CAPÍTULO LIX
Maravilhosa visão que teve certo médico chamado Pedro
No ano do Senhor de mil trezentos e sessenta e sete, Eduardo, príncipe da Aquitânia, reuniu exército de cavaleiros bem armados para ajudar ao rei de Castela Dom Pedro, a quem Dom Henrique, seu irmão bastardo, esbulhara da governança.
O médico-cirurgião de Bordéus, chamado Pedro, foi intimado a acompanhar o príncipe, a fim de prestar seus serviços aos que porventura caíssem, feridos, em combate.
Muito grave e dura foi para Mestre Pedro aquela ordem, por motivos vários. Mas, pensando ser irrevogável a determinação do príncipe, nem se atreveu a esboçar escusas ou a pedir dispensa, e entregou o caso a Santo Antônio por quem tinha grande devoção.
Dirigiu-se ao convento dos Frades Menores de Bordéus e rogou a um dos frades que lhe rezasse missa, em honra de Santo Antônio, no altar onde se venerava bonita imagem do Santo entalhada em madeira.
Com muita devoção assistiu Mestre Pedro. Pregados os olhos na imagem, pedia com fervor ao Santo se dignasse estorvar misericordiosamente a viagem, caso ela lhe fosse em detrimento da alma; mas, se depois de tudo, fosse de proveito, então que lhe inclinasse a vontade para com gosto a fazer.
Coisa admirável e muito para contar! Quando Mestre Pedro assim orava, pareceu-lhe ver a imagem a abanar a cabeça a uma e a outra parte, à maneira de quem diz que não.
Ficou deveras surpreendido. E pensando consigo que bem podia andar ali qualquer ilusão do seu imaginar ou fumosidade que lhe tivesse subido à cabeça, fez violência sobre si a recobrar serenidade, e depois, firmando melhor a vista, outra vez repetiu a oração.
E o caso foi que de novo claramente viu a imagem a acenar a cabeça, tal qual como da outra vez, de um para outro lado, a modos de quem diz que não.
Acabada a missa, saiu Mestre Pedro muito maravilhado, mas sem atinar ao certo no que lhe queria o Santo dizer com aqueles sinais: se não lhe era de proveito para a alma acompanhar o exército; ou se, de contrário, não devia no caso ter receios em partir.
Dali a pouco um mensageiro que chega da parte do senhor príncipe a dizer-lhe que sem tardança se fosse apresentar.
Meteu-se logo a caminho, e eis se não quando, sai-lhe ao encontro o senescal a perguntar:
— Estás disposto e pronto para acompanhar a Espanha o senhor príncipe, conforme as ordens que dele houveste?
Mestre Pedro, embora com o temor lá dentro a martelar, nem titubeou na resposta:
— Eu estou sempre pronto para em tudo cumprir a vontade do meu senhor.
Com rosto alegre, mesmo a sorrir, voltou-lhe então o senescal:
— Muito me apraz, Mestre Pedro! Nem outra coisa esperava de servo bom e leal. Fica, porém, sabendo que, para tua consolação, resolveu o senhor príncipe dispensar-te desta vez, se outra coisa não vier a ordenar.
Nem cabia em si de contente Mestre Pedro, com a boa nova; e logo dali se dirigiu à igreja dos Frades Menores a agradecer a Santo Antônio. E na presença de alguns frades contou as sobreditas coisas, e, pondo a mão nos Evangelhos, com juramento afirmou que era verdade tudo o que contara. Em louvor de Deus e de Santo Antônio.
Amém.
Nenhum comentário:
Postar um comentário