CAPÍTULO VIII
Da gratidão que devemos a Jesus Cristo por sua paixão
O amor de Cristo nos constrange.
1. Diz S. Agostinho que, tendo sido Jesus Cristo o primeiro
a dar a vida por nós, obrigou-nos com isso a que demos a vida por
ele (Trac. 46 in Jo). Escreve o santo: “Conheceis qual é a mesa
que contém o corpo e sangue de Cristo: o que dela se utiliza, deverá
também tê-la preparada”. Quer dizer: quando nós vamos à mesa
eucarística, para comungar, isto é, nutrir-nos do corpo e sangue de Jesus
Cristo, devemos por gratidão preparar-lhe igualmente a oferta de
nosso sangue e nossa vida e, se for necessário, sacrificar um e outra
para sua glória. Mui belas são as palavras de S. Francisco de Sales a
respeito do texto de S. Paulo: “A caridade de Cristo nos constrange”
(2Cor 5,4). O amor de Jesus nos força, mas para quê? Nos força a
amá-lo. Mas ouçamos o santo: “O conhecimento de que Jesus nos amou
até à morte de cruz não é um conhecimento que força os nossos
corações a amá-lo com uma violência tanto maior quanto mais amável
ele
o é? O meu Jesus se dá todo a mim e eu me dou todo a ele: eu
viverei e morrerei sobre seu peito, nem a morte nem a vida dele mais
me separarão”.
2. S. Pedro, para que nos recordemos de ser gratos a nosso
Salvador, nos faz lembrar que não fomos resgatados da escravidão do inferno com ouro ou prata, mas com o sangue precioso de Jesus Cristo, o qual se sacrificou por nós como um cordeiro
inocente sobre o altar da cruz (1Pd 1,18). Grande, portanto, será o castigo
dos homens ingratos, que não correspondem a tal benefício. É verdade
que Jesus veio para salvar todos os homens que estavam pedidos:
“Veio o Filho do homem buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc
19,19), mas é igualmente verdade o que afirmou o santo velho Simeão,
quando Maria apresentou no templo Jesus menino: “Eis que este está posto para a ruína, a ressurreição de muitos em Israel e
como sinal de contradição” (Lc 2,34). Com as palavras, para
ressurreição de muitos, significou a salvação que Jesus traria a todos os
crentes, que pela fé haviam de ressurgir da morte para a vida da graça.
Mas com as palavras, este foi posto para ruína, predisse que muitos
deviam cair em maior desgraça por sua ingratidão para com o Filho
de Deus, que descera à terra para tornar-se o alvo de seus inimigos,
como exprimem as palavras: como sinal de contradição, fazendo de
Jesus o alvo para o qual dirigiam os judeus todas as calúnias,
injúrias e maus tratos. Este sinal, pois, que é Jesus Cristo, não é só
contradito pelos judeus que não o reconhecem pelo Messias, mas também
pelos cristãos ingratos que pagam o seu amor com ofensas e
desprezo de seus preceitos.
O Rei dos corações.
1. Nosso Redentor, diz S. Paulo, chegou até a dar a vida por
nós, para se tornar senhor absoluto de todos os nossos afetos,
demonstrando-nos o seu amor, morrendo por nós: “Por isso Cristo morreu e ressuscitou, para dominar sobre os vivos e os mortos” (Rm
14,9). Não, nós não somos mais nossos depois de termos sido
comprados pelo sangue de Jesus Cristo: “Quer vivamos, quer morramos,
somos do Senhor”, ajunta o Apóstolo (Rm 14,8). Logo, se não o amamos
e não observamos seus preceitos dos quais o primeiro é o de
amar, não somos somente ingratos, mas também injustos, e merecemos castigo duplo. A obrigação de um escravo resgatado por Jesus
das mãos do demônio é dedicar-se totalmente a amá-lo e servi-lo,
vivo ou morto. S. João Crisóstomo faz uma bela reflexão sobre o
texto de S. Paulo, dizendo que Deus pensa mais em nós do que nós mesmos
e por isso reputa como seu bem a nossa vida e como seu
prejuízo a nossa morte. Assim, se morremos, não morremos só para nós,
mas para Deus também. Oh! como é grande a nossa felicidade!
Mesmo vivendo neste vale de lágrimas no meio de tantos inimigos e
tantos perigos podemos contudo dizer: nós somos do Senhor, somos de Jesus Cristo: e sendo propriedade sua, ele terá cuidado em
nos conservar na sua graça nesta vida e junto a si por todo e sempre na
vida futura. Jesus Cristo morreu,, por por cada um de nós, para que cada
um de nós viva também para seu Redentor. “E Cristo morreu por
todos, para que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele
que por eles morreu e ressuscitou” (2Cor 5,15). Quem vive para si
mesmo, para si dirige todos os seus desejos, temores, dores e põe
nisso a sua felicidade. Mas todos os desejos do que vive para Jesus
Cristo consistem em amá-lo e dar-lhe gosto e todos os seus temores
em desgostá-lo. Sua única aflição é ver Jesus desprezado e sua
única alegria é vê-lo amado pelos outros. Isto é viver para Jesus
e é o que pretende seguramente cada um de nós. Por esse motivo procurou
ele conquistar todo o nosso amor, sofrendo tão grandes penas.
2. Talvez pretenda ele demais? Não, diz S. Gregório, é justo
que pretenda tanto, depois de nos ter dado tão grandes provas de
seu amor, que até parece doido de amor por nós. “Pareceu até
doidice, escreve S. Gregório, o autor da vida morrer pelos homens”
(Hom. 6 in Evang.). Ele se dá sem reserva, inteiramente a nós; tem,
pois, razão de pretender que nos demos incondicionalmente a ele e lhe
consagraremos todo o nosso amor. E se lhe negamos uma parte, amando outra coisa fora dele ou não por ele, tem motivo de se
queixar de nós. “Ama-te menos do que o mereces, quem juntamente contigo ama outra coisa que não é por ti que ama”, diz S. Agostinho
(Confess. 1. 10, c. 29). E que outra coisa podemos nós amar fora de Jesus senão as criaturas? Em comparação com Jesus Cristo, que são, porém,
as criaturas senão vermes da terra, lodo, fumaça e vaidade? O
tirano ofereceu a S. Clemente, papa, grande quantidade de dinheiro,
de ouro e pedras preciosas, para que renunciasse a Jesus Cristo. O
Santo deu um grande suspiro e exclamou: “Ah, meu Jesus, bem
infinito, como podeis suportar ser considerado pelos homens menos que
o lodo da terra?” Não foi a temeridade nem a afoiteza que
levou os mártires a ir ao encontro dos cavaletes, das lâminas
incandescentes e da morte a mais cruel, mas o amor de Jesus Cristo, quando
o contemplavam morto na cruz por seu amor (Serm. 62 in Cant.). Sirva por todos o exemplo de S. Marcos e S. Marcelino, que, tendo os
pés e as mãos cravados, eram insultados pelo tirano como loucos por
quererem padecer um tormento tão atroz só para não renegar a Jesus Cristo. Eles, porém, responderam que jamais tinha
experimentado delícias tão grandes como as que então gozavam estando transpassados por aqueles cravos. Todos os santos, para
contentar a Jesus Cristo tão maltratado por nós, abraçaram com alegria a
pobreza, as perseguições, os desprezos, as enfermidades, as dores e a morte. As almas esposas de Jesus crucificado não acham coisa
alguma mais honrosa que trazer consigo as insígnias do crucifixo,
isto é, os padecimentos.
Cristo vive em mim.
1. Ouçamos o que diz S. Agostinho: “A vós não é lícito amar
pouco: esteja inteiramente fixo em vossos corações aquele que por
vós foi fixado na cruz” (De san. virgin. c. 13). A nós, que
cremos firmemente num Deus que morreu na cruz por nosso amor, não é lícito
amá-lo pouco: em nosso coração não se deve aninhar outro amor senão
o que devemos a quem por nosso amor quis morrer pregado na
cruz. Unamo-nos todos com S. Paulo e digamos: “Estou pregado com
Cristo na cruz. Já não sou eu que vivo, Cristo é que vive em mim”
(Gl 2,19). Comentando S. Bernardo as palavras: Já não sou eu que
vivo, é Cristo que vive em mim, diz: “Estou morto para todas as
outras coisas; encontram-me, porém, vivo e pronto todas aquelas que
se referem a Cristo” (Serm. 7 in Quadrag.). Assim diz cada um
que ama o Crucifixo com o Apóstolo: Eu deixei de viver por mim
mesmo, depois que Jesus quis morrer por mim, tomando sobre si a morte que me era destinada. E por isso estou morto para toas as coisas
do mundo e não percebo nem dou atenção àquelas que não são para Jesus Cristo e só me encontram vivo e aparelhado para
abraçá-las, mesmo que tragam consigo suores, desprezos, dores e até a
morte as que dizem respeito a Jesus. S. Paulo podia afirmar: “Para
mim o viver é Cristo” (Fl 1,21) querendo com essas breves palavras
dizer: Jesus é o meu viver, ele é todo o meu pensamento, todo o meu
fito, toda a minha esperança, todo o meu desejo, porque ele é todo
o meu amor.
2. “Palavra de fé, porque, se morrermos com ele, com ele
também viveremos; se sofrermos por ele, com ele também reinaremos; se o negarmos, ele também nos negará” (2Tm 2,11-12). Os reis
da terra, depois de vencer seus inimigos, repartem com os que
combateram os bens conquistados; assim procederá também Jesus Cristo no dia do juízo: repartirá os bens celestes a todos os que
trabalharam e sofreram por sua glória. Diz o Apóstolo: Se morrermos com ele, com ele viveremos; o morrer com Cristo implica o negar-se a
si mesmo, isto é, renunciar àquelas satisfações, porque, se não as
abdicarmos, chegamos a renegar a Jesus Cristo, que então no dia das
contas nos renegará a nós. E é preciso saber que não só negamos a Jesus Cristo quando renegamos a fé, mas também quando nos
negamos a obedecer-lhe naquilo que ele quer de nós, como o perdoar qualquer afronta recebida do próximo por amor dele, o ceder
em qualquer ponto de honra, assim dito, o romper qualquer amizade que
nos põe no perigo de perder a amizade de Jesus, o desprezar o
receio de ser tidos por ingratos, visto que nossa primeira gratidão
deve ser para com Jesus, que deu seu sangue e sua vida por nós, coisa que
criatura alguma jamais fez por nós. Ó amor divino, como podes ser
assim desprezado pelos homens! Ó homens, contemplai sobre essa
cruz o Filho de Deus que, qual cordeiro inocente, se sacrificou à
morte para pagar os vossos pecados e desta maneira conquistar o vosso
amor. Contemplai-o, contemplai-o e amai-o. Jesus meu, amabilidade
infinita, não me deixeis viver mais ingrato para com tão grande
bondade. Vivi no passado esquecido de vosso amor e do quanto
padecestes por mim: de hoje em diante não quero pensar em mais nada
senão em amar-vos. Ó chagas de Jesus, feri-me de amor. Ó sangue de
Jesus, inebriai-me de amor. Ó morte de Jesus, fazei-me morrer a
todo
outro amor que não seja de Jesus. Eu vos amo, ó meu Jesus,
sobre todas as coisas: amo-vos com toda a minha alma, amo-vos mais
do que a mim mesmo. Eu vos amo e porque eu vos amo desejaria
morrer de dor, pensando que no passado tantas vezes vos voltei as
costas e desprezei a vossa graça. Por vossos merecimentos, ó meu
Salvador crucificado, dai-me o vosso amor e fazei-me todo vosso. Ó
Maria, minha esperança, fazei-me amar a Jesus Cristo e nada mais
vos peço.
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