CAPÍTULO II
UM RETRATO AUTÊNTICO
Dizem os amigos protestantes que Lutero foi o enviado especial de Deus para reformar a Igreja Católica decaída, ou melhor: levantá-la da morte e sepultamento no lamaçal dos maiores vícios e torpezas.
Faz-se mister descomedida audácia para lavrar a certidão de óbito da Igreja fundada por Jesus Cristos, à qual prometeu ele a sua perpétua assistência e a preservação de todo erro.
Ademais, é preciso uma superabundante dos de ignorância da história para desmentir fatos conhecidos e zombar de todos os historiadores antigos.
Como é que, antes de Lutero, autor algum jamais nota tal ausência da Igreja verdadeira, aspirando surgisse qualquer taumaturgo para ressuscitá-la, tirá-la do sepulcro ou que o próprio Cristo viesse reabilitá-la, clamando, bem alto, com o mesmo poder com que levantara Lázaro: Igreja, sai para fora deste túmulo?!
Nada de tudo isso; somente, após transcorridos quinze séculos, os protestantes descobriram este total desaparecimento da Igreja. Segundo eles, Deus suscitou enfim o homem desejado possuindo missão superior ao maior dos profetas e mensageiros divinos, instrumento do Altíssimo, capaz de reconstruir a obra de Jesus Cristo e restituir-lhe a primitiva beleza evangélica. Tal indivíduo foi Lutero.
Examinemos num instante a história de sua vida, as suas qualidades e obras; estudemo-la sem exageros, com toda imparcialidade, visando apenas os fatos provados historicamente, para vermos se, de fato, o pai do protestantismo ostenta credenciais de sua missão divina, pois duma árvore boa, conforme a sentença do Divino Mestre, há de sair uma produto bom, e de uma arvora má virão frutos maus.
1. PRIMEIROS ANOS DE LUTERO
Nasceu Lutero em Eilesben, aos 10 de novembro de 1483.
Seus pais eram pobres camponeses, católicos sinceros, segundo Melanchton; a mãe de Lutero era mulher virtuosa e dedicada à piedade. Quanto ao pai, se dermos crédito ao próprio Lutero e contemporâneos, era um homem rude, violento, quase cruel. E é à violência do pai do pai que a princípio o educara sem carinho e desvelo, que o “reformador” atribuía o ódio por ele votado à humanidade inteira.
Aos 6 anos de idade iniciou os estudos em Mansfeld, na escola pública, onde constas ter sido castigado constantemente, o que vem demonstrar seu gênio irrequieto, turbulento, sempre levado aos extremos.
Sobre seu tempo de escola, deixou ele mesmo esta nota¨”A nossa escola era um inferno e um purgatório onde nos atormentavam com declinações e verbos.
O professor era um algoz. Numa só manhã chegou e espancar-me quinze vezes”. Aos quatorze anos dirigiu-se nosso herói para Magdeburgo, onde estudou por algum tempo sob a direção de religiosos; depois, vamos encontrá-lo em Eisenach, mendigando pelas ruas, cantando e pedido esmolas para sustentar a vida. Foi nessa ocasião que uma piedosa viúva, comovida pelo estado lastimável do pequeno mendigo e por sua bela voz, acolheu-o, adotando-o como filho (Luther, por H. Wachters).
Devido aos cuidados de sua benfeitora, que lhe pagou os estudos, o menino freqüentou a escola latina dos Franciscanos. Em 1501 o estudante saiu de Eisenach, para ir terminar os estudos em Erfurt, onde, durante três anos e meio, cursou a universidade, aí colando grau de bacharel e mestre em ciências; no primeiro título conseguiu o 13º. Lugar entre 57 alunos, e no segundo, o 3º. Lugar, o que indica que, como mestre, se revelou ele de uma inteligência bastante viva, embora não genial.
Findos os estudos, pretendia Lutero começar os cursos de Direito Canônico e civil, o que fez apenas durante um mês. De repente, sem mais nem menos, abandonou a universidade, voltando para Mansfeld, lugar onde começara a sua instrução primária. Logo depois seguiu para o convento. Aqui nos deparamos com o mistério da vocação de Lutero.
2. A VOCAÇÃO DE LUTERO
Até essa data nada apresentava o menino como sinal provável de chamado divino para a vida sacerdotal ou religiosa.
De estudante católico que era, sem traço algum capaz de distingui-lo, com temperamento colérico e irrequieto, repentinamente se resolveu a deixar o mundo e retirou-se ao Claustro.
A respeito de tão súbita resolução, correram diversas lendas que as modernas pesquisas históricas põem em dúvida ou desmente. Numa carta ao pai disse Lutero, certa vez, que o medo das “ameaças de morte” lhe arrancara uma “promessa involuntária”.
Houve quem procurasse saber a que ameaças ele se referia.
Cogitam alguns de assassinato; outros pensam em duelo; certos, de um raio que caíra ao seu lado, impressionando-o consideravelmente.
Tudo isso poder ser verídico, mas não convence.
Em certa ocasião, em palestras com amigos, o “reformador” se referiu a um desastre que com ele dera, quando acompanhado de um amigo, nas cercanias de Erfurt. Fazendo exercícios com armas, ele feriu, sem o querer, a própria perna; tão abundante foi a perda de sangue que pensou chegado a hora da morte. Temendo o perigo, invocara a proteção da Santíssima Virgem, prece que repetiu depois.
Noutra feita Lutero disse que, ao regressar de uma viagem a Mansfeld, surpreendeu-o violenta tempestade; uma faísca elétrica lhe caiu aos pés, enchendo-o de pavor; nesta ocasião teria
exclamado: Valei-me Sant‟Ana; quero ser monge. Teriam sido tais acontecimentos a causa da vocação de Lutero?
Se ele nunca tivesse pensado antes em seguir a vida monacal, por certo teria feito qualquer outra promessa; mas o fato de voltar o seu pensamento para a vida religiosa parece demonstrar que desde algum tempo nutria tal idéia, não correspondendo ao chamado do Alto por deficiência de coragem. Vendo-se em perigo de vida, julgou ser isto um castigo de Deus e prometeu realizar o que já considerava como vocação. Parece ser esta a opinião mais admissível.
Certamente Lutero fez logo o que prometera. Pela última vez reunião os amigos em festa íntima e, no fim, convidou-os a acompanhá-lo. Relutaram. Afinal o seguiram, conforme lhes pedira. Deste modo, a 16 de julho de 1505 Lutero ingressava no Convento dos Agostinianos em Erfurt.
“Entrei para o Claustro, explica ele, porque estava desesperado de minha salvação”.
Ali a vida de nosso pretendente foi dividida entre a oração, o estudo da Sagrada Escritura e dos escritos dos santos padres.
As constituições dos Agostinianos prescrevem aos aspirantes: ler atentamente, escutar com devoção e decorar as passagens principais da Escritura Sagrada; e, para este fim, no dia da profissão, cada monge recebe um exemplar completo da Bíblia.
É a refutação radical aos historiadores protestantes que divulgam ter sido a Bíblia escondida cuidadosamente e até ligada por meio de correntes de ferro, para Lutero não a poder ler.
Felizmente os próprios protestantes já refutaram tal absurdo. Ouçamos Otto Scheel: “Não passara um dia sem que a leitura da Bíblia não houvesse enriquecido a alma de Lutero: nela encontrara consolação, luz e felicidade” (Scheel-II:2). Sua vida como religioso nada oferece digno de nota; pequenos fatos, no entanto, manifestam, vez por outra, o seu caráter inquieto, propenso sempre a excessos, parecendo considerar a Deus não como pai cheio de bondade, mas como juiz rigoroso.
A crônica dos monges do convento do Lutero refere que um dia, ao recitarem o ofício, ao ser lida no Evangelho a história do surdo-mudo possesso pelo demônio, de repente o nosso herói caiu no chão, e, em contorções horríveis, exclamou: Não sou eu! Não sou (o possesso) (Grisar 44).
Falando de sua vida monacal, disse ele certa vez: “Atormentei-me, rezei, jejuei, vigiei e tanto frio sofri que seria bastante para matar-me” (Grisar, p.57). Estes fatos todos revelam uma moléstia nervosa, histérica, ou grande desequilíbrio de consciência; no entanto, em tudo isso não viram os superiores impedimento sério para a vocação do jovem monge, e em 3 de abril de 1507 Lutero foi ordenado sacerdote na catedral de Erfurt, celebrando sua primeira missa aos 2 de maio do mesmo ano. Nesta ocasião, quando recitava a oração: Te igitur, no começo do Cânon, o neo-padre foi tomado de um tal medo de Deus, que teria fugido do altar, se o sacerdote assistente não o houvesse acalmado.
Em 1515, quando ao lado de seu superior assistia à procissão do Santíssimo Sacramento, tamanho pavor da proximidade de Deus o invadiu, que ele se pôs a tremer da cabeça aos pés (Tischreden W.;I. n. 137).
Lutero era sacerdote para a eternidade... e nada neste mundo ou no outro, seria capaz de apagar o caráter sacerdotal que em suas mãos devia ser um meio de salvação para muitos e não, como se tornaria em breve, um instrumento de perdição.
3. ESTUDOS INCOMPLETOS DE LUTERO
Temos agora diante de nós o monge recém ordenado, no limiar de sua vida nova. Logo uma primeira observação se apresenta: em 1505 entrara Lutero para o convento; em 1507, dois anos após, foi ordenado sacerdote. Tão curto intervalo foi apenas o tempo necessário para fazer o seu
noviciado ou aprendizagem, donde se depreende ter ele feito curso irregular de Teologia, que só veio a estudar depois da ordenação.
Que dizer deste novo período de sua vida?
O próprio Lutero explica: "... eu sou da escola de Occam, autor e propagandista-mor do nominalismo", sistema que negava o valor objetivo das idéias, de maneira que o homem não pode ter nenhuma certeza da metafísica, caindo, necessariamente, no ceticismo.
Verdades, por exemplo, como a imortalidade da alma, a existência, a unidade, bondade e misericórdia de Deus, não caem sob a competência da razão, só podendo os homens conhecê-las através da revelação.
Destarte o papel da inteligência se torna muito restrito, e mais limitado ainda o da fé e o da revelação.
A simplificação visada por Occam objetivava a supressão do ensino escolástico, cuja doutrina admite tornarem-se as verdades de fé mais acreditáveis pelo auxílio da razão.
Tão perversora a doutrina havia penetrado em muitas escolas, e até consta que os monges Agostinianos de Erfurt a professavam.
Embora o nominalismo não atacasse diretamente as doutrinas da Igreja, não deixava, contando, de colocar os estudantes num perigoso declive que facilmente poderia conduzi-los ao erro.
Aqui temos, pois, o início e, quiçá a base dos erros do patriarca protestante; duplo é este fundamento: a deficiência de estudos teológicos e as doutrinas falsas de Occam, que envenenaram os primeiros passos teológicos do pretenso reformador.
Pouco depois da sua ordenação, foi Lutero transferido para Wittemberg; ali encontrou o vigário geral da ordem, Pe. Staupitz, que desempenhava, além do cargo d3e superior, o de professor de exegese na universidade local.
Devendo, Staupitz, visitar, de vez em quando, as residências da província, mal podia dar cumprimento ao seu ofício, pelo que cogitava desistir e passar a cátedra de mestre a um sucessor da mesma ordem. Para substituí-lo, pensou em Lutero e aconselhou-o a se preparar, para tirar o bacharelato em Sagrada Escritura, afim de se habilitar a exercer o cargo de professor desta disciplina.
Efetivamente Lutero seguiu-lhe o conselho. E em 9 de março de 1509 colou grau de mestre na referida matéria.
Estudos assim precipitados e acumulados permitiram-lhe conquistar o ambicionado posto, mas não lhe deram o tempo de assimilar as doutrinas vistas, motivando isso, no espírito dele, uma verdadeira balbúrdia de idéias, sem fundamentos, sem provas e sem nexos.
Grisar observa que, mesmo em Elbstad, foram falhos os estudos do “reformador”.(Grisar, 43). - De Wittemberg transferiram-no para Erfurt, novamente, para que desempenhasse ali o professorado como leitor de teologia, que estudara com pressa, incompleta e erradamente.
4. VIAGEM A ROMA
Em Erfurt o novo leitor de teologia foi encontrar dupla guerra: - na cidade onde encontrara uma insurreição popular, e no convento dos frades Agostinianos no qual a discórdia era de espécie diferente.
A Congregação abrangia nesse tempo duas províncias: a parte alemã, mais rigorosa na observância das regras, e a saxônica, um pouco mais mitigado no rigor primitivo.
Tendo sido o Pe. Staupitz nomeado Vigário Geral provincial, para a Alemanha, procurou reunir as duas províncias sob sua alçada, nelas introduzindo a observância rigorosa.
A Santa Sé favoreceu esta medida de união, permitindo também que as duas partes se reunissem e escolhessem um só Vigário Geral.
A escolha recaiu em Staupitz. Isto agradou a quase todas as casas.
Sete entre as da província alemã resolveram protestante e entre elas estava o convento de Erfurt. Foi enviada uma deputação a Roma para defender os interesses dos insubmissos, perante a Cúria Romana; Lutero integrava esta comissão.
Que impressão trouxe ele da Cidade Eterna?
Uma visão toda materialista, como se descobre pelo seu modo de descrever o que vira ali.
Não tinha o “reformador” alma de artista, para admirar grandezas, panoramas, antiguidades; nem possuía um espírito perspicaz capaz de penetrar e ler a história nos monumentos. Pouco empenho lhe ofereceu a estadia na grande metrópole do Cristianismo. Desejava ver o Papa e não o conseguiu, pois o Santo Padre estava então em viagem pelo norte da Itália. E a reclamação contra a união das duas províncias agostinianas não foi aceita por Roma, o que contrariou bastante o frade descontente.
Somente dez anos após este fato é que entrará ele a bradar contra os pretensos abusos da Igreja Romana.
Parece que Lutero não retornou mais a Erfurt, mas foi logo se fixar em Wittemberg, onde continuou a estudar teologia. Em outrubro de 1512 aí recebeu o barrete e anel doutoral na matéria; no mesmo mês começou a lecionar Sagrada Escritura, substituindo Staupitz. Neste ponto é que Lutero começou a manifestar os e=seus erros de princípios, e a sua ignorância em assuntos teológicos.
Em 1515 iniciou ele a explicar a Epístola de São Paulo aos Romanos, e foi da má compreensão e interpretação desta carta paulina que o professor extraiu os erros sobre a graça e a salvação.
5. OS DOIS GRANDES ERROS DE LUTERO
Dois foram os erros fundamentais do novo catedrático – primeiro: só a Bíblia é a regra suprema de fé; segundo: o homem é justificado só pela fé e as boas obras de nada valem para a justificação.
Desde esse tempo apareceram como pontos básicos de todas as suas doutrinas esses dois erros.
A primeira destas regras de crença substitui a autoridade da Igreja, supremo juiz em questões de fé, pelo livre arbítrio, infligindo, assim um golpe infernal na unidade visível da cristandade. A outra perverte toda a doutrina das relações entre a criatura e o Criador.
Combinados, estes dois princípios subversivos produzem a mais tremenda desordem moral nas almas e na sociedade.
Teria Lutero aprofundado a extensão destes seus postulados de crença? Impõe-se-nos imperiosa a questão e a resposta é de longo alcance.
Julgamos que não.
Não há dúvida de que Lutero tinha inteligência; era, porém péssimo psicólogo; segundo vimos atrás haviam sido feitos com precipitação os seus estudos teológicos, mal assimilados e muito superficiais; era mais filósofo do que teólogo, revelando-se sutil no raciocínio, mas fraco em doutrina revelada. Esta asserção encontra prova a cada passo em seus escritos.
Demais, ele era de caráter altivo, orgulhosos, com uma inclinação natural demais acentuada, para a revolta. Um homem desse quilate é geralmente teimoso.
Durante quinze séculos a Igreja interpretara e expusera a Bíblia à luz de sua tradição, de sua própria história e, infalível no seu ensino e nas suas decisões a respeito, fora a regra viva de fé no passado.
O monge rebelde não atinou com o valor e a segurança desta autoridade suprema, e o seu orgulho supremo levou-o a crer que o homem é a sua própria regra de fé. Para ele não havia outra fonte de verdade revelada senão um livro mudo (embora inspirado) de que cada indivíduo é constituído juiz. Este livro, portanto, tem de ser o guia e a norma de fé para todos indistintamente, tornando-se todos infalíveis, excluídos, naturalmente, os sacerdotes, os bispos e o Papa.
Lutero não tolerava a existência de um homem infalível na Igreja; mas, por cúmulo de contradição, admitia serem os indivíduos todos infalíveis, exceto o Pontífice de Roma, que na verdade é o único infalível por divina instituição.
Em teoria tal era a doutrina de Lutero, embora na prática não aceitasse que ninguém contradissesse às suas opiniões.
O princípio: - “a justificação só pela fé” – era igualmente deletério e perverso, pois deveria produzir os mais desastrosos resultados numa sociedade decaída.
Conforme o ensino católico, a fé que justifica é uma fé viva, isto é, fundada na revelação e informada pela caridade.
Lutero não que saber de caridade; para ele basta possuir confiança em Deus e ele, por amor a Cristo, não mais nos imputará os nossos delitos, mas nos tratará como inocentes e santos. Para salvaguardar uma idéia tal, não trepidou Lutero em falsificar o texto de São Paulo (Romanos 3,28). O apóstolo escrevera: “julgamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei (mosaica)”. O “reformador” transcreve o texto assim: “O homem ‘justificado só pela fé”.
Vê-se logo a perversidade do falso intérprete. São Paulo pretende mostrar que lque, para alguém se salvar, não basta executar apenas as obras prescritas pela lei de Moisés, mas que, além disso, é mister possuir fé em Deus; Lutero, porém, depois de liquidar as obras da lei mosaica, suprimiu, ainda as da nova lei, contentando-se unicamente com a fé.
E, como na Epístola de São Tiago se lêem estas palavras textuais: “O homem ‘justificado pelas obras pela fé, e não pela fé somente” (Tiago 2,14-28), o inovador taxou esta epístola de “Epístola de palha”.
Tal é a “grande” descoberto de Lutero, que constituía para ele a suprema novidade, mas que, para o mundo, não era mais que a grande heresia.
Neste seu peculiar modo de entender a Bíblia apalpa-se a sua falta de conhecimento seguro.
Está aí o princípio da decadência do “reformador”, cujos fundamentos remotos o vimos beber na errônea filosofia nominalista que seguira desde os bancos de escola superior.
6. CONCLUSÃO
Aí fica a primeira fase da vida de Lutero. Visto através dum olhar superficial, nada ainda se apresenta de muito importante; no entanto, no âmago desta alma irrequieta, graves problemas se agitavam.
É que as grandes quedas não se realizam de repente, como as grandes virtudes não se adquirem num dia.
Querer julgar Lutero pelos acontecimentos em que passou a exercer influência preponderante na época é recolher efeitos como se fossem causas, e atribuir a um destino cego aquilo que na verdade é uma conclusão final.
A primeira educação na casa paterna, os primeiros estudos, o ambiente em que se encontrava, a conversão – tudo isso constitui necessariamente a trama que devia moldar o caráter e orientar as tendências de Lutero.
Pelas notícias que nos ficaram dos seus tempos escolares nota-se que ele fora um menino traquinas, insubordinado, colérico, e dado à independência e insubmissão. Não se castiga continuamente um aluno bem comportado e exemplar. E Lutero foi punido a toda hora.
Não concorde e sempre reclamando contra penas e ordens, de contínuo avesso a quem não lhe seguisse às idéias, assim cresceu o futuro “reformador”.
Pertencendo a uma época bastante viciada, privado de carinho e vigilância, a estrada de corrupção precoce estava largamente aberta em sua frente, prometendo saciar-lhe os instintos...
Ao orgulho juntou-se a imoralidade. A acusação é grave. Exige provas. Ei-las:
Referindo-se à sua vida anterior à conversão, deixou ele um dia escapar estas palavras: “Sim, fui um grande, triste e vergonhoso pecador; tive uma juventude culpada” (Weimar, 26, 508).
Relacionados também com este período da vida de Lutero há dois documentos contemporâneos, bem desfavoráveis à integridade de seus costumes.
O primeiro é de Jerônimo Dumgersheim, que, num escrito contra o herege, assacou-lhe publicamente os maus hábitos de sua vida de estudante, continuados depois, e causadores de sua apostasia.
Noutra parte o mesmo autor falou de faltas graves, e apelou para o testemunho de um daqueles camaradas que depois o acompanharam até à porta do convento.
O segundo depoimento de Jerônimo Emser que conhecera Lutero quando estudante em Erfurt.
Em 1520, numa polêmica, o monge revoltoso lembrou alguns deslizes do seu adversário. Emser, que não era irrepreensível, retrucou-lhe no mesmo tom: “Ignoras talvez que a teu respeito eu saiba de faltas bem graves?...” E Lutero não prolongou o ataque, ele que nunca deixava o contendor sem resposta!... Aí ele emudeceu e nem a Dumgersheim, nem a Emser respondeu palavra.
Tudo o que foi dito neste capítulo faz sobre-sair em cores bastante vivas a primeira fase da vida que estamos expondo.
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