14 de junho de 2014

Pensamentos consoladores de São Francisco de Sales.

4/14  -  O livro das doenças e das almas aflitas.

É fora de dúvida que para nós pode dar uma tranquilidade mais profunda neste mundo do que o contemplarmos muitas vezes a Nosso Senhor nas aflições que teve desde o nascimento até a morte; porque aí veremos tantos desprezos, calúnias, pobreza, indigência, abjeções, penas e tormentos, que, comparados com isto, reconheceremos que fazemos mal em chamar aflições, penas e contradições os pequenos acidentes que nos acontecem e sem desejarmos paciência para coisas tão pequenas, pois que uma só gota de modéstia basta para suportar tudo que nos acontece.
Um coração que estima e ama muito Jesus Cristo crucificado, ama a sua morte, as suas penas, os seus tormentos, opróbrios, fome, sede, ignomínias, e quando participa delas salta de alegria e abraça-as com amor.
Não vos direi que não contempleis as vossas dores, porque o vosso espírito que é pronto em replicar-me diria que elas fazem notar pela aspereza da dor que causam: mas  dir-vos-eis que as contempleis através da cruz e as achareis ou pequenas, ou pelo menos tão agradáveis, que amareis mais o sofrimento do que o gozo e toda a consolação que dele esta separado.
O calvário é a verdadeira escola do amor. É aí que as almas fiéis vêm beber nas chagas do leão da tribo de Judá o mel do amor; e no céu, depois do motivo da bondade divina, considerada em si mesma, o da morte do Salvador o mais poderoso para enternecer de amor dos espíritos bem aventurados. Todo amor que não tem a sua origem na paixão do Salvador, é frívolo e perigoso. Há pouco, na oração, considerando o lado aberto de Nosso Senhor e contemplando o seu coração pareci-a-me que os nossos corações lá estavam em torno dele, prestando-lhe homenagem como a um rei dos corações.
O crucifixo é o verdadeiro livro do cristão. Apelo para vós todos, ilustres doutores da Igreja. Devoto de São Bernardo, onde bebestes uma doutrina tão suave, senão nesse livro? E vós, piedoso Santo Agostinho, "que alimentáveis vossa alma nas chagas do Senhor"; e vós, Seráfico Francisco de Assis que extraístes do livro da cruz instruções tão tocantes; e vós, Angélico São Tomas, que nada escrevestes sem antes terdes consultado a Jesus crucificado; e vós, Doutor Seráfico São  Boaventura, que parece não terdes tido, escrevendo vossos piedosos opúsculos, outro papel senão a cruz, outra pena senão a lança, outra tinta senão o sangue de vosso salvador Jesus Cristo? Oh! que fogo vos abrasava, quando o vosso coração dava este grito de amor: "Oh! como é bom estar com Jesus crucificado! Quero aí construir três tendas; uma nas suas mãos, outra nos seus pés, e outra na chaga do lado, onde quero repousar e vigiar, ler e falar, orar e praticar".
Oh! Se Nosso Senhor nos amou até a morte da cruz, que nos resta fazer senão morrermos também de amor por Ele, ou, se não pudermos morrer por Ele, pelo menos vivermos para o servir? Com certeza, se o não amamos, se não vivemos para Ele, somos ingratos e pérfidos. "Oh! Senhor, dizia Santo Agostinho, é possível que o homem saiba que morrestes por ele e que ele não virá por Vós?" "Que! Deus Meu, dizia suspirando São Francisco de Assis, morrestes de amor por nós, e ninguém Vos ama!"
São Paulo, este incomparável mestre e doutor da Igreja nascente fazia as delícias do seu coração da vista de Jesus Cristo na cruz; era Ele o objeto dos seus discursos, o termo de todos os seus desejos neste mundo, e o apoio das suas esperanças na eternidade. "Julguei, diz ele, nada saber senão a meu Jesus crucificado; nunca me glorifiquei senão na cruz de meu Jesus, e não creias que eu tenha vida outra senão a da cruz; porque eu vos asseguro que vejo e sinto de tal modo em toda a parte a cruz do meu Jesus que por sua graça estou completamente crucificado para o mundo e o mundo para mim, Bem aventurada a alma que vê por toda a parte a Jesus crucificado!"
É conveniente trazermos sempre conosco a cruz e beijá-la muitas vezes com amor, contemplá-la com respeito e ternura, dizendo-lhe: "Ó Jesus, amado do meu coração, consenti que vos aperte no seio como um ramalhete de mirra; prometo-vos que a minha boca, que é feliz em beijar a vossa santa cruz, se absterá dora avante da maledicência, dos murmúrios e de toda a palavra que vos possa ofender; que os meus olhos que vêem correr o vosso sangue, as vossas lágrimas pelos meus pecados não verão mais as vaidades do mundo, nem nada que me exponha a ofender-vos; que os meus ouvidos, que ouvem com tanta consolação, as sete palavras pronunciadas por vós na cruz nunca se comprazerão com os louvores vãos, com as palavras que ferem o próximo; que o meu espírito, depois de ter estudado com tanto gosto os mistérios da cruz, nunca abrigará pensamentos, nem imaginações vãs ou más; que a minha vontade submetida às leis da cruz e ao amor de Jesus crucificado, só terá caridade para com meus irmãos; enfim que nada entrará nem sairá do meu coração, senão com permissão da santa cruz, cujo sinal eu traçarei sobre mim com veneração ao deitar, e ao levantar, e em todas as angústias da minha vida."
Deveis todos os dias, não na oração, mas passeando, considerar a Nosso Senhor, entre as penas da nossa redenção e considerar que a felicidade será para vós participar dela, ver em que ocasião isto vos pode acontecer, isto é, as contradições que podem sobrevir aos vossos desejos, mas sobretudo aos que vos parecem mais justos e legítimos; e depois, com um grande amor da cruz e paixão de Nosso Senhor, deveis exclamar como Santo André: "O! cruz, tão amada do meu Salvador, quando me recebereis em vossos braços?"
Que graça não é o estar não só sobre a cruz, ou pelo menos um pouco crucificado com Jesus Cristo? Animai-vos pois, e convertei a necessidade em virtude, e não percais a ocasião de testemunhar bem o vosso amor para com Deus nas tribulações, como Ele testemunhou o céu para convosco entre os espinhos.
Ficai em paz entre os braços paternais do pai celeste, pois que pertenceis a Ele e não a vós. Oh! que favor não é o Ele conservar e reservar as suas gratificações para a vida eterna!
É tal a nossa vida que convém que nos alimentemos mais com absinto do que com mel; mas Aquele pelo qual resolvemos padecer todas as oposições nos dará a consolação do seu espírito em ocasião própria. "Não percais a esperança, diz o Apóstolo; porque fortificados por ela sofrereis e suportareis com coragem o combate das aflições, por maior que seja."
Quando o vento se introduz nos vales, entre as montanhas estraga as florzinhas e arranca as grandes árvores. Assim, eu que estou elevado à categoria de bispo, recebo mais incômodos. Mas na sagrada base da cruz de Nosso Senhor, a chuva que cai por toda a parte abate este vento. Quando eu aí estou, oh! Deus, como está em paz o meu coração e quanta suavidade lhe dá este orvalho rubro! Conservai-vos ´pois no lado aberto do nosso Salvador... Como é bom este Senhor! Como é amável o seu coração! Permaneçamos neste santo asilo; viva sempre esse coração nos nossos e gire sempre nas veias das nossas almas. Humilhai a fronte aos pés da cruz, e conservai-vos ali humildemente e cheio de confiança para receber os méritos do sangue que dela mana.

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