Calçava sandálias entretecidas com pelo de lhama.
Maria de Oliva exultou de orgulho quando Rosa entrou na sala.
- Ora, aqui está ela, por fim, Dona Maria. Que diz de sua aparência?
Dona Maria de Quinhones sorriu e abriu os braços.
- Minha querida, acho que ela está maravilhosa!
Rosa atravessou lentamente a sala em direção à grande cadeira perto da janela, onde D. Maria estava sentada. Trajava um vestido de seda cinzento e, protegendo-lhe os cabelos, um véu de rendas. Brilhavam-lhe nos dedos vários anéis e do pescoço pendia-lhe uma preciosa corrente de ouro com uma cruzinha de diamantes. Rosa sentou-se num banquinho perto da visitante.
- Estou muito contente que a Sra. tenha vindo - disse com simplicidade, olhando para o rosto bondoso da dama.
Maria de Oliva fez um sinal de aprovação.
- Dona Maria só pode dispensar-nos hoje alguns minutos, Rosa. Ela vai ao seminário levar algum mantimento para os estudantes.
- Você gostaria de vir comigo, meu bem?
A menina aquiesceu pressurosamente. Conhecia algo do seminário, se bem que nunca tivesse lá estado. Havia muitos anos que o Arcebispo Turíbio o fundara para os jovens que desejassem ser padres seculares. Fora os vários conventos, como o de S. Francisco e o de S. Domingos, não tinha havido até então, em toda a América do Sul, seminário algum para candidatos ao sacerdócio.
- Eu gostaria de ir com a senhora, Dona Maria. Posso ir, mamãe?
- Claro que sim, minha filha. Mas primeiro toca alguma coisa na tua guitarra para Dona Maria. Faz muito tempo que ela não te ouve. E enquanto tocas, vou ver se há um bolo para mandar ao seminário.
A guitarra pendia da parede, no lugar de costume. Rosa foi buscá-la e afinou as cordas.
- Compus um pequeno cântico outro dia - explicou com acanhamento à visitante. - Não é grande coisa.
Dona Maria fez um sinal de aprovação.
- Deixe-me ouvi-lo: Sempre gostei de suas canções, Rosa.
A menina sentou-se, apoiou o instrumento no colo e começou a cantar.
- Meu querido Senhor, quanto é bom ver nas flores, e no verde sombrio da copada oliveira, Toda a vossa beleza. Como é doce saber Que abençoar-me quereis, E o meu coração De alegrias encher!
Um sorriso aflorou aos lábios de Dona Maria. Que criança encantadora e tão bem educada: Não admira que todo mundo lhe predisse um grande futuro. Seria difícil encontrar em todo o Peru mocinha mais graciosa e prendada.
"Ela não é só inteligente", pensava Dona Maria. "Tem qualquer coisa que a distingue do comum das crianças. Posso vê-lo nos olhos. O que lhe reservará a vida?"
Os dedinhos finos de Rosa feriram um acorde final.
- Pronto. - disse à visitante. - É apenas um pequeno cântico, como os outros todos.
- Uma pequena oração, talvez.
- Acho que sim, Dona Maria.
Reinava doce tranquilidade na espaçosa sala de visitas. A mulher contemplou carinhosamente a menina e comentou:
- Você pensa muito em Nosso Senhor, não é, Rosa?
- Penso, - concordou Rosa quase num murmúrio. Ele se interessa sempre por nós, jovens ou velhos, ricos ou pobres. Se nos esforçarmos por ser bons, Ele está sempre em nosso coração. Querida Dona Maria, as únicas horas em que sou realmente feliz, é quando me lembro de pensar n'Ele no fundo do meu coração, para que me ajude a chegar a Ele no céu.
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