12/26 - Como devemos proceder nas tentações do amor próprio.
O amor próprio, a estima de nós mesmos, e a falsa liberdade de espírito, são raízes que não podemos completamente extirpar do coração, mas só impedir que deem frutos, que são os pecados; porque não podemos evitar os seus primeiros ímpetos ou movimentos, enquanto estamos nesta vida mortal, embora nos seja possível moderar ou diminuir a sua qualidade e ardor por meio da prática das virtudes contrárias, e sobretudo do amor de Deus.
É preciso, portanto, ter paciência, e cercear pouco a pouco, domar as nossas aversões e vencer as nossas tendências e gênio, segundo as ocasiões; porque em suma esta vida é uma guerra contínua, e qual é o que pode dizer: Eu não sou atacado? A paz nos esta reservada para o céu, onde nos espera a palma da vitória. Na terra é preciso combater sempre entre o temor e a esperança, sob condição de que a esperança, deve ser mais forte, em consideração da onipotência daquele que nos auxilia.
O amor próprio só morre quando nós morremos; e tem mil meios de se abrigar na nossa alma, por ser natural, ou pelo menos, co-natural. Tem consigo uma multidão de movimentos, jeitos e paixões; é sutil e sabe mil voltas de agilidade. Convém sentir sempre os seus ataques sensíveis e as suas práticas secretas enquanto estamos neste exílio; basta que não consintamos com um propósito deliberado, firme, pleno, e é tão excelente esta virtude da santa indiferença, que o vosso velho homem, na sua porção sensível, e a natureza humana, nas suas faculdades naturais não foram constantes, nem mesmo em Nosso Senhor, que, como filho de Adão, embora isento do pecado, e de tudo o que lhe pertence na sua porção sensível e faculdades humanas, não estava indiferente, mas desejava não morrer na cruz; estando reservada a indiferença e o seu exercício ao espírito, à porção suprema às faculdades abrasadas pela graça, e enfim a Ele próprio, que era o novo Adão.
Estas pequenas surpresas das paixões são inevitáveis nesta vida mortal, e é por isso mesmo que clama ao céu o grande apóstolo: "Ah! como sou pobre criatura!" Sinto em mim dois homens: o velho e o novo; duas luzes: a dos sentidos e a do espírito; duas operações: a da natureza e a da graça. Ah! quem me livrará deste corpo da morte?
É por isso que não temos a consolação que deveríamos ter quando vemos praticar o bem; porque o que em nós não vemos não é tão agradável para nós e o que vemos em nós é muito doce e bom em razão de nos amarmos terna e afetuosamente.
Este mesmo amor próprio faz com que desejamos praticar bem tal e tal coisa, à nossa escolha; mas não quereríamos fazer se outro escolhesse, ou por obediência. Somos sempre nós que nos rendemos a nossa vontade e amor próprio. Pelo contrário, se tivéssemos perfeito amor de Deus, antes quereríamos fazer o que nos mandam; isso vem mais de Deus e menos de nós.
O vosso caminho é ótimo; nada há a dizer senão que considerais muito os passos temendo cair. Refletis muito sobre as tentações do vosso amor próprio, que são sem dúvida frequentes; mas não são nunca perigosas, ao passo que sem lhe ligardes importância, podeis dizer tranquilamente, sem vos importardes do seu número: Não, não vos obedeço.
Caminhai com simplicidade; não desejeis tanto repouso de espírito e vereis como vos será vantajoso.
Porque vos atormentais? Deus é bom e bem vos conhece: por piores que fossem as vossas inclinações, não vos podem prejudicar, porque existem para unir com mais vantagem a vossa vontade superior com a de Deus. Elevai os vossos olhos, movidos de uma confiança perfeita na bondade de Deus. Não vos afadigueis por Ele, porque Jesus disse a Marta que o não queria, ou pelo menos que achava melhor menos fadiga, ainda mesmo na prática das boas obras.
Não esquadrinheis tanto na vossa alma e nos seus progressos. Não queirais ser tão perfeito; mas vivei com boa fé nos vossos exercícios e ações que de tempos a tempos vos ocupam. Não vos inquieteis pelo dia de amanhã. E quanto ao caminho que tendes a seguir, Deus, que vos conduziu até agora, vos conduzirá até ao fim. Ficai em paz com a santa e amorosa confiança que deveis ter na benignidade da Providência celeste.
Não nos devemos admirar de encontrarmos amor próprio em nós, por ele não fazer ruído. É que algumas vezes dorme como uma raposa, e depois acorda de repente; eis, aí esta porque convém que o vigiemos e nos defendamos dele com paciência e coragem. Porque se algumas vezes nos fere, desdizendo-nos do que ele nos fez dizer e desaprovando o que nos fez praticar, estamos curados. Não nos devem incomodar muito, estes ímpetos do amor próprio; desprezando-os três ou quatro vezes cada dia, temos cumprido. Não é preciso impeli-los aos empurrões; basta dizer: Não.
Fiquemos pois em paz. Quando nos acontecer violar as leis da indiferença nas coisas indiferentes, por ímpetos súbitos do amor próprio e das paixões, prostremos, se pudermos, o nosso coração ante Deus, digamos com espírito de confiança e humildade: "Senhor! misericórdia, porque estou enfermo". Levantemo-nos em paz e com tranquilidade e reatemos o fio da nossa indiferença; depois continuemos a nossa obra.
Não devemos quebrar as cordas quando notamos desacordo; basta que prestemos atenção para ver donde provém o desarranjo e apertemos ou alarguemos a corda levemente, segundo as regras da arte.
As inclinações de orgulho, vaidade e amor próprio misturam-se em tudo e enchem com os seus sentimentos todas as nossas ações; mas nem por isso são a causa delas. São Bernardo, conhecendo um dia que o incomodavam enquanto pregava: "Retira-te de mim, Satanás, disse ele; não comecei por ti e portanto também não acabarei por ti".
Uma só coisa vos digo acerca do que me escreveis; é que excitais o vosso orgulho por afetação quando falais ou escreveis. Ao falar, a afetação passa tão insensivelmente, que quase não se percebe; mas embora não se perceba, convém mudar imediatamente de estilo. Ao escrever é diferente; é na verdade muito insuportável; porque percebemos melhor o que fazemos, e, se notamos afetação, convém punir a mão que a escreveu, fazendo-lhe escrever outra coisa de forma diversa.
De resto, não duvido que haja alguns pecados veniais em tantas voltas e reviravoltas do coração; mas, no entanto, como são passageiras, não tiram o fruto das nossas resoluções, mas só a doçura que por estas faltas perdemos, se o permitisse o estado desta vida. Mas sejamos justos: não acuseis, nem desculpeis sem madura reflexão a vossa pobre alma, com receio de que, se a desculpardes sem fundamento, a torneis insolente, e se acusardes ligeiramente, lhe tireis a coragem e a façais pusilânime. Caminhai com simplicidade e caminhareis com segurança.
Esta porção de pensamentos que afligem a vossa alma não devem por forma alguma ser espancados, porque quando acabareis vós de os vencer? É só preciso algumas vezes ao dia desprezá-los em massa e depois deixar o inimigo fazer a bulha que quiser à porta do vosso coração, porque isso pouco importa, contanto que não entre. Deixai-vos pois ficar em paz na guerra, e não vos amofineis, porque Deus esta por vós.
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