6 de maio de 2014

Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales.

14/26  -  Do proveito espiritual que podemos tirar das nossas faltas.

O orgulho é um mal tão comum nos homens, que nunca podemos pregar de mais a prática da santa virtude. Ora a humildade é o reconhecimento voluntário da nossa abjeção. Este conhecimento do nosso nada não nos deve inquietar, mas abaixar, dulcificar e humilhar. É o amor próprio que nos faz impacientar de sermos vis e abjetos.
Mas eu sou tão miserável, tão cheio de imperfeições! Conheceis isso bem? Pois bem, dizei a Deus, por vos dar esse conhecimento, e não vos lamenteis. Sois bem felizes por conhecerdes que só sois miséria. É preciso confessar a verdade: somos pobres que nenhum podemos fazer.
Digo-vos pois que sereis fiéis se fordes humildes. - Mas serei eu humilde? - Sim, se quiserdes. - Mas eu quero. - Logo se-lo-eis. - Mas eu sinto bem que o não sou. - Tanto melhor; é sinal de que sois.
As nossas imperfeições no tratar dos assuntos interiores como exteriores, são uma grande causa da humildade; e a humildade nutre e produz a generosidade. Nosso Senhor permite a nossa fraqueza em encontros pequenos para nos humilhar e provar que, se vencemos grandes tentações, não foi por nossa força, mas pela assistência da divina bondade. Tende paciência. Se Deus vos deixar escorregar é para vos provar que cairíeis se Ele vos não segurasse.
Deus curou subitamente a alguns, como fez à Madalena, sem lhe deixar vestígio algum de enfermidade; a qual, sendo um charco de água corrupta, foi transformada em uma fonte de água de perfeição e desde este momento não foi inquietada. Mas também este Senhor deixou em vários dos seus discípulos muitos sinais de suas má inclinações, algum tempo depois da sua conversão, como sucedeu a São Pedro, que desde a primeira vocação caiu muitas vezes em imperfeições, e uma vez caiu miseravelmente pela negação. Salomão diz que a criada que se torna senhora é um animal insolente. Da mesma forma, a alma dominada sempre pelas paixões, e que se visse rapidamente livre delas e sua dominadora, tornar-se-ia vã e insolente. É preciso que adquiramos este domínio pouco a pouco; foi para essa conquista que os santos e santas tantos anos trabalharam.
Conservai-vos em paz, sofrendo com paciência as vossas pequenas misérias. Pertenceis sem reserva a Deus e Ele vos guiará bem, porque se Ele vos não livra subitamente das vossas imperfeições, é para vos livrar com mais utilidade; é para vos exercitar na humildade; é para serdes mais firmes nesta querida virtude.
Deveis, conforme já vos disse, estar muito afeiçoados à pratica da fidelidade, para com Deus, e à da humildade; da fidelidade, para renovardes as resoluções de servirdes a divina bondade, logo que a ela falteis; da humildade para reconhecerdes a vossa abjeção e miséria, quando violardes esta virtude.
Os que aspiram ao amor puro de Deus não têm necessidade de tanta paciência com os outros, como consigo mesmo. Convém, para chegar a perfeição sofrer com paciência e não amar. A humildade nutre-se com este sofrimento. Todos temos defeitos e não nos deve espantar o encontrá-los; porque se passa algum tempo sem cairmos em alguma falta, virá outro tempo em que caiamos a cada passo em imperfeições do que nós devemos aproveitar para nossa humilhação.
Se fosse possível sermos tão agradáveis a Deus sendo imperfeitos, como sendo perfeitos, deveríamos desejar ser imperfeitos, para desta forma alimentarmos em nós a santa humildade. Contudo, notai bem o que vou dizer-vos: embora estimemos a abjeção que se segue ao mal, não devemos contudo deixar de remediar o mal. Farei o que puder para não ter um cancro na face; mas, se o tiver, estimarei a humilhação que daí provém. Em matéria de pecado, devemos ter esta regra: desregrei-me nisto ou naquilo; se uma das coisas se pudesse separar da outra, tiraria o mal do pecado, estimaria a humilhação.
A purga ordinária dos corpos ou dos espíritos não se faz senão pouco a pouco, por graus, com trabalho e vagar. Os anjos tem asas na escada de Jacó, e não voam, mas sobem a escada degrau a degrau. A alma que sobe do pecado à devoção é comparável a aurora, que, ao nascer, não repele as trevas de repente, mas pouco a pouco. A cura, diz o aforismo, que se faz com vagar, é sempre sólida. As doenças da alma, como as do corpo, chegam depressa; mas retiram-se vagarosamente.
Convém pois ter paciência e não procurarmos curar em um dia tantos maus hábitos, que temos contraído pelo pouco cuidado que temos tido na nossa saúde espiritual; se a força da tormenta nos transtorna o estômago e nos faz voltar a cabeça, não nos admiremos; mas, logo que pudermos, tomemos coragem, e animemo-nos a praticar o bem.
Levantai pois o vosso coração quando ele cair; mas docemente, humilhando-vos ante Deus pelo conhecimento da vossa miséria, sem contudo vos admirar a vossa queda, porque não é de admirar que a enfermidade seja doença, a fraqueza seja fraca e a miséria vil.
Aborrecei contudo com todas as forças, a ofensa que Deus de vós recebeu, e com uma grande coragem e confiança na sua misericórdia, colocai-vos no caminho da virtude que abandonastes.
É preciso entristecermo-nos pelas faltas cometidas, com um arrependimento forte, constante, tranquilo, mas não turbulento, nem inquieto e desanimador. Nada nos deve entristecer e afligir, a não ser o pecado; e mesmo esta aflição deve misturar-se com a alegria e consolação santa na misericórdia divina. Quem pertence a Deus não se contrita senão por tê-lo ofendido; e esta tristeza transforma-se em humildade e submissão simples e tranquila, e depois elevamo-nos à divina bondade por uma doce e perfeita confiança sem cuidado nem despeito.
Tende um extremo cuidado em não desanimar quando cometeis alguma falta; mas humilhai-vos prontamente ante Deus, com uma humildade doce e amorosa, que vos mova à confiança de recorrer prontamente a sua bondade, ficando certos de que ela vos ajudará. Quando vos aconteça cairdes em faltas, sejam quais forem, pedi docemente perdão a Deus, dizendo-lhe que estais bem certos de que Ele vos ama e perdoará. A desconfiança que tendes de vós mesmos é boa, contanto que sirva de fundamento à confiança que deveis ter em Deus; mas se vos levar ao desalento, inquietação e melancolia, peço-vos que a rejeiteis como tentação das tentações e nunca permitais ao vosso espírito que dispute ou desígnio em favor do abatimento da inquietação do coração, a que estais inclinado, embora seja com o especioso pretexto de humildade.
É necessário ter uma coragem invencível para não nos cansarmos, porque sempre tivemos a fazer alguma coisa. Não vedes as pessoas que aprendem todos os dias a jogar armas, ou as que a aprendem montar a cavalo como caem, ou se ferem muitas vezes? Mas nem por isso se consideram vencidas, porque uma coisa é estar abatido ou ter caído, e outra, é ser vencido totalmente.
Algumas quedas, ou pecados mortais, contanto que não seja com desígnio de neles adormecer não nos  impede o progresso da devoção, a qual, embora se perca pecando mortalmente, recobra-se contudo com o primeiro arrependimento que tenhamos do pecado, não nos conservando nele muito tempo. Convém não perder animo, mas olhar a enfermidade com uma santa humildade, acusarmo-nos, pedirmos perdão e invocarmos o socorro celeste. Nada de desalento; porque embora sejamos miseráveis, Deus ainda é muito mais misericordioso para aqueles que tem vontade de o amar e que colocaram nele as suas esperanças.
Esta frase célebre entre os antigos : "Conhece-te a ti mesmo", embora se entenda da grandeza e excelência da alma para não a profanar e aviltar com coisas indignas da sua nobreza, também se entende do conhecimento da nossa vileza, imperfeição e miséria: porque, quanto mais miseráveis nos julgarmos, tanto mais confiaremos na bondade e misericórdia de Deus; porque entre misericórdia e a miséria há uma ligação tão grande, que não se pode exercer uma sem a outra. Se Deus não tivesse criado o homem, teria sido bom; mas não seria atualmente misericordioso, porque a misericórdia só se exerce com os miseráveis. Bem vedes pois que quanto mais miseráveis nos acharmos, mais ocasião temos de confiar em Deus, porque em nós nada podemos confiar. A desconfiança em nós mesmos provém das nossas imperfeições. É boa esta desconfiança; mas de nada serviria senão para nos lançarmos nos braços da misericórdia divina.
As faltas e infidelidade que cometemos diariamente devem-nos envergonhar quando nos aproximar-nos de Nosso Senhor; e assim nós lemos que houve grandes santas, como Santa Catarina de Sena e Santa Tereza, que ficavam muito confusas quando cometiam alguma falta; também é de razão que, quando ofendermos a Deus, nos retiremos um pouco, por humildade, e fiquemos confusos; porque se ofendêssemos um amigo teríamos vergonha de lhe aparecer. Mas não devemos permanecer assim muito tempo, porque é pelas virtudes da humanidade, abjeção e confusão, que devemos subir à união da nossa alma com Deus. De nada serviria aniquilarmo-nos e despojar-nos a nós mesmos (o que se faz por atos de confusão) se não fosse para nos entregarmos de todo a Deus, como ensina São Paulo, quando diz: "Despi-vos do homem velho e vesti-vos do novo", (Coloss. III, 9-10). Este pequeno afastamento de Deus não se faz senão para nos entregarmos a Ele com mais amor e confiança. Eis aí pois, para conclusão deste ponto, porque razão convém que nos confundamos ao conhecermos as nossas imperfeições e misérias; mas não nos devemos demorar pois cairíamos no desalento, mas sim elevarmos a Deus nosso coração com uma santa confiança, cujo fundamento deve estar nele e não em nós; porque embora nós mudemos, Ele não muda e fica tão bom e misericordioso quando estamos fracos e imperfeitos, como quando estamos fortes e perfeitos.
Acostumei-me a dizer que o trono da misericórdia de Deus é a nossa miséria. É preciso que a confiança seja tanto maior, quanto maior for a miséria.
É um coração tão doce, suave, condescendente e amoroso para com as criaturas miseráveis, contanto que reconheçam as suas misérias, tão gracioso para com os miseráveis e tão bom para com os penitentes! Quem não amará este coração tão real, tão paternalmente materno para conosco?...
Ora, pois, alegrai-vos; Nosso Senhor contempla-vos e contempla-vos com amor, e com tanta mais ternura quanto mais enfermos. Nunca permitais ao vosso espírito nutrir voluntariamente idéias contrarias, e quando vos assaltem, não os olheis de frente; voltai os olhos de sua iniquidade, dirigidos a Deus com uma corajosa humanidade para lhe falardes da sua bondade inefável, por virtude da qual ama a nossa, objeta e vil natureza humana, não obstante as suas enfermidades.
Glorificai-vos de nada serdes; estais contentes, porque a nossa miséria serve de objeto à bondade de Deus para exercer a sua misericórdia. Entre os pobres, os mais miseráveis e cujas chagas são maiores e mais repelentes entendem ser os melhores e mais próprios para obterem a esmola. Nos somos pobres; os mais miseráveis são os que estão em melhores condições; a misericórdia de Deus contempla-os com mais vontade.
Humilhemo-nos e anunciemos as nossas chagas e misérias à porta do templo da piedade divina; mas cuidemos em anunciá-las com alegria, consolando-nos por estarmos vazios, porque Nosso Senhor nos encherá do seu reino. A melhor súplica que nos pode fazer um necessitado, é expor-nos às suas necessidades e mostrar-nos as suas chagas.
Quanto à absolvição dos vossos pecados de tantos anos, deveis saber que Deus, por sua bondade, os apagou no mesmo instante em que lhe entregastes o coração, pela resolução que a sua inspiração vos fez tomar de não viverdes senão para Ele. Contudo podeis utilmente repetir a oração que fazia aquele penitente: "Senhor, lavai-me da minha iniqüidade e limpai-me do pecado" (Salmo I. 4); portanto que seja com uma confiança verdadeira e simples nessa bondade soberana, estando certos de que não vos faltará a sua misericórdia.
Animai muitas vezes o vosso coração com uma santa confiança, ligada a uma humildade profunda, dizei a Nosso Senhor: "Eu sou miserável, Senhor! E vós recebereis a minha miséria no seio da vossa misericórdia e me conduzireis com a vossa mão paternal até o gozo da vossa herança. Eu sou vil, e miserável; mas vós amar-me-eis nesse dia (da minha morte) porque confiei em vós e desejei ser vosso".
Quando tivermos defeitos examinemos imediatamente o nosso coração e perguntemos-lhe se não tem uma resolução viva e firme de servir a Deus; é de supor responda que sim, e que antes quereria sofrer mil mortes do que separar-se desta resolução. Perguntemos-lhe, logo: "Porque vacilais, pois? Porque és tão covarde" - ele responderá: "Fui surpreendido, não sei como, mas agora estou pesaroso". - Ah! é preciso perdoar-lhe; não é por infidelidade que peca; é por enfermidade. Convém, pois, corrigi-lo doce e pausadamente e não atormentá-lo e confundi-lo mais. Preparai a vossa alma para a tranqüilidade logo de manhã; tendo um grande cuidado no decorrer do dia, de lhe recordar. Se vos acontecer algum desgosto, não vos assusteis, nem encolerizeis; mas logo que o notardes, humilhai-vos diante de Deus, colocai o vosso espírito em posição suave, e dizei a vossa alma: "Demos um passo em falso; caminhemos agora bem e tenhamos cuidado". E fazei o mesmo quantas vezes cairdes.
Convém pois ter desgostos das nossas faltas; mas seja moderado e firme. Porque assim como um juiz castiga melhor os criminosos, dando as sentenças com serenidade do que dando-as com ira e paixão, porque então não castiga as culpas, mas os culpados, da mesma forma castigaremos melhor as faltas sejam quais forem, com um arrependimento sereno e firme, do que com arrependimento áspero e colérico, tanto mais que estes arrependimentos coléricos não se fazem segundo a gravidade das nossas faltas, mas segundo as nossas inclinações. Assim como as repreensões dum pai, feitas com doçura e cordialidade têm mais poder sobre um filho para o corrigirem do que as iras e cóleras; assim também quando reconhecemos em nosso coração alguma falta e o repreendemos com doçura e mansidão, temos com ele mais compaixão do que ira, e o arrependimento rocar-lhe-á melhor do que se o repreendêssemos com ira e aspereza. Quanto a mim, se tinha, por exemplo, grande gosto em não cair no vício da vaidade, quando nele caísse não lhe diria: "Não és tu miserável e abominável, que depois de tantas resoluções te deixaste seduzir pela vaidade? Morre de vergonha, não levantes os olhos ao céu cego, imprudente, infame e falso ao teu Deus" e outras coisas semelhantes. Mas corrigi-la-ia moderadamente, dizendo-lhe: "Ora pais; eis-nos caídos no atoleiro, depois de tantas resoluções de nele não cairmos mais." Ah! Levantemo-nos e deixemo-lo para sempre; imploremos a misericórdia de Deus e esperemos o seu auxílio, para doravante sermos mais fortes e entrarmos no caminho da humildade. Coragem; doravante tenhamos cautela. Deus nos ajudará e tornará fortes! E eu quereria edificar sobre esta repreensão uma resolução firme e sólida de nunca mais cair em pecado, aplicando os meios necessário com a aprovações do meu Diretor.
Se alguém não julga que o seu coração se move por esta correção suave poderá empregar uma repreensão dura e forte para excitar uma profunda confusão, contanto que depois de o repreender asperamente termine por um alívio, acabando todo o desabafo por uma doce e santa confusão em Deus. À imitação daquele grande Penitente, que vendo a sua alma aflita, dizia: "Porque estás triste e tanto te aflige, minha alma? Espera em Deus porque eu o bendirei como meu verdadeiro Senhor." - Tende por certo que, enquanto cá estivermos cercados deste corpo pesado e corruptível há sempre em nós alguma falta.
Queixai-vos de haver na nossa vida muitas imperfeições e faltas contrárias ao desejo que tendes da perfeição e pureza do amor de Deus. Respondo-vos que, enquanto na terra, é impossível deixarmo-nos completamente.
É preciso que nos suportemos até que Deus nos conduza ao céu e enquanto nos suportamos, não suportaremos coisa que preste... É regra geral que ninguém será tão santo nesta vida que cometa alguma imperfeição.
Não pensemos em deixar de cometê-las, pois, enquanto vivermos; porque ou sejamos superiores ou inferiores, somos homens e, por conseguinte, temos todos necessidade de crer nesta verdade como certa, para que não nos admiremos de sermos imperfeitos.
Nosso Senhor mandou-nos dizer todos os dias estas palavras que estão no Pai Nosso: "Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores;" e nenhuma exceção há nessa ordem porque todos temos necessidade de a cumprir.

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