10 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

II. VINDE, ESPÍRITO SANTO

Grande excitação produziu no lar dos Flores a notícia de que Rosa aos cinco anos aprendera a ler e escrever. Ninguém, entretanto, parecia inclinado a crer que o Menino Jesus fora o professor.
- Algumas crianças têm imaginação demais, declarou Maria Oliva. -Receio que nossa Rosa seja uma delas.
- Você quer dizer Isabel, não é? - disse sua mãe incisivamente. - Pois é este o seu nome verdadeiro. Quanto a mim, sinto que algo de verdade pode haver no que ela diz. Afinal, quem pode dizer o que Deus fará por uma criança que o ama?
Com o passar dos meses o incidente foi ficando quase esquecido. Se alguém o lembrava, diziam que era menos uma questão de oração que de habilidade natural. Rosa era uma criança inteligente. Ela pegara a leitura e a escrita simplesmente, por si mesma, do mesmo modo que aprendera música. Não sabia ela tocar pequenas melodias na guitarra e na harpa? Não a tinham ouvido cantar seus próprios versos, lá embaixo no fundo do jardim, quando ela julgava não haver ninguém por perto? Era tudo tão simples. Realmente, não houvera milagre nenhum. A menina era brilhante mesmo por natureza.
Rosa, no entanto, sabia a verdade. Por si ela nada era. - Deus é que era tudo. Nunca esqueceria isto. Pedir-lhe-ia o auxílio toda a vida. Ele havia de ouvi-la, como o fizera no caso de aprender a ler e escrever, exatamente porque ela era tão fraca e desamparada.
O tempo continuou a passar imperturbável. Rosa completou seu sexto aniversário, o oitavo, o nono, o décimo. Onze eram então os filhos da família Flores. A vasta casa, na rua de S. Domingos, era um lugar onde não havia solidão. Gaspar Flores, que viera de Porto Rico para Lima, havia alguns anos, estava achando difícil manter sua numerosa família. Tinha, naturalmente, um emprego: por algum tempo fora encarregado de fazer armas de fogo e outras para os destacamentos do exército real da Espanha, estacionados em Lima. Era uma posição vantajosa, que lhe fora concedida por D. André Furtado de Mendoza, vice-rei do Peru. Mas que de cuidados não davam onze crianças! Quanto custava alimentá-las e vesti-las!
Um dia em 1597, Gaspar chamou sua mulher. Tinham-lhe oferecido uma oportunidade: ficar encarregado de uma mina de prata em Quivi, pequena cidade nas montanhas não longe de Lima.
- Pode-se ganhar mais na mineração que em qualquer outra coisa, - disse ele a Maria. - Vou a Quivi e ficarei lá alguns meses para ver como vão as coisas. Se eu não gostar do trabalho, poderei sempre voltar ao antigo emprego.
- Você está certo?
Gaspar riu-se.
- Claro que estou certo. Todo mundo sabe que as espadas e espingardas que faço são as melhores que se pode encontrar no Peru.
Maria pensou muito tempo sobre a novidade. Por fim informou Gaspar que ela o acompanharia a Quivi.
- Será esplêndido viver nas montanhas, - disse. - Estamos todos precisando uma mudança da vida na cidade.
O homem franziu os sobrolhos:
- Suponha que este negócio não dê bom resultado?
- Não acaba você de dizer que fabrica as melhores espingardas e espadas? Que o vice-rei está satisfeito com o trabalho que você faz? Tolice, Gaspar. Vou tratar de arrumar as coisas.
E assim sucedeu que a família Flores disse adeus à enorme casa solarenga em Lima, e partiu para Quivi. Rosa; então com onze anos, estava muito excitada com a mudança. Pela primeira vez na vida estava ela junto às grandes montanhas que se elevavam no fundo de sua cidade natal. Algumas milhas a oeste, o Pacífico rolava suas águas verdes, que vinham quebrar-se em branca espuma na extensão infindável de areia. A medida que se adiantavam na viagem, pequenas aldeias de índios surgiam à vista: casas feitas de barro marrom claro, cobertas de telhas vermelhas e amarelas.
Fernando, o irmão preferido de Rosa, estava também interessado nos novos panoramas. Agradavam-lhe os esquisitos animais que os índios utilizavam - as lhamas com seus longos pescoços, as pequenas e sedosas vicunhas, as alpacas com seu pelo castanho. Esses estranhos animais podiam ser vistos por toda parte, pastando nos declives verdejantes dos Andes, ou levando carga para seus donos índios.
- Eu gostava de ter uma lhama - disse Fernando à irmã. - Eu podia ensinar-lhe uns truques e Mariana cortar-lhe o pelo para tecer roupas bonitas e quentes. Com isso papai havia de poupar um pouco de dinheiro.
Rosa concordou. Fernando sempre tinha boas ideias.
- Talvez eu também pudesse fazer alguma coisa para ajudar. Que poderia ser?...
O garoto franziu a testa. Não havia muita coisa que uma menina peruana pudesse fazer. As filhas das melhores famílias ou se casavam ou entravam para um convento. Nunca se dispunham a um modo de vida pelos próprios recursos.
- Por que preocupar-se com estas coisas? Mamãe diz que você, quando crescer, vai casar-se com um homem rico -afirmou ele, com a ponderação de seus treze anos.
As lágrimas afluíram aos olhos escuros de Rosa.
- Eu não quero casar-me, Fernando. O que eu quero é ficar em casa e ser útil a todos.
O menino deu uma risada. Tinha orgulho daquela irmãzinha, mesmo quando ela dizia, às vezes, coisas sem pé nem cabeça.
Quivi possuía uma igrejinha, e a família Flores foi visitá-la logo depois de sua chegada. Encontraram o pároco, padre Francisco Gonzales, muito agitado. Acabava de receber o aviso de que o Arcebispo de Lima viria para dar o sacramento da Crisma.
- Eu gostava de ter uma lhama ,- disse Fernando à irmã.
- Esplêndido - exclamou Maria de Oliva. - Tenho uma filhinha que ainda não foi crismada. Vamos começar a prepará-la.
- Espero que ela saiba suas orações - disse Fernando. - Você sabe, Rosa? O Arcebispo vai fazer-lhe uma porção de perguntas. Ele não pode fazer o Espírito Santo descer a sua alma, sem que você saiba o catecismo.
- Fernando, não apoquente sua irmã - ralhou Maria de Oliva. - E' claro que Rosa saberá seu catecismo. Eu mesma vou cuidar disso.
Assim Rosa passou a estudar diariamente seu catecismo. Era um livrinho escrito pelo próprio Arcebispo, e impresso em 1584, o primeiro volume que saiu à luz do dia na América do Sul. O exemplar de Rosa era escrito em espanhol, mas o bondoso Arcebispo compilara também um em quichua e outro em aimará, dialetos comuns entre os indígenas.
Aqueles que conheciam o Arcebispo Turíbio estavam absolutamente certos de que ele era um santo. Seu nome por extenso era Turíbio Afonso de Mogrovejo, e chegara a Lima em 1581 para ser o segundo Arcebispo da cidade. Como o primeiro Arcebispo, o famoso dominicano Jerônimo de Loaysa, Turibio era espanhol. A residência episcopal ficava perto da catedral, do outro lado da Praça das Armas. Esta praça constituía o mais belo parque de Lima. Aí o povo passava muitas horas apreciando as flores variegadas e gozando a sombra das graciosas palmeiras. Mas sempre que viam o Arcebispo sair do palácio, todos acorriam para receber a bênção. Mendigos e aleijados, principalmente, eram mais pressurosos, pois em tempos anteriores as orações do bom homem tinham operado maravilhas em favor dos pobres e doentes.
Embora a filha de Gaspar andasse muito excitada pela próxima visita do Arcebispo, o povo de Quivi não mostrava nenhum interesse. Grande parte dos três mil habitantes de Quivi eram indígenas que falavam o dialeto quichua. Estavam ainda muito longe de se tornarem cristãos; a verdadeira fé, infelizmente, estava ainda ligada em sua lembrança aos bandos da soldadesca cruel vinda do outro lado do Atlântico e que em 1532 invadira o país, conquistando-o para o rei da Espanha.
Francisco Pizarro chefiara esses recém-chegados, e com ele viera a desgraça para os nativos. Viram-se despojados de suas terras e forçados a trabalhar nas minas, percebendo salários miseráveis. Padres franciscanos e dominicanos seguiram as pisadas de Pizarro, trazendo o grande dom da fé, mas os índios não compreendiam que o soldado espanhol representava uma coisa e o padre, outra bem diferente. Para a maioria dos indígenas, um espanhol era algo a temer e desconfiar, fosse qual fosse o nome que exibisse.
Foi uma surpresa para Rosa ver que era ela a única menina na igreja no dia da Crisma. Havia, entretanto, dois garotinhos, e as três crianças ajoelharam-se no santuário aos pés do Arcebispo de Lima. O sol inundava o pequeno templo, rebrilhando na mitra dourada do Arcebispo e arrancando cintilações do magnífico anel que ele usava na mão direita. Que dia maravilhoso aquele! E que pena que o povo de Quivi não o compreendesse. Pelo direito, pensava Rosa, a igreja devia estar repleta.
O Arcebispo era de pequena estatura, delgado e contava cinquenta e nove anos. Sentou-se numa cadeira em frente aos três pequerruchos ajoelhados e explicou o ato que ia realizar-se: O Espírito Santo, a terceira Pessoa da Santíssima Trindade, ia descer em suas almas. Aí permaneceria enquanto aquelas almas não ofendessem seriamente a Deus. E ficaria para sempre, não ficaria?
- Para sempre, disseram os dois rapazinhos.
- Para sempre, eternamente, disse Rosa.
O Arcebispo sorriu, e o mesmo fez o padre Francisco Gonzales, que estava de pé ao lado deles, muito atento, revestido do hábito da Ordem dos mercedários. Então o Arcebispo rezou em latim, enquanto o padre Francisco foi a uma mesinha e trouxe um pratinho com óleo de oliva e bálsamo. Rosa ajoelhou-se perto do pratinho de óleo. Este santo óleo fora bento na última quinta-feira santa para ser usado na administração do sacramento da Confirmação. Era o crisma.
Fora da igreja rodavam as carroças nas ruas pedregosas. Vendedores ambulantes apregoavam suas mercadorias e as crianças indígenas riam e brincavam. No interior, porém, a cena era bem diferente. De pé, em frente do altar, o Arcebispo Turibio rezava em voz alta
"Enchei-os com o espírito de vosso temor, e assinalai-os com o sinal da cruz de Cristo, em vossa misericórdia, para a vida eterna. Pelo mesmo Senhor nosso, Jesus Cristo, vosso Filho, que convosco vive e reina em unidade com o mesmo Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém".
Mergulhou, então, a ponta do polegar direito no Crisma e traçou o sinal da Cruz na fronte de cada um dos meninos: Rosa ergueu a cabeça quando se lhe aproximou o Arcebispo. O Espírito Santo estava prestes a vir sobre ela. Havia de trazer-lhe força e coragem para ser uma boa e verdadeira cristã.
"Rosa, assinalo-te com o sinal da Cruz, e confirmo-te com o crisma da salvação. Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo. Amém".
Terminara. A criança levantou os olhos para o rosto amável do Arcebispo. "A paz seja contigo", murmurou ele, e deu-lhe um tapazinho, de leve, na face.

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