25 de novembro de 2013

Em que coisas nos devemos conformar com a vontade divina.

Si bona suscepimus de manu Dei, mala quare non suscipiamus? — “Se temos recebido os bens da mão de Deus, porque não receberemos também os males?” (Iob 2, 10.)

Sumário. É certo que tudo o que acontece no mundo, acontece pela vontade ou permissão divina. Mesmo quando alguém nos prejudica nos nossos bens ou na reputação, ainda que Deus não queria o pecado do ofensor, quer todavia os efeitos, isto é, a nossa pobreza e humilhação. Quando, pois, nos acontecem desgraças, seja qual for a sua causa imediata, consideremo-las como vindas das mãos de Deus, e aceitemo-las não só com paciência, senão com alegria, porquanto serão no céu as jóias mais preciosas da nossa coroa.

I. Devemo-nos conformar com a vontade de Deus, não só nos males que nos vêem diretamente d'Ele, tais como doenças, desolações espirituais, perda de bens ou de parentes; mas ainda nos que vêem só indiretamente de Deus, isto é, por meio dos homens, como infâmias, desprezos, injustiças e todas as outras espécies de perseguições. É de observar que, quando alguém nos faz algum agravo nos bens ou na honra, Deus não quer o pecado do que nos ofende, mas sim a nossa pobreza e a nossa humilhação. Numa palavra, tudo vem de Deus, tanto os bens como os males.

Chamam-se males, porque nós os chamamos e os fazemos assim. Se os recebêssemos com resignação das mãos de Deus, não seriam para nós males, mas bens. As pedras preciosas que mais adornam a coroa dos Santos, são as tribulações que aceitaram por amor de Deus, pensando que tudo nos vem das suas mãos divinas. — Quando o santo homem Jó recebeu a notícia de que os Sabeus lhe haviam roubado os bens, que respondeu ele? Dominus dedit, Dominus abstulit (1) — “O Senhor os deu, o Senhor os tirou”. Não disse: o Senhor me deu esses bens e os Sabeus m´os roubaram; mas disse: o Senhor m´os deu, o Senhor m´os tirou. Por isso bendisse o nome do Senhor, pensando que tudo tinha acontecido pela sua vontade: Sicut Domino placuit, ita factum est; sit nomen Domini benedictum.

Quando os santos mártires Epicteto e Astion eram atormentados com ganchos de ferro e tochas acesas, não proferiam senão estas palavras: “Senhor, cumpra-se em nós a vossa vontade!” E quando expiravam, as suas últimas palavras foram estas: “Bendito sejais, ó Deus eterno, por nos terdes dado a graça de cumprir em nós o vosso santo beneplácito.” — A mesma coisa nós devemos fazer, quando nos sucedam algumas contrariedades; recebamo-las todas da mão de Deus, não só com paciência, mas até com alegria; seguindo o exemplo dos apóstolos, que se regozijavam de ser maltratados pelo amor de Jesus Cristo (2). Que maior satisfação poderemos ter, do que abraçar algumas cruzes e saber que abraçando-as podemos ser agradáveis a Deus?

II. Se quisermos viver em paz contínua, tenhamos d´ora em diante, o cuidado de nos unirmos estreitamente à vontade de Deus, dizendo em tudo o que nos suceda: Ita, Pater, quoniam sic fuit placitum ante te (3) — “Senhor, assim é que foi do vosso agrado! Seja feito assim!” Para este fim devemos dirigir todas as nossas meditações, comunhões, visitas e orações. Ofereçamo-nos incessantemente ao Senhor dizendo: Meu Deus, eis-me aqui: disponde de mim segundo a vossa vontade. Santa Teresa oferecia-se a Deus pelo menos cinquenta vezes ao dia, e pedia-lhe que dispusesse dela à sua vontade. — Quando as cruzes se nos afigurarem demais pesadas, lancemos um olhar sobre Jesus crucificado e pensemos na glória celeste. As plantas destinadas a serem transplantadas ao paraíso devem deitar suas raízes no Calvário. Elas crescem tão somente à sombra da Cruz, e não se multiplicam enquanto não forem regadas pelo sangue que os açoites, os espinhos e os cravos fizeram correr das chagas do Salvador. Numa palavra, a Cruz demonstra a virtude dos santos e aperfeiçoa as obras.

Ah, meu divino Redentor! Vinde e doravante reinai só na minha alma. Atraí a Vós toda a minha vontade, a fim de que só deseje e queira o que Vós quiserdes. Meu Jesus, no passado tantas vezes Vos desagradei, opondo-me às vossas santas vontades; arrependo-me disso e detesto-o de todo o coração. Mereço os castigos, não os recuso; mas não me castigueis privando-me do vosso amor.

Ó Sangue do meu Jesus, em vós espero estar sempre ligado à divina vontade; ela será a minha guia, o meu desejo, o meu amor e a minha paz. Nela é que sempre quero viver e repousar. Em tudo o que me acontecer, direi sempre: Meu Deus, assim o quisestes, assim o quero; meu Deus, só quero o que Vós quiserdes, seja feita sempre em mim a vossa vontade: Fiat voluntas tua. Meu Jesus, pelos vossos merecimentos, concedei-me a graça de Vos repetir sem cessar esta bela palavra de amor: Seja feita a vossa vontade!Fiat voluntas tua! — Ó Maria, minha Mãe, como sois feliz por terdes sempre e em tudo cumprido a vontade de Deus! Fazei que também doravante eu a possa cumprir! Minha Rainha, por todo esse amor que tendes a Jesus Cristo, peço-vos que me alcanceis esta graça: de vós a espero. (*II 172.)

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1. Iob 1, 21.
2. Act. 5, 4.
3. Matth. 11, 26.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 319-321.)

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