30 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

II. O REPÚDIO DO MUNDO

D. Inês Pascoal, a quem a peste tinha momentaneamente afastado de Barcelona, refugiara-se em Manresa, e fazia frequentes peregrinações ao santuário de Monserrate. Tendo-se dirigido na madrugada do dia da festa da Anunciação, voltava a Manresa, acompanhada de três senhoras e dois jovens, quando pelo meio-dia, chegando ao sopé da montanha, peito da igreja dos Santos Apóstolos, viu um jovem peregrino cuja beleza e distinção lhe atraíram a atenção, principalmente porque ia vestido com uma túnica de grosso tecido e de corda à corta. Parecia fatigado e mancava ligeiramente; tudo nele denuncia o fidalgo. D. Inês contemplava o peregrino com interesse, e este lançando-lhe um olhar modesto e doce, perguntou-lhe
- Estou longe dum hospital, senhora?
- Senhor peregrino, - lhe respondeu ela - o hospital mais próximo é o de Manresa, onde nós moramos; se quereis vir conosco, receber-vos-emos e vos trataremos da melhor vontade. Não temos pressa e caminharemos com o vagar que quiserdes.
Tendo o peregrino aceitado, D. Inês acrescentou:
- Senhor peregrino, nós temos boas pernas e vós pareceis fatigado; servi-vos do nosso macho, que nos é desnecessário.
- Agradeço-vos senhora; desejo ir a pé.
Tendo o peregrino recusado o macho, que de tão boa vontade lhe foi oferecido, os seis viajantes, mui respeitosos para com ele, afrouxaram o passo e caminharam mais devagar, porque se via que ele andava com dificuldade.
A pequena caravana ia já longe no vale de Llobregat, quando um enviado do alcaide de Monserrate, correndo a toda a brida, chama o jovem peregrino a pergunta-lhe:
- É verdade, senhor, que V. Ex.a deu um rico vestuário de fidalgo a um mendigo de Monserrate?
- É verdade, - disse o nobre peregrino, corando.
- O alcaide não quis acreditar esse homem e prendeu-o esperando o meu regresso.
- Ah! -disse o nosso Santo deixando escapar algumas lágrimas -não me foi dado fazer algum bem a esse pobre homem sem lhe causar ao mesmo tempo um grande mal!
- Fique tranquilo, senhor, - replicou o enviado do alcaide - em algumas horas será posto em liberdade.
E, puxando a rédea ao cavalo, voltou para Monserrate [20].
Uma das três senhoras que acompanhavam D. Inês, da qual era amiga íntima, dirigia o hospital de Manresa, que se chamava de Santa Lúcia, em razão da sua proximidade da igreja deste nome. D. Inês, profundamente comovida com o que acabava de passar-se, e não podendo duvidar de que Inácio fosse um grande senhor e um grande Santo, recomendou-o calorosamente à sua amiga quando se separou dela, antes de chegar a Manresa, e convidou Inácio a segui-la na direção do hospital, anunciando-lhe que ia enviar-lhe comida da sua mesa, o que se apressou a fazer.
Em presença da miséria que encontrou naquele asilo da dor, Inácio receou que não fosse assaz pobre. A lembrança de quanto o buscavam e da sua elegância, do seu orgulho e da sua ambição, do seu desejo de agradar e de ser citado pelo atrativo da graça e do espírito, não o abandonava. Ele queria expiar toda essa vida de prazeres e de honras, de vanglória e de falsa grandeza. Queria tratar a sua natureza como sempre tinha tratado o inimigo do seu soberano: como herói. Determinado a combatê-la, por assim dizer, corpo-a-corpo, e a sustentar contra ela uma luta de morte, sem tréguas, julgava, apesar disso, nada ter feito.
Permitam-nos as minudências em que vamos entrar. Poderão parecer pueris, muito vulgares, repulsivas até a certos leitores delicados; mas se se colocarem somente sob o ponto de vista da fé, e se se considerar o princípio que produz as ações que vamos referir, ser-se-á forçado a admirar-lhe o heroísmo e a confessar-se vencido.
D. Inácio de Loiola está num hospital onde a piedade lhe concede um asilo; está coberto com uma grosseira túnica e cingido duma corda; mas é jovem e belo, e nada perdeu desse cunho de nobreza e de distinção que imprime respeito e indica o homem de coração. Ele sabe-o, vê-o, e é necessário que tudo isso desapareça. Todo o seu passado deve ser esmagado, calcado aos pés, destruído... E mete mãos à obra.
Os seus cabelos são belos e ele tem-nos sempre tratado...: deixa-os crescer numa desordem só comparável à dos mendigos de que está rodeado. A sua barba andava sempre escanhoada negligencia-a como os cabelos. A sua mão é um modelo de forma e de limpeza: deixa crescer as unhas e não se ocupa delas... A sua linguagem é a da corte: estuda o idioma catalão e esforça-se por falá-lo tão naturalmente como se tivesse nascido na última classe popular da catalunha.
D. Inácio de Loiola teve sempre, mesmo nos campos, alguns criados às ordens: faz-se agora servo dos pobres doentes, e os mais repelentes são os seus preferidos. Presta-lhes os serviços mais baixos, os mais repulsivos, e se a natureza delicada tenta revoltar-se, força-a a tratar as mais asquerosas chagas, a lavá-las, a beijá-las de joelhos!
Tais mortificações, porém, não lhe bastam: são-lhe necessárias ainda, e sempre, as macerações mais espantosas. A roupa branca era sempre fina: um rude cilício a substitui. Tece por suas próprias mãos uma erva comprida e com espinhos, colhida no campo, e faz dela um cinto, que traz sobre a pele; disciplina-se três vezes por dia; come o pão mais grosseiro; bebe água que ele mesmo vai buscar à fonte e recusa qualquer outro alimento, exceto ao domingo. O pão grosseiro, coxas que se alimenta, vai mendigá-lo de porta em porta, a fim de se humilhar. Assiste todos os dias ao santo sacrifício da missa e aos ofícios, de manhã e de tarde, na igreja dos Dominicanos; ora de joelhos sete horas inteiras. Dorme na terra nua, a cabeça apoiada numa pedra ou num pedaço de pau, e só concede ao sono os primeiros momentos da noite; o resto é para a oração. Ao domingo confessa-se a um dos Padres Dominicanos e comunga; sendo aquele dia para ele de felicidade, permite-se acrescentar algumas ervas cosidas em água à sua refeição de pão negro; mas espalha nelas cinza para lhe alterar o sabor.
Tal era a vida do nosso Santo no hospital de Santa Lúcia, na pequena. cidade de Manresa.
Esforçava-se por imitar as maneiras dos homens do povo, assim como a sua linguagem, a fim de não trair a sua nobre origem; mas, como de ordinário sucede, essa afetação fá-lo cair no exagero a ponto de passar por um miserável vagabundo que todos podiam insultar impunemente. Quando saía, os rapazes corriam atrás dele, apontavam-no a dedo e chamavam-lhe o Pai Saco, alusão ao saco de grosso tecido que o cobria. Aqueles a quem pedia a esmola dum pedaço de pão, riam-se dele, da sua comprida barba, dos seus grandes cabelos, de todo o conjunto da sua pessoa. Que provação humilhante para o orgulhoso fidalgo! Mas Inácio dizia imediatamente
"- O soberano, a quem tenho a honra de servir não usou, por meu amor, a túnica reservada entre os judeus aos insensatos? Não consentiu em cobrir-se com o manto da irrisão? Não foi perseguido pelos gritos dum povo ébrio de furor e cego pelo ódio? Esta gente ri-se de mim, é verdade; mas não me tem ódio nem me quer mal. Longe disso, auxilia-me muito a expiar o meu orgulho e a minha ambição de vanglória. Coragem, pois! Ainda não sofri por amor do Rei do céu e da terra, tantas humilhações como sua divina Majestade se dignou sofrer por amor de mim, miserável pecador!"
De tempos a tempos, ia a Monserrate, passava muito tempo aos pés da Santíssima Virgem, conversava acerca dos seus interesses espirituais como Padre Chanones, que pressentiu grandes desígnios divinos sobre o seu heroico penitente. D. Inácio ia também com frequência em peregrinação a um santuário vizinho de Manresa chamado de Nossa Senhora de Viladorsis, quando o cuidado dos doentes e o serviço dos pobres lhe deixavam tempo.
Entretanto o inimigo dos homens não podia ver sem furor os progressos daquele que o combatia sem tréguas com tais armas. A paciência, a humildade, a abnegação, a mortificação, a renúncia não faltavam, um só instante ao nobre cavaleiro de Jesus e de Maria, apesar do desprezo com que não cessavam de o perseguir, e por isso o demônio usou de outro meio.
Algumas pessoas souberam, em Monserrate, pelo mendigo a quem o nosso Santo dera os seus ricos vestidos, que, sob os andrajos da miséria e da mendicidade, se ocultava, por espírito de penitência, um nobre fidalgo, o qual não podia habitar longe de Monserrate, porque ia ali muitas vezes.
O boato chegou até Manresa, onde foi confirmado, apesar do segredo prometido por aqueles que tinham acompanhado Inácio no dia da sua chegada. Já censuravam o ter sido humilhado o pobre estrangeiro do hospital, que não era outro senão esse fidalgo. Desde então, começaram a testemunhar-lhe toda a benevolência e respeito; vinham até consultá-lo, e ele falava de Deus com tanto amor, que alguns pecadores, sensibilizados com as suas virtudes e palavras, converteram-se sinceramente.
- Visto que Deus se digna servir-se de mim para operar tais conversões, - disse ele um dia a si mesmo - que grande bem não poderia eu fazer se, em vez de me tornar desprezível por um exterior ignóbil, tivesse continuado a ser o que era, -um fidalgo! Porque, enfim, eu ultrapasso todos os limites. Não seria Deus mais honrado, mais glorificado, se se visse brilhar no seu servo a ilustração do nascimento e a glória das puas próprias ações? Se eu tivesse continuado na corte, e ali vivesse como um Santo, teria mais mérito; houvera convertido alguns jovens fidalgos... Para que, pois, permanecer num hospital, onde todo o brilho do meu nascimento e dos meus talentos não pode ganhar uma só alma? Demais, tantas austeridades não podem deixar de afastar da santidade... E com que direito exporei aos sarcasmos e insultos dos vagabundos a honra da minha família, que os meus antepassados conquistaram ao preço do seu sangue?..."
Neste momento a tentação foi tão forte, que tudo se revoltou na natureza impetuosa do nosso herói. Houve nele um abalo espantoso! A sua túnica, os farrapos que o cobriam, os seus cabelos, a sua barba, as suas mãos causavam-lhe horror; o pão da caridade revoltava-lhe o coração, o serviço dos doentes desgostava-o, a tempestade tornava-se terrível...
Inácio reconheceu as sugestões do inferno: correu aos seus doentes mais repulsivos, abraçou-os, tratou-os mais afetuosamente que nunca e permaneceu junto deles até que a tentação se afastasse.
Este assalto pode, porém, renovar-se; além disso, o nosso Santo é já bastante conhecido e vêm de muito longe vê-lo a Manresa; há perigo para ele em continuar no hospital de Santa Lúcia. Inácio quer um retiro onde os homens não possam ir perturbar a sua união com Deus, e vai procurar esse retiro com a confiança de que Deus lho fará encontrar.

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