6 de novembro de 2014

Páginas de Vida Cristã - Pe. Gaspar Bertoni

V – PREPARAÇÃO À SANTA PÁSCOA -
O JEJUM QUARESMAL DEVE SER ENCARADO COM ALEGRIA

Vê-los irmãos, recolhidos nesta igreja com tanta piedade, num tempo em que o mundo lhes apresenta enganadores convites e sedutores prazeres para afastá-los do recolhimento cristão, é uma grande satisfação que não pode deixar de atingir muito ternamente e comover um coração que ama sinceramente o bem de vossas almas, como eu confesso que é o meu. É fácil pois, conjeturar qual seja o amor de suas almas, a fome da divina palavra, o fervor do divino obséquio que prevalece em vocês, em confronto com as mais fortes, enganadoras e convidativas atrações ao mundo. Animado por disposições tão boas, eis-me expondo-lhes simplesmente e sem mais preâmbulos, o que não acharia oportuno fazer, serão com muita cautela. Desejo, e pretendo dispor seus ânimos para acolher com alegria o já próximo jejum quaresmal. Talvez lhes seja inesperada a minha proposição. Mas, eu bem sei quanto lhes importa o que deve ser feito por vocês, por necessidade, se faça com
presteza, quase por escolha,
1. - Os exercícios da penitência cristã conservam ou restituem a saúde da alma
Só lhes peço uma coisa, irmãos: que ao julgar não se deixem jamais prevenir pela primeira aparência, e muito menos por imprudente e prejudicial costume; mas pesem com a mente bem tranqüila toda a razão. Assim fazendo descobrirão facilmente como os prazeres lascivos e as excessivas devassidões foram sempre a causa funesta de onde provêm as piores doenças e a morte fatal das almas. Por isso o jejum quaresmal, com todos os outros exercícios de penitência cristã que o acompanham, é o remédio mais seguro e válido para reparar a saúde perdida ou conservá-la, como algo que corta o mal por sua verdadeira e principal raiz.
2. - Exemplos da História Sagrada
Nos tempos de Abraão várias cidades eram dominadas por um mal tão espantoso e pestilento, que o próprio Deus julgando-o incurável, resolveu consumir com fogo os numerosos habitantes de cinco cidades inteiras, ao invés de sepultá-las - como fez outras vezes sob a ruína de suas casas, para que pelo contagioso mau cheiro não fosse prejudicado o resto do mundo (Gn 19, 24-2). Perguntem a Ezequiel qual a verdadeira causa de tão grande mal. Ele responderá que não foi outra, senão terem eles, entre o luxo e o ócio e a abundância, saciado exageradamente o próprio ventre (Ez 16, 49-50).
Do povo hebreu - tirado do Egito, nutrido e criado com solicitude pela Providência de Deus em um deserto, estando já nas fraldas do Sinai, espectadores de celestes prodígios e aguardando a Lei - afirma a História sagrada que sentando-se para comer e para beber, levantou-se depois para se divertir. Debaixo desse nome honesto de diversão estão escondidas as mais velhacas e infames
desonestidades (Ex 32, 6). O homem depois do pecado original ficou com a natureza tão fraca e
debilitada, quase, como um enfermo que qualquer pequeno distúrbio é suficiente para levá-lo à morte. Deus havia providenciado antecipadamente tão grande dano exigindo desde o paraíso terrestre um rigoroso preceito de abstinência e jejum (Gn 2, 17). Felizes de nós, se nossos pais o tivessem observado! Embora em nossa miséria, nós ainda poderemos ser felizes, se alertados pelo seu erro e pela nossa ruína, soubermos nos servir de tal remédio, tão necessário quão eficaz. O caso de Nínive é uma prova muito convincente do valor e da força desse remédio. A salvação daquela desventurada cidade havia chegado a ponto de desespero, que um profeta especialmente enviado por Deus, já lhe havia vaticinado absolutamente sua sepultura debaixo de suas ruínas após um breve período de
quarenta dias. Porém, logo que aqueles condenados cidadãos, levados pelo temor a procurar no jejum o último remédio a seus males, começaram resolutamente tentar a prova, as coisas mudaram de aspecto. Deus foi aplacado. Eles com toda facilidade obtiveram o perdão e até foi mudado o decreto, que pelo seu anúncio parecia inalterável (Jn 3). Vejam vocês agora com quanta força e presteza o jejum consegue operar curas tão prodigiosas mesmo nos casos mais desesperados.
3. - Exemplo do Santo Evangelho
Observem novamente sua eficácia, tanto quanto sua necessidade, em um outro acontecimento referido no Evangelho. Voltavam um dia os discípulos, tristes para o divino Mestre, depois de haver tentado em vão muitas vezes expulsar o demônio de um possesso. Tentaram com o poder que Ele lhes havia comunicado e do qual haviam experimentado até então inúmeras e infalíveis vezes. Mas ficaram espantados quando ouviram dele esta bela resposta: "Esta espécie de demônios só
se pode expulsar à força de oração e jejum" (Mt 17, 21). Era realmente daquela raça mais imunda e mais suja, aquele demônio. Aliás o mesmo que em nossos dias se apossou do coração da maior parte dos nossos cristãos, tanto que pode ser chamado de "deus deste século". Para combater, pois, um mal tão dominador, o jejum se torna tão necessário, que a própria oração - que também é exigida para a cura - ela mesma tira dele sua força para agir. O Espírito Santo diz em outro lugar que a oração é coisa boa, mas unida ao jejum: "boa coisa é a oração acompanhada de jejum" (Tb 12, 8). É de fato o jejum que torna a mente leve, rápida, livre, e que lhe empresta asas para subir até Deus. Cessem, pois, suas queixas, cristãos, que suas orações se tornam vazias, que crescem cada dia mais as tentações a serem vencidas, que jamais encontram meios para se livrarem de suas enfermidades. Prestem bem atenção que aquilo ao qual os maiores exorcismos são inúteis, só o pode conseguir e de fato se consegue com o remédio eficaz e adaptado: o jejum.
4. - O jejum faz bem também para o corpo
Não pensem, porém, irmãos, que toda utilidade do jejum fique só na alma, não restando para o pobre corpo senão aquele pouco de amargo e desagradável que quase todos os bons remédios produzem. Eu queria que me ouvissem bem todos aqueles que, ou por malícia, para desacreditar as leis - mesmo tão discretas e suaves - da santa Igreja católica, ou por falsa preocupação da mente, exageram - com grande escândalo dos fracos - os incômodos do jejum. E gostaria ainda que me ouvissem os mais tímidos e delicados cristãos, levados por um falso amor próprio, que vêem a quaresma com horror, quase como um lento martírio ou uma carnificina. Não sabem eles como o jejum é um remédio útil e necessário para manter saudável aquele corpo pelo qual temem tanto; aliás para prolongar a vida de que tanto se penalizam. Se não acreditam em mim, acreditem no Espírito Santo, que diz no
Eclesiástico: "Muitos morreram por causa de sua intemperança, o homem sóbrio, porém, prolonga sua vida" (Eclo 37, 34). Pelas devassidões, muitos, logo e antes do tempo, terminaram sua vida; a abstinência pelo contrário é o meio mais certo para prolongar a vida. Assim é. Aquele prazer, aquele deliciar-se entre banquetes e taças, aquele não saber mais negar satisfações à gula, com o que presumem manter o corpo mais vigoroso e mais longamente, é o que mais o prejudica, o corrompe, o
suicida. E a mortificação, a sobriedade, a abstinência que eles odeiam como inimigo capital da saúde do muito amado corpo, é o que o melhora, o confirma, o conserva.
5. - Exemplo dos anacoretas e dos religiosos mais austeros
Os rígidos penitentes das desérticas solidões, lutavam até a tarde contra a fome e a sede; e quando o sol estava no ocaso, ervas amargas e insípidos frutos das plantas selvagens eram seu alimento quotidiano; as águas frescas das fontes vizinhas, sua simples e costumeira bebida. E com alimentação assim tão magra viviam muito bem por cem anos. Finalmente em nossos tempos observem aqueles religiosos que vivem fechados no claustro mais austero e praticam a maior penitência. Eles observam um jejum quase diário, e uma quaresma perpétua, sem olhar outros exercícios que afligem seus corpos; pois pisam, com os pés descalços a neve e o gelo no inverno mais áspero, e caminham com a cabeça descoberta debaixo dos raios ardentes do sol de verão, dormem sobre tábuas nuas ou sobre rala palha, e interrompem o breve sono com longas salmodias. E contudo entre eles se encontram a santidade mais robusta e a velhice mais avançada e feliz que em vão se procura nas casas ricas, repletas, dos mais delicados e bem alimentados mundanos. Portanto é verdadeira a sentença do Espírito Santo que a arte de prolongar a vida é a abstinência.
6. - Disponha-mo-nos para ir com muita alegria ao encontro do jejum quaresmal
Se as coisas são assim, e o jejum quaresmal é um remédio não somente útil, mas necessário para a salvação da alma, porque não irmos ao seu encontro alegres e cheios de júbilo? Deixemos, pois, que os mundanos se aflijam com o término próximo dos seus divertimentos. Nós, ao contrário, exultemos com a aproximação desse tempo, para nós tão felizes, de penitência. Chamem eles de festa e alegres
esses dias de tumulto, de festança, de pecado; nós com mais razão faremos festas nos dias em que afastados dos escândalos e perigos de perder a alma, gozaremos de paz, felicidade, tranqüilidade na segurança da boa consciência. No entanto o Evangelho brada: "Ai de vós que agora rides, porque gemereis e chorareis" (Lc 6, 25); "Mesmo no sorrir, o coração pode estar triste, a alegria pode
findar na aflição" (Pr 14, 13). Quão triste é amar as presentes consolações do mundo que logo passam, e descuidar a eterna felicidade que jamais se perde? Que adiantará àqueles infelizes, no momento da morte, haver gozado? Ai! - diz um Profeta - daqueles que chegam àquela hora extrema dormindo em leitos cômodos, e que luxuriosamente vivem entre comodidades e delícias, preparam as mesas com os mais gordos e delicados alimentos, bebem o vinho mais fino, e perfumam o
ambiente com os mais preciosos odores, julgando todas essas coisas como duráveis e não como fugazes e passageiras" (Am 6, 1, 3-6). Ai deles! Felizes, ao contrário, aqueles que choram porque serão consolados" (Mt 5, 4). Ó quanto se apreciará naquele dia feliz a penitência! Quão afortunada a solidão! Quão preciosos os sofrimentos! "O mundo se há de alegrar, dizia Cristo, e haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza se transformará em alegria e ninguém a poderá tirar" (Jo 16, 20, 22).
Amemos, pois, o que dura e desprezemos com energia o que logo termina. Cuidemos da alma. Pensemos em purificá-la, curá-la, se enferma? Conservar-lhe a saúde que goza atualmente e também para o futuro. Não imitemos as crianças que recusam os remédios mais saudáveis porque deixam-lhe um pouco de amargo na língua. Olhemos os santos, o que fizeram, sofreram, suportaram pela salvação da própria alma. Somos cristãos. Cristo, com seu exemplo, incentivou-nos a tomar de
boa vontade esse remédio, enquanto Ele próprio, por quarenta dias, observou um apertado jejum. E nós procuraremos exceções, encontraremos alguma desculpa para nos dispensar, nós que temos tanta necessidade? E nos parecerá muito um pouco de jejum para conseguir o paraíso, onde seremos eternamente saciados por uma imensa felicidade? E nos parecerá muito quarenta dias de uma penitência tão suave, para fugir de um fogo interminável, e de uma eternidade de tormentos que
talvez nos estejam preparados por causa dos nossos graves pecados? Pensemos assim. E com tais pensamentos disponhamos nosso ânimo para entrar com muita alegria na santa Quaresma, onde bem purificados de nossas culpas, pelo jejum, e ornado de santas virtudes, nos tomemos dignos de participar com fruto da mesa Eucarística aqui na terra, para sermos depois introduzidos no eterno banquete no Céu.

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