III - A PUREZA DE MARIA
1. - Tornei-me insipiente
Nesta festa solene à vossa piedade, ouvintes religiosos, devendo eu falar da pureza, e da pureza da SS. Virgem, Rainha dos Anjos, Grande Mãe de Deus; debaixo do fulgor de tão soberana excelência, não sabe resolver-me o meu abatido e venerador espírito. Virgem santa quem é que deve aqui falar de Vós? Quem quer tecer o elogio do candor inacessível da vossa pureza? Um pecador, um homenzinho o mais miserável. Como elevar os olhos e dirigi-lo a tanta luz se o temor os aterra, e a vergonha os fecha. Mas, porém, devemos falar, antes enfeitar a vossa oração de vestes mais solenes de gáudio e de alegria. Vós, irmãos, o quereis de todo modo; nem consentis que de outra coisa hoje se fale senão em louvor da pureza de Maria. Muito bem eu direi alguma coisa na minha insipiência. Mas recordai-vos que me haveis forçado: "Tenho-me tomado insensato! Vós a isto me obrigastes" (2Cor 12, 2).
2. - O que é a pureza
A pureza de uma coisa - segundo que tiro da doutrina do Angélico Mestre - consiste em não haver mistura com coisas inferiores a si. Assim a água se diz pura quanto mantém à sua natural clareza e esplendor, separada de qualquer partícula de matéria menos nobre e mais obscura e terrena. Assim pois como a criatura racional que é o homem, naturalmente é superior a todas as substâncias temporais e corpóreas, assim a pureza moral está nisto, que o espírito humano não se incline e
não se misture por afeto desordenado a coisas baixas da terra e tanto mais inferior a si. Entre estas os prazeres sensuais, a voluptuosidade de lama, que tomam comum às bestas e aos jumentos, são as mais vis e reprováveis. Por isso aquele coração que se submete aos prazeres brutais se chama por antonomásia impuro. Pelo contrário aquela virtude - chamada castidade, de castigar, que faz a concupiscência e refreá-la para que não a sobrepuje a cavalgar a razão e a submeter o espírito - se
atribui também por excelência o belo nome de pureza.
3. - A beleza da pureza
A beleza, o decoro desta virtude se revela da feiúra e sujidade do vício contrário. Mas para vê-la mais intimamente, basta - segundo a definição do belo que dá S. Agostinho - considerar a proporção, a harmonia, em que ela constitui as partes do homem, isto é a inferior e a superior, ordenando-as segundo a clareza espiritual da razão. E devemos ainda nós exclamar: "Ó quão bela é a geração casta com claridade!" (Sb 4, 1). Ó bela virtude! Ó bela pureza! Convém aliás dizer que esta virtude é em si perfeita e simplesmente bela; pois, como vemos que o belo agrada absolutamente a todos, assim a pureza em quem quer que se encontre e se veja, atrai com doce violência ao seu amor também aqueles corações que não a possuem e são além disso deformados pelos vícios e quase desnaturados. "Ó quão bela é a casta geração com claridade!"
4. - Virgem singular
Não se deve, porém, crer que a pureza de Maria se possa louvar só pelo seu gênero. Isto seria logo - a quem bem entende - um desvirtuá-la, como se faz com todas as coisas singulares, quando dela se fala como coisas comuns. Muito mais excelente, além de todo juízo mais bela, sabemos ser nesta Virgem, Virgem singular, a pureza. "Virgem singular". Era, todavia, necessário procurar fundamento sobre o qual levantar uma escada onde nossas pequenas mentes subam a tal altura, ou subam - melhor
dizendo - até onde possam, já que aquela meta beatíssima é inacessível. Talvez quem costuma voar com seu espírito, e - melhor ainda - que for cortesmente atraído, poderá aproximar-se mais, poderá entrar, poderá compreender: "O Espírito sopra onde quer" (Jo 3, 8); e "o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus" (1 Cor 2, 10). Nós que não presumimos de tão grandes favores, nem podemos usar asas, mas somente pés, e pés enfermos, tentaremos a subida por degraus, e pequenos
degraus. "Me empenho em conquistá-la (a meta), consciente de não ter ainda conquistado" (Fl 3, 12).
5. - A pureza conjugal
O primeiro grau comum a muitos membros da Igreja católica - o mais baixo na verdade, mas que porém merece altíssimos louvores do S. Apóstolo - pertence à pureza conjugal. "Vós todos, considerai o matrimônio com respeito" (Hb 13, 4); tanto é estimável mesmo o ínfimo grau de beleza nesta virtude. Estes são os que usam deste mundo, como se dele não usassem. Porque a figura deste mundo passa" (1 Cor 7, 21). E mantendo-se dentro dos limites do lícito e do honesto segundo as
regras da razão, se abstêm mesmo com o desejo daquilo que seja lícito e não honesto: "tudo que é puro, tudo que é amável, tudo que é justo, tudo o que é de boa fama... isto deve ocupar vossos pensamentos" (Fl 4, 13).
6. - A continência da viuvez
A continência da viuvez forma um grau mais elevado de pureza. As viúvas - segundo S. Paulo - merecem particular louvor e honra, quando são verdadeiramente viúvas; isto é não só com o corpo, mas com o coração, afastada dos homens. São estas que governam a paz das famílias, que insistem noite e dia na oração, mestras de castidade e prudência, cheias de obras boas e virtuosas; "Isto é aceito diante de Deus".
7. - A pureza virginal
O terceiro grau, muito mais alto e excelente, o constituem as virgens; nas quais aparece sobremaneira clara a beleza e a luz da pureza; "ser conveniente ao homem ficar assim como é" (1Cor 7, 26). Muitas, porém, são virgens de corpo, mas não são virgens de mente. Estas são chamadas virgens apenas materialmente, pois nelas falta a forma descrita a nós pelo mesmo Mestre da virgindade o Doutor das Gentes com estas palavras: "santa no corpo e no espírito" (1Cor 7, 34). Muitas são verdadeiramente virgens, que, porém, não sem a perfeição desta virtude, não tendo a resolução firme e constante de abster-se em perpétuo das núpcias terrenas: "Não estabeleceu firmemente" no seu coração" (1Cor 7, 37). Algumas são também perfeitas neste eminente grau de pureza, e merecem
todo o louvor da virgindade diante dos homens, mas não junto de Deus; porque satisfeitas e quase se gloriando de si mesmas de haver desprezado as núpcias terrenas, pouco ou nada cuidam de aspirar às núpcias celestes unindo-se a Deus com a oração incessante e com a amorosa contemplação, que de acordo com a mente de S. Paulo, é o fim a que é ordenada a virgindade: "Quisera ver-vos livres de
toda preocupação. O solteiro cuida das coisas que são do Senhor, de como agradar ao Senhor... digo isto para vosso proveito ... para vos ensinar o que melhor convém, o que vos poderá unir ao Senhor sem partilha" (1Cor 7, 32-35). Outras ainda mesmo oferecendo a Deus os frutos mais suaves, as flores mais belas, conservam todavia para si a posse da planta, daí podendo sempre mudar o
propósito. Estas são aquelas virgens que não consagraram a Deus a sua vontade com voto. Algumas, porém, ajuntaram também isto; "são os que acompanham o Cordeiro por onde quer que vá" (Ap 14, 4); e parece que atingiram o último limite desta virtude. De fato a que meta mais alta podem aspirar homens vivendo em carne, que vivendo não mais segundo a carne, mas em tudo segundo o espírito?
"Vós, porém, não viveis segundo a carne" (Rom 8, 9). Isto supera todo o esforço da natureza; é obra só da graça. "Nem todos são capazes de entender o sentido destas palavras... escondestes aos sábios e prudentes, revelastes aos pequenos" (Mt 19,2).
8. - A pureza de Maria é de fato preeminente
Estamos no fim da escada que tínhamos colocado. Mas quanto estamos longe ainda de tocar com o olhar a pureza de Maria! Ela sim é virgem, virgem santa de corpo e de mente, virgem perpétua, templo de Deus por união, por adesão, ao seu Esposo divino, Sacrário do Espírito Santo pela sua consagração e dedicação que fez toda de si à sua divina Majestade. Mas com quanta maior excelência são todas estas coisas na Rainha das Virgens! "Só tu sem exemplo, ó grande Virgem, agradas-te ao Senhor nosso Jesus Cristo" (5). E se muitas almas filhas da Igreja ajuntaram riquezas sobre-humanas e celestes de pureza, tu as vencestes por larga margem e sobressaístes a todas. Estas filhas de Sião viram a beleza da tua virtude, e sem contraste de salvação te declararam felicíssima e bem-aventurada entre elas. Aquelas mesmas que vestidas de glória do seu Dileto, quase rainhas, são convidadas à ceia das núpcias do Cordeiro, levantam todas concordes as suas vozes para louvar-te, para exaltar-te, e oferecem obsequiosas seus brancos lírios e os depõem aos pés do trono da tua grandeza.
9. - Em que consiste a excelência da pureza de Maria
Mas em que consiste esta excelência de pureza? Eu desconfio de consegui-la. Todavia eu tento acrescentar algum pequeno degrau novo a esta escada. Comumente a pureza das virgens, mesmo as mais santas, deve combater contra as sugestões importunas do mundo e do demônio, contra as rebeliões insolentes da própria carne. Eu sei o que diz o Apóstolo que "a virtude se aperfeiçoa na enfermidade;" sei porém que "quando me sinto fraco então é que sou forte pela graça daquele que me conforta" (2Cor 7, 9). Com a morte eu me paro imóvel na complacência da lei de Deus, de cujo amor nenhuma coisa pode me separar; mas porém "sinto em meus membros uma outra lei, que repugna à lei da minha mente" (Fl 4, 13). E o espírito na verdade está pronto, mas a carne é fraca, daí sou
constrangido a clamar: "Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte (Rm 7, 23-24). Este é o estado dos justos mesmo os mais puros, viventes na terra, cujo espírito se "renova dia a dia" (2Cor 4, 16) pela graça do nosso Salvador Jesus; mas a carne geme enquanto esperando a revelação dos filhos de Deus, quando aparecerá Cristo, nossa glória, na sua glória; então também ela será mudada na ressurreição e liberada da corrupção, e a morte ficará absorvida
em uma vitória completa. Alguns, porém, entre estes, muitos eu reconheço, nos quais depois de longos combates e prolixas agonias, a graça de Cristo começou já esta vitória; e gozam antecipadamente alguns bens ou preliminares daquela paz, mesmo no meio de um campo de guerra formidável a todos. A voz de Deus que chamando-os da multidão e da confusão, os conduziu a uma solitária conversação com a Sabedoria, exigiu silêncio de suas paixões. E eis "em paz tornou-se o lugar deles" (SI 75, 3). Este é um grau na verdade mais sublime, mas de poucos, e de fato extraordinário, e talvez não de todo estável e permanente, ao menos em todos aqueles que o alcançam. Parece que este silêncio não se faça gozar sempre, mas a intervalos segundo aquelas palavras: "Fez-se silêncio no céu - isto é na alma deste justo prevenido pelas bênçãos da doçura de Deus - fez-se silêncio cerca de meia hora" (Ap 8, 1); podendo-se nesta vida sim, começar de algum modo, mas não terminar de gozar a perfeição e felicidade da outra. Que diremos, pois, desta Santíssima Virgem, cujo seio fúlgido de pureza não foi jamais nublado nem mesmo de vestígio de paixão contrária? O seu espírito a Deus elevado, nenhuma coisa terrena o impedia ou o perturbava. Esta é bem aquela única que se pode dizer toda bela diante dos olhos de Deus, e sem mancha: "Toda
bela és, e não existe mancha em ti" (Ct 4, 7). Aliás não só não provou jamais em atos ou movimentos desregrados da natureza desordenada em suas forças inferiores, mas a própria desordem da natureza foi dela tirada perfeitamente. Se bem que disse foi tirado? "' Não reinou jamais o pecado no seu corpo mortal, prevenindo a graça na sua imaculada concepção o vício comum da natureza. Quem
poderá pois compreender com as costumeiras e muito escassas medidas dos nossos juízos a excelência da pureza da grande Mãe de Deus? Ó Deus! Esta divina maternidade, que grau de sobre-humana pureza não requeria em Maria! Muito superior à própria pureza dos Anjos! Quanto de fato pela dignidade de Mãe de Deus foi exaltada sobre todos os coros dos Anjos, tanto convinha que sua pureza excedesse com indizível vantagem aquela tão excelsa daqueles puríssimos Espíritos.
10. - Os fundamentos dela nos montes santos
Eis-me, devotos irmãos, a que altura chegamos dispondo as ascensões em nosso coração, acomodadas aos breves passos dos seus tímidos pensamentos. Indo de virtude para virtude passamos toda a perfeição humana; portanto nos elevamos acima da própria perfeição dos Anjos, chegamos ao cimo destes montes tão santos; e aqui é onde se deveria começar a falar da pureza de Maria; porque
somente agora chegamos onde ela tem o seu fundamento: "Os fundamentos dela estão nos montes santos" (SI 86, 1). Mas aqui, porém, é onde eu paro, antes retiro obsequioso meu espírito, que já
vacila em tanta altura e teme quase uma ruína ao mirar do alto tão profunda a sua baixeza. Almas puras, almas amantes, continuai, pois, à alta inacessível meta; desdobrando o vôo que só se pode seguir com asas de pomba. Aqui não se trata mais de subir por virtude humanas ou entendidas pelos homens, como fizemos até agora: "Seu vigor aumenta à medida que avançam"; trata-se só de contemplar perfeições divinas; "porque logo verão o Deus dos deuses em Sião" (Sl 83, 8). Sim,
é preciso ver perfeições divinas. Esta Virgem é Mãe de Deus. Pensai que parto tenha sido conveniente a esta pureza; e que pureza tenha sido conveniente a este parto. Vinde, ó virgens castas, ó cândidas pombas, repousar entre estes lírios entre os quais se alimenta o vosso Dileto. "Tivesse eu asas como a pomba, voaria para um lugar de repouso" (SI 54, 7). Vinde, ó amantes devotos de Maria e imitadores fiéis da sua pureza, sentai à sombra felicíssima desta planta de paraíso, e o seu fruto será doce ao vosso paladar. E porque ela estende amplamente, e abaixa antes cortesmente os ramos da sua proteção sobre todos, mesmo os ínfimos ante os seus servos, quem quer que tu sejas, ó irmão, ó irmã, que caminhas pelo árido deserto deste mundo, batido pelos ardores veementes de tuas concupiscências, recolhe-te com confiança tu também à sombra suave desta planta benéfica, e aí terás refrigério, repouso, salvação, ao ardido, ao afadigado, teu extraviado coração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário