Tibieza dos que recebem raras vezes o Corpo de Jesus Sacramentado.
Fico atônito quando considero os preceitos que Deus impôs ao homem, um na Lei Natural e outro na Lei da Graça, tão opostos entre si, e ambos igualmente quebrantados. O primeiro foi no Paraíso, de que não comesse do fruto da árvore: Ne comedas. O outro na Igreja, mandando-o comer Seu Corpo: Accipite et comedite. Mas quando Deus manda-lhe abster-se, então come, ainda que soubesse estar engolindo a morte; e quando lhe ordena que coma, escusa-se, ainda que saiba que há de ser a custo de sua vida. Clama Jesus dos Altares que Sua Carne é Pão vivo e que dá a vida. Quem, porém, não se pasma de ver, hoje, a negligência que os Católicos tem em chegar a Esta Sagrada Mesa, negligência tamanha que podemos dizer deles o que de Absalão diz a Escritura, que só uma vez ao ano cortava-se os cabelos, quando se via oprimido do seu peso: Quia gravabat eum cæsareis! Da mesma sorte o praticam esses ingratos. Só quando o peso de suas culpas os derriba na terra, então, lá no fim do ano, vão receber o Pão do Céu. E muitos há que não se chegam àquela Mesa senão arrastados pelas cadeias de uma excomunhão.
Desses se queixava Santo Ambrósio, quando dizia Panis est quotidianus et tu post annum illum sumis? Este Sacramento é pão de cada dia, e tu O recebes depois de um ano? Essa é, sem dúvida, a razão por que tão facilmente perdem os homens a preciosa joia da Divina Graça, e caem do excelso cume de amigos de Deus, no abismo infernal da culpa. Assim o entendeu o doutíssimo Abade Ruperto, que aforma que a ruína dos Anjos procedeu de não ter provado Este suavíssimo Sacramento, parecendo-lhe que, se àqueles infelizes espíritos tivesse sido concedida essa dita de que depois gozariam os homens, de receber em seu peito o Corpo de Jesus, seria impossível que não se abrasassem todos em Seu amor, e tributassem ao Verbo Humanado rendidas adorações, as quais, por não Lhas tributar, for causa de sua perdição.
Certas, pois, são as quedas, e inevitáveis os precipícios daquelas Almas que raras vezes ou nunca se alimentam d'Este Divino Manjar. Disso se persuadia o Grande Condestável Nuno Álvares Pereira, que, nas tendas de campanha, entre o rumor das armas, frequentava todo dia a Sagrada Comunhão, e soía dizer que quem o quisesse ver vencido nas batalhas, o apartasse d'Aquela mesa. Santa Catarina de Sena caía gravemente enferma no dia que não recebia Este inefável Sacramento. A Virgem Úrsula Benincasa se reduzia, em lhe faltando Este salutar alimento, aos últimos termos da vida, e, só chegando o Sacertote à boca os dedos com que acabava de tocar a Sagrada Hóstia, recobrava num instante a saúde. Se dermos, porém, uma olhada para aqueles primeiros séculos da primitiva Igreja, veremos com quanto fervor recebiam quotidianamente todos os fieis o Redentor Sacramentado. Não se reputava digno do caráter de Cristão quem um só dia não O albergava em seu peito. E que diremos da Soberana Princesa de todo o criado, Maria Senhora Nossa? Ouvi o que a mesma Senhora revelou a uma serva Sua.
Muitos anos antes que o Redentor desse a vida em resgate da morte do gênero humano, comunicou à Sua Santíssima Mãe que haveria de instituir um Sacramento no Qual, convertendo a substância do pão em sua verdadeira Carne, renovaria no coração dos homens, de algum modo, aquela encarnação que, uma só vez, havia perfeito em Seu seio. Ardeu a Divina Senhora desde aquele instante em vivos desejos de dar-Lhe também dentro de Si mesma novo alojamento, e, preparando-Se cada dia, por muitos anos, com heroicos e finíssimos atos de amor, esperava a feliz hora na qual merecesse recebê-l'O. Foram, pois, tais os incêndios de Seu amoroso coração, quando nele viu Seu Divino Filho Sacramentado, que sempre, todo o tempo que Lhe durou a vida, teve-O no reservado. Porque, ainda que desde a primeira vez que O recebeu no Cenáculo no ditoso dia de Sua instituição, não comungou até que, depois da morte do Sumo e Divino Sacerdote, celebrou a primeira Missa São Pedro, Seu Vigário e sucessor; mas nunca se alteraram em Seu puríssimo peito as espécies Sacramentais, dando lugar, por particular privilégio, o calor natural, a que chegassem outras novas, antes de consumir-Se as antigas. Graça que Lhe foi concedida todo o tempo de Sua vida, para que fosse sempre uma Arca viva do verdadeiro Maná.
Que dirão, à vista de tantos excessos de amor e de tantas ânsias de receber Este Augusto Sacramento, os preguiçosos e negligentes, que passam quase toda a vida sem chegar à Sua mesa? Que dirão, a não ser o mesmo que diziam no deserto os ingratos israelitas, quando, em figura do mesmo Sacramento, lhes chovia do céu o delicado e suavíssimo Maná? Nauseat anima nostra super cibo isto levissimo. Já nos dá fastio Este dulcíssimo manjar da Carne e Sangue de Jesus Sacramentado.
Mas vejo que me respontem que não convém a homens imperfeitos e mundanos chegar tantas vezes a boca ao costado aberto do Redentor, e hospedar nas almas impuras Aquele Que acharia manchas nos cristais mais transparentes dos corações seráficos. Essa é uma ignorância manifesta, ou uma ingratidão paliada, diz o grande Padre São Bernardo, porque Quo magis æger es, magis indiges Medico. Olha, homem néscio e ingrato, quanto mais enfermo estás, mais necessitas do Médico. Quanto mais envolto te achas nas trevas do mundo, mais deves buscar o Sol Que te alumie. Logo, não é a reverência a Este Sacramento altíssimo que te embaraça chegar à Sua mesa. A ingratidão e tibieza de teu coração, e o afeto às criaturas miseráveis é o que te aparta dos braços de teu Criador, Que, como piedosa Mãe, abre naqueles Altares Seu peito para alimentar-te com o Sangue que tu desprezas, por causa das comidas grosseiras do Egito. Se tivesses o amor e a Fé de um Crisóstomo, dirias, como ele, que neste Mundo não há trabalho nem perda, exceto ver-se privado do Corpo Sacramentado de Jesus. Se tivesses o amor e a Fé daquelas duas Rainhas da Escócia e Inglaterra, Maria e Catarina, que sofreram, alegres e constantes, os últimos infortúnios de desterros, cárceres e morte, alimentadas só d'Este Pão Angélico, te asseguro que não terias tanto descuido e negligência em alimentar-se d'Ele.
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