CAPÍTULO IX
Todas as nossas esperanças devem ser postas nos merecimentos de Jesus Cristo
Só nele há salvação.
1.“Não há salvação em nenhum outro” (At 4,12). S. Pedro diz
que toda a nossa salvação está em Jesus Cristo, que por meio de
sua cruz, na qual sacrificou por nós sua vida, nos abriu o
caminho da esperança de recebermos todos os bens de Deus, se formos
fiéis a seus preceitos. Ouçamos o que diz da cruz S. João
Crisóstomo: “A cruz é a esperança dos cristãos, o arrimo dos coxos, a
consolação dos pobres, a destruição dos soberbos, o triunfo sobre os
demônios, a mestra dos jovens, o leme dos navegantes, o porto para os
que estão em perigo, a conselheira dos justos, o descanso dos
atribulados, o médico dos enfermos, a glória os mártires” (Hom. de cruc.
t. 3).
A cruz, isto é, Jesus crucificado, é a esperança dos fiéis,
porque, se não tivéssemos Jesus Cristo, não haveria salvação para nós,
é o arrimo para os coxos, nós todos somos coxos no atual estado de corrupção e, fora da força que nos comunica a graça de Jesus
Cristo, não temos outro para trilhar o caminho da salvação; é a
consolação dos pobres, isto é, de nós todos, pois tudo o que temos o
temos de Jesus Cristo; é a destruição dos soberbos, já que os
sequazes de Jesus Cristo não podem ser soberbos vendo-o morto, qual
malfeitor, na cruz; é o triunfo sobre os demônios, pois só o sinal da
cruz basta para afungentá-los; é a mestra dos principiantes: que belos ensinamentos não dá a cruz àqueles que começam a palmilhar o caminho da salvação; é o lema dos navegantes: oh! como a
cruz nos guia nas tempestades da vida presente: é o porto dos que
perigam: os que se acham em perigo de perder-se pelas tentações ou
fortes paixões encontram um porto seguro recorrendo à cruz; é
conselheira dos justos: quantos santos conselhos não dá a cruz nas
tribulações da vida; é o repouso para os aflitos: que coisa poderá
aliviar mais os atribulados do que contemplar a cruz em que padece um Deus
por seu amor? É o médico dos enfermos, que, abraçando a cruz,
ficam curados de todas as chagas da alma; é a glória dos mártires,
pois sua maior glória consistia em se tornarem semelhantes a Jesus
Cristo, rei dos mártires.
2. Em suma, todas as nossas esperanças estão postas nos
merecimentos de Jesus Cristo. Dizia o Apóstolo: “Sei passar privações, sei também viver na abundância (fui instruído em tudo e por
tudo), tanto estar em fartura, como suportar miséria; ter de sobra
como curtir penúria. Tudo posso naquele que me conforta” (Fl 4,12-13).
Assim S. Paulo, tendo aprendido do Senhor, afirmava: Eu sei como
devo me portar: quando Deus me humilha, devo resignar-me ao seu
querer; quando me exalta, sei render-lhe toda a honra; quando me faz
passar por abundância, eu lhe sou grato; quando me faz sofrer
penúria, eu o bendigo; tudo isso, porém, não faço por minha virtude, mas
pelo auxílio da graça que Deus me dá: Tudo posso, mas naquele que me
conforta.
No texto grego, em vez das palavras: naquele que me
conforta, está: no Cristo que me corrobora; quem desconfia de si e
confia em Jesus é por ele munido de uma força invencível. “O Senhor
torna todo poderosos os que nele põem sua confiança”, diz S. Bernardo
(Serm. 85 in Cant.). “Uma alma que não presume de suas forças, mas
é confortada por Jesus Cristo, poderá se tornar senhora de si
de tal maneira que nenhum pecado a dominará. Não há força, nem
fraude, nem prazer algum que possa abater quem se apoia no Verbo
divino, conclui o mesmo santo.
Virtude de Cristo em nós.
1. O apóstolo suplicou três vezes ao Senhor que o livrasse
de um aguilhão impuro que o molestava e recebeu a resposta:
“Basta-te a minha graça, pois a virtude se completa na fraqueza” (2Cor
12,9).
Como se explica que a virtude se aperfeiçoa na fraqueza? S.
Tomás com S. Crisóstomo explica que, quanto maior é a fraqueza e
inclinação para o mal, tanto maior força Deus comunica a quem nele
confia. Por isso, S. Paulo no lugar citado diz: “De boa vontade
gloriar-me-ei nas minhas enfermidades, para que a virtude de Cristo habite
em mim. Por isso é que me comprazo nas minhas enfermidades, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias
pelo Cristo, porque quando estou enfermo então é que estou forte”
(2Cor 12,10).
“Porque a palavra da cruz é loucura para os que se perdem,
mas para os que se salvam, isto é, para nós, é a força de Deus”
(1Cor 1,18). S. Paulo nos adverte a não seguir os mundanos, que
põem sua confiança nas riquezas ou em seus parentes e amigos do mundo
e julgam loucos os santos por desprezarem esses esteios
terrenos. Os homens de bem depositam toda a sua confiança no amor da
cruz, isto é, de Jesus crucificado, que concede todos os bens a
quem nele confia.
2. Note-se também que o poder e força do mundo são mui
diversos dos de Deus: aquele se adquire por meio das riquezas e
honras mundanas; este, pela humildade e tolerância. S. Agostinho
diz que nossa força está no reconhecimento de nossa fraqueza e na
confissão humilde de nossas misérias (De grat. Chr. c. 12). E S.
Jerônimo diz que toda a perfeição da vida presente consiste em nos
reconhecermos imperfeitos (Ep. ad Ctesiph.). Sim, porque, quando nós nos reconhecemos imperfeitos como o somos, então, desconfiando
das nossas forças, abandonamo-nos nos braços de Deus, que
protege e salva os que nele confiam. “Ele é o protetor de todos os que
esperam nele” (Sl 17,31). “Vós salvais os que esperam em vós” (Sl
16,7). Davi ajunta que quem confia no Senhor torna-se firme como um
monte, que não se abala com todos os esforços de seus inimigos:
“Quem confia no Senhor, como o monte Sião não será abalado
eternamente” (Sl 134,1). S. Agostinho nos admoesta que nos perigos de
pecar, quando tentados, devemos recorrer e nos abandonar a Jesus
Cristo, que não se afastará deixando-nos cair, antes nos tomará nos
braços para sustentar-nos e assim remediar a nossa fraqueza (Conf.
1. 8 c. 11). Jesus Cristo, tomando sobre si as fraquezas de nossa
humanidade, nos mereceu uma força que supera toda a nossa fraqueza. S. Paulo diz: “Por isso que ele mesmo padeceu e foi tentado,
pode auxiliar os que são tentados” (Hb 2,18). Como se explica que o
Salvador, por ter sido tentado, pode nos socorrer nas nossas
tentações? Explica-se por que Jesus, tendo sido atormentado pelas tentações,
tornou-se mais propenso a compadecer-se de nós e auxiliar-nos
quando tentados. A este corresponde aquele outro texto de S. Paulo:
“Não temos um pontífice que se não possa compadecer das nossas
fraquezas, mas um experimentado à nossa semelhança em tudo, com exceção do pecado” (Hb 4,15). Por isso o Apóstolo exorta-nos
a que recorramos com confiança ao trono da graça que é a cruz,
para recebermos do crucifixo as graças que desejamos: “Cheguemo-nos com confiança ao trono da graça, para obtermos misericórdia e
encontrarmos a graça no momento oportuno” (Hb 4,16).
A fraqueza de Cristo é nossa força.
1. Jesus, sujeitando-se a padecer temores, tédio e tristeza,
segundo os Evangelhos, quando falam das aflições que padeceu,
especialmente na véspera de sua morte no jardim de Getsêmani(Mt 26,37), nos mereceu a coragem para resistir às ameaças
daqueles que querem nos perverter, a força para vencer o tédio que
experimentamos na oração, nas mortificações e outros atos de piedade, e o ânimo para suportar com paciência a tristeza que nos invade
nas adversidades. Sabemos também que ele no horto, à vista de
tantas
dores e da morte desolada que o esperavam, quis sofrer tão
grande fraqueza na sua humanidade, que afirmou: “O espírito está
pronto, mas a carne é fraca” (Mt 24,41). E pediu a seu divino Pai
que, se fosse possível, o livrasse daquele tormento: “Pai, se for
possível, que este cálice passe de mim. Todavia não seja como eu quero e
sim como vós quereis” (Mt 26,39). E durante todo o tempo que se
demorou no horto a rezar, repetiu sempre a mesma súplica: “Faça-se a vossa vontade...e orou terceira vez, repetindo as mesmas
palavras” (Mt 26,44). Jesus, com aquele fiat, nos mereceu e obteve
então a resignação em todas as coisas contrárias e alcançou aos
mártires e aos confessores a força de resistir a todas as perseguições
e tormentos dos tiranos: “Esta palavra (fiat) abrasou todos os
confessores e coroou todos os mártires”, escreve S. Leão (Serm. 7 de pass.
c. 5). Da mesma forma pela mágoa de nossos pecados, que lhe ocasionou uma tão atroz agonia no horto, Jesus nos mereceu a contrição
de nossas culpas. Pelo abandono do Pai, que suportou na cruz,
mereceu-nos a força de não perdermos o ânimo nas desolações e trevas de espírito. Com o inclinar a cabeça, ao expirar na cruz,
para obedecer à vontade de seu Pai, mereceu-nos todas as vitórias que
obtemos
contra as paixões e as tentações, a paciência nos
sofrimentos da vida e particularmente nas amarguras e angústias da
morte.
2. Escreve S. Leão que Jesus veio se revestir de nossas
enfermidades e angústias para nos comunicar sua virtude e constância
(Serm. 3 c. 4). E S. Paulo: “E conquanto fosse o Filho de Deus,
aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5,8). Isso não quer
dizer que Jesus na sua paixão tivesse aprendido a virtude da
obediência, até então ignorada por ele, mas que ele aprendeu pela
experiência quão dura era a morte a que se sujeitara para obedecer a seu Pai,
conforme explica S. Anselmo. Experimentou igualmente quão grande é
o mérito da obediência, tendo obtido por meio dela o sumo grau
de glória para si, qual o de assentar-se à direita do Pai, e
para nós a salvação eterna. E conclui o Apóstolo. “E, consumado, fez-se
para
todos os que obedecem a causa da salvação eterna” (Hb 5,9).
Disse consumado, porque, tendo perfeitamente executado a
obediência, sofrendo com paciência toda a sua paixão, fez-se, para todos
que lhe
obedecem no sofrer pacientemente os trabalhos da vida
presente, causa da Salvação eterna.
Nada poderá me separar do amor de Jesus.
1. Esta paciência de Jesus Cristo animou e encorajou os
santos mártires para abraçar com paciência os mais atrozes
tormentos que a crueldade dos tiranos soube inventar e não somente com
paciência, mas até com alegria e desejo de padecer ainda mais por amor
de Jesus Cristo. Leia-se a célebre carta que S. Inácio mártir,
já condenado às feras, escreveu aos Romanos antes de chegar ao lugar de
seu martírio: “Permiti, filhinhos, que eu seja triturado pelos
dentes das feras para que seja encontrado como frumento de meu
Redentor. Eu não busco outro senão aquele que morreu por mim. Ele, que é
o único objeto de meu amor, foi crucificado por mim, e o amor
que eu lhe dedico faz-me desejar ser crucificado por ele”. S. Leão
escreve do mártir S. Lourenço que, enquanto ele estava na grelha, era
menos ardente o fogo que o queimava exteriormente que aquele que o
consumia interiormente. Escrevem Eusébio e Paládio que S. Potamiana, virgem de Alexandria, foi condenada a ser lançada em uma
caldeira de pez fervente. A santa, a fim de mais sofrer por amor de
seu esposo crucificado, pediu ao tirano que a introduzissem aos poucos
na caldeira, para que a mor te se tornasse mais dolorosa. E foi atendida, pois começaram a metê-la no pez pelos pés, de maneira que
suportou durante três horas esse tormento, só morrendo quando o pez atingiu o seu pescoço. Eis aí a paciência e a fortaleza que
receberam os mártires da paixão de Jesus Cristo.
2. Esta coragem que o crucifixo infunde naquele que o ama
fazia o apóstolo dizer: “Quem, pois, nos há de separar da caridade
de Cristo? A tribulação, a angústia, a fome, a nudez, o perigo, a
perseguição, a espada?” (Rm 8,35). E afirma ao mesmo tempo que esperava
superar tudo na virtude e pelo amor de Jesus Cristo. “Mas em tudo
isso saímos vencedores por aquele que nos amou” (8,37). O amor
dos mártires para com Jesus era invencível porque recebiam a
força do invencível que os confortava nos sofrimentos. E não pensemos
que os tormentos perdiam, por milagre, a propriedade de afligir,
ou então que as consolações espirituais absorviam a dor dos
tormentos: isso deu-se uma ou outra vez, mas ordinariamente os mártires bem
sentiam as dores e muitos por fraqueza cederam às torturas; os que
sofreram com constância sofreram-no exclusivamente pelo dom de Deus, que lhes subministrava um tal vigor.
Objeto primário de nossa esperança é a bem-aventurança
eterna, isto é, o gozo de Deus — fruitio Dei — como ensina S. Tomás; todos os outros meios, pois, para se alcançar a salvação,
que consiste nesse gozo de Deus, como o perdão dos pecados, a
perseverança final divina, a boa morte, não devemos esperar de nossas
forças nem de nossos propósitos, mas somente dos merecimentos e da
graça de Jesus Cristo. Para que seja, pois, firme a nossa confiança,
devemos crer com certeza infalível que a aquisição de todos esses
meios de salvação depende unicamente dos merecimentos de Jesus
Cristo.
§ 1. De Jesus Cristo devemos esperar o perdão de nossos pecados Propiciação por nossos pecados.
1. Falando primeiramente da remissão dos pecados, devemos saber que nosso Redentor, vindo à terra, teve por fim o
perdão de nossos pecados. “O Filho do homem veio para salvar o que se
havia perdido” (Mt 18,11). João Batista, mostrando aos judeus o
Messias já vindo, disse-lhes: “Eis o Cordeiro de Deus, eis o que tira
os pecados do mundo” (Jo 1,29). Segundo o texto grego lê-se: Eis aquele
cordeiro, como se S. João dissesse: Eis aquele cordeiro divino predito
por Isaías: “E como um cordeiro que fica mudo diante do que o
tosquia” (Is 53,7) e por Jeremias: “Eu sou como um manso cordeiro que
é levado para o sacrifício” (Jr 11,19). Já antes, era figurado
pelo cordeiro pascal de Moisés e pelo sacrifício em que era, conforme a
lei, todas as manhãs imolado um cordeiro, e por diversos outros
que eram oferecidos à tarde pelos pecados. Todos esses cordeiros,
porém, não podiam abolir um único pecado, só serviam para representar o
sacrifício
daquele cordeiro divino Jesus Cristo, que com seu sangue
deveria lavar as nossas almas e livrá-las da mancha da culpa como da pena eterna por ela merecida — o que exprime a palavra
tollit — tomando sobre si a obrigação de satisfazer à divina justiça
por nós, com sua morte, segundo o testemunho de Isaías: “Deus
carregou sobre ele as iniqüidades de todos nós” (Is 53,6). Em
confirmação, diz S. Cirilo: “um é trucidado por todos, para ganhar para Deus
Padre todo o gênero humano”. Jesus quis deixar-se matar para
ganhar para Deus todos os homens que se haviam perdido. Quão grande é a
nossa obrigação para com Jesus Cristo. Se de um réu já condenado à morte, enquanto se dirige para a forca e com o laço já no
pescoço, lhe tirasse um amigo o laço e o aplicasse a si mesmo,
morrendo nesse suplício para livrar o réu, quanta obrigação não teria este
de amá-lo e lhe ser reconhecido? Isso foi justamente o que fez Jesus;
quis morrer na cruz para nos livrar da morte eterna.
2. “Foi ele que levou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro, a fim de que, mortos para os pecados, vivamos para
a justiça; por cujas chagas fostes curados” (1Pd 2,24). Jesus, pois, se
sobrecarregou de todos os nossos pecados e os levou sobre a cruz, para com a morte pagar nossa culpa e obter-nos o perdão e
assim restituir-nos a vida perdida. Que maior maravilha poderá
haver que uma chagas curem as chagas de outros e a morte de um
restitua a vida a todos os homens que estavam mortos! exclama S.
Boaventura (Stim. p.1 c. 1). S. Paulo escreve que Jesus Cristo nos
tornou agradáveis e amáveis aos olhos de Deus, de pecadores odiados e
abomináveis que éramos, pelos méritos de seu sangue nos remitiu os
pecados e nos concedeu com superabundância as riquezas de sua graça: “Tornou-nos agradáveis em seu Filho amado, em quem temos a
redenção pelo seu sangue, a remissão dos pecados segundo as riquezas de sua graça, a qual superabundou em nós” (Ef 1,6-8). E isso
se deu pelo pacto de Jesus com seu eterno Pai de nos perdoar as
culpas e nos readmitir na sua amizade em vista da paixão e morte de seu Filho.
Mediador do Novo Testamento.
1. Foi nesse sentido que o Apóstolo chamou Jesus Cristo
mediador do Novo Testamento. Nas Sagradas Escrituras a expressão
testamento se toma em dois sentidos: por pacto ou acordo feito entre
duas partes que estão em discórdia e por promessa ou disposição da
última vontade, pela qual o testador deixa sua herança aos
herdeiros: esta disposição não se torna, porém, firme senão com a morte
do testador. Do testamento como promessa se fala no § III; aqui
falamos do testamento como pacto e neste sentido falou o apóstolo de
Jesus Cristo: “E por isso é o mediador do Novo Testamento” (Hb
9,15). O homem por motivos do pecado era devedor à justiça divina e
inimigo de Deus. Vem à terra o Filho de Deus e assume carne humana e então, sendo ele ao mesmo tempo Deus e homem, fez-se o
mediador entre o homem e Deus, participando de um e de outro, e, a
fim de estabelecer a paz entre ambos e obter para o homem a graça
de Deus, ofereceu-se para pagar com seu sangue e com sua morte
a dívida do homem. Ora, esta reconciliação já foi figurada no
Antigo Testamento por todos os sacrifícios que então se ofereciam e
por todos os símbolos ordenados por Deus, como o tabernáculo, o
altar, o véu, o candelabro, o turíbulo e a arca na qual se
guardavam a vara e as tábuas da lei: Todos esses objetos eram sinais e
figuras da redenção
prometida, e porque essa redenção devia ser efetivada pelo sangue de Jesus, por isso Deus ordenou que os sacrifícios se
fizessem com a efusão de sangue dos animais (que era a figura do
sangue daquele cordeiro divino) e que todos esses símbolos
mencionados fossem aspergidos com sangue. “Por isso é que nem mesmo o primeiro (testamento) foi consagrado sem sangue” (Hb 9,18).
2. Segundo S. Paulo, o primeiro testamento, isto é, a
primeira aliança, pacto ou mediação que se fez na lei antiga e que
figurava a mediação de Jesus na nova lei, celebrou-se com o sangue dos
touros e bodes, sendo aspergidos com esse sangue o livro, o povo, o tabernáculo e todos os vasos sagrados: “Lido que foi todo o mandamento da lei a todo o povo, Moisés, tomando sangue dos bezerros e dos bodes com água e lã tinta de escarlate (a lã tinta de
escarlate significava igualmente Jesus Cristo; assim como a lã por sua
natureza é branca e torna-se vermelha sendo tingida de escarlate,
também Jesus, o cândido por sua inocência e natureza, aparece na
cruz vermelho de sangue, justiçado como malfeitor, cumprindo-se nele a
palavra da esposa dos Cânticos: “O meu amado é cândido e vermelho” (Ct 5,10); e hissopo (o hissopo, planta humilde, significa a
humildade de Jesus Cristo) aspergiu todo o povo e também o mesmo
livro, dizendo: “Este é o sangue do testamento que Deus ordenou para vós. Aspergiu igualmente o tabernáculo e todos os vasos do culto
com o sangue. E segundo a lei, quase tudo se purifica com o sangue
e sem efusão de sangue não há remissão” (Hb 9,19-22). Quis o
Apóstolo repetir mais vezes a palavra sangue, para que os judeus e
todos os povos entendessem que sem o sangue de Jesus não há esperança de perdão para as nossas culpas. Assim, pois, como na antiga
lei, pelo sangue das vítimas, se destruía a mancha externa dos
pecados que os judeus cometiam contra a lei e lhes era perdoada a
pena temporal imposta pela mesma lei, da mesma forma o sangue de Jesus Cristo na nova lei nos lava da mancha interna das culpas,
segundo a palavra de S. João: “Ele nos amou e nos lavou no seu sangue”
(Ap 1,5) e nos livra da pena eterna do inferno.
Nosso sumo sacerdote.
1. Eis a esse respeito a doutrina de S. Paulo: “Porém
Cristo, vindo como pontífice dos bens futuros por um mais vasto e perfeito tabernáculo, não feito por mão de homem, isto é, não desta
criação, nem como o sangue dos bodes ou de novilhos, mas com o
próprio sangue, entrou no santuário uma vez, obtendo uma redenção
eterna” (Hb 9,11 e 12). O pontífice entrava pelo tabernáculo no
Santo dos santos e com a aspersão do sangue dos animais purificava os
delinqüentes da mancha externa contraída e da pena temporal. Para a remissão da culpa e para a libertação da pena eterna os
hebreus tinham necessidade absoluta da contrição com fé e esperança
no Messias vindouro, que deveria dar a vida para obter-lhes o
perdão. Jesus Cristo, ao contrário, por meio de seu corpo (e este é
o tabernáculo mais amplo e mais perfeito indicado pelo
apóstolo) sacrificado sobre a cruz, entrou no Santo dos santos do céu, que nos estava fechado, e no-lo abriu por meio da redenção. Por isso
S. Paulo, para nos animar a esperar o perdão de todas as nossas
culpas, confiando no sangue de Jesus, continua: “Pois se o sangue dos bodes e dos touros e a aspersão da cinza da novilha santifica os
maculados, para a purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo,
que pelo Espírito Santo se ofereceu a si mesmo, sem mácula, a
Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas para servir
ao Deus vivo” (Hb 9,13 e 14). Diz quanto mais o sangue de Cristo que
pelo Espírito Santo se ofereceu a si mesmo sem mácula, a Deus,
porque Jesus se ofereceu a si mesmo a Deus, imaculado, sem sombra
de culpa; doutra forma não teria sido digno mediador, apto a
reconciliar o homem pecador com Deus, nem o seu sangue teria tido a
virtude de purificar a nossa consciência das obras mortas, a saber,
dos pecados, obras mortas sem merecimento e obras de morte dignas das penas eternas; para servir ao Deus vivo: o fim por que Deus
nos perdoa é unicamente para que empreguemos a vida que nos resta em servi-lo. E o Apóstolo conclui: “E por isso é o mediador do
Novo Testamento” (Hb 9,15). Quis o nosso Redentor, pelo amor imenso que nos tinha, resgatar-nos da morte eterna com o preço de seu
sangue e assim obter-nos de Deus o perdão, a graça e a felicidade
eterna se formos fiéis em servi-lo até à morte. Foi essa a mediação ou
o contrato feito entre Jesus Cristo e Deus, em vigor do qual nos foi
prometido o perdão e a salvação.
2. Esta promessa do perdão de nossos pecados pelos
merecimentos do sangue de Jesus Cristo foi confirmada pelo próprio Jesus no dia anterior à sua morte, ao insistir o sacramento da
eucaristia: “Este é, pois, o meu sangue do Novo Testamento que será
derramado por muitos em remissão dos pecados” (Mt 26,28). Disse: será
derramado, pois estava próximo o sacrifício no qual devia derramar não uma parte, mas todo o seu sangue, para satisfazer por nossos
pecados e obter-nos o perdão. Quis por isso que este sacrifício
fosse renovado todos os dias em cada missa que se celebra, a fim de que seu sangue intercedesse continuamente em nosso favor. Foi
essa a razão por que Jesus Cristo foi chamado sacerdote segundo a
ordem de Melquisedec: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a
ordem de Melquisedec” (Sl 109,4). Aarão ofereceu sacrifícios de
animais: o sacrifício de Melquisedec foi de pão e de vinho, figura do Sacrifício
do Altar, no qual vosso Salvador, debaixo das espécies de pão e
de vinho, ofereceu a Deus na última ceia seu corpo e seu sangue, que devia sacrificar no dia seguinte na sua paixão e que
continua a oferecer todos os dias pelas mãos dos sacerdotes, renovando dessa
forma o sacrifício da cruz. S. Paulo explica por que Davi chamou
Jesus Cristo sacerdote eterno: “Este, porém, como permanece
eternamente, possui um sacerdócio sempiterno” (Hb 9,24). O sacerdócio
antigo desaparecia com a morte dos sacerdotes, mas Jesus, porque é
eterno, possui um sacerdócio também eterno. Como é que no céu
continua ele a exercer esse seu sacerdócio? S. Paulo diz: “Por isso
pode perpetuamente salvar os que por ele mesmo se chegam a Deus
estando sempre vivo para interceder por nós” (Hb 7,25). O grande
Sacrifício da Cruz, representado naquele altar, tem a virtude de salvar para sempre todos aqueles que, por meio de Jesus Cristo (se
bem dispostos pela fé e boas obras) se chegam a Deus. Este
sacrifício, segundo S. Ambrósio e S. Agostinho, Jesus como homem
continua a oferecer a seu Pai em nosso favor, desempenhando ainda
agora, como quando na terra, o ofício de nosso advogado e mediador e
também de sacerdote, que consiste em rogar por nós, como exprimem
as palavras: “Sempre vivo para interceder por nós”.
Nosso advogado.
1. São João Crisóstomo diz que as chagas de Jesus são outras tantas bocas que imploram continuamente a Deus o perdão das
culpas para nós pecadores. O sangue de Jesus Cristo suplica por nós
e obtém-nos a misericórdia divina, muito melhor do que
implorava o sangue de Abel a vingança contra Caim. “Vós chegastes ao
mediador do Novo Testamento, Jesus, e à aspersão do sangue que fala melhor do que o de Abel” (Hb 12,24). Nas revelações feitas a
S. Maria Madalena de Pazzi, Nosso Senhor disse-lhe um dia: “A minha
justiça foi transformada em clemência com a vingança tomada sobre as
carnes inocentes de meu Filho. O sangue desse meu Filho não pede vingança como o sangue de Abel, mas somente misericórdia, e
minha justiça não pode deixar de se aplacar com essa voz. Esse
sangue me liga as mãos de modo que se não podem mover para tirar a vingança que antes tiravam dos pecados”. Escreve S. Agostinho que Deus nos prometeu a remissão dos pecados e a vida eterna; mas é mais o que ele fez por nós do
que o que ele nos prometeu (Ender. in ps. 148). Dar-nos o perdão e
o paraíso nada custou a Jesus Cristo; o remir-nos, porém, custou-lhe o
sangue e a vida. O apóstolo S. João nos exorta a fugir do pecado,
mas para que não desconfiemos do perdão das culpas cometidas,
tendo firme resolução de as não repetir, nos encoraja, afirmando
que temos de nos haver com Jesus, que não só morreu para nos perdoar,
mas, depois de sua morte, se fez nosso advogado junto de seu
divino Pai: “Meus filhinhos, eu vos escrevo estas coisas para que não
pequeis; mas mesmo se alguém pecar temos um advogado junto do Pai,
Jesus Cristo, o justo” (1Jo 2,1). Aos nossos pecados cabe por
justiça a desgraça de Deus e a condenação eterna, mas a paixão do
Salvador exige em nosso favor a desgraça divina e a salvação eterna e
isso por justiça já que o eterno Padre, em vista de seus
merecimentos, prometeu-lhe perdoar-nos e salvar-nos, caso estejamos
dispostos para receber a sua divina graça e queiramos obedecer a seus
preceitos, como escreve S. Paulo: “Tendo consumado, fez-se para todos
os que lhe obedecem a causa da salvação eterna” (Hb 5,9). E assim
Jesus Cristo, morrendo consumido de dores, obteve a salvação
eterna para todos os que observam a sua lei. Somos por isso admoestados
pelo apóstolo: “Corramos pela paciência para o combate que nos é
proposto,
olhando para o autor e consumador da fé, Jesus, que, tendo diante de si o gozo, escolheu a cruz, desprezando a
ignomínia” (Hb 12,1 e 2). Vamos ou antes corramos com grande coragem,
armados de paciência, a combater com os inimigos de nossa salvação,
tendo sempre os olhos fixos em Jesus crucificado, que, renunciando
a uma vida de gozo na terra, quis escolher uma vida de sofrimentos
e uma morte cheia de dores e opróbrios e assim realizar a nossa
redenção.
2. Ó sangue precioso, tu és a minha esperança. Sangue do
inocente, lava as manchas do penitente. Ó meu Jesus, meus inimigos, depois de me arrastarem a vos ofender, dizem-me que não
posso encontrar mais em vós a minha salvação: “Muitos dizem à
minha alma: Não há mais salvação para ele no seu Deus” (Sl 3,3). Mas eu,
confiado no sangue que derramastes por mim, vos direi com Davi: “Vós, porém, Senhor, sois o meu protetor” (Sl 3,4). Os inimigos me
aterram dizendo que depois de tantos pecados, se eu recorrer a vós,
serei por vós repelido; eu, porém, leio em S. João a vossa promessa
que não repelireis ninguém que a vós se acolha: “Eu não porei fora o
que vem a mim” (Jo 6,37). Recorro, pois, a vós, cheio de confiança.
“Nós vos pedimos que venhais em auxílio de vossos servos que remistes
com vosso sangue precioso”. Vós, meu Salvador, que com tanta dor
e tanto amor derramastes o vosso sangue para que fôssemos
salvos, tende piedade de mim, perdoai-me e salvai-me.
§ 2. Jesus Cristo nos dá a esperança da perseverança final
§ 2. Jesus Cristo nos dá a esperança da perseverança final
Poder de Deus na fraqueza humana.
1. Para alcançar a perseverança no bem não devemos confiar nos nossos propósitos e promessas feitas a Deus; se
confiarmos nas nossas forças, estamos perdidos. Devemos pôr nos
merecimentos de Jesus Cristo toda a nossa esperança de nos conservar na
graça de Deus. Confiando no seu auxílio, perseveraremos até à
morte, ainda que sejamos combatidos por todos os inimigos da terra e do
inferno. Todas as vezes que nos acharmos com ânimo abatido e
assaltados pelas tentações, parecendo-nos que estamos quase perdidos, não percamos então a coragem nem nos entreguemos ao
desespero: recorramos ao crucifixo e ele nos sustentará para que não
caiamos. O Senhor permite que mesmo os santos encontrem muitas vezes tais tempestades e temores. S. Paulo escreve que as aflições
e os temores que ele experimentou na Ásia foram tão grandes
que lhe fizeram sentir tédio pela vida: “Fomos excessivamente
oprimidos acima de nossas forças, a ponto de tomarmos aborrecimento à
própria vida” (2Cor 1,8). Com isso o Apóstolo deu a conhecer o que
ele era segundo suas próprias forças, a fim de nos ensinar que Deus
às vezes nos deixa na desolação para que conheçamos a nossa miséria e desconfiemos de nós mesmos, recorrendo com humildade à sua
piedade e suplicando-lhe a força de não cair: “Para que não
confiemos em nós, mas em Deus que ressuscita os mortos” (2Cor 1,9).
2. E em outro lugar fala o Apóstolo ainda mais claro: “Somos
cercados de dificuldades insuperáveis e a nenhuma sucumbimos... somos abatidos, mas nem por isso perecemos” (2Cor 4,8-9). Vemo-nos oprimidos pela tristeza e pelas paixões, mas não nos
abandonamos ao desespero; somos como que lançados num lago, mas não
submergimos, porque o Senhor com a sua graça nos dá força para resistir aos inimigos”. O apóstolo nos adverte a ter sempre diante
dos olhos que somos frágeis e facilmente perdemos o tesouro da graça
divina e que, se a podemos conservar, isso não provém de nós, mas de
Deus: “Temos, porém, esse tesouro em vasos frágeis, para que a
sublimidade seja virtude de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).
A armadura do cristão.
1. Fiquemos, pois, firmemente persuadidos que nesta vida
devemos nos abster sempre de colocar nossa confiança em nossas
obras. A nossa arma mais forte, com a qual sairemos sempre
vitoriosos nos assaltos do inferno, é a santa oração. Esta é a armadura de
Deus, da qual diz S. Paulo: “Revesti-vos da armadura de Deus, para
que possais resistir às insídias do demônio” (Ef 6,11). Pois não é
contra os homens de carne, mas contra os príncipes e o poder do inferno, que temos de combater: “Porque a nossa maior luta não é contra a
carne e o sangue, mas contra os príncipes e as potestades” (Ef
6,12). “Por isso ficai firmes, tendo os vossos rins cingidos da verdade
e vestindo a couraça da justiça, calçando os pés em preparação para o
evangelho da paz, sobretudo, embraçando o escudo da fé com o qual
possais extinguir todos os dardos ígneos do maligníssimo; tomai
também o capacete da salvação e o gládio do espírito, que é a palavra
de Deus, orando em todo tempo com toda a sorte de deprecações e
súplicas” (Ef 6,14-18). Detenhamo-nos um pouco para bem compreender as sobreditas palavras: Tende os vossos rins cingidos da
verdade. O apóstolo alude ao cinturão militar com que os soldados se
cingiam em sinal de fidelidade que juravam ao soberano. O cinturão
com que se deve cingir o cristão há de ser a verdade da doutrina de
Jesus Cristo, segundo a qual devem reprimir todos os movimentos desordenados e em especial os impuros, que são os mais
perigosos. Revestindo a couraça da justiça.A couraça do cristão deve
ser a boa vida, sem o que terá pouca força para resistir aos insultos
dos inimigos. Tendo os pés calçados em preparação para o Evangelho da paz. Os sapatos militares, que o cristão deve usar, a fim de
caminhar expeditamente para onde deve, em oposição ao que anda descalço e que só caminha lentamente, hão de ser o ânimo aparelhado
para abraçar praticamente e insinuar aos outros com o exemplo das
máximas santas do Evangelho. Embraçando o escudo da fé com o qual possais extinguir todos os dardos ígneos do maligníssimo. O
escudo, pois, com que há de defender-se o soldado de Cristo contra
os dardos ígneos (isto é, penetrantes como fogo) do inimigo, há de ser
a fé constante, fortalecida. Tomai também o capacete da salvação
e o gládio do espírito que é palavra de Deus. O capacete, como
entende S. Anselmo, deve ser a esperança da salvação eterna, e
finalmente a espada do espírito, isto é, a nossa espada espiritual, deve
ser a palavra de Deus, pela qual ele promete repetidas vezes atender — ao que o suplica: “Pedi e vos será dado” (Mt 7,7). “Todo aquele
que pedir, receberá” (Jo 11,10). “Invocai-me e eu vos atenderei” (Jo
33,3). “Invoca-me e eu te livrarei” (Sl 49,15).
2. E o Apóstolo conclui: “Orando em todo tempo com toda
sorte de deprecações e súplicas pelo Espírito, e velando nisto com
toda a perseverança a rogar por todos os santos” (Ef 6,18). A
oração é, portanto, a arma mais forte, por meio da qual o Senhor nos dá a
vitória contra as más paixões e tentações do inferno. Esta oração
deve, porém, ser feita em espírito, não só com a boca, mas também com o coração. Além disso, deve ser contínua em todo tempo de
nossa vida: “orando em todo tempo”, assim como são contínuas as
batalhas, deve ser também contínua a nossa oração. Com toda sorte de
deprecações e súplicas: se a tentação não desaparece com a primeira
súplica, é preciso repeti-la uma segunda, terceira ou quarta vez e se,
apesar disso, a tentação não cede, é necessário ajuntar os gemidos
as lágrimas, a importunação, a veemência, como se quiséssemos forçar a Deus a conceder-nos a graça da vitória. Isto significam as
palavras com toda a instância e solicitação. Acrescenta o Apóstolo:
“Por todos os santos”, que significa que devemos rogar não só por nós,
mas pela perseverança de todos os fiéis que estão na graça de
Deus e em especial dos sacerdotes que trabalham pela conversão dos
infiéis e de todos os pecadores, repetindo nas orações a súplica de
Zacarias: “Iluminai aos que estão assentados nas trevas e na sombra da
morte” (Lc 1,79).
Quem pouco semeia pouco colherá.
1. Nos combates espirituais nos auxilia na resistência aos
inimigos o preveni-los nas nossas meditações, preparando-nos a fazer toda a violência possível nesses casos que podem nos
surpreender de improviso. Disso provinha que os santos podiam responder
com tão grande mansidão ou mesmo calar-se e não se perturbar
quando recebiam injúrias gravíssimas, ou eram perseguidos, ou
tinham de suportar atrozes dores de corpo ou de alma, ou a perda de
grandes bens, ou a morte de um parente mui querido. Tais vitórias
não se obtêm ordinariamente sem o auxílio de uma vida muito
correta, sem a freqüência dos sacramentos e sem um exercício contínuo da
meditação, leitura espiritual e orações. Por isso estas vitórias dificilmente são alcançadas por aqueles que não são muito cautelosos em
fugir das ocasiões perigosas ou vivem apegados à vontade ou aos
prazeres do mundo e pouco praticam a mortificação dos sentidos; por aqueles, enfim, que levam uma vida mole. S. Agostinho
escreve que na vida espiritual “primeiro se devem vencer as satisfações
e depois as dores” (Serm. 135). Quer ele dizer que todo aquele que
está acostumado a procurar os prazeres sensuais, dificilmente resistirá a
uma grande paixão ou veemente tentação que o assalte; quem muito
preza a estima do mundo, dificilmente sofrerá uma afronta grave
sem perder a graça de Deus. É verdade que da graça de Jesus Cristo e não de nós mesmos é que devemos esperar toda a força para viver sem pecado e
fazer boas obras e por isso devemos empregar todo o cuidado de não
nos tornarmos mais fracos do que já somos por nossa própria
culpa. Certos defeitos, dos quais não fazemos conta, são a causa de nos
faltar a luz divina e de o demônio ter mais poder sobre nós, por
exemplo, o desejo de aparecer sábio ou nobre perante o mundo, a vaidade
no trajar, a busca de certas comodidades supérfluas, o
ressentimento por uma palavra ou ato de pouca atenção, a aspiração de
agradar a todos, com prejuízo do proveito espiritual, a omissão das
obras de piedade pelo respeito humano, pequenas desobediências aos
superiores, pequenas murmurações, pequenas aversões conservadas no coração, leves mentiras, ligeiras zombarias do próximo,
perda de tempo em palestras ou curiosidades inúteis, em suma todo o apego
às coisas terrenas e todo ato de amor próprio desordenado pode
servir ao inimigo para precipitar-nos em qualquer abismo ou pelo menos
qualquer defeito deliberadamente querido nos privará da abundância do socorro divino, sem o qual cairemos em qualquer precipício. Nós lastimamos sentir-nos tão áridos e lânguidos nas
orações, nas comunhões e em todos os exercícios de piedade, mas como
Deus há de fazer que gozemos de sua presença e de suas visitas
amorosas, se nós somos tão escassos e desatenciosos com ele? “Quem semeia com parcimônia, também colherá escassamente” (2Cor
9,6).
2. Se nós lhe causamos tantos desgostos, coo havemos de
querer recolher suas celestes consolações? Se não nos desprendermos em tudo da terra, não seremos mais por inteiro de Cristo e
quem sabe onde chegaremos a parar. Jesus com sua humildade nos
mereceu a graça de vencer a soberba; com sua pobreza, a força de
desprezar os bens terrenos; com sua paciência, a constância para
vencer os desprezos e as injúrias. Assim pergunta S. Agostinho:
“Que coisa poderá curar a soberba, se não for a humildade do
Filho de Deus? Que coisa, a avareza, se não a pobreza de Cristo? que
coisa, a ira, se não a paciência do Salvador”. Se nós, porém,
esfriamos no amor de Jesus Cristo e descuidamos de suplicar-lhe que nos
socorra e até nutrimos no coração qualquer afeto terreno,
dificilmente perseveraremos na boa vida. Rezemos, rezemos sempre: com a oração alcançaremos tudo. Ó Salvador do mundo, ó minha única esperança, pelos
merecimentos da vossa paixão, livrai-me de todo afeto impuro que possa ser obstáculo ao amor que vos devo. Fazei que eu viva
despido de todos os desejos mundanos, fazei que o único objeto de meus
desejos sejais vós só, a que sois o sumo bem e o único bem digno de
ser amado. Por vossas sacrossantas chagas, curai as minhas
enfermidades e dai-me a graça de conservar longe de meu coração todo amor que não é para vós, que mereceis todo o meu amor. Jesus, meu
amor, vós sois a minha esperança. Ó doces palavras, ó doce
conforto! Jesus, meu amor, vós sois a minha esperança.
§ 3. Da esperança que temos de chegar um dia, por Jesus Cristo, à felicidade do paraíso Co-herdeiros de Cristo.
1.“E por isso é mediador do Novo Testamento, a fim de que,
intervindo a morte... os que foram chamados receberam a herança
eterna da promessa” (Hb 9,15). Aqui fala S. Paulo do Novo
Testamento, não como de um pacto, mas como de uma promessa, isto é, a
disposição da sua última vontade, pela qual Jesus Cristo nos constituiu
herdeiros do reino dos céus, e porque o testamento não é válido senão depois da morte do testador, foi necessário que Jesus Cristo
morresse, para que pudéssemos como seus herdeiros entrar na posse do paraíso. Pelos méritos de Jesus Cristo, nosso mediador, recebemos no batismo a graça de ser Filhos de Deus, enquanto que os
hebreus, no Antigo Testamento, apesar de serem o povo eleito, não
deixaram de ser escravos. “Estes são os dois testamentos, um certamente
do monte Sinais, que gera para a servidão” (Gl 4,24). No monte Sinai
fez-se, por intermédio de Moisés, a primeira mediação, quando Deus,
por meio dele, prometeu a abundância de bens temporais se
observassem a lei que lhes dera. Esta mediação, porém, diz S. Paulo, não gerava senão servos, em oposição à de Jesus Cristo, que gera
filhos: “Nós, porém, irmãos, somos filhos da promissão segundo
Isaac” (Gl 4,28). Se, pois, nós, cristãos, somos filhos de Deus, diz o
mesmo apóstolo, somos também herdeiros: a todos os filhos cabe parte
da herança paterna, a qual no nosso caso é a glória eterna no
paraíso, que Jesus Cristo nos mereceu com sua morte: “Se filhos,
também herdeiros; herdeiros de fato de Deus e co-herdeiros de
Cristo” (Rm 8,17).
2. Acrescenta, entretanto, S. Paulo, no mesmo lugar: “Mas
isto se padecermos com ele, para também com ele sermos glorificados”
(Rm 8,17). É certo que nós, pela filiação divina, obtida por
Jesus com sua morte, adquirimos direito ao paraíso: isso só se entende,
porém, se formos fiéis na prática de boas obras e particularmente se,
pela paciência, correspondermos à graça divina. Pelo que, diz o Apóstolo, para obtermos a glória eterna como Jesus a alcançou, devemos
na terra padecer a exemplo do mesmo Jesus Cristo. Ele vai na
frente com a cruz, como um capitão; à sombra dessa bandeira,
devemos segui-lo, cada um levando sua cruz, como nos admoesta o
mesmo Senhor, dizendo: “Quem quiser vir após mim abnegue-se a si
mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). S. Paulo então anima-nos a sofrer com coragem, alentados
pela esperança do paraíso, recordando-nos que a glória que nos
será dada na outra vida será imensamente maior que o merecimento de
todos os nossos sofrimentos, suportados de boa vontade em
cumprimento da vontade de Deus. “Julgo, porém, que os sofrimentos da
vida presente não têm proporção alguma com a glória futura que se
manifestará em nós” (Rm 8,18). Que pobre seria tão tolo que recusasse dar todos os seus
andrajos em troca de um grande reino? Não possuímos presentemente essa glória porque não estamos ainda salvos, visto não
termos ainda terminado a vida na graça de Deus; mas a esperança nos
merecimentos
de Jesus Cristo, diz S. Paulo, é que nos trará a salvação: “Pela esperança é que fomos salvos” (Rm 8,24). Ele não deixará
de nos conceder todo o auxílio de que necessitamos para nos
salvar, se lhe formos fiéis e perseverantes em suplicar-lhe, segundo a
promessa do mesmo Jesus Cristo, de atender todo aquele que o
suplicar: “Todo o que pedir, receberá” (Jo 11,10). Mas, dirá alguém:
eu não duvido que Deus se negue a ouvir-me quando suplicar-lhe, mas
receio que eu não o faça como devo. Não, diz S. Paulo, não há
motivo para esse receio, porque, quando rezamos, Deus mesmo ajuda a nossa insuficiência e nos faz suplicar de maneira que
sejamos atendidos: “O Espírito ajuda a nossa fraqueza e pede por nós” (Rm
8,26). Pede, isto é, faz-nos pedir, explica S. Agostinho.
Semelhantes à imagem do Filho.
1. Para nos aumentar a confiança, o Apóstolo ajunta: “Nós
sabemos que, para os que amam a Deus, tudo concorre para o bem” (Rm 8,28). Quer com isso dar-nos a entender que não são
desgraças as infâmias, as doenças, a pobreza, as perseguições, como
julgam os homens, pois Deus as converterá em bens e glória dos que as
suportarem com paciência. E o Apóstolo conclui: “Pois os que conheceu
na sua presciência também os predestinou para se fazerem
conformes à imagem de seu filho” (Rm 8,29). Com estas palavras quer
persuadir-nos de que, se quisermos a salvação, devemos nos resolver a sofrer todas as coisas para não perdermos a graça divina, já
que ninguém poderá ser admitido à glória dos bem-aventurados sem
que, no dia de seu juízo, sua vida tenha sido encontrada conforme
a de Jesus Cristo. Mas, para que os pecadores por esse motivo não se entreguem ao desespero, em vista das culpas cometidas, S. Paulo os
anima a esperar o perdão, afirmando que o Padre eterno não quis por
esse fim perdoar a seu próprio Filho, que se oferecera para
satisfazer por nossos pecados, e o entregou à morte para poder perdoar-nos
a nós, pecadores: “O qual não poupou a seu próprio Filho, mas o
entregou por nós” (Rm 8,39). E para que seja ainda maior a esperança
do perdão dos pecadores arrependidos, acrescenta: “E quem será que nos condenará? Cristo, que morreu por nós”. Como se dissesse:
Pecadores, que detestais os pecados cometidos, por que tomeis ser
condenados ao inferno? Dizei-me qual será o juiz que vos há de
condenar? não é Jesus Cristo? E como podeis temer que vos condene à
morte eterna esse redentor amoroso, que para vos não condenar quis
condenar-se a si mesmo a morrer pregado no infame patíbulo da cruz? Isso muito bem se entende daqueles pecadores que, contritos,
lavaram suas almas no sangue do cordeiro, segundo S. João: “Estes são os que lavaram suas vestes e as embranqueceram no sangue do cordeiro” (Ap 7,14).
2. Ó meu Jesus, se eu olho para os meus pecados, envergonho-me de pedir-vos o céu, depois de o ter tantas vezes
renunciado por gozos efêmeros e miseráveis: vendo-vos, porém, pregado nessa
cruz, não posso deixar de esperar o paraíso, sabendo que quisestes
morrer nesse madeiro para pagar por seus pecados e alcançar-me esse céu que eu desprezei. Ah, meu doce Redentor, eu espero pelos
merecimentos de vossa morte que já me tenhais perdoado as ofensas que vos fiz e das quais já me arrependi e por cuja causa
desejaria morrer de dor. Mas, ó meu Jesus, penso que, apesar de me
haverdes perdoado, permanecerá sempre verdade que eu na minha
ingratidão tive a coragem de causar-vos tão graves desgostos, a vós que
tantos me haveis amado. O que está feito, porém, está feito; pelo
menos, Senhor, eu quero, no tempo que me resta de vida, amar-vos
com todas as minhas forças, quero viver só para vós, quero ser
todo vosso, todo, todo. E isso haveis de realizar. Desprendei-me de
todas as coisas da terra e dai-me luz e força para não buscar outra
coisa senão vós, meu único bem, meu amor, meu tudo. Ó Maria, esperança dos pecadores, ajudar-me-eis com vossas súplicas. Rogai,
rogai, por mim e não deixeis de orar enquanto não me virdes todo de
Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário