29 de julho de 2021

Santo Inácio de Loyola - Fundador da Companhia de Jesus

SEGUNDA PARTE
MENDIGO E PEREGRINO
(1522-1524)

I. CAVALEIRO DE CRISTO

Um dia do mês de Março do ano de 1522, ao pôr do sol, um jovem e belo cavaleiro, montado num cavalo andaluz, saía da cidade de Cervera, na província de Catalunha, e tomava a estrada que conduzia a Barcelona. Não levava escudeiro nem criado, mas na sua pessoa tudo anunciava um dos primeiros fidalgos da Espanha, um dos grandes senhores da corte. Usava o saio curto de veludo encarnado[10]; a sua calça, tufada desde o alto terminava pela bota mole adornada duma glande de oiro e duma brilhante espora; pendia-lhe do cinto rica espada e do lado oposto via-se-lhe um punhal de muito valor; no gorro, cheio de rodados e pendido sobre a orelha direita, flutuava graciosamente a longa e bela pluma que só a nobreza tinha direito a usar [11].
Vendo-o cavalgar tão tranquilamente; ao passo regular sua cavalgadura, ninguém explicava a ausência dos criados todos a comentavam a seu modo. Estava pouco distante lugar de Igualada, quando um cavaleiro, saindo dum caminho à direita, se lhe aproximou saudando-o e dizendo-lhe:
- Senhor cavaleiro, teria grande prazer em viajar convosco, se me permitísseis acompanhar-vos.
- Da melhor vontade, - lhe respondeu o nosso fidalgo. - Sois Mouro, não é verdade? Conheço-o pelo vosso vestuário ...
-Sim, senhor, mas vivemos tranquilos agora no reino de Aragão e no de Valência, aonde me retirei com minha família. Estava previsto ! Era essa a vontade de Alá!
- Ides longe, senhor?
- A Igualada e de lá a Nossa Senhora de Monserrate.
- Ah! Ides em peregrinação à capela da Mãe de Jesus, senhor cavaleiro?
-Vou em peregrinação à capela da Santíssima Virgem, - respondeu com vivacidade o fidalgo cristão.
Então travou-se controvérsia entre os dois viajantes. O muçulmano sustenta que Maria não era virgem depois do parto; o cristão, forte na sua fé e na verdade que defende, sustenta a virgindade de Maria, antes, durante e depois do nascimento do Salvador. A discussão acalora-se; o muçulmano esgota em vão todas as razões, e não encontrando nada que opor ao seu adversário, exclama cheio de ódio:
- Não! por Maomé! a Mãe de Jesus não conservou a virgindade!
E, esporeando a mula, toma a dianteira e parte a galope.
Ouvindo esta última blasfêmia, o nobre cristão fez o sinal da cruz, recolheu-se, orou um instante e disse:
"- Aquele desgraçado ousou insultar horrorosamente a divina Mãe do meu Soberano Senhor! E eu, fidalgo, eu, cavaleiro da nossa soberana Senhora e Mestra, sofrerei este ultraje feito à sua honra sem procurar vingá-lo?! Não passarei a minha espada através do corpo desse maldito muçulmano?! Não, não será assim! Ínigo de Loiola não pode tornar-se culpado de semelhante felonia! Corramos após esse infiel, e, pondo-lhe o pé no pescoço, forcemo-lo a confessar que ele é um miserável blasfemador e que a puríssima Senhora e Rainha do Mundo, que eu tenho a honra de servir, conservou sempre a sua santíssima virgindade!..."
Lançou a toda a brida o cavalo e ia transpor a distância que o separava do muçulmano... De repente, para; a sua consciência perturba-se, e pergunta a si mesmo:
"- Ser-me-á permitido matar um homem para a glória e honra da minha Soberana? Ignoro-o completamente
Na dúvida, entreguemos o negócio ao juízo de Deus[12]. Vou abandonar o meu cavalo a si mesmo; se ele avançar para além do caminho que devo tomar e seguir a estrada de Barcelona, lançar-me-ei sobre esse miserável infiel e atravessá-lo-ei de lado a lado sem compaixão. Se ele voltar à esquerda, perdoarei a esse miserável".
Tomada esta resolução, o nosso herói seguiu a distância o muçulmano; chegado ao caminho que devia tomar para se dirigir a Monserrate, o seu andaluz abandonou a estrada real, voltou à esquerda e dirigiu-se a Igualada. Inácio aceitou o Juízo de Deus, mas compreendeu-o muito pouco. Mais instruído nas ciências que faziam os grandes capitães e cortesãos cavaleiros, do que na que fazia os grandes Santos ou somente os verdadeiros cristãos, aplicava à sua nova vida todas as ideias de guerra e de antiga cavalaria, de que sempre se alimentara.
Abandonando o teto paterno com a resolução de não habitar mais a feudal morada de seus pais, Inácio não tinha outro fim senão fugir do mundo e consagrar-se inteiramente à maior glória de Deus. Quanto à maneira como devia chegar a este fim, ignorava-a: tudo o que sabia era que queria viver de pobreza, de penitência, de humilhação, de imolação contínua de si mesmo, como os Santos cujo heroísmo era para ele objeto de tão grande admiração.
- Estivera poucos dias em Navarrete, e, abandonando esta cidade, tinha dado ordem aos seus criados de voltarem ao castelo de Loiola, e acrescentara, dirigindo-se ao seu escudeiro:
- Dirás ao sr. D. Garcia que vou fazer uma viagem, durante a qual os teus serviços me são desnecessários.
Dirigiu-se em seguida para a Catalunha, querendo ir a Monserrate pôr sob a proteção da Santíssima Virgem a sua resolução de viver doravante a vida dos Santos. Ao iniciar esta peregrinação, tinha feito voto de castidade perpétua, e chegara sem incidente a Cervera, onde o encontramos.
Depois de ter renunciado a matar o muçulmano, cuja vida tinha submetido ao juízo de Deus, o nosso cavaleiro parou em Igualada e comprou alguns objetos, que ligou ao seu cavalo, entrando em seguida no caminho tortuoso que conduz à santa montanha.
Chegado ao convento dos religiosos beneditinos, aos quais está confiada a guarda da miraculosa imagem, pediu para fazer uma confissão geral a um deles; designaram-lhe o Padre João Chanones [13], encarregado especialmente de ouvir os peregrinos.
Inácio escreveu a sua confissão com tão escrupuloso cuidado e tão viva contrição, que a sua acusação, frequentemente, interrompida pela abundância das lágrimas, só pôde ser acabada no terceiro dia. Feliz de poder abrir a sua alma a um homem de tão eminente virtude, fez-lhe conhecer as graças com que tinha sido favorecido, e pediu-lhe conselhos sobre a maneira como devia executar a sua inabalável resolução de não mais viver senão para serviço e glória de Deus. Essas conferências foram longas e frequentes vezes renovadas. Inácio, evidentemente chamado à mais alta santidade, mas ignorando os meios de lá chegar, estava persuadido de que os mais enérgicos deviam ser os mais eficazes.
Disciplinava-se todos os dias e trazia o mais rude cilício sob o seu elegante vestuário; privava-se do alimento e do sono e só esperava pelo momento em que pudesse, desconhecido de todo o mundo, sofrer os mais humilhantes desprezos dos homens. Quanto a consultar a vontade de Deus para conhecer o que dele exigia, não pensava nisso, e não pensava até que pudesse haver vocações especiais. Não compreendia e não queria senão uma coisa: uma vida de imolação incessante para glória de Deus. Jesus Cristo fez-se vítima pelos homens, ele queria fazer-se vítima por Jesus Cristo. A sua dor de ter vivido até então para o prazer e para a glória ilusória deste mundo era das mais amargas, e, todavia, o fim principal das, suas espantosas mortificações não era a expiação dos seus pecados, mas a glória de Deus. Para ele tudo consistia nisto.
Depois de ter recebido a absolvição, o nosso santo penitente, pediu e obteve o favor de passar a noite no santuário privilegiado, aos pés de Jesus e Maria. Era no dia 24 de Março.
À tarde, apresenta-se no átrio da igreja, passeia a vista sobre os mendigos que ali se encontram, vê um mais miserável, mais pobre que os outros, aproxima-se dele, sauda-o respeitosamente, pede-lhe que o siga, e leva-o para um lugar onde possa falar-lhe sem testemunhas:
- Meu amigo, - lhe diz - tenho um favor a pedir-lhe: Quer dar-me a sua roupa e aceitar em troca a minha?
O mendigo seguira da melhor vontade o belo peregrino esperança de receber uma boa. esmola; mas estava longe esperar tal proposta, e pensando ter ouvido mal, ou julgando que o jovem fidalgo tinha perdido o juízo, olhou-o admirado e não sabia o que responder
- Falo-vos seriamente, - acrescentou Inácio. - Fiz um voto
No tempo em que sucedeu esta história, esta palavra explicava tudo.
- Oh! então, da melhor vontade, meu nobre senhor, - respondeu o pobre catalão, contente por lhe aparecer tão fortuna.
E, imediatamente, o valente capitão, o herói de Navarra e de Pamplona, o elegante cortesão tão cortejado, tão aplaudido, tão amado na corte do seu soberano, o brilhante Inácio de Loiola despoja-se dos seus ricos vestidos e cobre-se com os andrajos de um mendigo! E, tomando a mão negra e calosa do pobre montanhês:
- Obrigado, meu amigo, - lhe disse - prestou-me um serviço que jamais esquecerei!
Entrou no seu quarto, abriu o embrulho que continha os objetos que comprou em Igualada, tirou dele uma longa túnica de grosso tecido, que vestiu, uma corda de cânhamo que atravessou à cinta, sandálias de junco entrançado [14] e uma cabaça que atou na ponta dum grande bordão. O seu desejo era ir de pés descalços, mas a sua perna esquerda, de que ainda sofre, está fraca, incha todos os dias e é até obrigado a conservá-la ligada [15]; limita-se, pois, a deixar só um pé descalço e põe uma sandália no outro.
Leu, nos romances de cavalaria, que na véspera do dia em que os eleitos deviam, ser armados cavaleiros, isto é, receber solenemente a espada e espora, [16] passavam a noite de pé cobertos com a sua espessa armadura e meditavam assim sobre o compromisso que iam tomar [17]. A isto chamava-se a vigília das armas.
Recordando-se disto, Inácio de Loiola, que devia ter a felicidade de comungar no dia seguinte, perguntou a si mesmo se não devia considerar-se como candidato à ordem da cavalaria mais eminente que jamais houve.
"- Que sou eu, - disse ele - senão um cavaleiro do soberano Senhor e da soberana Senhora do mundo ? Não vou receber amanhã as mais poderosas armas para combater os seus inimigos? Sim! como esforçado e valente cavaleiro, no momento de ser alistado na nobre milícia de Cristo e de Nossa Senhora, devo meditar sobre os compromissos que vou tomar... Devo fazer a vigília de armas".
E cingiu a sua espada por cima da corda, tomou o punhal, que pôs à cinta e dirigiu-se à igreja. Passou a noite a orar e a meditar, chorando abundantemente sobre a sua vida passada e renovando a Jesus e a Maria a promessa de ser para sempre o seu mais fiel vassalo e de morrer ao serviço de Suas Majestades.
Antes do dia, desafivelou o cinturão, fez homenagem à Rainha do céu da sua espada e do seu punhal, que deixou apensos a um pilar da capela [18], assistiu à primeira missa e comungou com fervor celeste.
Era o dia 25 de Março, festa da Anunciação.
O concurso dos peregrinos devia ser considerável. Inácio de Loiola, receando ser reconhecido, abreviou a ação de graças e abandonou Monserrate.
Despedindo-se dos bons Padres, fez-lhes presente do seu cavalo e partiu a pé, de cabeça descoberta, bastão na mão e vestido como acabamos de ver.
"Não é já o belo cavaleiro cujas recordações de infância se perdiam no meio das prodigalidades e dos prazeres da corte do rei católico. Nada há nele do jovem senhor que, há pouco ainda através da licença das armas, sabia espalhar o perfume da maior urbanidade e da mais poética galanteria... Este fidalgo tão cheio de si mesmo, tão ardente, tão generoso, tão susceptível sobre todas as coisas que se prendiam com pontos de honra, corre à conquista da humilhação, como se a humilhação se tornasse para ele uma nova fonte de glória" [19].
Inácio de Loiola desejava ardentemente ir em peregrinação à Terra Santa. Aos sentimentos piedosos que lhe inspiravam esta devoção, juntaram-se as suas ideias cavaleirescas. Recordava-se das cruzadas e dizia que um fiel cavaleiro de Jesus e de Maria não podia dispensar-se de visitar os Santos Lugares para a libertação dos quais o mais nobre sangue da Europa havia sido tão generosamente espalhado. Mas o porto de Barcelona estava fechado por causa da peste; nenhum navio podia ali entrar nem sair, e, esperando que a navegação fosse livre, o nosso Santo tinha determinado, por conselhos do Padre Chanones, retirar-se a Manresa, pequena cidade distante de Monserrate apenas doze quilômetros. Naquela época, tinha poucos habitantes, mas possuía um Convento de Dominicanos e um hospital, o que asseguraria a Inácio todos os recursos desejáveis para satisfazer a sua piedade e a sua mortificação. Estando o hospital situado fora da cidade, preenchia melhor o seu fixe: ali, podia permanecer desconhecido e exercer ao mesmo tempo a humildade, a caridade, o zelo, todas as virtudes que tinha necessidade de praticar no mais perfeito grau.

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