23 de fevereiro de 2009

Encontro com Fausto, bispo maniqueu

Contarei, na presença do meu Deus, os acontecimentos daquele meu vigésimo nono ano de idade. Tinha vindo a Cartago um bispo maniqueu, chamado Fausto, grande armadilha do diabo (cf. 1Tm 3, 7; 2 Tm 2, 26), cuja melíflua eloqüência envolvera já muitas pessoas. Embora grande admirador dessa eloqüência, eu sabia distingui-la da verdade das coisas que era ávido de aprender; eu não reparava tanto no prato do discurso, mas que comida me servia esse famoso Fausto, tão citado pelos seus. Precedia-o a fama de homem competentíssimo nas ciências mais nobres e, em particular, de erudito nas letras. Eu que recordava - por tê-las lido e estudado - as obras de muitos filósofos, comparava algumas delas às prolixas fantasias dos maniqueus, e concluía por achar mais verossímeis as teorias daqueles que possuíram mais "luz suficiente para poder perscrutar a ordem no mundo, embora não tenham de nenhuma forma encontrado o seu Senhor" (Sb 13, 9); pois "tu, Senhor, és grande e olhas para o pobre, e de longe fitas o soberbo" (cf. Sl 138, 6), tu te aproximas do coração contrito, e não te revelas aos soberbos, ainda que a curiosidade e perícia deles consigam contar as estrelas do céu e os grãos de areia, medir os espaços celestes e explorar o curso dos astros. Investigando esses mistérios com a inteligência e a perspicácia de ti recebidas, fizeram muitas descobertas: predisseram com antecipação de muitos anos os eclipses do sol e da lua, precisando o dia, a hora e o modo de cada evento, sem erro de cálculo. E tudo sucedeu conforme tinham previsto. De suas descobertas resultaram as leis até hoje consultadas e usadas para predizer o ano, o mês, o dia, a hora dos eclipses totais ou parciais do sol e da lua; e o fenômeno se realiza segundo as previsões. O povo se admira, os ignorantes ficam estupefatos, os sábios cientistas exultam e se orgulham, mas, afastados e eclipsados de toda tua luz por sua vã soberba, prevêem com tanta antecipação o eclipse do sol e não enxergam o seu próprio, já presente, porque não procuram indagar, com espírito religioso, aquele de quem receberam a inteligência que usam em tais pesquisas. E ainda que descubram terem sido feitos por ti, não são capazes de se entregarem a ti, para que conserves o que fizeste. [...]

(IV Livro do Confissões, de Santo Agostinho)

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