7 de novembro de 2014

Páginas de Vida Cristã - Pe. Gaspar Bertoni

VI - A PAIXÃO 

1. - Convite a considerar de perto a Paixão de Jesus Cristo
"O justo perece sem que ninguém se aperceba" (Is 57, 1). Morre Jesus; o justo morre afogado em um mar de penas. Mas os rostos não empalidecem; não se despedaçam os corações; não se comovem as vísceras. Ninguém chora. As mulheres que tanto choraram a morte dos seus filhos, dos seus maridos, dos seus amantes; os homens tão compadecidos nas desventuras dos seus amigos, dos seus concidadãos; não terão uma só lágrima, um só suspiro para o seu Jesus? Ele mesmo se queixa convosco: "Procurei quem me confortasse em minhas penas, e não encontrei; quem ao menos se compadecesse de mim, e não houve ninguém" (SI 68; 21). Ignorais quanto Ele sofreu? Mas o sabeis pela fé que definhou sobre a cruz. Nem ignorais que tudo quanto ele sofreu foi "tudo por nós homens e pela nossa salvação". Era preciso encontrar-se lá sobre aquele monte, quando entre angústias de
morte Jesus estava próximo de expirar, para ver como souberam sentir piedade de seus males a própria natureza insensata: o sol que escureceu sua face, as rochas que se partiram, a terra que tremeu toda nos seus eixos. Donde pois tem origem tanta insensibilidade vossa no coração? Vos diz o Espírito Santo: "O justo perece sem que ninguém se aperceba". Não se reflete, por isso não se tem compaixão; eis o verdadeiro motivo. Também o filósofo ensina que para que um objeto, em si mesmo compassível excite a compaixão de outros, é preciso que esteja próximo. Assim, observamos que as
misérias alheias, distantes de nós no espaço e no tempo, que nada ou só ligeiramente tocam nosso coração. Por isso nada mais terei que fazer senão trazer a Paixão de Jesus tão próxima, não só do vosso pensamento, mas dos próprios olhos, que de objeto - como ele, é em si mesma - entre todos o mais compassível torne para vós objeto de compaixão a mais terna e atual.
2. - Invocações à Cruz
Ó santa cruz ainda quente e fumegante do Sangue deste Justo, ó Cruz que eu devo adorar como somente tu foste digna de carregar a augusta Vítima que em ti foi sacrificada pelas nossas culpas; sei bem que muitos e vários afetos podes trazer ao coração dos fiéis cristãos, tu que te tornaste o estandarte da sua fé, o guia seguro da sua vida, o fundamento das suas esperanças, o conforto dos míseros, o desejo dos justos, o terror do Inferno. Mas eu rogo que tua visão traga aos nossos corações uma tristeza e uma dor a mais viva daquelas penas que tu ocasionaste ao nosso Jesus, quando a ti, por nosso amor se estreitou. Mostra, pois, às almas que devotamente te fitam, aquelas fendas cruéis que em ti fizeram aqueles mesmos cravos que antes laceraram os pés e as mãos de Jesus. Mostra o local onde inclinou a cabeça expirando aquele Pai amoroso, antes, Amigo fiel, o mais terno Irmão. O
Esposo mais gentil e mais amável. Mostre enfim aquele Sangue espalhado por seu suor, de que tu ainda em longas estrias avermelhas e gotejas. Faze que, à impressão que neles pode ocasionar a tua vista, unam-se também as vozes deste Sangue eloqüente - como o chama o Apóstolo (Hb 12 24) - onde por ti se consiga no coração de todos nós aquela comoção tão grande, que eu confio muito bem de ver, mas não se produzir com minhas palavras.
3. – A Traição de Judas
a. A mais pérfida traição
Ao mundo não é novidade que um inocente, um virtuoso, benfeitor, seja traído por um amigo, muitas vezes o mais beneficiado; todavia jamais se ouviu , nem se ouvirá jamais traição mais pérfida que a de Judas. Quem é de fato Jesus? É aquele Deus ao qual por título de criação, de conservação, de fim último, os homens são devedores de tudo quanto têm, do que são, do que esperam. Quem teria pensado que entre eles se achasse um tão desleal, tão cruel, tão ingrato, que pensasse em traí-lo? Judas não só pensou, não só tratou, mas chegou ao ponto de trair este Deus tão benéfico, que para mostrar aos homens um amor maior, abandonada sua habitação tão feliz, e assumindo a nossa carne, alegrava -se - como um Rei disfarçado - em viver familiarmente com os homens seus servos e
em particular com Judas. Nem este podia não conhecê-lo por aquelas feições todas amáveis, todas divinas; enquanto o mesmo Jesus, tinha muitas vezes revelado - na presença de Judas - a nobreza da própria origem; enquanto Judas tinha sido testemunha dos milagres que Jesus todos os dias operava; aliás ele mesmo tinha operado os mesmos prodígios com toda a autoridade divina que Jesus lhe havia
comunicado. A tal honra o havia Jesus elevado da plebe mais vil; e - como se isto fosse ainda pouco - lhe havia preparado um assento digno entre aqueles doze tronos sobre os quais havia prometido fazer sentar os Apóstolos, quando voltasse para seu Reino, a fim de julgar com Ele o mundo inteiro. Entrementes tratava com ele como com o mais familiar ministro, ou direi melhor, amigo ou irmão; com ele comia, com ele vivia sem jamais afastá -lo do seu lado.
b - A última ceia
Judas, na mesma tarde em que havia determinado trair Jesus, sentava -se à mesa com Ele.
Jesus vê o ímpio coração; mas não o rejeita, não o reprova, antes lhe endereça todas as demonstrações de amor. Ele lava os pés dos discípulos e também os pés de Judas. Com Judas quis ter em comum não somente os alimentos, mas o mesmo prato. E se fala de sua morte como próxima, aliás se mostra indício da sua traição, o faz para agitar aquele coração tão duro; mas com ânimo tão pacato, que dá ao mesmo tempo confiança e perdão. Já a ceia estava no fim; e abençoado o pão e o vinho, Jesus disse aos seus Apóstolos: "Tomai, isto é o meu Corpo, bebei, isto é o meu Sangue que por vós será derramado" (Mc 14, 22, 24). Este é o penhor que vos deixo do meu amor. "Todas as vezes que isto fizerdes, recordareis de mim" (1Cor 11, 25). Tu mesmo, ó Judas, toma este Pão, que não é mais pão, mas é o meu próprio corpo; encosta tu mesmo teus lábios neste cálice; bebe este meu Sangue...
e depois vai trair-me... Eu tremo, eu palpito, eu estremeço. Prepara-se também Judas para receber
seu Mestre neste novo modo inaudito ao qual o reduziu sua ardente caridade; o acolhe naquele coração... 
c - O pacto de Judas
Judas saiu para trair seu Mestre nas mãos dos seus inimigos. "Que me dareis- disse-lhes - e eu o entregarei em suas mãos?" (Mt 26, 15). Eis a causa que pôde levar o miserável a tal excesso: o sórdido lucro. Os inimigos de Jesus apresentaram-lhe portanto trinta dinheiros. Ele aceita sem discutir o mísero preço, e acerta o modo com eles. Que golpe deve ter sido ao coração de Jesus? Não vos comove isto para com Ele tão bom, tão benéfico, tão amável, e tão ingratamente traído?
d - No Getsêmani
Mas voltemos a Jesus. Não o encontraremos mais no Cenáculo; mas longe dali, no Getsêmani. Eis que ao separar-se dos seus para entrar sozinho naquele horto em que costumava rezar à noite, Jesus não pode mais conter a angústia do seu peito, e diz aos discípulos: "Minha alma está triste até a morte" (Mt 26, 38). Via Jesus - ó amarga visão! - todo o horrível aparato da sua dolorosa paixão;
penava pela horrenda visão dos pecados de todo mundo que Ele estava destinado a levar; penava vendo que tantas almas pelas quais Ele morria, se separariam dele com uma separação cruel. Mas visão mais horrível lhe parecia o enorme delito de Judas: "Por isso quem me entregou a ti tem pecado maior" (Jo 19, 11). Se um meu inimigo tivesse urdido contra mim, eu teria suportado em paz; mas um homem que me é tão querido, ao qual sei ter feito tanto bem... isto me transpassa o coração. Vede agora a Jesus - o forte antes invencível - que de livre vontade, para satisfazer nossas culpas, se sujeita como homem a suster o peso daquelas aflições que provamos também nós; e tanto mais quanto pelo maior conhecimento da sua mente e maior sensibilidade do seu coração, Ele era mais disposto a senti-las; vede - digo - como já é obrigado a ceder livremente todo o coração à tristeza, e como cai de bruços ao solo; enquanto a resistência fortíssima com que se opõe aos assaltos daquela dor e nada mais vale senão a apertar-lhe o sangue de todas as veias até fazê-lo transpirar e ensopar a erva e as pedras ao redor. Extraordinário sinal de uma dor totalmente nova, de uma dor suma. Mas Judas se apressa; caminha diante de um bando de esbirros; aproxima-se com ar de paz. Jesus não o rejeita, o acolhe; "Amigo, a que vieste? (Mt 24, 50). E se deixa beijar: "Com um beijo tu me trais?" (Lc 22. 48). Ao sinal combinado os esbirros se arremessam contra Jesus, o amarram, o arrastam, o empurram com os punhos, com bastões, com pontapés; e para onde o levam?
4. - A sentença mais injusta
a - Jesus diante do Sinédrio
Não podereis admirar sem uma profunda comoção do coração de Jesus inocente, abandonado até mesmo pelos seus, diante daqueles juizes que são seus próprios inimigos; a ira que arde em seus rostos, o irrequieto empenho com que desejam sua morte. Procuram as testemunhas, aliás as pagam, para que deponham falsamente; interrogam a Jesus e ao mesmo tempo lhe negam a possibilidade de
falar. Se ele se cala, tomam o silêncio como confissão; se Ele fala, com uma terrível bofetada lhes fecham a boca; tribunais onde a justiça está emborcada e onde só domina a ira, o furor, o tumulto.
b - Jesus diante de Pilatos
Mas dirija-mo-nos a um juiz mais racional e imparcial; no tribunal do Governador romano. Pilatos tendo examinado Jesus sobre as acusações a ele feitas, e esclarecida a inocência, descobre que só por inveja os Judeus o queriam morto. Sai, pois, fora e o declara inocente. Mas os primeiros juizes do Sinédrio, acusadores, insistem em pedir sua morte e apresentam novas acusações; é um sedicioso que quer tornar-se Rei. Jesus confessa ser Rei, mas não deste mundo. E diz: "Se eu fosse tal, meus soldados teriam combatido por mim" (Jo 18, 36). Muito menos se pôde convencer de sedição: mas onde estão as armas escondidas? Conjurações secretas? Porém suas ações, suas pregações demonstram o contrário. O juiz volta outra vez para fora e protesta de novo que não encontra nenhuma culpa nele; tanto mais que o próprio Herodes ao qual o havia enviado, o havia também
dispensado. Por isso declara que punido com pancadas, o teria colocado em liberdade. Mas como? Se Cristo foi declarado inocente, se quer antes bater-lhe e depois libertá-lo?
c - Jesus é preterido por Barrabás
Na Páscoa era costume libertar, a pedido do povo, um condenado à morte. Pilatos oferece à escolha um destes dois: Ou Barrabás - celerado, sedicioso, homicida - ou Jesus. "Quem quereis que vos solte? Barrabás ou Jesus" (Mt 27, 17). A multidão daqueles cegos aos quais Ele restituíra a vista, daqueles coxos aos quais restituiu os membros, daqueles mudos a quem restituiu a fala, daquelas turbas famintas que por Ele foram saciadas em abundância, o procuraram para fazê-lo Rei, destes, numerosos enfermos que Ele curou certamente escolherá Jesus. Oh! este mesmo povo pede reiteradamente com altíssimos gritos; "Barrabás, Barrabás" (Mt 27, 17). Que se fará, pois, com este inocente? "Seja crucificado, seja crucificado!" (Mt 27).
d - A flagelação de Jesus.
E Pilatos que conhece sua inocência, no entanto o faz flagelar. Mas seria pouco ter negado justiça a Jesus como inocente em condená-lo; o pior é que se nega ainda como réu a condená-lo. A todos os outros réus os particulares da flagelação se definem antes" pelo juiz; Jesus se deixa de fato à
discrição dos bandidos. Nem estes param porque o sangue já escorre em rios, mas se sucedem com nova força e reduplica o furor, deixando-o com vida só por passatempo de crueldade. Não gosta o meu espírito de referir a feroz gozação que fizeram com aquele inocente; como puseram sobre sua cabeça uma coroa de espinhos calcando-a com golpes de varas; colocando na mão uma cana como cetro, e um farrapo vermelho como manto; como rei de zombaria, o escarneciam com fingidas adorações. Não se sabe se é maior a dor ou a ignomínia; já que enquanto Jesus é angustiado pelo
espasmo, eles riem, o escarnecem, e lhe batem no rosto, e sobre aquela face celestial lançam os escarros mais nauseantes. Tudo isto se faz no átrio do próprio Pretório, debaixo dos olhares do juiz; e o juiz não o impede. Que outro juízo jamais permitiria que os carrascos abusassem dos réus? Mas o povo não se contenta senão com sua morte. Em vão Pilatos grita do seu balcão: "Eis o homem!" (Jo 19, 5) mostrando-o tão desfigurado, tão dilacerado. E o povo recomeça ainda mais forte que Jesus seja condenado.
e - A condenação
Muitos outros, eu sei, foram condenados inocentes. Mas onde jamais se encontrou um juiz que antes defina não haver no acusado causa de morte, e assim mesmo o condene à morte? Pilatos leva ao público seu tribunal: "Não achei nele nada que mereça a morte" (Lc 23, 22). Portanto Jesus será solto, será salvo! Não: seja condenado, morra, seja crucificado! Agora vós. Hebreus furibundos! Que mais falta? Já ouvistes a sentença. Jesus está em vossas mãos.
5. - O suplício de Jesus foi o mais atormentado
a - Todos contra Jesus
Cristo é arrastado ao suplício fora de Jerusalém entre um frêmito de um mar de povo. Não basta um carrasco. Contra este inocente conspiram todos de toda ordem, de toda classe, de todas as condições; príncipes e ministros, juizes e soldados, leigos e sacerdotes, nobres e plebeus, literatos e ignorantes, cidadãos e forasteiros, judeus, gentios, romanos e bárbaro; todos correm para dar-lhe o mais
tormentoso suplício. Quem não pode atormentar com as próprias mãos, vai para atiçar os carrascos, para insultá -lo ao menos de longe com gritos, para comprazer-se olhando seus espasmos e sua morte. "Fremem as turbas. Erguem-se juntos" (SI 2, 1-2). "Mais numerosos que os cabelos de minha cabeça os que me detestam sem razão" (SI 68, 5). Retribuem-me o mal pelo bem, ódio por amor.
Vede: a passos lânguidos Jesus avança qual vítima inocente conduzida ao matadouro, rodeado de cães raivosos, assediado por touros furibundos. Alquebrado, como ele está pela longa , flagelação, lhe impuseram nos ombros as grossas traves do seu patíbulo. A cada passo desfalece, vacila, cai; ei-lo por terra! "É o opróbrio dos homens, a abjeção da plebe" (Sl 21, 7); não mais um homem, mas como um verme debaixo dos pés vilões que a força de pontapés e empurrões o querem em vão forçar a subida ao Calvário. Mas de onde tanto furor? O demônio entrando nos corações transforma os homens em fúrias e ministros do seu antigo rancor contra este Homem-Deus. Aí está todo o inferno: "Este é o poder das trevas" (Lc 22, 53). Se vós vedes aliviar Cristo da sua Cruz e conseguir um homem que a carregue em seu lugar, não senão para conservá-lo vivo para mais cruéis e mais longos tormentos. Onde estão seus amigos? Porque não se oferecem espontaneamente para ajudá-lo?
b - Jesus não só deve padecer por todos, mas em tudo o que possa um homem padecer.
O tormento de Jesus deve ser universal. Não só deve padecer por todos, mas ainda em tudo o que possa um homem padecer. Não só nos amigos, mas na fama. Arrastam com ele dois ladrões, para que colocado entre os celerados e os iníquos, seja reputado como um deles (Is 53, 12; Mc 25, 28). Com a fama, na honra e na glória. A cruz era o suplício de maior ignomínia: "É amaldiçoado pela lei quem pende do lenho" (Dt 21, 23). Não há nenhuma dúvida - por testemunho dos próprios escritores gentios - que a mais acerba de todas as mortes não fosse a morte de cruz. Nesta o mísero réu mais sobre aquelas partes do corpo que por serem mais nervosas, são também as mais sensíveis, isto é nas mãos e nos pés. Aí o peso do corpo aumenta continuamente a dor; e a continuidade desta dor torna a morte, tanto mais acerba, quanto é por si mesma mais lenta. Aqui as convulsões e os espasmos
de uma dor vivíssima; como fogo que arde as vísceras, cozinha os membros, e tardiamente consome. Aqui todos os outros suplícios não somente são superados, mas todos se encontram compreendidos e agregados em um só.
c - A crucifixão
Jesus, já despojado de tudo, despoja-se ainda de suas vestes. Jesus nu! Diante de um povo inumerável! Ao meio dia claríssimo, sobre a eminência de uma colina. Ah! isto é bem ser "saciado de opróbrios e estar coberto de confusão!" (4). A sua vergonha o magoa mais vivamente que todas as feridas e pontadas que tem no corpo. Onde está a beleza, o decoro, o candor puríssimo daqueles membros? É tudo uma lividez, tudo uma chaga. A cabeça coroada de espinhos; os cabelos emplastrados de sangue; os olhos empastados de terra, de poeira e de cusparadas; as faces lívidas e inchadas pelas bofetadas, pelos socos; o pescoço esfolado pelas cordas com que o arrastaram pela terra como um jumento; as costas, a coluna, os lados, as pernas, lacerados pelos flagelos, e, oh! Deus sobre que leito penoso de morte se deitam e se estendem! Os braços e os pulsos, ó Deus! Amarrados e apertado, e de cruéis ligaduras todo o corpo é estirado sobre aquela cruz! Já se levantam os pesados
martelos! Ó Deus! Parece que aqueles golpes caem sobre meu coração!... O suplício de Jesus excede e, por assim dizer, transcende todos os suplícios. Não só das mãos e dos pés, mas de todas as partes do corpo - todas chagadas - ele recebe ao mesmo tempo dores agudíssimas, tanto mais dolorosas, quanto estas feridas foram furiosamente reabertas ao despojá-lo de suas vestes, que depois da
flagelação, estavam todas grudadas; mais, foram encrudelecidas, quando, estirado o corpo com toda força sobre a cruz para levar os braços ao lugar preparado para pregá-los, foi um estiramento tão feroz, que tiveram todos os ossos deslocados; e muito mais ainda quando levantado ao alto a cruz em que Jesus estava pregado e deixada cair no profundo buraco escavado, todo o corpo ficou horrivelmente arruinado.
d - As dores do corpo e do espírito
Os algozes de Jesus, que não havia deixado nenhum só membro que não fosse ferido, não quiseram que nenhum sentido ficasse sem o próprio tormento. Haviam-lhe amargurado o gosto com fel. Para atormentar-lhe o olfato o haviam crucificado em um lugar fétido de cadáveres. Feriam-lhe continuamente o ouvido com os gritos mais horríveis, com as injúrias e os motejos mais mordazes, com as blasfêmias maiores. À vista preparavam um particular tormento que eu acredito o tormento dos tormentos. Enquanto ele tão cruelmente se esvaia, eles diante de seus olhos, insultavam sua desgraça, zombavam de seus gemidos, riam-se da sua dor. E se insinuam por este caminho a ferir muito mais profundamente o espírito. Que ferida mais acerba para um coração amante, que ver-se não só procurada a morte, mas sentir-se até na morte insultado por aqueles mesmos por cuja salvação
ele morre? Que chaga profunda naquele coração já compungido e ferido pelos pecados de todos os homens que existiram e que existirão até o fim! Em um coração que se compadecia de todos e de cada um em particular, mas em especial do horrendo deicídio! Que todos se anotava, como se fossem delitos seus próprios, com amaríssima contrição: "Palavras dos meus delitos!" (Sl 21, 2).
e - As sete palavras
Apesar disso Jesus reza pelos que os crucificam, e também os desculpa: "Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc 23, 34). Porém para blasfemá-lo, o sabem muito bem. "Salvou os outros salve -se agora a si mesmo" (Lc 35); são os chefes do povo, são entre os levitas e os mais doutos que assim falam. Quanto à plebe, até os ladrões que estão crucificados a seu lado o insultam: "Se tu é
o Cristo, salva-te a ti mesmo;" (Lc 29). E Jesus? Se um deles se retrata e reconhece seu erro, está pronto para dizer-lhe: Hoje estarás comigo no Paraíso! (Jo 43). Mas isto mesmo lhe agrava as dores. O ladrão se salva, e o meu povo, a minha nação eleita, o meu caro discípulo Judas se condena! Só um se arrepende, e será seguido por poucos. Qual a utilidade de tanto sangue que eu derramo? A muitos este sangue servirá de julgamento e esta cruz de escândalo! Suspira por assim dizer ao céu; depois abaixa aflito o olhar, e oh! Vê a Mãe! Àquela vista as águas amargas de compaixão amorosa que haviam inundado o coração da Mãe retornam em toda sua cheia daquele amaríssimo mar ao coração
do Filho, que já está cheio, e já transborda. Não se pede à Mãe de comutar suas penas e acrescentá-las ao Filho. Só lhe é negado de dar a Ele o conforto de um véu à confusão da sua nudez, de uma gota de água à sua garganta seca e moribunda. Ah! "Mulher - Jesus diz, não Mãe - eis quem daqui para diante será por mim vosso Filho". E voltando-se ao discípulo: "Esta será vossa Mãe" (Jo 19, 20-27). Já do peito inchado sai arfante a respiração que lhe fecha a garganta. Ao trepidar das fibras convulsas os membros tremem, os olhos erram revirados; é o horror natural da morte e o amor à vida - de uma vida tão preciosa e tão cara a ele - que com atendo entre si afligem a natureza. Um dilúvio de penas que jorram e chovem de toda parte do corpo e da alma, fazem naufragar o coração. E tanto estas penas sobrepujam toda a humana experiência ou juízo, quanto os sentidos de Jesus são mais perfeitos e por isso capazes de sofrer. O seu corpo - formado imediatamente por milagre do Espírito Santo do sangue puro da Virgem - era o mais delicado e sensível; enquanto a alma, por excelência da sua mente, pela imensa amplidão do coração, era - como ensina S. Tomás - com muita disposição a entristecer-se em sumo grau por todas as ocasiões de tristezas que com toda eficácia aprendia. Ora esta humanidade que agoniza entre tristezas e dores, tivesse ao menos algum conforto da divindade, que lhe é conjunta e inseparável. Mas o que são estas palavras: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Mt 27, 46). É o mesmo que dizer: Para aliviar a natureza humana de suas penas, a divindade se comporta
com ela como se não lhe fosse unida de modo algum. Essa entretém, com um dique prodigioso a cheia de sua glória na parte superior da minha alma; mas esta mesma glória - imóvel em mim - do gozo feliz, trabalha em mim para maior pena. Antes se nos outros pacientes a tristeza do ânimo ou a dor do corpo se mitiga muitas vezes com alguma reflexão que faz a razão por uma certa redundância das forças superiores nas inferiores, é fechado para mim este caminho da consolação; daí "assim como é livre todo tormento de agir no meu corpo e no meu ânimo com toda sua natural eficácia, assim todo senso ou potência é ao padecimento em toda a intensidade e pureza daquela tristeza e daquela dor que lhe é própria". Ó vós todos, pois, que com uma compassiva meditação passais hoje sobre a via marcada pelas minhas penas, ficai em mim o olhar da vossa contemplação, e
vede "se há dor no mundo semelhante à minha dor". Ó meu Jesus!Mas a força do vosso amor não diminui vossas dores, ou menos vossas internas tristezas? Aquele amor tão forte que vos faz dizer: "Tenho sede" (Jo 19, 28): sede da salvação das almas, sede de sofrer mais pela sua salvação?
Ah! irmãos! Antes aumentam incomensuradamente as suas penas. Pois se ele as assume voluntariamente para nos libertar do pecado, as assume também em tanta quantidade que fosse proporcionada à grandeza do fruto que ele pretendia. Mas esta quantidade e proporção ele não a espera somente da virtude e do valor que às suas penas e à sua dor dava a divindade sempre unida - pelo qual uma só gota de sangue era superabundante para descontar os pecados de todo mundo; -
mas da suficiência que segundo também à humana natureza deviam ter suas penas e sua dor a tanta satisfação; porque esvaziou suas veias de todo sangue espremendo-o debaixo da prensa de um suplício o mais tormentoso. Eterno Pai, o vosso querer e decreto já está cumprido por mim. O Gênero
humano está liberado da culpa não só com poder, como à vossa onipotência era possível, mas também com justiça e com rigor de justiça, como vossa honra violada exigia de mim. "Tudo está consumado" (Jo 19, 30). A vossa justiça está satisfeita. Máximo era o débito do pecado dos homens. Máximas são também as dores" que minha vontade - conforme à vossa - assumiram neste suplício; entre os quais a minha própria vida agora se perde e é antes consumida: "Tudo está consumado".
"Em vossas mãos entrego o meu espírito" (Lc 24, 46). E aqui Jesus inclina a cabeça e morre.
Assim morre o justo em um suplício o mais tormentoso, condenado pela sentença mais injusta, por uma traição, a mais pérfida. Assim Jesus termina de padecer. Mas os seus inimigos se enfurecem contra seu próprio cadáver. Abrem com uma lança no lado direito uma larga ferida que através o coração sai do outro lado das costas. Ó Jesus, nosso amor! Quem nos desse aquele cadáver sanguinolento para reparar com justo obséquio de nossas lágrimas a injúria atrocíssima daqueles cruéis!
6. - O pranto das almas redimidas
Desafogai vosso coração; deixai livre o freio para as lágrimas. Vós estais sozinhos para compadecer-se deste Inocente traído, deste Justo condenado, deste Amor crucificado. Chorai pois; é vosso Pai, é o vosso Redentor; por vós, por vós quis morrer. Pede-vos este tributo de lágrimas quem por vós deu todo seu sangue. Mas vós ouvistes as vozes deste sangue? Aquilo que aos nossos prantos responderam aquelas chagas? "Não choreis sobre mim; não sobre mim; sobre vós mesmos chorai...” (Lc 13, 28). Ó Deus! Eu vos entendo, vos entendo. As nossas culpas, a única origem do vosso sofrimento. Choremos, ó irmãos, choremos todos. Lamente-se pois Jesus, mas lamente-se ao mesmo tempo o nosso coração. Nós, causa da morte deste Justo. Nós o traímos. Ah; quantas vezes? E a que vil preço? Por um sórdido lucro, por um sujo prazer. Infiéis às promessas, ingratos aos dons, ingratos ao seu amor, mais pérfidos que um Judas traidor. Ó traição! Ó perfídia! Ó pecado! Perdão, meu Jesus, perdão; chorar sempre; pecados nunca mais, nunca mais pecados! Ó Deus! Que fizemos de fato pecando? Que injúria a Jesus! Temos postergado o Rei do Céu ao barro no nosso corpo. Aquela paixão infame devia morrer em nós; e o nosso iníquo querer ao invés gritou: morra Jesus, seja
crucificado; mas viva, viva em nós a paixão. Ó perversidade de juízo! Ó injustiça de eleição! Ó desordem do pecado! Perdão, ó Jesus, perdão! Nunca mais pecado, pecado nunca mais! Morte, morte ao pecado! A nossa iníqua vontade se condene a uma perpétua contrição. Enquanto durar a vida, chorem estes olhos, arrependa-se este coração, sofram estes membros. A nós, Senhor, a nós estes espinhos que vos transpassaram as têmporas, terrível fruto de nossos réus pensamentos. A nós estes cravos, obras funestas de nossas mãos e pés livres e lascivos. A nós esta cruz, fatura infame do nosso
pecado. A nossa soberba, a nossa ira, a nossa gula, a nossa lascívia foi a vossa cruz. Nós o matamos; nós o crucificamos. Ó crueldade! Ó barbárie! E mesmo morto, os nossos escândalos continuam a lacerar este corpo, a ferir este lado, a abrir este coração para daí tirar as almas a vós tão caras e arrebatá-las do seio paterno. E, esgotadas as vossas veias, pisa-se por nós este Sangue. Pisase
em todas as esquinas, em todas as ruas, em todas as praças com tantas blasfêmias. Pisa-se nestes tempos, aos pés destes altares com tantas sacrílegas profanações. Pisa-se em todos os lugares, em todas as horas por todos nós, que tantas vezes lavados neste Sangue, do pecado, ainda pecamos e continuamos a pecar. Ó sumo furor! Ó auge de crueldade! Ó excesso do pecado! Quem não sabe o que seja o pecado, venha a esta cruz e o aprenda. Eu venho, eu mesmo, colocá-la debaixo dos olhos, estendê-la a vossos pés. E quem não tem pecado eu me contento que não chore. Mas nós pecadores, que temos crucificado tantas vezes em nós mesmos este Filho de Deus; nós que temos colocado debaixo dos pés o Sangue do Testamento, nós choramos, choramos todos, choramos ainda mais. Muito convém a nós; a nós que mereceríamos chorar eternamente sepultos aos pés do pérfido Judas, dos iníquos Hebreus, dos próprios demônios; que todos superamos em perfídia, em injúria, em crueldade. Talvez o último flagelo nos espera ainda por poucos instantes. Choremos todos, ó irmãos, antes que decline este dia de redenção copiosa e de salvação; antes que decline para dar lugar ao dia da ira e da vingança. Choremos aos pés de Cristo morto que estende a nós os braços, antes que volte na sua majestade e no seu furor para julgar a nossa culpa. Choremos, irmãos, choremos ainda mais. É-nos muito útil que choremos neste dia; dia em que se dá o perdão aos que o crucificaram; dia em que também a nós Jesus apresenta a misericórdia e dá em penhor a bênção.

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